POR UM NOVO JEITO DE SER IGREJA: JOSÉ COMBLIN E A TEOLOGIA DA REVOLUÇÃO

FOR A NEW WAY OF BEING CHURCH: JOSÉ COMBLIN AND THE THEOLOGY OF REVOLUTION

Adauto Guedes Neto
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor Adjunto de História da Universidade de Pernambuco (UPE). Contato: adauto.guedes@upe.br

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Resumo: José Comblin, ao longo da sua trajetória publicou mais de oitenta livros e mais de quatrocentos artigos sobre os mais variados temas, tais como, O Espírito Santo, Teologia e realidades terrestres, Teologia da Libertação, breve curso de Teologia para leigos e missionários e Teologia bíblica. Neste artigo, analisamos a sua perspectiva teológica por um novo jeito de ser Igreja, a partir do conceito de revolução, este, posto no grupo de estudos de realidades terrestres. Nos anos 1970, a revolução foi tema de análise do teólogo belga, quando da publicação de dois volumes, Teologia da Revolução e Teologia da Prática Revolucionária. Tendo por princípio os estudos que desenvolveu a partir de então, buscamos entender as características do tema de acordo com o pensamento de José Comblin comparando a outros estudos sobre a referida temática. A conclusão em que chegamos é que, diferente do que pode imaginar, o teólogo traçou os momentos em que a revolução se justifica e discorre sobre uma questão central ao tratar do tema, qual seja, a relação entre revolução e violência, ou melhor, a defesa da desassociação entre ambas. 

Palavras-chave: Teologia da Revolução. José Comblin. Igreja Católica

Abstract: José Comblin, throughout his career published more than eighty books and over four hundred articles on the most varied topics, such as, The Holy Spirit, Theology and earthly realities, Liberation Theology, a brief Theology course for lay people and missionaries and Biblical Theology . In this article, we analyze his theological perspective, based on the concept of revolution, which is placed in the study group of terrestrial realities. In the 1970s, the revolution was the subject of analysis by the Belgian theologian, when he published two volumes, Theology of Revolution and Theology of Revolutionary Practice. Having as a principle the studies he developed since then, we sought to understand the characteristics of the topic in accordance with José Comblin's thinking, comparing it to other studies on the aforementioned topic. The conclusion we reach is that, contrary to what you might imagine, the theologian traced the moments in which the revolution is justified and discusses a central issue when dealing with the topic, namely, the relationship between revolution and violence, or better, the defense of the disassociation between the two.

Keywords: Theology of Revolution. José Comblin. Catholic Church

Introdução

O termo revolução é utilizado para se referir aos mais variados dos acontecimentos, seja para nominar guerras civis, seja para mencionar golpes de estados que, em muitas situações, são mais uma apropriação conceitual do que, necessariamente, um ato ou movimento revolucionário de fato.

Temos como objetivo analisar as contribuições do padre e teólogo belga, José Comblin[1], sobre o conceito de revolução. Tema pouco comum aos teólogos de então, durante os anos 1970, publicou em dois volumes, Teologia da Revolução e Teologia da Prática Revolucionária, dos quais trataremos neste artigo.

Sobre o conceito de revolução, Decouflé destacou, na sua obra Sociologia das Revoluções, que “não é fácil conseguir-se uma visão clara neste terreno” (DECOUFLÉ, 1970, p. 09). Mas, encontramos nos estudos de Hannah Arendt (2011) e Reinhart Koselleck (2006), as características que estes apresentam sobre o conceito de revolução e as tomaremos como referência para destacar as aproximações e diferenças propostas de ambos em relação ao que propõe o teólogo José Comblin. 

Certa ambivalência também pode ser percebida à primeira vista com relação às suas análises sobre o marxismo, mas, o olhar apurado do historiador poderá constatar que quando em sua maioria teceu duras críticas ao marxismo, está na verdade se referindo à experiência do Socialismo Real. Porém, o mesmo não se repete quando o pensa na perspectiva metodológica, uma vez que, utiliza-se das categorias de Marx. Tal percepção nos ocorre pela perspectiva da autolibertação das massas no processo da práxis revolucionária ao qual Marx mencionou nas Teses sobre Feuerbach, especificamente na passagem número três. Segundo ele, “[...] A coincidência da mudança das circunstâncias com a atividade humana ou alteração de si próprio só pode ser apreendida e compreendida racionalmente como práxis revolucionária” (MARX, 2000, p.112), ou seja, pelo horizonte da liberdade, já que, como nos explica Michael Löwy, citando Engels, “a revolução proletária deve ser a primeira transformação consciente da sociedade, o primeiro passo no reino da liberdade” (LÖWY, 2012, p. 49).

Veremos, nas análises de José Comblin, como ele desenvolveu seu estudo a partir dos movimentos heréticos medievais contra a hierarquia Católica, o que poderemos associar ao conceito de luta de classes e de que maneira tais movimentos contribuíram para alterações estruturais na sociedade de então. 

No entanto, “alguns autores datam o surgimento da noção revolução na história. É o caso de Henri Mendras, que, estudando as sociedades camponesas, afirma que a revolução como fenômeno só surgiu em 1789” (SILVA e SILVA, 2012, p. 365), e complementa dizendo que “revoltas, levantes e sedições sim, mas revolução nunca” (SILVA e SILVA, 2012, p. 365).   Aqui está posta outra categoria analisada ao nos depararmos com os estudos sobre revolução, as distinções desta com as revoltas. Para Kalina Silva e Maciel Silva, 

As revoltas são manifestações populares de insatisfação, em geral de caráter mais efêmero, um protesto contra os aumentos de preços, por exemplo. São muitas vezes espontâneas e sem organização sistemática e, de modo diferente das revoluções, não chegam a alterar as estruturas sociais (2012, p. 365). 

É importante destacarmos tal diferenciação, já que Comblin analisou alguns movimentos denominados pela hierarquia Católica como heréticos no período medieval e as mudanças sociais impostas tantos por estes quanto, mais tarde, pela reforma protestante, como revoltas ou reformismo. Tanto para Koselleck (2006), quanto para Arendt (2011), o conceito de revolução tal qual utilizamos na contemporaneidade estão alinhados as características que se vinculam à Revolução Francesa e ao movimento pela Independência dos Estados Unidos na segunda metade do século XVIII. Sendo assim, descreveu: “essas duas coisas em conjunto – uma experiência nova que revelava a capacidade do homem para a novidade – estão na raiz do enorme páthos que encontramos nas duas revoluções, a americana e a francesa” (ARENDT, 2011, p. 63). Os movimentos que se apresentaram como novas experiências e que gerava na humanidade a capacidade para a novidade, foram então descritos pela autora como revoluções.

