Jefferson Zeferino
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (pucpr). professor do programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: jefferson.zeferino@hotmail.com
Resumo: A presença pública das igrejas evangélicas tem despertado interesse acadêmico acerca de suas relações sociais atuais e de suas origens históricas no Brasil. Por meio de uma revisão bibliográfica, o presente artigo objetiva refletir sobre as Ciências da Religião como área de investigação crítica dos cristianismos; interrogar as interfaces interdisciplinares das Ciências da Religião no estudo dos protestantismos; problematizar a abordagem de figuras representativas do protestantismo como caminho para a análise de seus contextos; e, finalmente, refletir sobre o lugar do dado teológico no interior dos estudos de religião. Para tanto, a trajetória de Richard Shaull (1919-2002), missionário estadunidense, é escolhida como caminho de pesquisa que permite o acesso às questões próprias do Brasil das décadas de 1950 e 1960 em suas dimensões histórica, política, social, religiosa e teológica. Como resultado, compreende-se que uma leitura atenta sobre Shaull demonstra a multiplicidade de relações de um sujeito histórico e abre caminhos complementares de investigação que ajudam a pensar o dado religioso em sua complexidade e em recortes temporais específicos. Por meio de Shaull, torna-se possível investigar as relações entre o protestantismo estadunidense e o brasileiro; o desenvolvimento do movimento ecumênico e dos movimentos estudantis e de jovens; a consolidação da responsabilidade social das igrejas no seio do protestantismo ecumênico brasileiro; a história de teologias públicas desenvolvidas em contexto latino-americano; o engajamento social de atores protestantes e sua conexão com as lutas próprias do período; as tensões institucionais e teológicas entre setores antagônicos dentro do protestantismo brasileiro.
Palavras-chave: História das Religiões. Estudos do Protestantismo. Ecumenismo. Richard Shaull. Teologia Pública.
Abstract: The public presence of evangelical churches is a matter of academic interest in their current social relations and their historical origins in Brazil. Through a bibliographic review, this article aims to reflect on the area of Religious Studies in Brazil, as an area for the critical investigation of multiple Christianities; the work interrogates the interdisciplinary interfaces of Religious Studies regarding the study of Protestantism; it problematizes the research on representative figures of Protestantism as a way to analyse their contexts; and finally, it reflects on the place of theology within religious studies. To this end, the trajectory of Richard Shaull (1919-2002), an American missionary, is chosen as a research path that allows access to the issues of Brazil in the 1950s and 1960s in their historical, political, social, religious, and theological dimensions. As a result, it is understood that an attentive reading of Shaull’s trajectory demonstrates the multiplicity of relations of a historical subject and opens complementary paths of investigation that help to think about the religious data in its complexity and in specific temporal cuts. Through Shaull, it becomes possible to investigate the relations between American and Brazilian Protestantism; the development of the ecumenical movement and the movements of youth and students; the consolidation of the social responsibility of the churches within Brazilian ecumenical Protestantism; the history of public theologies developed in a Latin American context; the social engagement of Protestant agents and their connection with the struggles of the period; the institutional and theological tensions between antagonistic sectors within Brazilian Protestantism.
Keywords: History of Religions. Studies of Protestantism. Ecumenism. Richard Shaull. Public Theology.
As Ciências da Religião, no Brasil, vêm se configurando como uma área plural que oferece um acesso crítico às religiões e seus modos de estruturação. É marcante o predomínio dos estudos sobre a fé cristã, sendo a investigação sobre outras religiões e religiosidades uma tarefa ainda em curso e que carece de aprofundamentos[1]. Contudo, ao deparar-se com os cristianismos, tal área tem permitido uma abordagem não confessional de instituições e discursos e suas relações, auxiliando a perceber a presença pública das igrejas em múltiplas dimensões e extensões. A árvore de conhecimento da área de avalição Ciências da Religião e Teologia expressa isso na subárea Ciência da Religião Aplicada, dentro da qual estão elencados entre seus temas correlatos: “religião e espaço público, política, ética, saúde, ecologia, culturas” (CAPES, 2019). Ao se considerar tal área de investigação, o presente artigo aborda criticamente os estudos do protestantismo no Brasil no horizonte interdisciplinar das Ciências da Religião. Para tanto, parte-se de uma figura representativa da história do protestantismo ecumênico no país entre as décadas de 1950 e 1960, o missionário estadunidense Richard Shaull (1919-2002).
A partir do referido recorte, o texto objetiva refletir sobre as Ciências da Religião como possibilidade de uma abordagem crítica dos cristianismos; interrogar as interfaces entre Ciências da Religião, Ciências Sociais, História e Teologia nos estudos dos protestantismos; problematizar a abordagem de figuras representativas do protestantismo como caminho para a análise de seus contextos; e finalmente, refletir sobre o lugar do dado teológico no interior dos estudos de religião.
Como objeto complexo e elusivo, a própria noção de religião carece de discussão teórica. Em consequência, a viabilidade de uma área de estudos de religião também evoca a necessidade de um debate contínuo sobre sua epistemologia. No Brasil, em virtude da autonomia da área de avaliação da CAPES denominada Ciências da Religião e Teologia, tais reflexões têm sido uma preocupação constante (PASSOS; USARSKI, 2013; SENRA, 2015; VILLAS BOAS, 2018; USARSKI; TEIXEIRA; PASSOS, 2022; ZEFERINO; VILLAS BOAS, 2022). Curiosamente, quando a ênfase se coloca nas religiões particulares, as dúvidas conceituais parecem diminuir, justamente em virtude da possibilidade de se situar a abordagem em um evento, prática, ideia, texto ou doutrina específicos (cf. PIEPER, 2017). Nessa direção, a História das Religiões, localizada no âmbito das Ciências da Religião, representa um significativo aporte em virtude de sua ênfase historiográfica, perspectiva dialógica e recorte em religiões concretas.
