Denizart Busto de Fazio
Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: denizart.fazio@gmail.com
José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Titular de Filosofia da Educação na Universidade de São Paulo (USP). Contato: jsfcusp@usp.br
Resumo: Em contraposição a determinado discurso pedagógico contemporâneo, que pretende criar uma “escola eficiente” para as supostas exigências da sociedade futura, ou seja, uma escola amalgamada com o mundo produtivo, objetivamos, neste pequeno ensaio, refletir a partir de algumas ideias do filósofo francês Paul Ricœur. Em um primeiro momento, discorreremos sobre a condição narrativa da palavra docente, indicando a centralidade da palavra na experiência educativa, na qual se comunica tanto os frutos da cultura quanto um movimento de pesquisa, enfatizando a sua dimensão hermenêutica. Em seguida, ensaiaremos uma leitura da palavra narrativa do professor a partir da tríplice mimesis, buscando compreender o ofício docente como forma singular de narrar determinada leitura de mundo aos seus novos habitantes.
Palavras-chave: Paul Ricœur; Narrativa; Educação; Filosofia da Educação
Abstract: In contrast to certain contemporary pedagogical discourse, which aims to create an “efficient school” for the supposed demands of future society—i.e., a school amalgamated with the productive world—we aim, in this brief essay, to reflect on some ideas of the French philosopher Paul Ricœur. Initially, we will discuss the narrative condition of the teacher's word, indicating the centrality of language in the educational experience, wherein both the fruits of culture and a movement of inquiry are communicated, emphasizing its hermeneutic dimension. Subsequently, we will attempt an interpretation of the teacher's narrative word through the lens of Ricœur's threefold mimesis, seeking to understand the teaching profession as a unique form of narrating a particular interpretation of the world to its new inhabitants.
Keywords: Paul Ricœur; Narrative; Education; Philosophy of Education.
“Professores já não são os guardiões de informações. A velha narrativa já não é mais relevante para a escola. Precisamos reescrever nossa narrativa, mudar a abordagem pedagógica e transformar as práticas em sala de aula”. Encontramos essas frases na entrevista de Marjo Kyllönen, então secretária da educação de Helsinque (Finlândia), ao jornal O Globo[1] em agosto de 2015. O sistema de ensino finlandês, descrito na reportagem como o “mais eficiente do mundo”, está preocupado, nas palavras de Kyllönen, com as “competências necessárias para o futuro”. Para tal intento seria necessário “redesenhar nossa educação para atender às exigências da sociedade futura e proporcionar aos alunos as habilidades do século XXI”.
A breve entrevista é repleta de elementos que nos permitem visualizar, de forma quase esquemática, parte essencial do imaginário pedagógico brasileiro contemporâneo e suas formas discursivas. Inicialmente, o alardeamento de uma suposta obsolescência do trabalho do professor em virtude da perda de seu posto de “guardião da informação”, suposição baseada em um frágil retrato a respeito do que seria o papel docente. Em seguida, percebemos traços das reiteradas oposições entre o velho e o novo, o obsoleto e a novidade, o arcaico e o tecnológico, em suma, entre o passado e o futuro.
Essa escola eficiente, voltada para as “exigências da sociedade futura”, se parece com uma ferramenta que deve cumprir inexoravelmente uma demanda, uma exigência futura no frágil presente. É evidente que tais exigências são campo aberto para que alguns discursos de autoridade sejam criados tanto para compartilhar um suposto vislumbre do tempo porvir quanto para indicar quais são as habilidades e competências que serão necessárias neste novo tempo. O enquadramento do campo educativo em “habilidades e competências” não é exatamente novo e está inscrito na busca pela aplicação do saber, como podemos ler no principal documento curricular brasileiro, a Base nacional comum curricular (BNCC). Ali encontramos que o objetivo na Educação Básica é que os alunos aprendam tanto “[...] os saberes quanto a capacidade de mobilizá-los e aplicá-los” (Brasil, 2018). Não se trata de uma peculiaridade brasileira, mas uma determinada forma de se afinar às avaliações internacionais, em especial ao Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). É a partir das boas avaliações no Pisa que as escolas da Finlândia configuram, no imaginário pedagógico brasileiro, fomentado pelas fundações empresariais, o modelo da “escola eficiente”. Essa escola eficiente, voltada à aplicação dos saberes, ou, em termos mais concretos e diretos, que almeja encontrar competências e habilidades aplicáveis no mercado de trabalho, dizendo-se voltada para as exigências da sociedade futura, que já não pode mais se curvar para o passado, é uma escola exilada do reino da palavra.
