RESENHA CRÍTICA SOBRE A DECLARAÇÃO DIGNITAS INFINITA. 

DICASTÉRIO PARA DOUTRINA DA FÉ. Declaração Dignitas Infinita – sobre a dignidade humana. Roma: Vaticano, 2024

Vilk Junio Araújo de Lima [1]
Formado em Filosofia e Teologia pela Faculdade Diocesana São José (FADISI) – Acre. Contato: vilkjunio@gmail.com


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A declaração Dignitas Infinita foi apresentada ao mundo na audiência do dia 25 de março de 2024. Contudo, conforme está demonstrado no próprio texto, sua gestação foi iniciada em 15 de março de 2019, por iniciativa da então Congregação para a Doutrina da Fé. O objetivo era destacar a imprescindibilidade do conceito de dignidade humana para a Antropologia cristã e para a sociedade, tendo em vista os últimos conceitos ambivalentes. 

O projeto do documento passou por algumas mudanças ao longo do tempo. Inicialmente ele foi organizado por um grupo de especialistas em 2019, mas considerado insatisfatório. Em janeiro de 2022 um novo esboço foi apresentado na Sessão Plenária da Congregação, contudo os membros decidiram pela sua simplificação. Por fim, em fevereiro de 2023 o Papa Francisco aprovou o texto, pedindo para fazer alguns acréscimos de temas conexos a dignidade humana, como: o drama da pobreza, situações dos migrantes, tráfico de pessoas e outros. 

A estrutura do texto está organizada inicialmente com um percurso histórico em que se apresenta a construção e finalização da Declaração. A partir disso, segue uma estrutura padrão dos textos da Santa Sé, com introdução, conceitos substanciais, a dignidade ao longo da tradição cristã, doutrina, promoção da dignidade e graves violações a dignidade humana. 

O conteúdo da Declaração aborda primordialmente sobre o conceito de dignidade humana. Nota-se que os especialistas tiveram um grande cuidado na escolha do conceito de dignidade, devido a isso, se encontra no texto um desdobramento da dignidade humana em quatro apreciações: dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e dignidade existencial. A Declaração, por sua vez, optou pela escolha do conceito de dignidade ontológica. 

A escolha pela definição da dignidade humana a partir da Ontologia, ocorre como afirma o próprio conteúdo do documento: “compete a pessoa pelo simples fato de existir e de ser querida, criada e amada por Deus. Esta dignidade jamais pode ser cancelada e permanece válida para além de toda circunstância em que os indivíduos venham se encontrar” (DI, 7).  Feita então a opção fundamental pelo conceito de dignidade ontológica, o texto faz uma série de objeções aos demais conceitos, compreendendo a insuficiência diante da axiologia humana, a saber:  A dignidade moral se perde com a privação da liberdade (DI, 7); a dignidade social submerge com as condições de pobreza (DI 8); e a dignidade existencial se perde com doenças a patologias (DI, 8). Portanto, a Declaração fundamenta o conceito de dignidade humana na Ontologia, tendo a certeza de que esta realidade é suficiente para a construção de uma estrutura ética. 

Para a construção do conceito de dignidade ontológica, a Declaração se fundamentou na perícope de Gn 1,26: “Façamos o homem a nossa imagem, como nossa semelhança”. A partir desta referência, o texto Dignitas Infinita assegura que a dignidade humana é intrínseca, pois todas as pessoas possuem na alma, uma realidade que está além da materialidade e da invenção ideológica, subsistindo no tempo e no espaço. Esta dignidade é conferida no momento da criação, fazendo de todos os seres humanos, pessoas – centro ético, e lhes capacitando para “representar Deus no mundo e cuidar do mundo e cultivá-lo” (DI, 11). 

Ademais, outras referências são utilizadas na Declaração, tendo destaque os textos Evangélicos, em que Jesus é apresentado como um promotor da dignidade humana, especialmente dos mais necessitados. O texto expõe Jesus consciente do valor de todas as pessoas, pois compreende a presença de Deus segundo a Imago Dei.  Desta forma, Ele valorizou todas realidades humanas, sobretudo as culturas, reconhecendo nas pessoas um valor inegociável, mesmo aquelas descartadas pela sociedade. Isso pode ser visto, nos textos referenciados na Declaração: Jesus e as mulheres (cf. Jo 4,1-12), Jesus e os leprosos (cf. Mt 8,2-3), Jesus e os estrangeiros (cf. Mt 25,38) e outros (DI, 12). 

Outras referências para a finalização do conceito de dignidade ontológica se encontram também nos autores clássicos da Tradição Cristã, como: Irineu de Lion, Agostinho e Tomás de Aquino (DI, 12; 22).  Além dos predecessores do Papa Francisco: João Paulo II (DI, 36) e Bento XVI (DI, 36). Quanto a autores modernos, o documento não apresentou nenhuma alusão, embora traga referências atuais e de sério caráter cientifico, como: Sínodos (DI, 59), Congressos (DI, 53), Encíclicas (DI, 62), além de textos da Comissão Teológica Internacional (DI, 64). 

No tocante às várias situações em que a dignidade humana é ameaçada, como: pobreza (DI, 35), guerras (DI, 38) e migrações (DI, 40), se destaca o item sobre a mudança de sexo, no n° 60, logo após o documento discorrer sobre a Teoria Gênero (Gender) (DI, 59). O argumento em defesa da dignidade humana e, consequentemente a proibição da mudança de sexo, inicia reafirmando o valor do corpo humano, criado a imagem e semelhança de Deus (Gn,1, 26), segundo a perspectiva do Catecismo da Igreja Católica nº 364: “O corpo do homem participa da dignidade da ‘imagem de Deus’”.  Este texto do Catecismo se fundamenta na passagem bíblica de 1 Cor 6, 19-20, quando São Paulo fala sobre importância do corpo recebido por Deus, pois ele é Templo do Espírito Santo: “(...) E que portanto, não pertenceis a vós mesmos? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo”.   