Como constituinte das Ciências da Religião, a História das Religiões se apresenta como um caminho pertinente para a análise dos protestantismos. Vale dizer que a história da disciplina de História das Religiões é marcada por uma dinâmica discussão metodológica que revê permanentemente os procedimentos das práticas de pesquisa. No decorrer do século XX, com as escolas francesa e italiana, a historicização do objeto religião ganhou densidade e contornos teóricos específicos no campo historiográfico (AGNOLIN, 2022; CLOCLET DA SILVA; MANCINI, 2017).
Neste âmbito, vale indicar que a História Religiosa francesa é caracterizada como um estudo acadêmico, não confessional, em diálogo com as ciências humanas e sociais, valorizando o elemento historiográfico e o marco da secularização. Na análise do religioso como produto cultural, abre-se o caminho para uma História Cultural das Religiões, a partir da qual se estabelece um diálogo com a Escola Italiana. Esta, também em perspectiva laica, dedica-se ao estudo das religiões concretamente presentes na história, não assumindo, desse modo, uma conceituação abstrata sobre a religião. Aqui, a abordagem comparativa pode ajudar a perceber as permanências, mudanças e assimilações do religioso dentro de diferentes realidades culturais. No Brasil, esse teor mais historiográfico tem se evidenciado por meio de grupos como a Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e pela diversidade de pessoas pesquisadoras e trabalhos acadêmicos, nesse marco conceitual, sobre o catolicismo, o protestantismo, o espiritismo, as religiões afro-brasileiras, assim como sobre novos movimentos religiosos, esoterismos, entre outras religiões e religiosidades (SILVA, 2009; TORRES-LODOÑO, 2013; CLOCLET DA SILVA; MANCINI, 2017).
Ao valorizar a dimensão historiográfica, portanto, os estudos do protestantismo se colocam em continuidade com uma aproximação da História das Religiões que analisa religiões particulares em diálogo com outros saberes e em chave não confessional. Como um produto cultural, portanto, busca-se antes investigar como as afirmações e enunciados religiosos incidem numa cultura ou sociedade e não propriamente tentar averiguar a condição de verdade de tais afirmações religiosas (CLOCLET DA SILVA; MANCINI, 2017).
Os estudos do protestantismo, não raro, têm se dedicado a compreensão de aspectos macrossociais e, em virtude disso, nota-se ainda uma predominância de pesquisas que se localizam no âmbito das ciências sociais. Entre sociólogos, historiadores e teólogos, vale fazer menção a alguns textos que constituem já uma história da historiografia do protestantismo brasileiro. Émile Leonard, um historiador francês, inaugura a historiografia do protestantismo brasileiro no início dos anos 1950, sendo o primeiro pesquisador oriundo da escola dos Annales, a se dedicar ao protestantismo brasileiro. Como calvinista, seu interesse no protestantismo brasileiro está relacionado com sua preocupação em pensar o protestantismo francês (LEONARD, 1981). Depois dele, vários outros trabalhos procuraram compreender diferentes aspectos do protestantismo no país. Já na década de 1970 e com preocupações propriamente relacionadas às mudanças sociais no Brasil, Cândido Procópio Ferreira de Camargo está atento já a um certo declínio da adesão ao catolicismo e ao crescimento de religiões minoritárias como o pentecostalismo e a umbanda. O que o autor relaciona com o processo de urbanização e a não adaptação da população rural que, marginalizada, concentra-se nas periferias dos grandes centros (CAMARGO, 1973). O sociólogo Waldo Cesar, que além de pesquisador é também figura de interesse para se pensar a história do ecumenismo e do protestantismo no Brasil, ocupou-se da reflexão sobre as relações entre imperialismo e protestantismo e da preocupação em se elaborar uma análise do fenômeno religioso denominado de protestantismo em suas dimensões sociológicas e teológicas e suas influências exógenas (CESAR, 1968; 1973; MOTT, 1975). Rubem Alves, em “Protestantismo e Repressão” (ALVES, 1979), posteriormente reeditado sob o título “Religião e Repressão” (ALVES, 2020), desenvolve o tipo ideal do Protestantismo da Reta Doutrina como categoria para se analisar a teologia e a ética protestantes em seus dogmatismos e a legitimação de poder institucional e político. Duncan Alexander Reily, em 1983, reuniu um extenso material documental a partir do qual elabora uma verdadeira história do protestantismo no Brasil. É com Antonio Gouvêa de Mendonça (1984), porém, que começa a surgir uma preocupação com os sujeitos históricos que atuaram no desenvolvimento do protestantismo no país. Em “O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil”, o autor elabora um arrazoado histórico acerca da presença do protestantismo no Brasil, não sem remontar às suas raízes sociais e teológicas europeias e à força da atividade missionária estadunidense. Há, no texto de Mendonça, uma marcada preocupação pelos desdobramentos da teologia protestante e por figuras centrais para sua instauração e consolidação por aqui. Sem a pretensão de apresentar um quadro exaustivo, estas obras são algumas das referências clássicas dos estudos do protestantismo no Brasil, não raro sendo elaboradas por pessoas ligadas ao protestantismo. A relevância dos estudos do protestantismo em perspectiva sociológica e historiográfica, portanto, parece bastante consolidada na universidade brasileira[2].