Koselleck na sua análise conceitual, parte do estudo etimológico do termo:

Haréau chamou a atenção para o fato, então esquecido, de que revolução se referia a um retorno, uma mudança de trajetória, que correspondia ao uso latino da palavra e que condizia de volta ao ponto de partida do movimento. Uma revolução significava então, primordialmente, de acordo com a etimologia da palavra, um movimento cíclico. (KOSELLECK, 2006, p. 63).

Tal perspectiva que conferia inicialmente a ideia de movimento cíclico ou retorno para designar originalmente o termo revolução, também foi destacado por Hannah Arendt: 

No século XVII, quando pela primeira vez encontramos a palavra como um termo político, o conteúdo metafórico estava ainda mais próximo do significado original do termo, pois ela era usada para designar um movimento de retorno a algum ponto preestabelecido e, por extensão, de volta a uma ordem predeterminada. (ARENDT, 2011, p. 73). 

Em alguns momentos perceberemos Comblin denominando de revolucionários, movimentos que tinham a intenção de restabelecer ou restaurar uma ordem anterior, e noutras passagens se referindo ao termo que terá outro significado a partir da Revolução Francesa. Sobre este último, quando mencionou a ideia de movimentos revolucionários por serem motivados pelo desejo de mudanças estruturais e por liberdade. E se não atingiram seus objetivos de imediato, no processo, analisando-se os seus resultados, podemos perceber as contribuições do movimento liderado por Lutero nas transformações que significaram o fortalecimento do capital e da burguesia contra o ranço feudal e o poder da Igreja Católica, ou seja, gerando uma nova sociedade.

Ainda atrelado ao conceito de revolução, outro termo é o de contrarrevolução. Para Florestan Fernandes, “contrarrevolução é uma realidade histórica contrária à revolução. É aquilo que impede uma revolução” (FERNANDES apud SILVA e SILVA, 2012, p. 364). Comblin se utilizou desse termo, sobretudo, para classificar os movimentos fascistas e conservadores, especialmente dentro da Igreja Católica durante o século XX, que estiveram contra os movimentos revolucionários de então. 

Quando analisou os movimentos na América Latina ou em outras regiões do denominado mundo subdesenvolvido, Comblin destacou, como veremos, a importância do espírito nacionalista nas lutas desses países. Hector Bruit, por exemplo, “defende que as revoluções latino-americanas tiveram cunho mais nacionalista do que de classes” (BRUIT apud SILVA e SILVA, 2012, p. 364), referindo-se aos seus estudos sobre a Revolução Cubana e da Nicarágua. A associação que entendemos ser feita por Comblin entre revolução e nacionalismo é a luta que tem por princípio a liberdade, como se fora também um primeiro passo para as conquistas posteriores relacionadas às transformações estruturais. Fernandes concorda ao mencionar que: “numa situação em que as forças da ordem empunham abertamente a bandeira da contrarrevolução prolongada, seria curiosos situar a revolução nacional como uma frente de luta comum entre burgueses e proletários”. (FERNANDES, 2018, p. 89-90). 

Pensando a revolução socialista na América Latina, sobretudo no ambiente de regiões indo-americanas, Mariátegui buscou unificar a perspectiva revolucionária com o nacionalismo ao afirmar que:

O nacionalismo das nações européias, onde nacionalismo e conservadorismo se identificam e se consubstanciam, se propõe fins imperialistas, sendo reacionário e anti-socialista. Mas o nacionalismo dos povos coloniais, [...] tem uma origem e um impulso totalmente diversos. Nesses povos o nacionalismo é revolucionário e, portanto, concluí-se no socialismo. Nesses povos a idéia da nação não cumpriu ainda sua trajetória nem esgotou sua missão histórica. (MARIÁTEGUI apud KAYSEL, 2011, p. 19).

Sendo assim, a ideia apresentada por Comblin, encontra de tal maneira, convergências com as perspectivas marxistas de Florestan Fernandes e José Mariátegui, ao destacar o nacionalismo como um elemento estratégico para fortalecer o processo revolucionário na América Latina, cuja marcas da colonização ainda se faziam presentes.

Mas, acrescentamos outro elemento que nos parece ser fundamental na obra do teólogo belga radicado na América Latina, sobretudo, no diálogo entre revolução e liberdade, a centralidade na autolibertação das massas na perspectiva “marxiana da revolução como autoemancipação dos explorados” (LÖWY, 2012, p. 20). 

Porém, antes de aprofundarmos tal análise, situaremos como esteve organizada do ponto de vista temático, a produção teológica de José Comblin, bem como as suas referências intelectuais. 

1. As referências Intelectuais de José Comblin

Podemos dividir a temática da produção intelectual de José Comblin a partir dos seguintes pontos: O Espírito Santo; Teologia e realidades terrestres; Teologia da Libertação, breve curso de Teologia (para leigos e missionários); Teologia bíblica. Além desses títulos, Comblin ainda publicou trabalhos sobre perspectivas teológicas, temas da atualidade, evangelização e vida cristã, espiritualidade bíblica, igreja, eclesiologia, missão e pastoral urbana, manuscritos de edição particular e publicações populares em colaboração. 

São, ao todo, 85 livros produzidos e, desses, 74 foram publicados nas mais diferentes línguas: espanhol, francês, italiano, inglês, holandês e alemão, totalizando cerca de 159 publicações entre a América (Brasil, E.U.A., Argentina, Chile, México, Equador, Colômbia) e Europa (França, Espanha, Itália, Alemanha, Bélgica, Holanda). Artigos, ele produziu mais de 400, nas mais diversas revistas de vários países. 

Essa diversidade nos obriga a elencar recortes para analisar sua atuação como intelectual engajado por um novo jeito de ser Igreja. Sendo assim, analisaremos suas contribuições no campo da Teologia das realidades terrestres, tendo como referência seus estudos em Teologia da La Revolución e Teologia de La Práctica de La Revolución, apoiados na perspectiva de que “por definição, o homem de ideias se deixa ler por suas publicações” (DOSSE, 2009, p. 361).

