Os novos meios de evangelização e a consideração de verdade à luz do pensamento de José Comblin

New means of evangelization and consideration of truth in the light of José Comblin's thought

Alzirinha Rocha de Souza
Doutora em Teologia Université Catholique de Louvain Bélgica. Contato: alzirinharsouza@gmail.com

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Resumo: O objetivo deste artigo é analisar e traçar um paralelo entre o conceito de verdade cristológica e a pretensa verdade da qual se apropriam alguns conteúdos religiosos que vêm sendo disponibilizados nas mídias digitais, a título de processo de evangelização. A primeira perspectiva é a que afirma a teologia à luz do pensamento de José Comblin, ao passo que a segunda se refere ao discurso humano sobre o religioso impactado pela subjetivação daquele que o profere.

Palavras-chave: Verdade, Processos de evangelização, Mídias digitais, Missão

Abstract: The aim of this article is to analyze and draw a parallel between the concept of the Christological truth and the alleged truth that some religious content available in digital media, under the guise of an Evangelization process.  The first perspective is what Theology affirms in the light of José Comblin's thoughts, while the second perspective refers to human discourse on religion, impacted by the subjectivation of the one who utters it.

Keywords: Truth, Evangelization Processes, Digital Media, Mission

Introdução

Em diversos âmbitos, a contemporaneidade vem nos desafiando a nos compreendermos enquanto “novos” humanos dentro das rápidas mudanças que, mesmo sem percebermos diretamente, nos tocam de maneira frontal. A relação entre tempo e espaço vem sendo transformada pelo aumento da velocidade e das demandas que se apresentam dia após dia. Estas geram um impacto direto nas novas formas de comunicação. A ausência de tempo é suprida pelas tecnologias, que, se por um lado as agilizam, por outro lado as torna cada vez mais impessoais e codificadas. A relação do tempo com a comunicação é fundamental para que se perceba a dialética entre evangelização e redes sociais à medida que a linguagem das segundas muitas vezes distorce a verdade da primeira.

Com base na consideração acima, este artigo tem por objetivo refletir sobre o seguintes questionamentos: Como manter a transmissão da verdade oferecida pelo Evangelho à luz da pessoa de Jesus nos novos meios de comunicação que insistem em fragmentá-lo? A grande narrativa do Evangelho e sua verdade cabem na linguagem fragmentada da contemporaneidade? E, mais do que isso, queremos recolocar à luz do pensamento de José Comblin a reflexão sobre o que é a verdade[1] (Comblin, 2005).

Dos meios de comunicação para a verdade do Evangelho no mundo digital

Atualmente, não há como dizer que “nós somos” sem que estejamos conectados a algum instrumento digital. Diante disso, Sbardelotto (2022) afirma que a distinção entre online e offline se tornou obsoleta. Recorrendo a Floridi (2005), destaca que hoje em dia estamos utilizando a expressão “onlife de uma realidade hiperconectada que transcende a dicotomia entre estar dentro ou fora das redes” (SBARDELOTTO, 2002, p. 232). As novas possibilidades de comunicação redefinem não somente o comportamento humano, mas também o “ser” na expressão mais própria do verbo, a essência de cada um de nós. E precisamos lembrar que esse modo passou a nos afetar mais diretamente há, no máximo, 40 anos. Hoje temos ao menos duas gerações dos chamados nativos digitais, isto é, aqueles que não se compreenderão mais sem o ambiente da Internet.

Ora, na mesma proporção da utilização das redes sociais para os diversos temas acima apresentados, encontramos o crescimento e a utilização dessas ferramentas para a divulgação do elemento religioso nas mais diversas expressões. Especificamente no tocante ao ambiente religioso católico, em nome de um pseudoprocesso de evangelização, destacam-se os IDs de inspiração católica, os sites institucionais e a maciça utilização das redes sociais pelas paróquias através de suas Pascoms, o que se configura como um fenômeno comunicativo.