O texto de São Paulo aos Coríntios se contextualiza no discurso sobre fornicação, quando orientava os cristãos para a responsabilidade com o corpo, pois ele é sagrado: “Templo de Deus” (1 Cor 6,19). De modo que: “ao unir-se a uma prostitua constitui com ela um só corpo” (v. 16). E quem “se entrega a fornicação peca contra seu próprio corpo” (v. 18). Assim sendo, o texto da Dignitatis Infinita ao fundamentar-se no texto paulino, parece recordar a todos do valor inerente ao corpo humano e da responsabilidade de cuidá-lo, evitando situações de grave ofensa, como a fornicação. Além disso, São Paulo declara que quem comete tais atitudes contra o corpo, incorre em pecado (1Cor 6,18). Deste modo, ao pensar a mudança de sexo, o indivíduo cometeria em primeiro lugar uma grave ofensa o seu corpo, Templo do Espírito (1 Cor 6, 19), além de pecar, pois foi livre e consciente para tal transformação. 

A Declaração neste sentido, ao refletir sobre a violação à dignidade humana a partir da mudança de sexo, afirma o valor imprescindível do corpo humano, por isso assegura: “Constituindo o ser da pessoa, alma e corpo participam daquela dignidade que conota o ser humano”. Nesta breve afirmação, os redatores da Declaração se garantiram através da Instrução Ad resurgendum cum Christo, que orienta a respeito da sepultura dos defuntos e a conservação das cinzas.  No nº 5, ao reiterar sobre a importância do cuidado com o corpo na sua conservação, mesmo após a morte diz: “Quaisquer que sejam as motivações legítimas que levaram à escolha da cremação do cadáver, as cinzas do defunto devem ser conservadas”. A motivação de tal texto, surge justamente pela desvalorização do corpo humano, contrário ao que pensa a Igreja, deste modo, a Instrução reafirma a importância do corpo humano: “Enterrando os corpos dos fiéis defuntos, a Igreja confirma a fé na ressurreição da carne, e deseja colocar em relevo a grande dignidade do corpo humano como parte integrante da pessoa da qual o corpo condivide a história” (ARC, 5). Portanto, ao fazer referência ao texto Ad resurgendum cum Christo, a Declaração compreende o corpo humano como parte fundamental da identidade da pessoa, inclusive sendo necessário para se definir enquanto tal, sendo assim, a mudança de sexo seria uma violação a dignidade do corpo. 

A Declaração ainda se assevera de uma referência da Amoris Laetitia nº 56, quando afirma: “A criação nos precede e deve ser reconhecida como dom. Ao mesmo tempo, somos chamados a cuidar da nossa humanidade e isso significa em primeiro lugar respeitá-la e aceitá-la assim como foi criada”. A referência a este texto da Amoris Laetitia parece dizer que o instante da nossa criação está além da liberdade humana, uma vez que ninguém pode escolher o próprio sexo, pois ele foi dado por Deus, isto é, um dom para o ser humano. A mudança de sexo, neste sentido, fere gravemente a vontade de Deus que criou o ser humano com um gênero definido: homem ou mulher, pelo menos quando se exclui as “anomalias genitais” (DI, 60). Logo, optar pela mudança de sexo significaria também discordar do próprio corpo recebido de Deus e transformá-lo anarquicamente, pois a Igreja – guardiã da Palavra orienta a cuidar e a respeitar toda obra da criação, sobretudo o corpo humano e não alterá-lo sob pretexto da vontade. 

A Declaração Dignitas infinita ainda se assegura de uma referência a Laudato Si nº 55, ao dizer que o conjunto da obra da criação pode levar o ser humano cada vez mais a perfeição. Assim, o sexo inerente a cada pessoa pode ser considerado um caminho seguro para se aperfeiçoar a natureza humana recebida de Deus. Por outro lado, a Declaração não negligencia a realidade, ao constar a existência das “anomalias genitais”. Neste caso, orienta para buscar ajuda médica, com o objetivo de resolvê-la. E garante que mesmo havendo “intervenção não configuraria uma mudança de sexo no sentido aqui entendido” (DI, 60).  

Embora a Declaração não apresente nenhum teórico sobre o assunto, para debater e aprofundar a questão, como moralista:  Aristide Fumagalli e sua obra: La Questión del Gender. Claves para una antropología sexual. Acredito que não poderia haver um posicionamento diferente do magistério, uma vez que a Teologia Moral, fez a escolha pela dignidade ontológica desde sempre. Assim, a Igreja neste documento apenas “declara” sua opção histórica pela axiologia humana, logicamente que fundamentada nas Sagradas Escrituras (Gn 1,26): o ser humano como Imago Dei, além disso, em toda Tradição teológica sob os principais teóricos: Irineu de Lion, Gregório de Nissa, Agostinho, Tomás de Aquino e outros. Portanto, o Papa Francisco através deste texto assegura que a dignidade humana é inerente a toda pessoa, e jamais poderá ser perdida, embora, ameaçada, pois é ontológica, ou seja, infinita. 

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Notas

[1] Formado em Filosofia e Teologia pela Faculdade Diocesana São José (FADISI) – Acre. Especialização em Fundamentos Filosóficos da Bioética pela FADISI e em Direito Processual e Matrimonial Canônicos na Faculdade de São Basílio Magno (FASBAM), Curitiba. Mestrado (em andamento) em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC-SP. Email: vilkjunio@gmail.com