Dentro dos estudos do protestantismo, a ênfase em Shaull, no Brasil, é percebida no âmbito da pesquisa desde ao menos a década de 1990. Com a dissertação de Eduardo Galasso Faria, na área de Ciências da Religião, defendida em 1993, seguindo um trilho biográfico, o texto reúne significativa documentação sobre o período do missionário estadunidenste no país, enfatizando-se o caráter inovador de sua teologia para o contexto local (FARIA, 2002). Em sua segunda pesquisa de doutorado, agora no campo da História Social, Arnaldo Érico Huff Junior (2012; 2020), naquele que é o mais completo trabalho sobre Shaull no país até o momento, dedica-se ao estudo da história da produção da Teologia da Revolução do missionário estadunidense. Sua ênfase está na Conferência do Conselho Mundial de Igrejas sobre “Igreja e Sociedade” com o tema “Os cristãos nas revoluções técnicas e sociais de nosso tempo”, ocorrida em Genebra em 1966. Nela, o missionário estadunidense profere uma conferência intitulada “O desafio revolucionário à igreja e à teologia”, permitindo-lhe apresentar ao público algumas das linhas principais de sua Teologia da Revolução[3].
Fora do país, algumas pesquisas que podem ser indicadas são a tese do brasileiro Raimundo Cesar Barreto (2019a), defendida, em 2006, em Princeton, onde hoje atua como professor de World Christianity. Barreto elabora uma história das relações entre os evangélicos e a questão da pobreza, inscrevendo-se, também, entre os estudos que abordam o desenvolvimento de uma responsabilidade social no protestantismo brasileiro; o trabalho de Grenholm (1973) demonstra especial interesse em uma ética social cristã; e a tese de Santiago-Vendrell (2010), enfatiza a missiologia de Richard Shaull, percorrendo aspectos da vida e da teologia do missionário estadunidense, explicitando seus elementos originais, suas experiências missionárias, em especial na Colômbia e no Brasil, seu envolvimento com os movimentos jovens e ecumênicos, e as tensões que vivenciou na América Latina. Vale ainda citar a detalhada história do protestantismo brasileiro no período entre 1910 e 1959, na tese defendida também em Princeton por Paul Everett Pierson (1974), que também atuou no Brasil como missionário e na formação seminarística.
Em nível nacional e internacional, as pesquisas desenvolvidas sobre Shaull, demonstram o caráter multifacetado deste missionário estadunidense, bem como a possibilidade de avaliar sua vida e pensamento em diferentes chaves. A trajetória de vida de um dos expoentes do protestantismo e do ecumenismo brasileiros nas décadas de 1950 e 1960 oferece variegadas opções de estudo sobre os contextos nos quais tal sujeito histórico transitou. Efetivamente, sua atuação e suas ideias geraram controvérsias e perceber as solidariedades, rivalidades, medos, expectativas e conflitos aí desenvolvidos, algo que não pode ser definido de antemão, auxilia a delinear contornos mais precisos dos fatos históricos dos quais é testemunha (VERAS, 2018; BARROS, 2007).
Um indivíduo, localizado no interior de sistemas normativos possui ainda alguma liberdade de interpretação e manejo das regras. Há, portanto, negociações entre o indivíduo e as estruturas onde está inserido, com maior ou menor flexibilidade. Igrejas e outras instituições a elas ligadas possuem todo um sistema normativo que regula a participação dos sujeitos, sendo os sujeitos dissonantes, não raro, cerceados ou mesmo expelidos de algum modo. Mesmo as estruturas que tendem a rigidez, contudo, também estão em transformação. Entre coerções, adequações e adaptações, é interessante notar como figuras como Shaull tensionam e geram fissuras em tais estruturas institucionais, explicitando suas contradições e incoerências (VERAS, 2018; BARROS, 2007; LEVI, 2000).
Não se parte, portanto, de uma leitura da história feita de cima para baixo, pelo contrário, são os sujeitos históricos em suas incertezas, angústias e dilemas que nos fornecem uma via de acesso para a compreensão de determinados acontecimentos. Na pesquisa da história do protestantismo, portanto, interessa questionar acerca dos sentimentos de fundo que possuíam diferentes grupos e atores (DOESWIJK, 2002). Rubem Alves (2020b) fará, a seu modo, a pergunta pelo espírito que dava coesão para o Protestantismo de Reta Doutrina que analisa. Em “A herança imaterial”, de Giovanni Levi (2000), segundo Jacques Revel (2000), são as incertezas que ocupam esse pano de fundo, isso em virtude das novas dinâmicas econômicas que vão tomando espaço ao mesmo tempo em que desinstalam as organizações sociais até então vigentes. O poder visto de baixo para cima também é um protagonista na obra de Levi. O poder adquirido por esses agentes locais, como o exorcista Giovan Batista e seu pai, de quem recebe essa herança imaterial, é construído nas relações de proximidade. Os agentes locais movimentam estratégias para responder às incertezas econômicas, políticas e culturais de seu tempo (DOESWIJK, 2002). Os cenários que circundam a trajetória de Shaull, certamente, nos fazem soerguer tais questionamentos sobre o poder construído desde as bases, na convivência entre professores e alunos, no contexto ecumênico, na relação com o poder das autoridades eclesiásticas locais e estadunidenses[4].