Relembrando seus anos de formação, depois de ter passado três anos no Instituto de Filosofia de Lovain, José Comblin relatou o período de estudo de Teologia no Seminário Diocesano de Malines, mencionando seu contato com as obras de Teilhard de Chardin[2] através de Gustave Thils: 

Graças a Gustavo Thils, pude ter acesso ao “inferno”. O “inferno” era a sala de biblioteca em que estavam os livros proibidos, que somente se podia ler com licença do bispo. Deu-me, inclusive, fotocópias de livros de Teilhard de Chardin, o que, naquele tempo, era estritamente proibido, porque Teilhard tinha proibição de emitir opiniões em matéria religiosa. (MONTENEGRO, 2019, p. 120)

Gustave Thils foi professor de Comblin no Seminário Maior de Malines e depois se tornou professor da Faculdade de Teologia de Lovain. Teve papel relevante no Concílio Vaticano II ao ser redator de um dos capítulos da constituição Lumen Gentium. Após a Segunda Guerra Mundial, publicou “Uma Teologia das Realidades Terrenas, desenvolvida em dois livros lineares: o primeiro como prelúdio (1946), e o segundo como Teologia da História (1949)” (GIBELLINI, 1998, p. 265). Suas obras se destacaram por refletir a partir da relação do evangelho e a compreensão do mundo, uma vez que, “As realidades terrenas, consideradas por Thils, são realidades históricas, ou seja, as sociedades humanas, a cultura e a civilização, a técnica, as artes, o trabalho” (GIBELLINI, 1998, p. 266). 

Um dos autores que contribuiu para a base da formação intelectual de Comblin foi, sem dúvida alguma, G. Thils. Tomamos como elementos para tal conclusão a importância que ambas perspectivas teológicas dão ao mundo social, político, econômico, cultural, ou seja, o quanto são históricas – e nesse aspecto estão bem próximos. O próprio Comblin afirmou: 

A minha vocação para a vertente social da Teologia nasceu ao contato e pela influência de Monsenhor Gustavo Thils, que foi o meu professor em Malinas. Quando eu estava no Seminário, ele estava escrevendo e publicando os seus dois pequenos volumes sobre a teologia das realidades terrestres. (MONTENEGRO, 2019, p. 175-176).

O vazamento na imprensa brasileira de documento elaborado por Comblin a pedido de dom Helder Camara para assessorá-lo em sua participação na II Conferência Episcopal Latino-americana de Medellín, recebeu, numa das reportagens divulgadas pela Revista semanal, O Cruzeiro, destaque inapropriado. O referido periódico trouxe a seguinte manchete: Padre Comblin prega REVOLUÇÃO NA AMÉRICA LATINA (ROCHA, 1969, p. 127). Em letras garrafais e na cor azul. Para enriquecer o apelo da mensagem, a reportagem apresentou em cinco páginas, ponto a ponto, as questões analisadas pelo padre sobre a conjuntura histórica da América Latina e os desafios da Igreja Católica frente a tais questões. 

A Revista O Cruzeiro pertencia ao Grupo Diários Associados de Assis Chateaubriand, apoiador do golpe militar de 1964. Para Laurenza: “O sucesso da revista era perceptível nas ruas das capitais, circulava boca a boca e dava vazão ao apelo popular de uma publicação impressa em quatro cores, para a qual a TV ainda não representava menor concorrência” (In: MARTINS; LUCA, 2015, p. 181).

Ou seja, é inegável o quanto o fato que destacamos repercutiu, sobretudo, por se tratar de notícia veiculada em canais da imprensa de circulação nacional. Mas, essa ainda não é a questão de que trataremos aqui. Servimo-nos do exposto para direcionar um dos recortes da nossa análise, o tema da revolução na perspectiva intelectual e teológica de José Comblin.

Entre 1970 e 1974, Comblin publicou as primeiras versões em francês dos seus dois volumes sobre a Teologia da Revolução: Théologie de la Révolution (1970) e Théologie de la pratique révolutionnaire (1974), ambos pela Éditions Universitaires de Paris.  Em 1973, Teologia de Ia Revolución - Teoria, e Teologia de la Práctica Revolucionaria, em 1979, ganharam suas versões em espanhol pela editora Desclée de Brouwer – Bilbao. Ambas nos serviram de base para compreender o conceito e contexto de revolução analisados por Comblin. É bem verdade que o tema em questão não é comum entre padres ou teólogos, fato que torna nosso objeto de discussão ainda mais relevante, mas não tão estranho para alguém com formação nas tradições de Lovain, já que:

Os cursos seguiam o método histórico-crítico, ou seja, um método que estimulava a elaboração teológica considerando a história e comparando sempre com a mensagem bíblica original. Os estudantes aprendiam a pensar e fazer teologias. Não repetir teologias. [...] No mundo católico fora da Alemanha, pouco se praticava o método histórico-crítico, que em Roma era severamente julgado. No entanto, desse método sairá o Concílio Vaticano II. [...] Por Lovaina passaram personalidades iminentes como Juan Luis Segundo, Camilo Torres, Gustavo Gutiérrez, Enrique Dussel, Ivone Gebara, Pablo Richard (MUGLER, 2012, p. 38).

É desse ambiente de formação, que se distinguia da rígida e conservadora escola romana de que Comblin se alimentou intelectualmente para produzir seu conceito de revolução, associado a documentos eclesiásticos como a Encíclica Populorum Progressio e a sua própria experiência vivida na América Latina. Até a primeira publicação de Théologie de la Révolution, em 1970, o padre já havia risidido, em São Paulo (1958-1962), Santiago – Chile (1962-1965) e em Recife-PE (1965-1972). 

Do período em Pernambuco, destaca-se o contato com dom Helder Camara. Naquele momento, certamente as influências foram muitas, sobretudo, para o conceito de não-violência que utilizou, já que é a mesma perspectiva produzida pelo arcebispo de Olinda e Recife. A temática da não-violência aparece numa série de livros do arcebispo, como, por exemplo:  Révolution dans la paix, publicada em Paris pela Éditions du Seuil (1970). Publicados pela também francesa Desclée De Brouwer, temos ainda: Spirale de violence e Pour arriver à temps (1970), e Le désert est fertile: feuilles de route pour les minorités abrahamiques (1971)[3]. Ambos tiveram publicações em italiano, alemão e até japonês. Inicialmente publicados no exterior, talvez devido ao contexto ditatorial em que o Brasil vivia; posteriormente, no entanto, tiveram edições brasileiras. Nessas obras, questões como a luta pela mudança das estruturas sociais injustas de maneira não violenta e a revolução necessária são algumas das questões discutidas. Para Hoornaert (2020), são os livros mais teóricos de dom Helder.

Sobre essa relação de intercâmbio intelectual entre José Comblin e dom Helder, o debate da revolução era tema central nas obras que apresentamos. Sobre isso, Eduardo Hoornaert destacou que: 

A originalidade da aproximação de ambos reside no fato que o tema da revolução, após os eventos em Cuba e a difusão do mito Che Guevara, assim como por causa de evoluções de pensamento na Europa, costumava – na época – estar psicologicamente ligado à ideia da violência. Ser revolucionário sem ser violento, eis o desafio lançado por ambos (HOORNAERT, 2020).

