Propõe-se, aqui, uma resenha crítica do livro do teólogo André Anéas intitulado “Teomística: por uma espiritualidade da vida”, publicado em 2024 pela editora Recriar. Pretende-se avaliar, no âmbito desse breve texto, a pertinência da referida obra para o campo da reflexão teológica. Tal entrepresa, por conseguinte, percorrerá o seguinte roteiro: (1) o autor; (2) a obra; (3) considerações finais.
André Anéas obteve em 2023, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o grau de doutor em teologia, com a tese intitulada “Teomística: um diálogo entre experiência mística e a fenomenologia à luz da Teologia Fundamental”. Pastor da Igreja Batista de Quitaúna (IBQ), em Osasco SP, Anéas, que foi professor de teologia, entre 2015 e 2021, na Faculdade Teológica Batista de São Paulo (FTBSP), é atualmente diretor e professor da pós-graduação do Laboratório de Teologia, Espiritualidade e Mística (LabTEM), localizado, também, em Osasco. O teólogo alvesiano – por receber grande influência de Rubem Alves (1933 – 2014), conforme pode ser com naturalidade percebido em sua outra obra intitulada “A racionalização da experiência de Deus” (ANÉAS, 2019) – é autor e organizador de outros cinco livros, publicados recentemente: (1) “Protestantismo e Mística – razão e experiência mística no protestantismo histórico”. São Paulo: Fonte Editorial, 2016. v. 1. 106p; (2) “Diálogos sobre a experiência de Deus”. São Paulo: Editora Recriar, 2020. v. 1. 284p; (3) “Diálogos sobre a experiência de Deus Volume II - questões sobre mística”. São Paulo: Editora Recriar, 2022. 232p; (4) em coorganização com Lucas Merlo e Rafael Gama, “Evangélicos e Política”. São Paulo: Editora Recriar, 2023. 204p; (5) “A racionalização da experiência de Deus”. Curitiba: Editora CRV, 2019. 234p.
O livro “Teomística: por uma espiritualidade da vida” possui 370 páginas e é dividido em cinco capítulos, precedidos – além da introdução geral do autor – por uma apresentação escrita pelo Prof. Dr. Donizete José Xavier (professor da pós-graduação em Teologia da PUC-SP) e um prefácio escrito pelo Prof. Dr. Antonio Manzatto (professor da pós-graduação em Teologia da PUC-SP), sendo sucedidos, ao final, pelas considerações finais do autor, seguidas por um posfácio escrito pela Profa. Dra. Maria Clara Bingemer (professora do departamento de Teologia da PUC-Rio).
Os cinco capítulos do livro “Teomística” foram subdivididos pelo autor em diversos subtópicos, precedidos e sucedidos por introdução e considerações preliminares a cada capítulo. Seja, portanto, a seguir, demonstrada a configuração interna da obra: Capítulo I – Justificativas para uma nova chave hermenêutica: Teomística; Capítulo II – Fundamentos históricos; Capítulo III – Fundamentos teológicos; Capítulo IV – Fundamentos sociológicos e filosóficos; Capítulo V – Teomística: por uma sabedoria teológica.
No âmbito do primeiro capítulo, em diálogo com diversos autores (ALVES, 1979; TILLICH, 2015; RICOEUR, 2006; BUBER, 1977; BERGER, 2017), elabora-se a imperiosa necessidade da proposta teomística, a qual se distingue por sua capacidade de transcender a leitura fundamentalista das Escrituras e promover uma interação hermenêutica criativa e dinâmica entre o leitor e o texto sagrado. Além disso, sublinha-se a premência de interditar a lógica de violência que historicamente permeia a cristandade, ao mesmo tempo em que se advoga pelo reconhecimento das limitações intrínsecas à razão humana, notadamente no domínio teológico, e pela promoção de uma epistemologia do possível. A teomística se configura também como uma resposta aos anseios humanos num contexto secularizado e pós-moderno, em consonância com o ethos paleocristão. Ademais, propõe-se a mitigar a racionalização da experiência divina, preservando o caráter arcano e fascinante da religião. Desta forma, a teomística se apresenta como uma abordagem radicalmente antifundamentalista, crítica das instituições religiosas e de seu potencial para a violência, humilde ao reconhecer as fronteiras da razão humana, humanista por sua imersão no ambiente secular pós-moderno, e experiencial, ao valorizar a subjetividade e superar a dicotomia entre contemplação e ação, fé e práxis.