Nossa reflexão aqui não se prende à técnica comunicativa, mas à razão teológica pela qual podemos reavaliar a atuação já instaurada e consolidada da Igreja nas redes sociais. Em definitivo, o desafio proposto não é mais das redes para a Igreja, mas da Igreja para as redes, em busca de um caminho que gere um processo de evangelização, e não somente bolhas eclesiais — sejam elas individuais, associativas, paroquiais, diocesanas etc. Logo, podemos lançar uma segunda questão de fundo: se a missão primeira da Igreja é evangelizar, ou seja, missionar, anunciar Jesus e sua pessoa ao mundo, qualquer conteúdo religioso exposto nas mídias digitais pode ser considerado evangelização?

Processos de evangelização nas redes sociais: isso é possível?

A fim de responder a essa pergunta, que é fundamental para o tema dos desafios da Igreja em contexto urbano, nossa análise ocorrerá a partir da compreensão teológica do termo evangelizar e dos processos e objetivos advindos dessa ação associada ao instrumental da Teologia Narrativa.

O significado da palavra evangelizar (ευαγγελίζομαι – evangelízomai) está relacionado com boa nova, referindo-se, portanto, em sua origem, ao ato de divulgar a mensagem de Cristo e o conhecimento de sua pessoa por diversos caminhos. Se o Concílio Vaticano II ressalta que a responsabilidade do anúncio do Evangelho e da pessoa de Jesus cabe a todo batizado (AG, 2), posteriormente o papa Paulo VI destacará que essa ação é central para a Igreja: “evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar” (PAULO VI, Evangelii Nuntiandi, n.º 14). Contudo, somente dizer algo sobre Jesus e a Igreja não comporta todo o processo de evangelização. Em sentido estrito do anúncio, espera-se a transformação da realidade pessoal e contextual. Esse efeito posterior é condensado na fala de Jesus, mais precisamente na expressão Reino de Deus. Expressado por parábolas e gestos, o Reino de Deus é instaurado na história da pessoa de Jesus e em sua prática, apontando para sua reconfiguração a partir da concretização de novas formas de relações fraternas realizadas no já da história por aqueles e aquelas que entram na dinâmica do viver de Jesus. Nesse sentido, evangelizar não consiste unicamente em dizer algo sobre o Reino de Deus, mas, sim, em um processo que leve os demais, pela compreensão e liberdade de transformação pessoal, a uma nova práxis que expresse a concretização do Reino de Deus na história.

Um segundo elemento central a ser percebido faz referência à intencionalidade da utilização das mídias digitais para comunicar-se a partir da premissa da vinculação à Igreja Católica e/ou ao elemento religioso de forma geral. Dizer algo em nome da Igreja requer como premissa básica um alinhamento com os elementos basilares de seu discurso, a saber: escritura, tradição e magistério. Acima de suas características próprias, em escopo mais amplo, essa tríade deve ser interpretada em seu conjunto e em conjunto com a comunidade eclesial a partir do reconhecimento das transformações da sociedade e de suas demandas atualizadas no tempo presente, realizando-se a articulação entre doutrina e pastoralidade. Nesse sentido, o anúncio do Evangelho e o que se diz utilizando o nome da Igreja devem ser necessariamente expressados em linha com o conjunto eclesial do tempo presente, isto é, com o magistério atual do papa Francisco. Isso não quer dizer que não possa haver diversidade do pensamento. Pelo contrário, é da diversidade em busca da convergência que nasce o avanço do pensamento. Contudo, acima das mais diversas narrativas fragmentadas, existe desde o princípio no cristianismo uma exigência regular da fé que se vincula ao acontecimento querigmático e à explicitação doutrinal ou dogmática da fé que constitui sua transmissão (Theobald, 2011, p. 37). É tendo por base essas duas premissas teóricas acerca dos processos de evangelização que situamos nossa reflexão.

As narrativas fragmentadas na contemporaneidade

Queremos propor, de forma mais ampla, a reflexão sobre a fragmentação do pensamento no momento presente. Se a interrogação relativa ao lugar das narrativas nas sociedades atuais constitui uma preocupação da teologia atual, sua forma fragmentada amplia ainda mais a questão quando elas se expressam nas redes digitais. Para avaliarmos a questão, consideramos o instrumental da Teologia Narrativa. Para Theobald (2007, p. 461), essa nova forma de estabelecimento das narrativas representa uma nova racionalidade teológica no contexto da contemporaneidade. Seu diagnóstico aponta para o fato de a Teologia Narrativa ter se tornado “uma forma principal de apresentação da dogmática cristã e da pastoral catequética e litúrgica da Igreja” (Theobald, 2001, p. 5).