A descrição dos fatos e dos processos históricos e sua interpretação são passos necessários da análise historiográfica. Isto quer dizer que não basta descrever fatos, assim como não basta lançar teorias ausentes de apoio empírico sobre a história. Levi alcança tal equilíbrio e, além disso, assim como Ginzburg, oferece ao leitor também uma visão das lacunas e limites de seu próprio processo de pesquisa, buscando fugir da tentação de dar coerências artificiais aos resultados que encontra na realidade que busca descrever, desnudando não somente possíveis imprecisões e contradições de suas fontes, mas também as debilidades de sua própria prática interpretativa (DOESWIJK, 2002; BARROS, 2007; LEVI, 2000).
São diversos os objetos que podem interessar o micro-historiador, entre eles, destacamos a possibilidade de se estudar a trajetória de atores sociais. Debruçar-se sobre uma história de vida, aqui, não significa biografar um indivíduo, mas a partir desse personagem, acessar diferentes elementos de interesse da história. Uma vida é analisada em função de um problema de fundo. Ademais, ao lidar com a realidade cotidiana pode acessar a lógica de circulação de micropoderes. A atenção às contradições se dá, sobretudo, compreendendo que o humano apenas não é contraditório quando protegido de alguma camada de formalidade. A atenção aos detalhes, numa análise intensiva das fontes, requer, justamente, um diálogo entre as fontes para sua interpretação. A tarefa aqui, não é a eliminação das ambiguidades numa sistematização homogeneizante, pelo contrário, ambiguidades e incongruências compõem a análise do objeto (BARROS, 2007).
Seguindo Veras (2018), entende-se que ao se optar pelo biográfico como meio de acesso ao problema delimitado, aproxima-se o historiador e o leitor de suas próprias vidas, isto é, há aí um caráter menos impessoal, o que não deve ser realizado às custas de um efetivo ganho de conhecimento sobre a história. Busca-se compreender o sentido histórico do biografado por meio de seu percurso singular. A escolha de análise da trajetória de Shaull, portanto, não prevê uma detalhada biografia cronológica narrando toda sua vida, mas a possibilidade de se problematizar momentos que ajudem a compreender as transformações sociais e as relações entre igrejas e vida pública no Brasil das décadas de 1950 e 1960.
O recurso à trajetória e produção textual de Shaull como meio de interpretação da realidade histórica e social visa compreender como um indivíduo viveu transformações sociais e políticas de seu tempo, atentando para sua atuação no interior de uma religião em processo de consolidação no contexto nacional. Em meados das décadas de 1950 e 1960, a população que se identificava como de religião evangélica (composta, em geral, por protestantes históricos e pentecostais) oscila de cerca de quase dois milhões de adeptos para aproximadamente três milhões. Segundo dados do IBGE, em meados da década de 1960 os evangélicos não chegavam a marcar 4,5% da população brasileira.
De certo modo, essa realidade demográfica diminuta, se comparada com dados atuais, auxilia a reajustar as perspectivas na abordagem do protestantismo como religião minoritária e lutando por espaço e reconhecimento no espaço público. Apesar de modesta em sua dimensão populacional, evidencia-se aí sua presença como outro cristianismo ao lado do catolicismo dominante. Além disso, a presença protestante, desde final do século XIX, caracterizava-se, também, por uma sólida atuação educacional, em especial na formação de elites locais, de modo a representar uma identificação com os avanços da modernidade, bem como estratégia para o crescimento do protestantismo (ROSA, 2015; CAMPOS, 2008; HUFF, 2020).
Ao mesmo tempo, o período da década de 1950 e início dos anos 1960 é de marcada efervescência social, política e religiosa. Segundo o próprio Shaull (1962), o clima revolucionário era bastante perceptível, algo que se devia às insatisfações em nível tanto social como eclesial. Trabalhadores do campo e da cidade estavam cada vez mais conscientes de suas situações de desfavorecimento. Grupos de estudantes e de jovens, religiosos e não religiosos, explicitavam suas indignações com a ordem vigente e consequente apelo por transformação social. Dentro das igrejas começava a ecoar de igual modo tal inconformismo com as injustiças sociais, soerguendo críticas incisivas às instâncias religiosas que permaneciam indiferentes a tais cenários. Tal período foi marcado por um volumoso êxodo rural, crescimento das cidades e outras crises relacionadas com estes câmbios sociais.
Reserva-se a Shaull um espaço de destaque na memória de protestantes brasileiros, sobretudo àqueles voltados à construção de perspectivas teológicas mais preocupadas com a dimensão social da fé cristã. Em sua passagem pelo país, atua no fortalecimento do movimento ecumênico e de suas preocupações sociais e torna-se ponto de tensão com lideranças presbiterianas de seu tempo, instâncias que posteriormente apoiariam a ditadura (ARAÚJO, 2020). Estudar tal personagem histórico, permite pensar as imbricações religiosas, institucionais, políticas e sociais, de um indivíduo, em um contexto de notáveis transformações culturais, sociais e políticas na vida brasileira. Um olhar panorâmico para a vida de Richard Shaull, auxilia a explicitar elementos de sua trajetória no Brasil que podem servir de ponto de partida para investigações futuras que considerem os processos sociais, políticos e religiosos determinantes para as transformações vividas pelo protestantismo em meados do século passado, cujos desdobramentos podem auxiliar na análise da presença protestante no espaço público brasileiro atual.