Sendo assim, o desafio da perspectiva teórica lançada por Comblin sobre a ideia da revolução, fora conseguir mediar os limites entra a ação revolucionária e a violência, conforme veremos a seguir.

2. Sobre a Teologia da Revolução em José Comblin

No primeiro volume de Teologia da Revolução, José Comblin estruturou sua análise nos seguintes pontos: o problema teológico da revolução, a ideia de revolução, as reduções da revolução e, por último, revolução e cristianismo.

Inicialmente, sua discussão sobre o problema teológico da revolução tem como base a Encíclica do Papa Paulo VI, Populorum Progressio, porque, para o padre, um dos fatores que fundamentava a legitimidade de uma Teologia da revolução era a objetividade dos fatos. E esses fatos objetivos são citados na Populorum Progressio. Comblin (1973, p. 25), destacou trecho da encíclica que apontava a necessidade da revolução em favor da defesa da dignidade humana, muito embora ela troque o termo revolução por violência: 

Certamente há situações, cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa dependência que lhes corta toda a iniciativa e responsabilidade, e também toda a possibilidade de formação cultural e de acesso à carreira social e política, é grande a tentação de repelir pela violência tais injúrias à dignidade humana. (PAULO VI, 1967, p. 10).

Em outro momento, a encíclica chega a considerar as revoluções, porém volta a dar-lhes status de mera violência. 

Não obstante, sabe-se que a insurreição revolucionária – salvo casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país – gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios, provoca novas ruínas. Nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior. (PAULO VI, 1967, p. 10).

Ou seja, a encíclica nomeou a revolução de violência e a caracterizou como violenta, conforme destacou Comblin: “o conceito de revolução é então substituído pelo de violência” (COMBLIN, 1973, p. 25). Tendo o seu conceito equivocadamente substituído por violência, a defesa da revolução torna-se mais complicada, sobretudo, na esfera do campo religioso do qual pertencia. Como defender mortes e atos violentos? Mas, esses são os argumentos contrarrevolucionários da hierarquia e setores conservadores do catolicismo.

Ainda sobre a estratégia de sempre relacionar revolução e violência, Comblin afirmou: “A violência é apenas um aspecto e um momento da revolução, pois é um aspecto e um momento do Estado e de toda a política, pois até o momento é inconcebível organizar uma vida política sem nenhuma violência” (COMBLIN, 1973, p.106). E acrescentou fazendo relação com o próprio estado do Vaticano: “não há estado sem polícia e forças armadas, nem mesmo a Cidade do Vaticano” (COMBLIN, 1973, p. 106).  

Dessa forma, fica claro que a violência não está intrinsicamente ligada a este ou àquele fato, à ação ou a movimento, exceto quando nos referimos ao fascismo. Nem mesmo a sede da Igreja Católica no mundo consegue dissociar-se do termo (violência). E se quiserem reafirmar a violência impregnando-a, exclusivamente, de revoluções, Comblin afirmou que, “a violência é, portanto, concebida como contra-violência, em resposta à violenta repressão das classes dominantes” (COMBLIN, 1973, p. 108). Entre aproximações e diferenças, neste ponto o padre Comblin e Arendt estão em convergência, pois, segundo a filósofa, “a violência é empregada para construir uma forma de governo totalmente diferente e para gerar a formação de um novo corpo político” (ARENDT, 2011, p. 64).

 Assim, há um deslocamento da ideia de violência gratuita para a necessária resposta em defesa dos violentados, em momentos específicos, mas não permanentes e que possam gerar uma novidade.

Ao longo do seu primeiro volume sobre a Teologia da Revolução, a questão da violência foi bastante destacada. Na obra, ele afirmou que a violência revolucionária é mais forte na linguagem do que nos fatos e, frequentemente, é réplica da repressão. Ainda no mesmo texto, o autor acrescentou que é no fascismo que a violência aparece como mera violência e tal característica não pertence ao que é essencial da revolução. 

Para Comblin, a importância de discutir as necessárias mudanças estruturais da sociedade, estas trazidas por situações geradas pelo processo revolucionário, atende tão somente a princípios cristãos. Num mundo dominado pelo capitalismo, que promove exclusões, explorações e desigualdades, faz-se necessário mudança e “para lutar contra este sistema e para escapar do seu domínio, não bastam boas intenções”. Se faz necessário uma revolução mundial” (COMBLIN, 1973, p. 27). Neste sentido, aproximamos o conceito de revolução proposto pelo padre, ao que mencionou Koselleck: “toda revolução desfaz a velha sociedade; nesse sentido, ela é social; toda revolução derruba o velho poder, nesse sentido, ela é política -, o jovem Marx formulava também o princípio universal cuja concepção se tornava possível desde 1789” (KOSELLECK, 2006, p. 72). Além de em alguns momentos se referir à revolução na perspectiva do seu significado original do ponto de vista etimológico, Comblin quando a pensou em sua época, destacava as necessidades de transformações sociais e políticas.

Além de nos alertar para a necessidade de só uma revolução mudar as dificuldades e problemas oriundos do sistema capitalista, faz-se necessário que ela tenha caráter mundial. Até porque, “onde falta uma práxis revolucionária, as situações que motivam as revoluções podem se eternizar” (COMBLIN, 1973, p. 68); portanto, é na colocação da expressão práxis revolucionária que está o elemento fundamental na compreensão do conceito de revolução em Comblin, de onde percebemos também um aspecto central da sua perspectiva teológica, a ação.

Outra questão central levantada pelo teólogo, é a relação histórica das revoluções com o cristianismo e em defesa da liberdade. Ele as entende como um processo de transformação das estruturas, seja política, econômica, social, ou até mesmo no processo de luta de grupos cristãos medievais contra a hierarquia católica as quais trouxeram mudanças estruturais, sociais e políticas, para a sociedade daquele período. É o caso da atuação em movimentos que tiveram as lideranças de figuras como John Wycliff, Jan Huss, Thomas Müntzer nas guerras camponesas, e até mesmo na Reforma Protestante. Embora encontremos aproximações entre a perspectiva de revolução em Comblin e Arendt, especialmente no que concerne à liberdade, como veremos adiante, aí também está um dos pontos de divergências das quais analisaremos posteriormente.