Podemos buscar a chave de tais preocupações à luz das transformações das sociedades pós-modernas ou pós-metafísicas, que estabelecem uma diferença diante do que, em filosofia e na teoria da cultura, se condensava nas grandes narrativas fundacionais ou de sentido. É precisamente contra a pretensão de um conhecimento abarcante de toda a realidade que contesta Lyotard (1979), ao referir-se ao fim das grandes narrativas. Para esse autor, o estatuto do saber das coisas na pós-modernidade está em relação direta com o que vai chamar de crise de narrativas. Essa crise nasce de sua compreensão pós-moderna como “o estado da cultura depois das transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do fim do século XIX” (Lyotard, 1979, p. 9). As incidências dessas transformações postulam uma crise entre ciência e narrativa, concedendo à primeira a legitimação do conhecimento e à segunda uma destituição do nível cognitivo. Nesse sentido, o pós-modernismo coincide com uma crise da filosofia metafísica e com as suas pretensões de verdade universal. Afirma o autor:

Simplificando ao extremo, entende-se por pós-moderna a incredulidade em relação às metanarrativas. Este é, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, a supõe. [...] A função narrativa perde seus atores e seus grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também donativos, prescritivos, descritivos etc., cada um veiculando consigo validades pragmáticas sui generis. Cada um de nós vive em muitas dessas encruzilhadas. Não formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis, e as propriedades destas por nós formadas não são necessariamente comunicáveis (Lyotard, 1979, p. 16).

Por sua vez, convergindo com Lyotard, Schlegel (2012, p. 10) ressalta que a pós-modernidade transporta consigo o poder legitimador de uma pluralidade de formas de compreensão do mundo, que caminha a par de um individualismo crescente. Essa diversidade abre caminho para um pensamento cada vez mais fragmentado e plural. No que diz respeito à narrativa, o pensamento pós-metafísico distancia-se da noção de metanarrativa global e universalizante. Ao criticar a ideia de totalidade, o autor abre espaço para o pequeno, o singular em convívio com uma multiplicidade redacional (Schlegel, 2012, p. 10).

Ora, considerando que o cristianismo é por excelência uma grande narrativa de salvação, podemos pressupor que esse seja o principal obstáculo ao processo de evangelização nas mídias digitais, que se apresenta com essa linguagem fragmentada? Isso não quer dizer que se inviabilize a dimensão narrativa da fé nem que Deus não possa ser dito nas sociedades pós-modernas e pós-metafísicas. As últimas décadas e as redes sociais agora testificam esse fato, com vimos no item anterior.

Theobald (2001, p. 6-7) destacará que, do ponto de vista teológico, se reconhecem não só a legitimidade e a utilidade da narrativa em geral, mas também a pertinência de narrar Deus atualmente. Contudo, seria ingênuo propor a substituição simples da Teologia Clássica pela Teologia Narrativa. Antes, é necessário que a teologia clarifique e aprofunde a relação entre o contexto radicalmente novo da situação atual em que vivemos e a narração de Deus, e que o faça tanto do lado desta situação nova como do lado de Deus.

Para o autor, um dos traços marcantes da pós-modernidade é a aporia, que resulta da pluralidade de visões do mundo. No caso das religiões, ela se manifesta na pretensão de verdade diante de seus fiéis, dos de outras religiões e dos não crentes. Há um diagnóstico específico:

Efetivamente, muitos crentes consideram a sua fé como uma opinião (doxa) entre outras, enquanto muitos crentes simplesmente afastam a sua liberdade de qualquer questionamento último, ficando numa chamada reserva agnóstica. Na realidade, uns e outros adoram institivamente a mesma atitude de fundo face ao plural que é seu elemento, ou contentando-se com o estado de sua crença, recusando-se a envolver-se (Theobald, 2001, p. 13).