Objetivamos neste pequeno ensaio oferecer algumas ideias que caminham na direção oposta a esse movimento que parece hegemônico no discurso pedagógico brasileiro a partir de contribuições do filósofo francês Paul Ricœur. Em um primeiro momento, tendo como ponto de partida um artigo elaborado pelo pensador na década de 1950, “La parole est mon royaume”. discorremos brevemente sobre a condição narrativa da palavra docente, indicando a centralidade da palavra no ofício docente, na qual se comunica tanto os frutos da cultura como um movimento de pesquisa, compreendendo o papel do professor em sua dimensão hermenêutica. Em seguida, ensaiaremos uma leitura da palavra narrativa do professor tendo como guia a tríplice mimesis desenvolvida por Ricœur em “Tempo e narrativa”. Neste momento tentaremos compreender o ofício docente, partindo de uma pré-compreensão do mundo da ação, como a narração de uma leitura singular do mundo aos seus novos habitantes.
Embora jamais tenha se debruçado sistemática e exaustivamente sobre o tema da educação, como o fez ao tratar de outros campos caros à reflexão filosófica, Paul Ricœur dele não se manteve completamente afastado. Sua extensa trajetória como professor em liceus e universidades e seu engajamento, teórico e prático, nos debates acerca das políticas públicas de educação o levou, em diversas ocasiões, a abordar questões e desafios vinculados ao papel político dos educadores e aos vínculos entre educação, formação (Bildung) e cultura. O caráter assistemático e a presença espraiada de seus escritos sobre o tema colocam uma série de problemas para aqueles que se propõem a analisar suas contribuições a esse campo de estudos, mas, ao mesmo tempo, abre um leque bastante diverso de possibilidades analíticas e interpretativas. Pensamos aqui, por exemplo, em alguns de seus textos nos quais a discussão sobre educação emerge: alguns artigos como “A palavra é o meu reino”, de 1955; “As tarefas do educador político”, da década de 1960, “Os paradoxos da identidade”, conferência realizada por Ricœur nos anos 1990 e a entrevista concedida à Anita Hocquard em meados da década de 1980 e publicada em livro na década de 1990, que talvez seja um dos principais materiais no qual Ricœur busca discutir, refletir, especificamente sobre a educação.
Parece-nos que, de modo geral, algo que será central para se pensar a educação a partir de Ricœur é a dimensão da palavra no interior da experiência educativa. É no já citado artigo de 1955[2] que Ricœur abordará a centralidade da palavra no ofício docente: “O que eu faço quando eu ensino? Eu falo. Eu não tenho outro sustento e não tenho outra dignidade; eu não tenho outra forma de transformar o mundo e eu não tenho outra influência sobre os homens. A palavra é o meu trabalho; a palavra é o meu reino.[3]” (Ricœur, 1955, p. 192). Essa palavra (parole), importante ressaltar, não corresponde ao simples vocábulo, mas compreende uma dimensão discursiva, ou seja, trata-se de uma fala endereçada.