A partir de então, descrevemos duas tradições das quatro correntes da revolução ocidental sustentadas nos pilares da novidade e tendo também, na revolução, um ato de fundação da liberdade (ARENDT apud COMBLIN, 1973, p. 153). São elas: a luta em defesa da liberdade da Igreja contra o Sacro Império Germânico, no episódio conhecido por Questão das Investiduras, que se encerra com a concordata de Worms em 1122; as reivindicações do cristianismo contra a hierarquia clerical, especialmente após a reforma gregoriana. Seus efeitos tiveram o auge no protestantismo; as outras duas são as lutas pela liberdade do cidadão – característico das revoluções americana e francesa, e as lutas sociais contemporâneas, segundo Comblin, “a revolução do nosso tempo” (COMBLIN, 1973, p. 184). A partir desse princípio, muitas são as objeções. Uma delas conforme destacaremos mais a frente, parte de Hannah Arendt, pois, segundo o teólogo mencionou, a filósofa nega o fato de que tivera havido revolução alguma em nome do cristianismo antes da época moderna, ao que rebate o teólogo afirmando que: 

Se o nome de revolução é dado aos eventos políticos de transformação que ocorreram nos tempos modernos, como podemos nos surpreender que o cristianismo não os produziu antes desse mesmo período? Mas também se poderia formular outra concepção mais ampla da revolução e mostrar como desde o início o Cristianismo é revolucionário - por exemplo, desde a luta de Jesus contra os fariseus (COMBLIN, 1973, p. 135).         

O teólogo destacou uma passagem bíblica para apresentar os conflitos contra as estruturas do poder ainda no início do cristianismo, mas corroborando com a perspectiva da luta por liberdade que Arendt define como característica das revoluções. Se a forma difere do conceito de revolução da era moderna, talvez devêssemos considerar que cada época é marcada por relações próprias as quais, por isso, criam diferentes relações e, portanto, novas maneiras de ação. Mas, conforme declarou Hobsbawm ao divergir da pensadora alemã, “haverá leitores, sem dúvida, que acharão a obra de Hannah Arendt interessante e proveitosa, mas é improvável que entre eles se incluam os estudiosos das revoluções, sejam eles historiadores ou sociólogos” (2003, p. 208). No entanto, Koselleck nesta questão se aproxima da perspectiva de Arendt ao afirmar sobre as guerras camponesas que, “ambas as expressões, guerra civil e revolução, não são coincidentes, mas também não se excluem mutuamente” (KOSELLECK, 2006, p. 66). A aproximação em questão está no fato de associar a um movimento específico anterior à Revolução Francesa e à Independência dos Estados Unidos, do qual para Comblin é caracterizado como revolução e de influência cristã a partir da figura de Thomas Munzer, não um movimento revolucionário, mas uma guerra civil.

O que é descrito por Comblin é que, se entendemos por revolução a mudança com o surgimento de novas estruturas sociais, políticas, econômicas, a revolução gregoriana, que envolveu os acontecimentos contextualizados entre a publicação Dictatus Papae[4], em 1075, e o Concordato de Worms[5], em 1122, que geraram uma nova ordem social – os feudos superados pelos mercadores, por exemplo, então tal manifestação da Igreja contra os imperadores deve ser reconhecida como revolução. Aliás, “pode-se dizer que a liberdade dos municípios, primeira manifestação da liberdade do povo operário na história da humanidade, está ligada à reforma gregoriana” (COMBLIN, 1973, p. 163). No entanto, adverte: “os revolucionários se convertem em conservadores da sua revolução” (COMBLIN, 1973, p. 164), referindo-se ao fato de que tal processo também gerou o fortalecimento do poder clerical, e, quando das lutas por liberdade internas de católicos contra a hierarquia, aconteceu a mesma coisa: a ruptura com os princípios de liberdade da reforma gregoriana e a adoção de uma postura conservadora. Tal perspectiva se relaciona com o conceito de revolução anterior a segunda metade do século XVII, do qual tanto Arendt (2011) quanto Koselleck (2006), associam ao seu sentido etimológico, cíclico, de retorno a uma condição anterior. 

Segue-se, então, a segunda onda revolucionária do ocidente que reúne a luta de leigos ou grupos que têm discordância com a hierarquia, tendo representação nos movimentos denominados heresias. Podemos citar, como exemplo, a luta dos Valdenses, Albigenses e Lollardos – “o movimento por uma Igreja espiritual e por uma Igreja de leigos assume proporções revolucionárias e fica mais ousado com a revolta dos Lollardos” (COMBLIN, 1973, p. 167). Bem como, também passando pela Reforma Protestante, sobretudo, as Revoltas Camponesas lideradas por Thomaz Munzer. Para Comblin, foi na Reforma Protestante que apareceu o caráter principal do termo, isto é, “o verdadeiro significado da Reforma aparece principalmente entre os radicais. Em primeiro lugar, em Thomas Münzer, teólogo da Rebelião Camponesa” (COMBLIN, 1973, p. 169). 

Segundo defendia Comblin, o ponto culminante teria sido os fatores que integraram a Revolução Puritana, pois “a Revolução Puritana na Inglaterra, que é a verdadeira revolução protestante e constitui o ponto alto da segunda corrente revolucionária no Ocidente” (COMBLIN, 1973, p.170). E continua destacando a importância da Revolução Inglesa para os conceitos que fundam as ideias modernas: 

Todas as ideais modernas estão em germe na Revolução Puritana. O que se chama de liberdades individuais, os direitos do homem, o contrato social, a tolerância, o Estado moderno e a nação, a democracia, tudo isso entrou no Ocidente pela porta da Revolução dos Santos. (COMBLIN, 1973, p. 170).

Acrescenta-se, para reforçar o pressuposto, que o programa de reivindicações de movimentos anteriores como os Hussitas são os mesmos dos Niveladores e Puritanos da Revolução Inglesa (HINRICHS apud COMBLIN, 1973, p. 170). Assim, observamos outra aproximação com o marxismo, dessa vez a análise desenvolvida por Friedrich Engels, explicitada por Löwy: “Engels destaca esses levantes coletivos revolucionários, esses movimentos independentes de classe que era predecessora mais ou menos desenvolvida do proletariado moderno no interior da Reforma e das grandes revoluções inglesa e francesa” (2012, p. 47). 

O que funda os ideais de luta na modernidade pode ser percebido desde os denominados movimentos heréticos, quais sejam – a defesa da liberdade, a luta por igualdade ou tolerância, que tanto buscaram nas relações externas Igreja x Imperadores, ou internas do leigo contra o clero. De tal forma, Comblin apresentou um dos principais elementos da sua tese: o quanto as revoluções têm no cristianismo as suas primeiras manifestações. Mais uma vez é notória a aproximação de Comblin com os estudo de Kautsky, em A Origem do Cristianismo, no qual o autor marxista retrata os fatores históricos e sociais do período vivido por Jesus. Além disso, destaca-o como revolucionário na luta contra o poder romano e menciona as primeiras experiências de vida coletiva e utiliza a expressão comunismo, para se referir a algumas comunidades de então.