Após uma meticulosa incursão histórica pela mística cristã, desde suas raízes mais ancestrais, personificadas na figura de Jesus, até os tempos contemporâneos permeados pelos místicos e místicas do presente, emerge uma conclusão preliminar ao segundo capítulo, a partir do diálogo com autores selecionados (MCGINN, 2012; BOFF, 2012; BINGEMER, 2007; WEIL, 2016), acerca dos elementos preponderantes que delineiam essa vertente espiritual. Observa-se, no âmago desse corpus místico, a manifestação de uma humildade corajosa, cuja essência reside na sinceridade e na audácia em enfrentar os próprios demônios internos e na prática íntegra da fé. O protagonismo de Jesus como paradigma espiritual inconteste é exaltado, ressaltando sua dualidade divino-humanizada como arquétipo para a vivência espiritual cristã. Em um viés epistemológico, os místicos revelam uma inerente desconfiança nas vias convencionais de acesso ao conhecimento divino, privilegiando a experiência direta e adotando uma abordagem em via negativa. Destaca-se ainda a precoce originalidade intelectual e a postura crítica em relação às tradições religiosas estabelecidas, fomentando uma autonomia intelectual e uma prática amorosa que repudia o individualismo. Tal atitude muitas vezes acarreta tensões com as instituições religiosas, porém, desemboca na superação da dicotomia sagrado-profano, culminando na sacralização do cotidiano e da existência terrena. Estes traços distintivos constituem os pilares fundacionais da teomística, uma tradição que não almeja introduzir uma hermenêutica teológica totalmente inovadora, mas sim revitalizar o pensamento teológico ao desafiar e relativizar as tradições arraigadas, promovendo, assim, uma renovação contínua no domínio espiritual e teológico.
No terceiro capítulo, Anéas apresenta quais são as três contribuições teológicas angariadas como pilares para os fundamentos da teomística. Em primeiro lugar, a abordagem ortodoxa de Vladimir Lossky (1976) oferece um substrato epistemológico que, ao discernir a teomística do potencial racionalista, comum nas teologias ocidentais, visa resguardá-la de tal tendência. Em segundo plano, a espiritualidade humanista, influenciada por figuras como Francisco, Rubem Alves e José M. Castillo (ALVES, 1979; CASTILLO, 2015), tecida numa trama cristológica moderna, delicadamente evita os abismos do subjetivismo enquanto enaltece a experiência. Por fim, a teologia de F. Schleiermacher e as reflexões de Peter Berger (BERGER, 2017; SCHLEIERMACHER, 2000), ao sustentarem o método teomístico, firmemente enraizado na experiência humana, propiciam uma abordagem acessível e contemporânea. Nesse empreendimento teológico, enraizado no humano e derivado da experiência, o teológico tradicional se vê relativizado, cedendo espaço para a gênese de uma criatividade teológica e inovação dialógica entre a experiência e a tradição.
O capítulo quatro propõe as bases sociológicas, filosóficas, epistemológicas e hermenêuticas que fornecem alicerces à teomística (MENDONÇA, 2016; SHCHELEIMACHER, 2000; HENRY, 2008). No âmbito sociológico, destaca-se a importância das categorias sociológicas na delimitação dos papéis dos sacerdotes, profetas e místicos, elucidando o processo de institucionalização religiosa e seu subsequente retorno a uma fase instituinte, de maneira dialética. Tal abordagem não apenas situa a teomística em um contexto teórico, mas também posiciona o teólogo dentro de sua tradição e oferece perspectivas aos fiéis imersos no fenômeno religioso. No que tange aos domínios epistemológicos e hermenêuticos, o pensiero debole emerge como um arcabouço teórico que confere legitimidade à teomística na pós-modernidade, prevenindo-a tanto do subjetivismo quanto do relativismo. Essa perspectiva valoriza a pluralidade e a ambiguidade, resgatando a teologia de uma posição apologética e elevando-a ao status de ciência humana. Sob a égide fenomenológica, a fenomenologia da Vida se destaca como uma base filosófica ideal para a teomística, relativizando o teológico e outorgando primazia à Vida. Nessa concepção, a linguagem teológica é reconhecida como uma expressão limitada do Mistério imanente presente na Vida, permitindo que o ser humano se comprometa visceralmente com o mundo por meio da experiência do divino.