Contrapondo-se a um utilitarismo econômico muito comum de se acercar do campo educativo durante grande parte do século XX e XXI, Paul Ricœur defenderá a ideia de que qualquer discussão a respeito dos caminhos da educação deverá levar em conta o que está no cerne da atividade educativa: a comunicação pela palavra. O exercício da atividade docente se fundamenta em uma fala que pretende comunicar algo no interior do encontro entre gerações:
Minha palavra não começa nenhuma ação, nem ordena nenhuma ação que poderia cair diretamente ou indiretamente na produção. Eu falo apenas para comunicar à geração de jovens o que a geração adulta sabe e pesquisa. Esta comunicação, pela palavra, de um saber adquirido e de uma pesquisa em movimento, é minha razão de ser: meu ofício e minha honra. Eu não terei inveja dos que estão “na vida”, que estão “tomados pelo real”, como dizem os professores insatisfeitos consigo mesmos. Meu real e minha vida é o império das palavras, das frases e dos discursos (Ricœur, 1955, p. 192).
O movimento de Ricœur no texto é o de se colocar criticamente à distância de uma concepção da educação exclusivamente profissionalizante. O seu ensaio, intervenção pública no debate sobre a reforma do ensino na França, quer enfatizar que a palavra docente não está, ou não deveria estar, ligada estritamente ao mundo produtivo. Contra aqueles que dizem que é preciso que a educação, que a escola, trate da “realidade”, que prepare os alunos para o mercado de trabalho, discurso já tão costumeiro no campo educacional, Ricœur enfatizará que o lugar de direito da docência é justamente o reino das palavras, das frases e dos discursos. Este reino é o lugar no qual o professor comunicará aos jovens tanto um saber adquirido quanto uma pesquisa em andamento, de modo a “[...] transmitir os frutos e o movimento de sua cultura” (Ricœur, 1955, p. 192).
O primeiro termo dessa comunicação se relaciona com a clássica atribuição do ofício docente: comunicar aos jovens aquilo que se passou neste mundo antes da sua chegada. É condição de habitação deste mundo que os recém-chegados sejam iniciados em um conjunto de saberes que os antecede. Faz parte, portanto, do ofício docente, que se compartilhe os frutos de nossa época, as obras de nossa cultura, aquilo que herdamos do passado, de maneira a informar os alunos do que se trata este mundo no qual eles começam a trilhar seus caminhos.
O segundo termo da comunicação docente pela palavra diz respeito a um movimento, onde o professor comunica não o que se sabe, mas o que se pesquisa, partilhando suas investigações, expondo algo que está em processo: seu diálogo singular com os objetos da cultura, suas inspirações e hipóteses, sua forma de ler o mundo. Este segundo dever de comunicação pelo ensino, é o que nos parece, relaciona-se com a transmissão de um movimento de interpretação do docente diante do seu encontro com as obras do mundo. Trata-se de um processo de iniciação, dos recém-chegados, na tarefa hermenêutica de compreensão diante do passado que nos antecede e de um presente que nos interpela.
Em outros termos, imersos que estamos em um mundo que nos precede, nossa existência é radicada em uma distância que pede interpretação. Parece-nos que é esta mesma distância que pede interpretação de um passado que nos é, a princípio, estranho, que está no cerne tanto do trabalho hermenêutico quanto da atividade educativa. O que seria a educação se não o espaço e o tempo que interpomos juntos aos novos para que se enfrente essa distância temporal na qual nossa existência está radicada? Consideramos que a atividade educativa pode ser pensada também nos termos do movimento de compreensão hermenêutico (Carvalho, 2020, p. 10).
O ofício docente é, portanto, articulado a partir de um duplo gesto. Não se trata somente de transmitir uma tradição, promovendo, assim, a familiarização dos mais novos com um determinado legado simbólico socialmente erigido como passado comum. É preciso ainda transmitir um certo “movimento do pensamento” por meio do qual o presente interpretante ressignifica o passado interpretado à luz de suas condições, de forma que este se transforme em uma herança viva, e não em um peso morto legado pelos tempos pretéritos. A palavra partilhada junto aos alunos não é uma palavra morta, que discorrerá sobre um passado que não nos diz respeito, ou que se apresenta tão somente como uma palavra finalizada, estagnada, pronta para o consumo das novas gerações. Ela é, sobretudo, uma palavra que enseja um diálogo vivo.