Nascido em Felton (Pensilvania, Estados Unidos), no dia 24 de novembro de 1919, Richard Shaull, filho de agricultores de ascendência germânica, foi introduzido à fé presbiteriana desde a infância. Sua família, como muitas outras naquele contexto, sofre os efeitos da crise de 1929. Assim, para que pudesse estudar, recebe uma bolsa e se forma em humanidades e sociologia no Elizabethtown College, uma instituição religiosa de perfil anabatista e pietista, onde passa praticamente toda sua adolescência. Em 1938, com interesse de se tornar pastor, inicia seus estudos no Seminário Teológico de Princeton, onde é profundamente marcado pelo convívio com John Mackay, mas também pelo tcheco Josef Hromadka (1889-1969). Nesse período de formação teológica inicial, que se conclui em 1941, Shaull tem acesso às grandes discussões teológicas do período como aquelas oriundas da teologia neo-ortodoxa (teologia dialética) cujo principal representante foi Karl Barth (1886-1968). Outros relevantes teólogos foram referências desse seu período formativo, como Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), Reinhold Niebuhr (1892-1971) e Paul Tillich (1886-1965) (HUFF, 2020).
Ainda em 1941, concluídos os estudos iniciais em Princeton, atua como pastor para logo em seguida iniciar sua trajetória como missionário. O período na Colômbia (1942-1950[5]), primeiro em Barranquilha e depois em Bogotá, é marcado por uma atuação missionária em regiões mais pobres, pela preocupação com questões sociais e pelo trabalho com jovens. Ele e sua esposa, Mildred, viveram em localidades de operários, atuando também em nível educacional, contrapondo o modo tradicional de atuação de missionários que se concentravam ou nas escolas (de perfil mais elitizado) ou em práticas conversionistas e individualistas (HUFF, 2020). É desse período seu encontro com o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda (1925-2008), ainda como estudante universitário e, como diretor do coro, ativo na igreja que Shaull pastoreava em 1950 (STRECK, 2017). Com efeito, a experiência de Shaull com estudantes universitários da Universidad Nacional de Colombia, o colocou em contato com perspectivas marxistas que não enxergava como estadunidense. No final da década de 1940, o clima entre católicos e protestantes não era amistoso (HUFF, 2020; SANTIAGO-VENDRELL, 2010).
Com um período de retorno para os Estados Unidos já planejado, o momento não era favorável para voltar à Colômbia. Aproveita este novo tempo sabático para estudar com Reinhold Niebuhr no Union Theological Seminary, onde integra um seleto grupo de quinze missionários que possuíam a tarefa de estudar o impacto do comunismo em nações do assim chamado terceiro mundo. Diferindo dos professores que conduziram o grupo de estudos, entre eles Niebuhr, e de seus colegas missionários, Shaull é levado a pensar sobre problemas estruturais na análise da sociedade, bem como nas contradições dos Estados Unidos enquanto símbolo da liberdade, mas que atuava em conchavos com as elites dominantes de países latino-americanos.
Outro professor que conhece em seu período no Union acaba se tornando um grande parceiro de sua jornada acadêmica. Se encaminha, então, novamente para Princeton, onde Paul Lehmann (1906-1994) atuava, para iniciar o doutorado com ele, etapa que concluiria apenas em 1959. Movido pela experiência na Colômbia, pelo período de estudos no Union e pela relação com Lehmann, o tema da revolução já ressoava como uma preocupação sua diante do desafio de pensar a fé cristã na relação com os contextos que enfrentava (HUFF, 2020; ROSA, 2015).
Em 1952 participa de um curso organizado pela Federação Universal de Movimentos Estudantis Cristãos (FUMEC), no Brasil. Iniciava-se ali a participação de Shaull no movimento ecumênico internacional. Inspirado, sobretudo, em Bonhoeffer, Shaull gerou um impacto significativo nos jovens presentes naquele evento, visto como alguém que pensava a igreja de um modo novo. Philipp Murray, então secretário geral da FUMEC, intermediou a permanência de Shaull no Brasil. A Missão Brasil Central, em pouco tempo, ofereceu-lhe uma oportunidade de docência no Seminário Presbiteriano do Sul da IPB. Convite aceito tanto em virtude da possibilidade de poder atuar na formação de lideranças religiosas da Igreja Presbiteriana, como por conseguir conciliar sua agenda de cooperação com a União Cristã de Estudantes do Brasil (UCEB) (HUFF, 2020; ROSA, 2015).
A passagem de Shaull como professor de História da Igreja, pelo Seminário Presbiteriano do Sul (SPS) foi marcante. Neste período, ele teve significativo impacto em Rubem Alves. Sobre seu mestre, o intelectual mineiro reconhecia o mérito de o ensinar a pensar. Alves, assim como outros de sua geração, estavam por demais preocupados com “as coisas do céu” e Shaull os levou a considerar mais seriamente a realidade terrena (BARRETO, 2019b). Esta ênfase em seu pensamento coaduna-se com aquela de John A. Mackay (1889-1983), alguém que marcou uma virada teológica na história do seminário de Princeton. Mackay atuara como missionário no contexto latino-americano em Lima (1916-1925), Montevideo (1925-1929) e na Cidade do México (1930-1932). Ao atuar como reitor do seminário de Princeton, de 1936 até 1959, influencia a escolha missionária de Shaull. O tipo de protestantismo ao qual Mackay representa uma alternativa, é aquele mais conservador presente em puritanos, evangelicais, pietistas e fundamentalistas. Contudo, já na virada do século XIX para o XX se demonstrava uma certa preocupação sobre questões sociais em diferentes igrejas. O evangelho social (Social Gospel) desempenha um papel relevante nesse contexto. Com isso, mesmo partindo de movimentos avivalistas, as igrejas estadunidenses se dividem aqui entre conservadoras e progressistas. As primeiras acentuando aspectos espirituais, enquanto as últimas assumiam uma fundamental tarefa social no que diz respeito ao seu entendimento da mensagem evangélica. Esta tensão acontece também no contexto brasileiro, com Shaull participando de algumas dessas disputas (HUFF, 2020).