Entretanto, a fé cristã não pode ser reduzida ao estatuto de mera opinião. Se, por um lado, pertence ao ato de fé um alto grau de compromisso com a verdade (em primeiro lugar, do sujeito crente consigo próprio e, simultaneamente, com a verdade conhecida e acreditada), por outro lado, a condição de verdade exigida pela fé não pode ser ofuscada em uma sociedade pós-metafísica, onde se garante a possibilidade de um ato de fé totalmente livre sem qualquer tipo de pressão. Daí se segue o desafio diante do que se denomina utopia do consenso universal sem limitações, que, num clima de niilismo suave, apenas garante duas opções: o ceticismo (nada é verdadeiro) ou o dogmatismo (eu conheço a verdade) (Theobald, 2001, p. 16-17).

Buscando uma solução para essa dualidade, Theobald parte para uma postulação antropológica, que, do ponto de vista bíblico e filosófico, surge ligada à autonomia da consciência moral e, portanto, é considerada racionalmente aceitável para resistir ao absurdo e ao mal de fundamentar a fé e a possiblidade de o ser humano ser ele próprio. É dessa postulação antropológica que surge a dimensão teológica ou doxológica da fé, ou seja, a possibilidade de argumentar em prol da dimensão do caráter absoluto e de uma verdade da fé cristã em termos propriamente teologais. Em outras palavras: uma fé que se manifesta como “gratuidade absolutamente discreta, sem exigência de reconhecimento ou retorno” (Theobald, 2001, p. 22), uma atitude de espanto e admiração diante d’Aquele que se reconhece como sujeito. Em última instância, a razão contribui para resistir ao mal e fundamentar a existência, sendo possível, a partir daí, estabelecer uma perspectiva de salvação que dá existência a Deus. Esse é o caminho aberto na dinâmica da secularização.

A livre criatividade da fé, que perpassa essa experiência doxológica, consiste em dar existência a Deus e recebê-lo como sujeito. A perspectiva intercomunicacional da autorrevelação de Deus permite compreender o ato de fé simultaneamente como certeza da gratuidade de Deus na história dramática da humanidade e como ato de conversão humana, olhando-o constantemente com interesse e paixão divina (Theobald, 2013, p. 207). Para Theobald, a interpretação das possibilidades abertas pelo pensamento pós-metafísico é justamente onde se encontram reunidas as condições para introduzir as narrativas de Deus e sobre Deus “numa teologia narrativa que não se esquiva da pretensão de colocar Deus em posição de sujeito de uma trama universal” (Theobald, 2001, p. 27).

Então, podemos perguntar-nos: se há possibilidade de um caminho antropológico que permite realizar narrativas que postulem Deus como sujeito em meio à trama universal da humanidade, quais são os critérios de narração do Evangelho que permitem a possibilidade do estabelecimento dessa relação?

Elementos constituintes do cristianismo narrado

Não foram poucos os autores que teorizaram sobre a dizibilidade de Deus[2] e o fato de que Deus mesmo exige ser narrado, dito, recontado. Contudo, para além da identificação do crucificado com a história e suas analogias, tomamos como contribuição para nossa reflexão a articulação de Theobald, que propõe a leitura acerca da narratividade que gera a convergência entre conteúdo e forma no discurso estilístico cristão. Ele aponta nesse caminho a possibilidade de favorecimento do discurso sobre Deus no mundo contemporâneo e, acrescente-se, talvez nele encontremos possibilidades de parâmetro para os discursos nas mídias digitais.

Na obra O Cristianismo como estilo (Theobald, 2007)[3], apresenta-se a proposta de uma qualificação estilística[4] do cristianismo baseada no princípio de concordância entre conteúdo e forma. Para o autor, o conceito de estilo[5] é apropriado para caracterizar a essência do cristianismo e a identidade cristã, tanto do ponto de vista do desenvolvimento da linguística moderna como do ponto de vista do fenômeno religioso.

Para tanto, Theobald toma o contexto da pós-modernidade como aquele que identifica uma saturação do paradigma doutrinal do cristianismo e a exigência não só de uma transformação que diz respeito a sua forma (estética) e conteúdo (estatuto teologal da fé) como também da concordância entre estes dois elementos. Compreendendo-se, no mundo contemporâneo, como uma tradição entre tantas outras e aprendendo a se colocar diante de múltiplas perspectivas internas e externas, o cristianismo descobre, a partir da noção de estilo, a sua própria personalidade. 