É nesse sentido que poderíamos pensar no ensino, em chave hermenêutica, como a introdução dos recém-chegados “[...] no diálogo que a humanidade não cessa de ter com ela mesma” (Simard; Côté, 2011, p. 90). O ofício docente e o trabalho hermenêutico se fundam em uma temporalidade na qual precisamos lidar com uma distância que pede um trabalho interpretativo. Esse trabalho interpretativo, em Ricœur, se afina com uma ideia de compreensão de si, caminho possível apenas por meio do desvio na humanidade expressa em obras, a partir do encontro com o outro. Nessa chave poderíamos pensar que o ofício docente poderia ser visto como a oferta, por meio da palavra, de possibilidades de desvios. Mais ainda, a oferta de uma palavra que permita aos sujeitos a possibilidade de se engajarem em um tecido narrativo, em compreenderem as diversas narrativas que formam este mundo, engajar-se junta a elas na medida em que as interpreta.
Nesse sentido, o professor, esse habitante do reino das palavras, que comunica sua interpretação das obras do mundo aos jovens, e os inicia na hermenêutica exigida na habitação deste mundo, deve estar ligeiramente deslocado de um ofício estritamente produtivo. Não porque o mundo produtivo seja irrelevante em termos educativos, mas porque corremos o risco de a dimensão produtiva dominar tudo aquilo que chamamos de educação. O cerne da educação está na palavra. Como o dissemos, não se trata de um simples vocábulo, mas de uma palavra que possui uma espessura, tal como um tecido. É uma palavra que narra de uma geração à outra com o intuito de fazer tecer “[...] uma ligação temporal capaz de dar algum grau de durabilidade ao mundo comum” (Carvalho, 2015, p. 64). Essa ligação temporal é um entrelaçamento entre a geração mais velha e a geração mais nova, buscando o estabelecimento de pontos de contato para que consigam construir e habitar um mesmo mundo comum. Trata da necessidade de se lidar com o fato de que há sempre novos chegando em mundo já velho. A educação se faz diante do desencontro entre esses novos e velhos, do seu desacerto, da sua distância constitutiva na habitação de um mundo que se pretende comum. Nas palavras de Brayner, “[...] uma das tarefas da educação é tentar reduzir o efeito devastador que pode ter o fato de entrar num “jogo” já começado e sair dele sem saber o resultado” (2015, p. 25). Para que seja possível estabelecer ligações entre as gerações novas e velhas, é preciso que os velhos narrem aquilo que sabem a respeito deste mundo. O empreendimento educativo, tal como uma trama, é uma tessitura que narra, que busca articular uma sucessão de acontecimentos um em razão do outro. Em outras palavras, a palavra do professor é uma palavra que narra.
Sabemos que os assuntos narrativos estiveram profundamente presentes nos estudos de Paul Ricœur, concentrados, em grande medida, nos três tomos do seu “Tempo e narrativa”. Se desejamos pensar a atividade docente como uma atividade que possui algo da ordem do narrativo, é preciso olhar para tais estudos do filósofo francês. Em virtude da brevidade deste ensaio, apenas indicaremos ideias bastante introdutórias.