Os anos no Brasil foram intensos e produtivos. Atuou com as juventudes presbiterianas e ecumênicas; com a Confederação Evangélica do Brasil; participou da Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas, em Evanston, em 1954, que, ao refletir sobre Cristo como esperança para o mundo e a relevância social das igrejas, impactou Shaull e encontra ressonância em suas próprias preocupações teológicas (SHAULL, 1953; 1955; 1959; 1962); fez parte da criação de um setor da CEB voltado para a responsabilidade social. Este setor, por sua vez, foi responsável pela organização de quatro conferências, a mais famosa delas, em 1962, sob o título de Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, ficou conhecida como Conferência do Nordeste; concluiu seus estudos de doutorado em Princeton (1959); atuou na docência de História da Igreja no SPS (1952-1959); chegou a assumir o cargo de vice-presidente do Instituto Mackenzie em São Paulo; atuou também na Junta Latino-Americana de Igreja e Sociedade (ISAL) (FARIA, 2002; HUFF, 2020).
A perspectiva teológica de Shaull teve resistências, a ponto de sofrer um processo que culminou em sua saída do seminário, em 1959. Ao ser bem-quisto por estudantes dos movimentos ecumênicos e da mocidade presbiteriana, bem como por muitos de seus alunos em Campinas, gerou a inveja de colegas e de outros pastores. Ademais, no assim chamado “caso Shaull”, o então reitor do seminário, reverendo Júlio Andrade Ferreira, reuniu vasta documentação a seu respeito e, mesmo sendo desfavorável à sua saída, estava posta uma situação em que a posição teológica e as críticas organizacionais de Shaull não seriam mais toleradas (FARIA, 2002; HUFF, 2020).
Ao voltar de seu período sabático para a conclusão da tese, ainda leciona por um tempo em Campinas, mas se desliga da instituição. Trabalha, então, na criação de um novo seminário no interior de Minas Gerais e, logo na sequência, assume interinamente a vice-presidência do Instituto Mackenzie, onde entendia poder acompanhar com maior proximidade os movimentos estudantis. Essas instâncias mais dialógicas, contudo, já despertavam insatisfações por parte da IPB que acaba dissolvendo a Confederação da Mocidade Presbiteriana. O recrudescimento conservador da IPB assemelhava-se, assim, às repressões que o país viveria em nível governamental. Com a ascensão de Boanerges Ribeiro à presidência do Supremo Concílio da IPB o quadro se acirrou, sendo criada, inclusive, uma Comissão Especial dos Seminários de modo a cercear dissonâncias doutrinais e eclesiásticas tanto em meio a alunos como professores. Entre 1963 e 1965, Shaull ainda retornaria ao Brasil em momentos pontuais, entretanto, foi logo proibido de ingressar no país pelo regime militar. Um exílio que duraria vinte anos. (HUFF, 2020).
John Mackay levou Shaull para lecionar em Princeton, onde assumiu as aulas de ecumenismo entre 1962 e 1980. Nesse período, também atuou em ISAL e participou com intervenções em importantes eventos do movimento ecumênico internacional. Destaca-se, aqui, a já referida palestra, em 1966, na conferência do Conselho Mundial de Igrejas; a continuação de sua atuação junto aos movimentos de jovens e estudantes; seu envolvimento com questões oriundas de países latino-americanos; uma série de publicações que continuaram suas reflexões sobre cristianismo e revolução (FARIA, 2002; HUFF, 2020).
Após sua aposentadoria de Princeton, continua com atividades educacionais em diferentes instituições nos Estados Unidos e na América Latina, inclusive no Brasil, em 1993, quando atua junto à Universidade Metodista de São Paulo e em outros seminários (FARIA, 2002; HUFF, 2020). O pentecostalismo se torna um tema para Shaull em estudo realizado em companhia com o sociólogo Waldo Cesar. Este encontro com a fé pentecostal constitui uma nova conversão na trajetória de Shaull, em que a voz das pessoas empobrecidas que constituem o movimento pentecostal precisaria ser ouvida com atenção também pelas igrejas históricas (CESAR; SHAULL, 1993; BARRETO, 2003). Atua, ainda, como pastor em Ardmore (EUA), antes de falecer no dia 25 de outubro de 2002.
Apresentado esse panorama da vida e obra de Shaull, nota-se que um olhar para sua presença no Brasil e produção textual possibilita o acesso a questões mais amplas das quais ele participa. Entre elas, destaca-se a efervescência política e social dos anos 1950 e 1960 no Brasil e na América Latina; o espírito dialógico presente em iniciativas ecumênicas em processo de consolidação; seu envolvimento com movimentos estudantis; os avanços na direção de uma maior responsabilidade social vivenciada por igrejas ligadas ao movimento ecumênico; a gestação de um pensamento libertário que contribuirá com a gênese da Teologia da Libertação; as tensões teológicas geradas pelas disputas entre um cristianismo mais afeito a estas preocupações sociais e aquele menos atento ou mesmo negligente a tal dimensão.