O primeiro elemento — forma (de caráter estético) — refere-se à relação estabelecida entre narrador e leitor (ouvinte) na possibilidade de aquilo que se passa na narrativa se tornar realidade na vida dos leitores/ouvintes. O segundo — conteúdo — refere-se ao estatuto teologal da fé, isto é, à conformidade entre conteúdo e forma do discurso assegurada pelo princípio teologal da intervenção de Deus. Por isso, a “transmissão do intransmissível” não pode acontecer com base em argumentos unicamente da sabedoria humana, mas somente mediante a manifestação poderosa da ação de Deus, a única que garante conformidade entre conteúdo e forma (Theobald, 2007, p. 27).

Outro aspecto evidenciado pelo autor quanto à concordância entre conteúdo e forma refere-se à elaboração do conceito de inspiração à medida que este faz referência à comunicação. Para ele, o evangelizador não é um mero relator ou comentador dos textos bíblicos, mas um facilitador da relação texto-ouvinte, texto-leitor. Por isso, deve inspirar-se em múltiplos modelos evangélicos e promover a conexão entre os textos e seus leitores e ouvintes. Da mesma forma, seu destinatário deve acolher a escuta e a leitura de modo a permitir que elas abram espaço em sua vida para a reconfiguração do tempo presente. Esse movimento permite que o narrador participe da reconstrução do texto através de suas narrativas, estabelecendo entre elas e o ouvinte um envolvimento existencial em que o princípio da concordância entre conteúdo e forma encontra seu sentido estritamente teológico. Afirma o autor:

De fato, o princípio estético de concordância entre forma e conteúdo encontra o seu significado propriamente teológico quando se aplica não só aos textos, mas também e sobretudo às testemunhas que lhes deram forma e por eles vivem. Isso tem então o nome mais concreto de santidade, quer dizer, uma forma de vida que corresponde absolutamente ao que significa, ou seja, à própria santidade de Deus (Theobald, 2001, p. 52).

O nome próprio do princípio de concordância entre a forma e o conteúdo, para Theobald, é santidade. Essa é uma das palavras pelas quais se podem definir os protagonistas principais da história bíblica: Deus e o humano. Ela exprime a comunicação da santidade concordante de Deus sobre o que diz seu modo de proceder, cuja manifestação plena são a pessoa de Jesus (Lc 4,34) e a continuidade dos santos pela força do Espírito Santo (Rm 1,7; 1Cor 1,2; Rm 8,15). É atestada nos textos bíblicos através da credibilidade e concordância coerente das testemunhas que a assumem, e deve ser suscitada por aqueles/as que entram em contato com as narrativas evangelizadoras. O princípio teologal da concordância entre conteúdo e forma, ou seja, a santidade, evita a absolutização do gênero narrativo e abre-se à pluralidade de gêneros literários e teologais que justamente permitem a regulação, o debate e a argumentação.

O fundamento da teologia narrativa e do exercício das narrações deve estar sempre em consonância com a memória bíblica e, por isso, apresentar Deus em sua santidade e concordância absoluta com seu ser, agindo para nós como sujeito de uma história universal que pede para ser recontada (Theobald, 2001, p. 52).

Os limites da narratividade religiosa no que se compreende da transmissão da verdade contida no Evangelho

Aqui queremos nos perguntar, primeiramente: qual é a verdade contida nos Evangelhos que deve ser preservada quando narrada e que pede para ser recontada? E vamos responder a essa questão utilizando o pensamento de José Comblin (1923-2011) à luz de pequeno e denso livro O que é a verdade?, que nos ressitua diante do que é o ponto central do Evangelho, isto é, a pessoa de Jesus e suas relações.