Aqui, parece-nos necessário destacar também o forte diálogo que estabeleceu com Friedrich Heer, autor, em dois volumes, de Europa, Mãe das Revoluções (1964). Nessa obra, o historiador austríaco destaca a relação entre o cristianismo e revolução, descrito assim por Comblin: “Heer mostrava claramente como no ocidente todas as revoluções derivavam do cristianismo e como somente o cristianismo podia gerar revoluções” (MONTENEGRO, 2019, p. 178). Fica muito claro como tal formulação desenvolvida por F. Heer está presente na proposição de Comblin sobre o tema da revolução, especialmente, quando menciona a Revolução Puritana – oriunda de bases cristãs, como porta de entrada para as ideias revolucionárias da Europa moderna. Reafirmamos a discordância entre Comblin e Arendt em tal perspectiva, pois, de acordo com a filósofa alemã, “jamais ocorreu uma revolução em nome do cristianismo antes da era moderna” (ARENDT, 2011, p. 54).

Noutra ponta, o caráter revolucionário do cristianismo foi estudado por Engels, muito embora considerasse o duplo fenômeno da religião seu papel crítico e contestador, mas também sua atuação em defesa da ordem estabelecida. Tal perspectiva também podemos verificar em Comblin, porque, mesmo havendo sido revolucionária diante do Sacro Império Germânico, não manteve os princípios de liberdade que caracterizam esse momento quando das reivindicações dos leigos e outros movimentos denominados heréticos. O interesse de Engels era “o cristianismo primitivo, que é definido como religião dos pobres, dos exilados, dos amaldiçoados, dos perseguidos e oprimidos” (LÖWY, 2000, p. 18).

Os movimentos heréticos como precursores do socialismo moderno, conforme afirmamos, são estudados por Kautsky que “por sua vez, dedicou-se a um estudo da religião (As origens do Cristianismo). Todos esses temas haviam sido abordados de passagem por Engels ao final de sua vida” (ANDERSON, 1989, p. 19). Para complementar o segmento marxista que se dedicou ao estudo do cristianismo numa perspectiva da qual afirmou o padre José Comblin, ou seja, na relação com movimentos revolucionários, citamos Rosa Luxemburgo que, criticando a política reacionária da Igreja, destacou: 

Quando o clero apoia os ricos e os que exploram e oprimem os pobres, está agindo em contravenção explícita aos ensinamentos de Cristo: não está servindo a Cristo e sim ao Bezerro de Ouro. Os primeiros apóstolos do Cristianismo eram comunistas dedicados e os Pais da Igreja (como S. Basílio, o Grande e João Crisóstomo) denunciavam a injustiça social. Hoje, essa causa foi adotada pelo movimento socialista, que leva aos pobres o Evangelho da fraternidade e da igualdade e exorta o povo, para que estabeleça o Reino da Liberdade e o amor ao próximo na terra. (LÖWY, 2000, p. 23-24).

Assim como (ENGELS, 1977), (KAUTSKY, 2010) e (LUXEMBURGO, 2015), podemos perceber em outro autor marxista, Ernst Bloch (1973), que reforçou o destaque na linha da qual Comblin reforça aos movimentos revolucionários cristãos ou na relação existente entre a luta por liberdade e a luta pelo combate às injustiças na modernidade. Para ele, essas lutas derivavam-se desses movimentos, tais como nos lembra um dos slogans do movimento cristão revolucionário francês, surgido na França em 1936-1938, “Somos socialistas porque somos cristãos” (LÖWY, 2000, p. 25). 

Sobre o debate para o entendimento do que é então uma revolução ou do que não é, Comblin afirma que “explicar uma revolução é, então, ao mesmo tempo, revelar as forças que operam seus efeitos e os homens que assumem responsabilidades e realizam uma ação. Nem determinismo, nem voluntarismo” (1973, p. 151). As características se impõem; é preciso reconhecê-las, para transformá-las em forças sociais, visto que surgem do contexto próprio de cada época.

Para Comblin, mesmo que a Sociologia tente reduzir os processos revolucionários aos que não são, diversos autores estão convencidos de que é a opressão o estopim das revoluções, ou seja, a luta por liberdade. 

Outro fator a destacar são as discussões e análises propostas sobre o conceito e as práticas contrarrevolucionárias, sobretudo, como é representada a revolução ou os revolucionários. Palavras como violência, bestas selvagens, satanás, servem para citar algumas das suas representações.  Sorokin representa a revolução como orgia e desordem sexual; Joseph de Maistre faz da Revolução Francesa obra de Satanás, “são lobos (que se devoram entre si), ursos, hienas, cachorros (que devem ser abatidos, porque são raivosos), fala-se da hidra revolucionária” (COMBLIN, 1973, p. 238). 

A mesma violência sofrida pelos comunistas, representados de igual maneira, conforme destacou Motta: “no momento em que o comunismo passou a ser percebido como um inimigo sério para a Igreja, ele também passou a ser anatematizado como cria de satanás, da mesma forma que a Reforma ou o perigo turco em outras eras” (2002, p. 49). 

No Brasil, Comblin destacou os ataques sofridos por Dom Hélder e Dom Fragoso por setores conservadores da Igreja Católica e imprensa, que os descreviam como agentes pagos pelo grande partido da desordem, referindo-se ao comunismo soviético. Além dos movimentos articulados pela TFP - movimento Tradição, Família e Propriedade[6], da qual o teólogo sofreu acusações e forte contrapropaganda, no final dos anos 1960. 

As posições contrarrevolucionárias da Igreja Católica, em diversos momentos históricos e num amplo recorte, também são destacadas por Comblin: 

Se considerarmos a história da Igreja Católica de 1789 a 1958, encontraremos nela por parte dos Papas, dos bispos, do clero ou dos publicitários católicos tantas condenações à revolução, sobretudo dos franceses e liberais Revolução, e também da Revolução Socialista, que pode ser considerada um concerto quase unânime (COMBLIN, 1973, p.243).

Já no final do século XVIII, o Papa Pio VI condena a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Constituição Civil do Clero: 

Em 29 de março de 1790, o Papa condenou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Antes da Constituição civil do clero, que deveria consumar a perda dos privilégios do clero [...], condena a constituição civil, inaugurando assim a atitude de oposição sistemática dos católicos à revolução. (COMBLIN, 1973, p.243-244).

As posições de Pio VII e Leão XII foram contrarrevolucionárias, pois se colocaram favoráveis ao Império espanhol quando das lutas por independência das suas colônias: “quando os movimentos de independência estouraram no império espanhol da América, Pio VII e Leão XII se aliaram ao Rei da Espanha” (COMBLIN, 1973, p. 244). Já no século XX, reafirma-se a posição contrarrevolucionária e conservadora da Igreja: “os católicos põem sua confiança nos déspotas fascistas: Mussolini, Hitler, Pétain” (COMBLIN, 1973, p. 246).