O primeiro ponto a destacar é que em Ricœur a narrativa é pensada a partir do desdobramento da noção aristotélica de mimesis, englobando aspectos anteriores e posteriores à narrativa propriamente dita. Primeiramente, a composição de uma narrativa, a tessitura de um enredo ou intriga, parte de uma pré-compreensão da ação. É por agirmos e compreendermos nossa vida em termos de uma ação – e não de meras relações de causa e efeito – que se torna possível configurar uma obra. A isso Ricœur chamará mimesis I. A ideia de que “[...] a composição da intriga está enraizada numa pré-compreensão do mundo da ação: de suas estruturas inteligíveis, de seus recursos simbólicos e de seu caráter temporal” (Ricœur, 2010, p. 96). Essa pré-compreensão narrativa, subjaz às condições de possibilidade para realizar a composição de uma obra propriamente dita, o tecer da intriga. Essa configuração será nomeada por Ricœur de mimesis II, na qual se tira de uma simples sucessão uma configuração, transformando incidentes em história. Por fim, Ricœur falará em uma mimesis III, momento no qual o mundo do texto encontra-se com o mundo do leitor ou do ouvinte, marcando uma espécie de mediação entre a mimesis I e a mimesis II. Em Ricœur abre-se a narrativa tanto para o que lhe é anterior, a experiência no mundo da ação, que é mobilizada no processo de tecer uma narrativa, quanto o que é posterior à configuração do texto, o encontro entre obra e leitor. Para Ricœur, a narrativa só poderá ser compreendida como a mediação entre esses dois momentos.
Diante desse quadro sintético da tríplice mimesis ricœuriana, perguntámo-nos se seria possível usar tal enquadramento para se pensar em uma ideia de uma palavra narrativa do professor. Sabemos, de antemão, que uma aula não é uma obra literária, mas não parece despropositado ensaiar até que ponto poderíamos chegar pensando a experiência educativa como narrativa.
No quadro da tríplice mimesis de Ricœur há, primeiramente, uma pré-compreensão do mundo da ação que parece igualmente importante para os assuntos educativos. As estruturas inteligíveis do mundo da ação, a compreensão daquilo que acontece a partir de categorias como fins, motivos, agentes, consequências, circunstâncias etc., são requeridas para o empreendimento educativo, bem como os traços temporais a elas relacionadas. É a partir dessa pré-compreensão que se torna possível contar o mundo aos jovens, tal como uma narrativa. Faz parte do papel da escola, enquanto instituição que interpomos entre o domínio privado e o mundo público, o aprofundamento e a complexificação da forma como os alunos percebem essa rede de categorias e como elas se relacionam entre si, mas também nos parece claro que a escola precisa justamente desta pré-compreensão para que seu trabalho se inicie. Tal pré-compreensão do mundo da ação permite a existência de um espaço entre as gerações – a escola – para que a geração mais velha narre o mundo à geração mais nova. Assim, a educação é igualmente tributária dessa compreensão da vida nos termos de uma ação e, portanto, entranhada nos procedimentos de composição da intriga. A escola só faz sentido porque não só entendemos a vida nos termos de uma grande e múltipla narrativa, mas porque supomos ser possível interpretá-la e narrá-la. Podemos, à maneira da configuração de uma obra literária, encadear, na escola, os acontecimentos dispersos do mundo, em uma narrativa inteligível.
Nesse esquema, o professor ocuparia o lugar de configurador de uma obra, o próprio tecelão, buscando extrair configurações das meras sucessões que encontramos no mundo de modo a narrá-las aos seus novos habitantes. Recorrendo a um exemplo literário poderíamos pensar no conto “A língua das mariposas”, de Manuel Rivas, que se tornou um filme bastante conhecido, e no qual vemos, em meio aos acontecimentos da guerra civil espanhola, o encontro entre o menino Moncho e o professor Don Gregório. Em determinado momento o menino diz “[...] tudo o que ele tocava era uma história fascinante. A história poderia começar com uma folha de papel, depois de passar pela Amazônia e pela sístole e diástole do coração. Tudo conectado, tudo fazia sentido. A grama, a lã, a ovelha, meu frio” (Rivas, 2000). É assim que o menino narra seu encantamento com os novos mundos que se abrem diante de si a partir das palavras narradas por Don Gregório. Paulatinamente, o professor lhe iniciava em uma linguagem por meio da qual ele poderia sorver o mundo. Aqueles fios do mundo que, aos olhos das crianças, se apresentavam dispersos, ganham articulação, encadeamento, se fazem tecido na fala do professor que narra. Quando Moncho diz: “Tudo conectado, tudo fazia sentido. A grama, a lã, a ovelha, meu frio” (Rivas, 2000), ele faz referência a sua percepção de que agora compreende que a grama, que alimenta as ovelhas, permitindo-as se desenvolverem e produzirem a lã, está conectada às suas vestes que o protegem do frio. Essa capacidade de articular um conjunto de elementos que antes pareciam dispersos aos olhos dos alunos e que é central na atividade docente, poderíamos chamá-la de uma capacidade narrativa. Talvez todos nós, em algum momento, tenhamos experimentado esse poder, quase mágico, de vermos, em ato, um tecido se fazendo por meio das palavras de um professor, articulando fios que até então julgávamos isolados, dispersos.