Os estudos do protestantismo, dos quais as pesquisas sobre Shaull fazem parte, se beneficiam de sua localização no interior das Ciências da Religião, pois, ao participar de um conjunto maior de pesquisas sobre os cristianismos, coloca-se em diálogo com uma diversidade de temas e abordagens que retroalimentam seus próprios procedimentos metodológicos e revisão de quadros teóricos. Vê-se, assim, como salutar, a convivência entre estudos críticos de diferentes setores cristãos e suas relações com as análises de outras religiões. Tal abertura favorece uma revisão crítica das próprias práticas de análise, abrindo, inclusive, espaço para uma certa calibragem epistemológica, fruto dessas relações interdisciplinares.
Simultaneamente, os estudos dos cristianismos, aqui, nomeadamente, os estudos do protestantismo, abrem-se para o diálogo com outras áreas fora do âmbito das Ciências da Religião, em especial com a Teologia, a História e as Ciências Sociais. Desse modo, a concentração em figuras representativas do protestantismo se apresenta como caminho possível para a análise de seus contextos sociais, políticos e religiosos.
Não se tem em mente, com isso, uma formulação romantizada desses personagens por meio da homogeneização acrítica de suas biografias (BOURDIEU, 1996), ou a criação de heróis históricos (CARR, 1982). O que está em jogo com a ênfase em Richard Shaull, por exemplo, é a tentativa de se entender como um agente religioso em suas lutas cotidianas, entre avanços, recuos, contradições e conflitos, contribuiu para a configuração do protestantismo brasileiro em meados do século XX. Cabe indicar que, ao se pensar o missionário estadunidense como um indivíduo atuante em seu mundo, não se parte de um conceito biográfico abstrato, monolítico, sem alterações ao longo do tempo. Ao contrário disso, busca-se percebê-lo em suas transformações subjetivas e reconfigurações identitárias na interação com seu ambiente social e religioso (VERAS, 2018; BOURDIEU, 1996). Daí que o estudioso do protestantismo, ao compreender que não há religiões sem ambiguidades, também entende que não há intérpretes da religião sem contexto, seja aquele que se está analisando, seja o autor da pesquisa (TRACY, 1994).
A análise da trajetória de Shaull, tarefa para pesquisas futuras, concentra-se na seleção de fatos a serem investigados em sua relação com seus contextos circundantes, de modo a compreender as relações entre protestantismo e vida pública e suas configurações e reconfigurações internas, com especial atenção para o Brasil das décadas de 1950 e 1960. Com isso, torna-se possível expor os pertencimentos e as tensões sociais vividas por ele dentro de sua atuação no presbiterianismo brasileiro e estadunidense, nos movimentos de jovens e no movimento ecumênico. Não se trata aqui de representar Shaull como herói e suas contrapartes como vilões, mas de buscar interpretar esses sujeitos históricos nas condições próprias de seu tempo (VERAS, 2018).
Richard Shaull, além de missionário, professor e ativista ecumênico e dos movimentos de jovens, foi também, justamente em virtude dessas suas atuações, um profícuo teólogo. Sua Teologia da Revolução, por exemplo, pode ser investigada em seu desenvolvimento dentro de um processo histórico que desemboca em formulações teológicas sobre a revolução (KIRK, 1980). Como ator religioso e sujeito histórico, Shaull produziu teologia. A análise crítica de sua teologia, portanto, é parte integrante dos estudos sobre ele.
Aqui, contudo, no âmbito das Ciências da Religião, o dado teológico é acessado no interesse da compreensão de Shaull e de seu contexto, especialmente, considerando as relações entre religião e espaço público. A teologia de Shaull é testemunha de um momento particular da história da teologia no Brasil. Novamente, a ênfase da pesquisa não recai sobre a tentativa de formulações generalizantes oriundas do pensamento de Shaull, ou mesmo da construção de um certo modo de fazer teologia como serviço às comunidades de fé. A análise de sua teologia, especialmente sua teologia sobre as questões da sociedade, da política e da vida pública, em outras palavras, a análise da teologia pública que tal sujeito histórico produz, é situada historicamente e pode ajudar no processo de compreensão do protestantismo de seu tempo em suas tensões, conflitos, movimentos, instituições e discursos. Vale pontuar, portanto, que a clarificação das terminologias teológicas; a explicitação crítica do dado teológico nas tensões entre religião e espaço público dentro do protestantismo das décadas de 1950 e 1960; assim como a compreensão de suas estruturas de plausibilidade e pretensões de verdade; além de sua localização na história da teologia; compõem aspectos do recurso metódico ao dado teológico no interior dos estudos de religião (cf. GROSS, 2001; TRACY, 1981; MARTY, 1974; ZEFERINO; VILLAS BOAS, 2022).