Sendo assim, não seria estranho, como já descrevemos aqui, reconhecer as posições contrárias da hierarquia em relação aos movimentos que contribuem para mudanças estruturais na sociedade, especialmente, quando atingem diretamente os privilégios dela. Vez ou outra, o termo heresia aparece na história. E isso não ocorre por acaso. Seja, como diz, quando se aplica temas cristãos à realidade social, seja quando surgem aspirações de liberdade no plano temporal (COMBLIN, 1973, p. 255-256). 

Dessa forma, as ações contrarrevolucionárias aparecem mais tendo por objetivo a defesa do poder pelo poder e manutenção do status quo do que por conter em si o amparo da mensagem cristã. Isso desemboca na distinção que o pensamento combliniano faz entre cristianismo e religião.

É óbvio que a corrente contrarrevolucionária sempre buscou destratar qualquer tipo de análise ou ação que não se pautasse nos documentos eclesiásticos – como as cartas papais e o embasamento bíblico. No debate revolução e cristianismo, Comblin sempre teve amparo bíblico. Tanto é assim que nunca sofreu nenhum tipo de punição oficial do Vaticano. Até poderia tê-lo tido, sem razões, como aconteceu com Leonardo Boff[7]. Mas nunca foi o caso.

 Ao longo do texto, temos citado autores com que o teólogo buscou dialogar. Já nos referimos a F. Heer; acrescentaremos depois Dom Hélder, dentre outros. Mas, agora, voltemos a citar Ernst Bloch, em razão da relação que faz do conceito desse filósofo sobre utopia e esperança com as questões que envolvem o cristianismo e o tema da revolução.

O novo ou a deia de novidade é um dos temas discutidos, para compreender a relação cristianismo e revolução, cuja utopia – esperança, de Bloch, Comblin já considera no início do quarto capítulo de Teologia de la Revolución, ao destacar que “a teologia recente, estimulada principalmente pela filosofia de E. Bloch, destaca o conceito bíblico de novidade e destaca sua importância” (COMBLIN, 1973, p. 285). Pelo conceito bíblico de novidade, percebemos um dos problemas levantados, que conceitua um dos aspectos de todo processo revolucionário: a esperança do novo. 

A luta por liberdade inspira a revolução na busca de um mundo novo, uma nova sociedade. Ao destacar o novo como característico das revoluções, faz-se de imediato a ponte com a mensagem cristã e bíblica. Pois, não se pode deixar de admitir que a realidade, sendo humana, não seja cristã, todavia é impossível também não associarmos tal perspectiva da nova sociedade pela revolução com o pensamento marxiano, do qual descrevemos uma passagem retirada de A Ideologia Alemã:

Essa revolução é necessária, entretanto, não só por ser a única maneira de derrotar a classe dominante, mas também porque somente uma revolução possibilitará à classe que derruba a outra varrer toda a podridão do sistema antigo e se tornar capaz de instaurar a sociedade sobre novos fundamentos (MARX, 2006, p. 106). 

Ter, no horizonte da revolução, o objetivo da transformação da sociedade para uma nova realidade, é algo que entendemos está presente em ambos os pensamentos de estudos sobre a revolução, de Marx a Comblin, de Koselleck a Hannah Arendt. 

Num contexto em que as revoluções são associadas ao comunismo ou aos ideais marxistas, o teólogo belga apresentou momentos muito anteriores que interligam movimentos cristãos às lutas por liberdade, ao destacar que “a revolução tem suas fontes na Bíblia, mas não o poder revolucionário” (COMBLIN, 1973, p. 347). Para uma melhor compreensão, consideremos duas perspectivas na citação: a revolução tem sua expressão bíblica quando é interpretada por princípios cristãos de justiça, paz e liberdade, mas não é detentora do poder revolucionário. Para Comblin, muitas vezes, faz-se necessário pegar carona no trem da história e realizar as revoluções necessárias, e “no trem vão outros passageiros com quem é necessário contar. Neste momento temos os movimentos marxistas” (COMBLIN, 1973, p. 349). Aqui, Comblin refletiu sobre a importância e a necessidade da união entre cristãos e marxistas nas revoluções do seu tempo, já que, tomando como base a experiência chilena, católicos, por si só, não puderam realizá-la. 

Se o estudo realizado por Comblin, vazado na imprensa brasileira, apresentou um padre e teólogo subversivo ou revolucionário, isso não é de estranhar, pois vivia-se em tempos de ditadura. O fato é que, trazer a mensagem de liberdade, isso, sim, traz o verdadeiro incômodo para governos repressivos e ditatoriais, sobretudo, para quem defende não haver outra opção contra a opressão, pois, como o próprio Comblin afirmava: “a alma de todas as revoluções é a liberdade” (COMBLIN, 1973, p. 367).

Considerações finais

Analisar as características da perspectiva teológica de José Comblin é importante para identificarmos o comportamento de um segmento importante do clero católico em tempos de ditadura militar na América Latina. É a formulação de uma teologia gestada em tempos nebulosos e pensada a partir dos marginalizados, tendo por princípio a busca pela promoção da autonomia. É uma Teologia prática, da ação, conforme demonstrado nos textos publicados em Teologia da Revolução e Teologia da Prática revolucionária, mas também posto no seu pensamento e de acordo com as publicações que lhe rendeu a perseguição de governos ditatoriais na América Latina, assim como, a oposição de conservadores Católicos. 

Sobre a questão da revolução, fez questão de destacar como as revoluções estavam mais associadas com a história do cristianismo do que com o marxismo. Comblin, em nome do cristianismo, disputou com os marxistas a paternidade/maternidade das revoluções. Ou seja, o referido teólogo elabora sua perspectiva da prática revolucionária de um lugar próprio, que dialoga com categorias e o método marxista, mas sem estabelecer relação de dependência ou submissão ao mesmo. Compreende-o como aliado na luta pela transformação social. 

Ao narrar um diálogo que tivera acontecido entre ele e Gustavo Gutiérrez, descreveu:

Eu nunca tinha tido simpatia com o marxismo [...] Lembro-me de uma conversa que Gustavo Gutiérrez me recorda cada vez que nos encontramos [...] Deve ter sido em 1965 ou 1966 – e Gustavo perguntou-me o que pensava do marxismo. Eu disse que achava que era uma filosofia típica do século XIX (MONTENEGRO, 2019, p. 182). 