A verdade que faz relação com a realidade

Durante muitos séculos, a verdade foi tratada pela teologia, por sua vez muito influenciada pela filosofia grega, como um conceito a ser verificado na realidade. Atualmente, volta com muita força a pergunta conceitual sobre a verdade como se esta pudesse ser um conjunto de fórmulas racionais a ser expressa. A teologia grega buscou expressar pelo mesmo caminho a verdade de forma conceitual, considerando-a como parte da descrição da realidade, verdade essa correspondente a experiências parciais que servem basicamente para as ciências empíricas mais do que para a própria teologia.

Hoje, os grupos mais “estritos” ou “fundamentalistas” insistem em perguntar “o que é verdade” baseando-se nessa articulação de conceitos e no projeto de definir o que é verdade. Buscam um único conceito que justifique sua visão de mundo existencial, religioso e concreto à luz de seus valores estritos. Querem uma verdade ajustada à sua cosmovisão, que é única, parcial e irreal se contraposta à realidade presente.

O fato é que a verdade não se apreende desde um único parâmetro. Como diz Comblin (2005, p. 6), “o que nos é permitido é buscar caminhos que conduzem à verdade, ou pelo menos a uma aproximação da verdade. Nesses caminhos, todas as religiões e todas as filosofias podem trazer sua contribuição”.

No que tange ao cristianismo católico, a questão nasce de um significativo texto bíblico (Jo 18,38), em que Pilatos pergunta a Jesus: “O que é verdade?”. Se Jesus não lhe responde naquele momento, ele mesmo afirma, contudo, em outro momento, junto a seus discípulos: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Comblin destacará que caminho, verdade e vida formam uma só realidade e que cada palavra expressa um aspecto dessa realidade única:

A verdade é o caminho que leva à vida. Jesus diz que é ele o verdadeiro caminho, o caminho que não engana, mas conduz à verdadeira vida. A verdade aparece no caminho, ela está sendo procurada e essa procura já é vida, entrada na vida. Daí aparece claramente que a verdade não se reduz a doutrinas ou teorias. A “verdade” quer dizer a “realidade”, o que realmente existe e dá vida. Não estamos na ordem das ideias, mas na ordem da vida real das pessoas. Jesus é quem dá realidade à vida das pessoas (COMBLIN, 2005, p. 7).

Ora, como conciliar a verdade com a realidade das pessoas por meios de comunicação que as tiram dessa realidade e a distorcem? Esses meios as colocam diante de outra realidade religiosa que não é aquela que traz consigo o desafio proposto por Jesus de enfrentar a realidade de forma concreta, o qual nasce da transformação pessoal que leva a uma transformação contextual dessa mesma realidade. Comblin (2005, p. 9-10) ressalta que é bom saber que evangelizar não consiste apenas em ensinar, em comunicar uma notícia que será bem aceita por todos. Pelo contrário, a verdade de Jesus encontra resistência terrível. Se uma pregação não encontra resistência, é provável que não seja de Jesus, uma vez que ele não veio para agradar, mas para salvar a humanidade do reino da mentira. Ora, a comunicação nos meios digitais, sobretudo nas redes que seguem os mecanismos do engajamento, dos likes e dos seguidores, não é realizada especialmente para agradar? A de Jesus, por outro lado, desmascara o sistema religioso e as falsas “boas notícias”. A verdade de Jesus é a denúncia dos falsos evangelhos que enganam o povo. Na mentira, encontram-se aqueles/as que deformam a verdadeira mensagem de Deus e estão dentro dos sistemas religiosos que suspostamente defendem o conteúdo e o Deus da Bíblia, inferindo desses meios valores e inverdades.

Como conhecer a verdade?

Jesus afirma: “Se vocês guardarem a minha palavra, vocês de fato serão meus discípulos, conhecerão a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). Em outras palavras, ser discípulo de Jesus e conhecer a verdade é a mesma coisa. E a verdade de Jesus se apresenta em um mandamento: “Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,34-35). O discípulo novo de Jesus não é o que repete como os fariseus, mas o que tem uma nova atitude, uma nova práxis em favor dos demais. A verdade de Jesus é experienciada, e não simplesmente comunicada. Logo, sua comunicação deve levar aqueles/as que a recebem a uma nova atitude, ao nascimento de uma nova humanidade conformada a seus ensinamentos.