Enfim, no quinto capítulo, propôs-se a compilação de uma sabedoria teológica, composta por categorias que, alimentadas por diversas bases da teomística, objetivam moldar uma abordagem hermenêutica abrangente (MCGRATH, 2012; MANZATTO, 1994; XAVIER, 2021). Estas categorias, interligadas e passíveis de adaptação, prometem impactar a empreitada teológica de maneiras diversas e sob diferentes prismas. Tanto os teólogos profissionais quanto a comunidade de fé, bem como aqueles que se debruçam sobre a teologia em suas reflexões e mesmo os que se situam à margem dos círculos religiosos, poderão, por intermédio desta proposta, discernir a natureza teológica profunda do Mistério da Vida. Neste percurso, emergem novas possibilidades teológicas decorrentes da relativização do teológico, abrindo-se para uma abordagem cujo foco se inicia na experiência, no misterioso e no não evidente, visto que só pode ser experimentado. Ao se perceber que a imanência foi tocada pela transcendência, a teologia que se desenrola, que se edifica e que se expressa, não se restringirá a uma mera descrição, mas se tornará um universo repleto de mistérios, de beleza, de diversidade e de poesia, permeado por símbolos e metáforas que buscam transmitir a inexorável essência do Mistério da Vida.
A investigação de Anéas acerca dos místicos na tradição cristã, visando decifrar a essência da mística, desvela uma odisseia fascinante em busca do indizível. A teomística, ao propor uma abordagem que subverte o paradigma teológico convencional em favor de uma filosofia da religião centrada na experiência, desafia não a inteligência, mas a arrogância inerente à ortodoxia teológica, alinhando-se ao conceito do Deus vulnerável da kénosis. Inspirada pelos místicos, essa teologia erótica e criativa valoriza o testemunho sobre a palavra, promovendo um ethos teológico místico, crítico e pluralista que desafia os dogmas ortodoxos. Ao dissolver o Deus tradicional na tapeçaria da Vida, a teomística permite que o Mistério se desdobre plenamente na experiência humana, reconhecendo que, diante do inefável, as teologias são meros exercícios destinados a explorar a riqueza e a complexidade da existência.
Assim, é razoável que se diga que o texto de André Anéas é inovador e corajoso. Sem dúvida alguma, constitui-se como um rico material de referência acadêmica, não apenas para teólogos que estejam buscando aprofundar seu pensamento nessa linha, mas, também, para os críticos que, na maioria das vezes, em virtude de não possuírem um referencial teórico adequado, constroem espantalhos. A teomística de Anéas, enfim, ressalta o que há de mais relevante para a discussão teológica na contemporaneidade.
ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1979.
ANÉAS ANDRÉ. A racionalização da experiência de Deus. Curitiba: Editora CRV, 2019.
BERGER, Peter L. O imperativo herético. Petrópolis: Vozes, 2017.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Simone Weil. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
BOFF, Leonardo. Experimentar Deus. Petrópolis: Vozes, 2012.
BUBER, Martin. Eu e tu. São Paulo: Cortez & Moraes, 1977.
CASTILLO, José Maria. Jesus: a humanização de Deus. Petrópolis: Vozes, 2015.
HENRY, Michel. O começo cartesiano e a ideia de fenomenologia. Covilhã: LusoSofia: Press, 2008.
LOSSKY, Vladimir. The Mystical Theology of the Eastern Church. New York: St Vladimir’s Seminary Press, 1976.
MANZATTO, Antonio. Teologia e literatura. São Paulo: Loyola, 1994.
MCGINN, Bernard. As fundações da mística. São Paulo: Paulus, 2012.
MCGRATH, Alister. A revolução protestante. Brasília: Palavra, 2012.
MENDONÇA, José T. A mística do instante. São Paulo: Paulinas, 2016.
RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião. São Paulo: Novo Século, 2000.
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. 5. ed. São Paulo: ASTE, 2015.
WEIL, Simone. Carta a um religioso. Petrópolis: Vozes, 2016.
XAVIER, Donizete. Teologia Fundamental. Petrópolis: Vozes, 2021.