Muito embora sua resposta demonstre uma contundente crítica ao marxismo, ao analisar parte da sua obra no recorte que estabelecemos neste trabalho, isso não significou que se colocasse em oposição ao marxismo. As atividades que desenvolveu e suas publicações dialogam diretamente com a perspectiva marxista, sobretudo com autores que produziram análises que observaram certa perspectiva da religião, a partir do que produziram neste sentido, Engels (1969, 1977), Bloch (1973, 2005) e Hill (1988), para quem existem relações entre o cristianismo e as revoluções. 

É uma análise da realidade que converge com a perspectiva materialista, tal qual realizava Comblin, ou seja, observar a realidade, compreendê-la e promover ações para a sua transformação, como demonstra as atividades que estiveram presentes em sua caminhada na América Latina.

Com isso, percebemos que, mesmo em tempos de ditadura, José Comblin não abandonou sua defesa por uma nova sociedade e, sobretudo, o projeto por um novo jeito de ser Igreja, este, pautado na ação para a transformação, numa teologia da revolução – daí, portanto, sua crítica a hierarquia católica, a posição contra as ditaduras e a defesa dos direitos humanos e até mesmo a defesa pelo direito à revolução. Aí estão fortes características do seu novo jeito de ser Igreja. E isto, além de marcar suas trajetórias na América Latina entre os anos 1960 e 1980, foram condições essenciais para as constantes rupturas e recomeços que caracterizaram este período, pautado na atuação para a superação necessária pelas quais o ambiente católico deveria passar para que estivesse em consonância com a essência cristã e a promoção da autonomia popular, pois, conforme destacou, “a ação cristã consiste em uma conversão dos poderes em serviços” (COMBLIN, 1982, p. 379).

Referências

ANDERSON, Perry. Considerações Sobre o Marxismo Ocidental. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

COMBLIN, José. O Tempo da Ação: ensaio sobre o Espírito e a História. Rio de Janeiro: Vozes, 1982.

COMBLIN, José. Teologia de la Revolucion. Teoria. Bilbao: Desclée de Browver, 1973.

COMBLIN, José. Teologia de la Practica de la Revolucion. Tomo II. Bilbao: Desclée de Browver, 1979. 

DECOUFLÉ, André. Sociologia das Revoluções. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.

DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

ENGELS, Friedrich. As Guerras Camponesas na Alemanha. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977.

FERNANDES, Florestan. O que é revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

KAUTSKY, Karl. A Origem do Cristianismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

KAYSEL, André. Nação e Revolução: a Teoria da Revolução em Caio Prado Jr. e José Carlos Mariátegui. 35º Encontro Anual da ANPOCS, 2011.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Alberto Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-RIO, 2006.

LÖWY, Michael. A Teoria da Revolução no Jovem Marx. São Paulo: Boitempo, 2012.

LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de (orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

MARX, Karl e ENGELS, Friedirch. A Ideologia Alemã: Feuerbach, a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista. São Paulo: Martin Claret, 2006. 

MONTENEGRO, Antônio Torres. Travessias: padres europeus no Nordeste do Brasil (1950- 1990). Recife: CEPE, 2019.

MUGGLER, Monica Maria. Padre José Comblin: uma vida guiada pelo Espírito. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012.

PAULO IV. Populorum Progressio: Carta Encíclica sobre o desenvolvimento dos povos. São Paulo: Paulinas, 1990.

SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 2ª edição. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.

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Notas

[1] Joseph Jules Comblin, é o nome de batismo do padre e teólogo belga do qual tomaremos como referência para analisar a perspectiva de revolução posto nos seus trabalhos sobre o tema. No entanto, radicado na América Latina desde o ano de 1958, quando esteve no Brasil pela primeira vez, Joseph foi se transformando em José, e no nordeste, simplesmente, padre Zé. De tal modo que, adotaremos o seu nome brasileiro ao longo deste trabalho, ou seja, José Comblin.

[2] Teilhard de Chardin nasceu na região de Auvergne, na França, em 1881 e morreu em Nova York, em 1955.  Cientista (paleontólogo e Geólogo), filósofo e teólogo francês, entrou na Companhia de Jesus, em 1899.  Participou de expedições científicas importantes e abriu o campo da sua pesquisa científica ao debate cosmológico e teológico. Isso o tornou visado nos ambientes oficiais da Igreja Católica, a tal ponto que, ainda depois da sua morte, as suas obras (como O fenômeno humano e O meio divino) foram colocadas sob suspeita num Monitum do Santo Ofício, datado de 30 de junho de 1962. Teilhard de Chardin: cientista e místico. IHU on-line. Ano 5, nº 140. 09 de maio de 2005. http://www.ihuonline.unisinos.br. Acesso em: 04 de maio de 2024.

[3] Algumas das obras citadas que foram publicadas em português: Revolução dentro da paz (1968), Espiral de Violência (1978) e O deserto é fértil (1975).

[4]É um conjunto de 27 proposições e axiomas que tratam da autoridade, competência e poderes do Papa, tanto no domínio temporal como espiritual. Escrito à época de Gregório VII ou pouco depois, o documento contém as bases da Reforma gregoriana, realizada em meados do século XI, e condensa a produção teórica e as disposições do Papado sobre suas prerrogativas como sucessor do apóstolo Pedro, que, por sua vez, recebeu de Jesus Cristo o poder sobre a Igreja. 

[5] Por vezes chamada de Pactum Calixtinum por historiadores papais, foi a concordata celebrada entre o Papa Calisto II (1119-1124) e o Imperador Henrique V do Sacro Império Romano-Germânico, celebrado em 23 de setembro de 1122, perto de Worms. Desse modo, o Imperador aceitou o direito de a Igreja designar os bispos.

[6] Associação civil de âmbito nacional fundada em 1960 por Plínio Correia de Oliveira, com o apoio dos bispos dom Antônio de Castro Mayer, de Campos (RJ), e dom Geraldo Proença Sigaud, de Diamantina (MG). A organização tem por objetivos combater a vaga do socialismo e do comunismo e ressaltar, a partir da filosofia de são Tomás de Aquino e das encíclicas, os valores positivos da ordem natural, particularmente a tradição, a família e a propriedade. A TFP inspirou-se no “integrismo”, ideologia católica, cujo princípio básico é a militância ativa em defesa do catolicismo tradicional, em oposição ao catolicismo com engajamento social. Fonte: Site da Fundação Getúlio Vargas. http://www.fgv.br/cpdoc/acervo. Acesso em, 12/04/2024.

[7] Religioso brasileiro, Leonardo Boff, um dos mentores da Teologia da Libertação, foi condenado, em 1985, ao "silêncio obsequioso", pela Congregação para a Doutrina da Fé, que tinha à frente o cardeal Joseph Ratzinger.