A comunicação do religioso pode levar de forma pedagógica a elementos que busquem unicamente sua justificação e existência, tal como a religião dos fariseus, pautada por fórmulas, gestos e preceitos. Contudo, a comunicação da verdade de Jesus, que é ele mesmo, deve levar a seu desvelar de forma clara e límpida, ajudando e motivando o ouvinte a iniciar o caminho em sua direção.

A verdade de Jesus é sobre o quê?

Em primeiro lugar, Comblin ressaltará que a verdade de Jesus é sobre cada um de nós mesmos. É nela que vemos o próprio caminho, os limites, a vida, o destino e as práticas. Para os cristãos, a verdade sobre o humano está na pessoa de Jesus, ou seja, na forma como ele viveu a vida humana. A novidade de Jesus está no fato de sabermos por ele que o mundo pode transformar-se. Ele é em si mesmo a encarnação da esperança, uma vez que através dele a humanidade pode efetivamente mudar, libertar-se, sair do mal e ser diferente neste processo da história em que se encontra (COMBLIN, 2005, p. 16).

Ele dá a cada homem e mulher a possibilidade de vir a ser novo/a, renovado/a, de encontrar continuamente novos caminhos, em que cada um/a se vê como agente ativo/a, criando um mundo novo:

O discípulo de Jesus não trata o outro ser humano como pecador. Jesus não trata ninguém como pecador, como se a condição dele fosse ser pecador; e, por isso, ele não denuncia os pecadores. Aos pecadores, ele diz que poderão mudar, libertar-se e amar entrando na caminhada do Povo de Deus e construindo um mundo novo (COMBLIN, 2005, p. 17).

Não são poucos/as aqueles/as que utilizam as mídias digitais e distorcem a verdade de Jesus. Discursos envolvidos por fórmulas (muitas delas canônicas) conclamam a voltar à moral pré-conciliar e manualística do julgamento sobre o outro e da culpabilização, tirando dos ouvintes qualquer possibilidade de encontrarem o convite cristológico ao refazer-se contínuo. Os fracos não querem a mudança porque só enxergam suas fraquezas e não percebem nelas a possibilidade de força à medida que podem ser transformadas.

Para os que se dedicam à articulação teológica ou aos discursos relativos ao divino, é de grande importância perceber que Jesus não disse sobre Deus; antes, falou de sua relação com o Pai. Afirmou sua identidade e a identificação entre ele e o Pai: “quem me vê, vê ao Pai” (Jo 14,8-21). Não se trata, obviamente, de imagem superposta. Imagens sobre Deus surgiram tardiamente nas artes como forma pedagógica de expressão e representação.

Em vez de levar as pessoas a Deus à luz do testemunho de “identificação” com Ele por meio de Jesus, a maioria das abordagens está articulando um discurso humano sobre Ele. Isso não é um conhecimento de Deus, mas, antes, o desejo do emissor expressado em alinhamento com o que ele pensa sobre o Pai. Daí nascem vários “Jesuses”, vários “Deuses”, vários “Espíritos”. Em substituição a Deus, a inteligência humana tende a apegar-se às palavras que pretendem falar sobre Ele e àqueles/as que as pronunciam.

O engajamento dos ouvintes com determinada pessoa que tem um discurso humano sobre Deus como desejo expressado de quem fala, não teria sucesso porque esse discurso converge com o interesse daqueles que a seguem?

A verdade das mídias sociais liberta?

Há muitos contrapontos entre verdade cristológica e as diversas verdades oferecidas pelos meios de comunicação. Ao afirmar que “a verdade vos libertará” (Jo 8,32), Jesus refere-se à verdade plena, que é ele próprio. Contudo, há muitas outras verdades na contemporaneidade que podem libertar de muitos males. Elas se apresentam como liberdades parciais que retiram as pessoas de situações de vulnerabilidade.

Mas a liberdade de que fala Jesus é aquela que diz respeito à totalidade da vida e do mundo. A libertação de que fala Jesus é exatamente o projeto de libertação assumido. Quando se pergunta pela libertação oferecida por Jesus, compreende-se que ela é possível e concreta porque coloca em movimento todas as forças humanas de transformação para que seja possível libertar-se das diversas formas de escravidão.