Ainda, se quisermos acompanhar essa ideia de uma narratividade em tríplice mimeses no que tange à palavra docente, devemos chegar à mimesis III. Levando em conta que a obra faz uma mediação entre algo que lhe é anterior (o mundo da ação) e posterior (o encontro com o leitor), é preciso ter em mente que, de fato, a educação se realiza no encontro entre o docente e um aluno. Assim, a educação não se encerra na palavra de um professor, mas justamente no encontro desta com o aluno. Por isso a experiência educativa é da ordem do indeterminado; não sabemos, de fato, o que se passará com nossos alunos a partir daquilo que partilhamos com eles, pois se trata de sujeitos. Assim, não é possível, a despeito do delírio de algumas pedagogias, fabricar sujeitos a partir da educação. Isso não significa, porém, nos alinharmos aos discursos educacionais, bastante dominantes contemporaneamente, centrados no aluno. Grande parte dessas iniciativas pedagógicas, e o coro de pensadores sobre a educação que se afinam com tais ideias, parece compreender que toda educação é apenas e tão somente refiguração, apenas construção por parte do educando. Tal proceder ignora que há um mundo que antecede à criança, um mundo de textos e narrativas nas quais essa criança precisará ser introduzida. Para que o mundo se torne minimamente compreensível e que ela possa ser iniciada na interpretação desse mundo, é preciso que a geração mais velha lhe narre as histórias que nos compõem. É preciso que ela participe de um ambiente no qual o mais velho fale e que ela tome contato com a palavra, no sentido forte usado por Ricœur, de uma palavra que narre.
Ainda que de modo introdutório, tais ensaios, inspirados em aspectos da reflexão ricœuriana, parecem nos dar elementos para a contraposição a um tipo de abordagem dos assuntos educativos que tenta enquadrar a educação nos moldes de uma atividade fabril. A escola compreendida nos termos da eficiência, da produtividade, na qual se almeja somente a constituição de competências e habilidades aplicáveis no mercado de trabalho, é uma escola que tenta exilar-se do reino da palavra e, consequentemente, uma escola que se pretende desnarrativizada.
Não é possível exilar-se do reino da palavra sem, com isso, perder o próprio cerne da experiência educativa. É isso que observamos amparados pela discussão de Ricœur sobre a dimensão da palavra na educação. O exercício da atividade docente se fundamenta em uma fala que pretende comunicar algo sobre o mundo no interior do encontro entre gerações. A dupla dimensão dessa comunicação, tanto os frutos de nossa cultura quanto o próprio movimento interpretativo de se acercar delas, constitui-se em um trabalho no qual a palavra não deve se obrigar a simplesmente tentar antecipar, na escola, o mundo profissional. Nesse sentido, a educação não poderia ser concebida como uma atividade exclusivamente antecipatória do mercado de trabalho, mas justamente o exercício entre a geração mais velha e a geração mais nova de uma tessitura, buscando o estabelecimento de pontos de contato para que consigam construir e habitar um mesmo mundo comum. Esses pontos de contato se fazem feito uma trama, um tecido, se articulam na forma de uma narrativa.