Finalmente, conclui-se que os estudos do protestantismo, localizados no âmbito das Ciências da Religião, haurem de uma intensa relação dialógica entre os saberes, de modo a se buscar uma compreensão do dado religioso em suas variadas dimensões, incluindo-se aí o exame do dado teológico como pertinente à análise de uma religião particular. Uma leitura atenta de um personagem representativo de tal campo, como Richard Shaull, demonstra a multiplicidade de relações de um sujeito histórico e abre caminhos complementares de investigação que ajudam a pensar o dado religioso em sua complexidade e em recortes temporais específicos, a saber, as relações entre o protestantismo estadunidense e o brasileiro; o desenvolvimento do movimento ecumênico; a efervescência dos movimentos estudantis e de jovens no ecumenismo brasileiro e internacional; a consolidação da responsabilidade social das igrejas no seio do protestantismo ecumênico brasileiro; o processo de desenvolvimento de uma Teologia da Revolução em contexto latino-americano; a história de teologias públicas; o engajamento social de atores protestantes; a inserção de cristãos nas questões ligadas aos trabalhadores industriais e camponeses em um período de marcada urbanização e êxodo rural. Tais temas emergem dos estudos sobre Shaull no interesse do exame de uma religião particular e podem se afirmar como contribuição aos estudos do protestantismo no horizonte das Ciências da Religião no Brasil.
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[1] Tal quadro foi apresentado pela coordenadora da área, a professora Carolina Teles Lemos, em palestra proferida na ocasião do início do ano letivo e celebração da abertura da primeira turma de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas.
[2] Para uma abordagem menos sucinta de obras aqui listadas, indicam-se as teses de Tiago Watanabe (2011) e de Rogério Véras (2018), onde nos baseamos para este levantamento. Entre as várias obras que poderiam ainda ser citadas, destacam-se os trabalhos de Ribeiro (1973; 1991), Vieira (1996); Santos (2006) e Alencar (2018).
[3] Entre os estudos que apresentam com algum destaque o pensamento e a atuação de Shaull podemos citar a dissertação de Hélerson da Silva (1996) que, dentro das Ciências da Religião e passando pela relevância da mocidade presbiteriana, investiga a história da Igreja Presbiteriana entre 1959 e 1966; a dissertação de Valdir G. Paixão Junior (2000), também no âmbito das Ciências da Religião, que tematiza a repressão na igreja presbiteriana, personificada na figura de Boanerges Ribeiro, dando atenção às tensões geradas contra teólogos ligados à instituição que possuíam, como Shaull, um perfil mais ecumênico; a dissertação de mestrado em Teologia de Marcello Fontes (2004) localiza Shaull como uma voz dissonante ao presbiterianismo dominante no país, caracterizado pelo autor como um neopuritanismo; o fenômeno chamado de boanergismo dentro da IPB é destacado por Eduardo Paegle (2006), em sua dissertação de mestrado em História, considerando o papel de Shaull e de Rubem Alves como reação e resistência; a tese de Agemir de Carvalho Dias (2007), também na área da História, estuda o movimento ecumênico brasileiro, destacando a atuação de Shaull; a dissertação de mestrado em Ciências Sociais de Luiz Ernesto Guimarães (2012) que refletiu sobre uma Teologia da Libertação de matriz protestante no contexto da ditadura militar, com um recorte na região de Londrina, em sua abordagem destaca a relevância teológica de Richard Shaull e de Rubem Alves; a tese de Fabio Henrique de Abreu (2015) em Ciências da Religião, que avalia as origens de uma consciência ecumênica e com responsabilidade social no protestantismo brasileiro, destacando em diferentes momentos a contribuição de Shaull; a tese de Wanderley Pereira da Rosa (2015), na área da Teologia, mas com marcado corte histórico, que elabora uma história de uma teologia social e política no protestantismo brasileiro, ressaltando, sobretudo, a relação de Shaull com a promoção da responsabilidade social nas igrejas protestantes; a tese de Fabio Py (2016), em Teologia, concentrando-se na figura de Lauro Bretones, explora suas relações com Shaull, enfatizando, sobretudo, o período que marca a chegada deste missionário estadunidense no Brasil; a dissertação de Colez Garcia Junior (2019), em sua pesquisa de mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, que aborda Shaull como um educador presbiteriano, buscando, justamente, explorar as contribuições pedagógicas de nosso autor.
[4] Neste contexto, faz-se referência à micro-história. Aqui, vale notar, que um comum mal-entendido no que diz respeito à micro-história é confundi-la com uma história local, contudo, não é o micro por si só que confere caráter fundamental ao método do micro-historiador, o que merece atenção é o “jogo de escalas”. Ajustam-se as lentes do micro ao macro, do detalhe ao panorâmico, das vivências individuais às transformações sociais. Busca-se notar, portanto, as ações desses sujeitos históricos sendo afetadas pelas mudanças, mas interagindo com elas. As generalizações possíveis oriundas da análise de realidades locais, aqui, operam como possibilidades de explicação de processos mais amplos a serem lidos na comparação com outros estudos de outras realidades locais. Os problemas da micro-história, são problemas gerais, contudo, na redução da escala, tornam-se visíveis discrepâncias e incongruências antes desconhecidas (DOESWIJK, 2002; BARROS; 2007; LEVI, 2017; VERAS, 2018). Considerando-se a a trajetória de Shaull, portanto, desperta o interesse observar como pequenos acontecimentos desvelam significados históricos mais complexos.
[5] Nesse meio tempo, em 1945, retorna a Princeton em um ano sabático para executar seus estudos de mestrado, comparando as místicas de Santa Teresa de Ávila (1515-1582), religiosa carmelita que viveu no século XVI, e de John Bunyan (1628-1688), um puritano inglês do século XVII (HUFF, 2020).