A conquista da liberdade pessoal é uma tarefa que dura a vida toda. Ao mesmo tempo, e entrelaçada com ela, surge a libertação das dependências exteriores. Essa conquista das liberdades da vida pública é tão difícil como a liberdade interior ou pessoal (COMBLIN, 2005, p. 64).

Ora, há como afirmar que a(s) verdade(s) apresentadas pelas mídias sociais, subjetivadas no discurso daqueles que as proferem, levam à libertação desejada e apresentada por Jesus? Talvez possamos inferir de forma positiva que esses contatos podem ser o início de um caminho de aproximação com a Pessoa de Jesus, um despertar para o novo. Contudo, nada exime do caminho subsequente ao despertar o elemento humano comunitário para a realização do exercício de ser cristão e cristã. É em comunidade, e não de forma individualizada pelas mídias sociais, que se experencia o amor ao próximo e que alguém pode ser reconhecido como discípulo de Jesus.

Conclusão

Conforme foi afirmado no corpo do texto, nossa intenção foi analisar pela perspectiva teológica a comunicação do religioso nos meios de comunicação digital, bem como seus limites e qualidades. Não há afirmação contrária na utilização desses meios. Trata-se de um fenômeno que está posto e pode ser de grande utilidade na realização dos processos de evangelização. No entanto, é preciso amadurecer e muito a linguagem e o conteúdo proferido. É a Palavra que se fez carne que deve brotar tal como ela é, e não a encarnada na subjetividade de quem a expressa.

Por isso, a “verdade” expressa nesses discursos não deve ser outra senão a de Jesus, tal como expusemos anteriormente. Ele é a Palavra expressa, a Verdade de Deus, que impulsiona os/as ouvintes a se tornarem seus discípulos e suas discípulas, fazendo com que acreditem nela como possibilidade concreta de renovação de si e das realidades históricas em que se encontram. Se a utilização das mídias digitais impulsiona essa dinâmica, elas cumprem seu papel como meios para o processo de evangelização. Caso contrário, se esses meios levam as pessoas a verdades pessoais e subjetivadas, descumprem enfaticamente toda e qualquer colaboração com a missão mesma da Igreja, que é anunciar a Pessoa de Jesus e seus ensinamentos até os confins da Terra.

Cabe-nos um olhar crítico e dirigido aos discursos humanos sobre aquele que oferece a verdade que nos libertará.

Referências

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Notas

[1] Comblin, J. O que é a verdade?. São Paulo: Paulus, 2005.

[2] Queremos destacar o clássico estudo linguístico e narrativo de Paul Ricœur, em especial nas obras Temps et récit e Soi-même comme un autre; de J. B. Metz em Breve apología de la narración [in: Revista Concilium n. 85 (1973), p. 233] — em que explicita cinco aspectos da narrativa de Deus: 1) narrativa e experiências ordinárias; 2) caráter prático e performático da narração; 3) sentido pastoral e crítico-social da narração; 4) narração com link entre salvação e história, e 5) história recontada que se converte em prática —, e de Eberhard Jungel, que ressalta na obra God as the Mystery of the world: on the Foundation of the Theology of the Crucifiedone in the Dispute between Theism and Atheism (New York: Bloomsbury Publishing, 2014), em especial no último capítulo, a dizibilidade de Deus a partir de sua humanidade.

[3] Theolbald, C. Le christianisme comme style. Paris: Éditions du Cerf, 2007. Utilizo esta versão na escritura deste texto.

[4] O projeto de expressar a identidade cristã em termos estilísticos não é original do autor. Ele mesmo elege Friedrich Schleiermacher e Balthazar como base de sua construção teológica, conforme explicado na p. 51 da referida obra.

[5] Theolbald, C. Le christianisme comme style. Paris: Éditions du Cerf, 2007, p. 85. Afirma o autor: “O estilo, que não é outra coisa senão esta finesse sapiencial que nasce do próprio seio da hospitalidade aberta do Nazareno – sua santidade comunicativa [...] que ao mesmo tempo a gera: isto é, a capacidade de ver e entender, no que é necessário ser visto e entendido, a invisível e inaudível concordância de qualquer um consigo mesmo, como aquela que funda sua unicidade.”