Uma narrativa, o sabemos, se constitui tanto a partir da experiência no mundo da ação quanto na recepção daqueles que a leem ou a escutam. A palavra de um professor parece se constituir enquanto a tessitura, a partir de elementos diversos e dispersos, de uma espécie de tecido no qual determinados aspectos do mundo tornam-se, aos olhos dos alunos, inteligíveis. Todo empreendimento educativo, digno desse nome, está entranhando em um esforço narrativo que pedirá aos alunos, a seu turno, um movimento de interpretação. Assim, se o que desejamos com a educação é justamente que os recém-chegados ao mundo tomem parte dele, é preciso não os exilar desse mundo que também lhes pertence. Isso só é possível se os novos participarem de um ambiente no qual o mais velho fale, tomando contato assim com uma palavra que narre. Em suma, como enfatiza Ricœur em seu artigo de 1955, “[...] o chamado da vida não pode nos levar a nos negarmos como professores, a termos vergonha de somente falar. Porque nós, professores, não temos outro desejo [...] que não seja o de poder enfim falar em nossas aulas” (Ricœur, 1955, p. 205).
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.
BRAYNER, Flávio. Fundamentos da educação: crise e reconstrução. Campinas: Mercado das Letras, 2015.
CARVALHO, José Sérgio Fonseca de. Autoridade e educação: o desafio em face do ocaso da tradição. CARVALHO, José Fonseca de. Educação: uma herança sem testamento. 2015. 115 f. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
CARVALHO, José Sérgio Fonseca de. Um Sentido para uma Experiência Escolar em Tempos de Pandemia. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, e109144, 2020.
FREY, Daniel Ricœur et la parole enseignante. Note sur La parole est mon royaume. In : FREY, Daniel. La Jeunesse d’une pensée. Paul Ricœur à l’Université de Strasbourg (1948-1956). Strasbourg : Presses universitaires de Strasbourg, 2015.
RICŒUR, Paul. La parole est mon royaume. Esprit, n. 223, p. 192, 1955.
RICŒUR, Paul. Tempo e narrativa 1: A intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.
RIVAS, Manuel. “La lengua de las mariposas”. In: RIVAS, Manuel. ¿Qué me quieres, amor? Madrid: Suma de Letras, 2000.
SIMARD, Denis; CÔTÉ, Héloïse. Penser l’éducation avec Ricœur – L’herméneutique ou la voie longue de l’éducation. In: KERLAN, Alain; SIMARD, Denis. Paul Ricœur et la question éducative. Paris: PUL, 2011.
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[1] ‘A velha narrativa já não é mais relevante para a escola’, Jornal O Globo, 2015. Disponível: https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/a-velha-narrativa-ja-nao-mais-relevante-para-escola-17189846.
[2] O texto foi publicado na revista Esprit, em fevereiro de 1955. O texto faz parte de um número especial da revista, retomando um número anterior, de junho de 1954, ambos a respeito da reforma do ensino, tema que atravessaria os debates franceses naquela década. Se os textos da edição de 1954 estavam orientados, de forma mais direta, aos debates práticos sobre a reforma do ensino, daí seu conteúdo ser rico “[...] em entrevistas, análises quantificadas e inventários” (Frey, 2015, p. 191), a de fevereiro de 1955, como indica a nota inicial do número, propunha “[...] ensaios reflexivos menos estritamente orientados para as reformas a serem realizadas na prática”, retomando, “[...] do ponto de vista pessoal e de acordo com a experiência de cada um de seus autores, a questão básica que pode ser designada como dilema “cultura-educação”[2]. Além de Paul Ricoeur, veremos neste mesmo número da revista figuras como Henri Irénée Marrou e Frantz Fanon.
[3] Utilizo aqui a tradução de Denizart Busto de Fazio e Geison Amadeu Loschi, ainda inédita, realizada no interior das discussões do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Educação e o Pensamento Contemporâneo (GEEPC). Por essa razão, a indicação da paginação do artigo se refere ao original em francês.