A alegria da misericórdia, caminho de cristo, caminho da igreja: uma abordagem teológico-pastoral de Lc 15,1-7

The joy of compassion, the way of christ, the way of the church: a theological-pastoral approach to Lc 15:1-7

Vicente Artuso
Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ). Professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: vicente.artuso@pucpr.br

Antonio Eduardo Pereira Pontes Oliveira
Graduado em Teologia pela Faculdade Missioneira do Paraná. Contato: antonioep91039433@gmail.com


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Resumo: O objetivo deste artigo é realizar uma aproximação teológica de Lucas 15,1-7 extraindo apontamentos pastorais deste texto bíblico. Trata-se da parábola da ovelha perdida que tem como centralidade, ao contrário do que poderia parecer, não a ovelha que se perde, mas a alegria do pastor pelo encontro desta, em analogia à alegria do Pai do céu pela conversão de um pecador, alegria esta compartilhada pelo céu inteiro. Será de primaz importância, iniciar esta abordagem pela contextualização da perícope selecionada, já que faz parte de um conjunto maior de três parábolas, chamadas da misericórdia, o núcleo mesmo do evangelho de Lucas. Esta contextualização encontra sua razão de ser no fato da similaridade deste fragmento bíblico com o de Mateus 18,12-14, sendo que a diferença entre eles está, justamente, na intenção dos evangelistas, salientada pelo contexto em que inserem a parábola. Para Lucas, é clara a articulação da parábola para justificar a atitude de Jesus em relação aos publicanos e pecadores, com os quais toma refeição. Terá espaço neste artigo, também, a contextualização e o significado histórico-social da opção de Jesus pelos publicanos em resposta às exigências morais e excludentes do grupo dos fariseus. Por fim, tirar-se-á as consequências pastorais para a práxis eclesial à luz desta parábola da misericórdia. 

Palavras-chave: Evangelho de Lucas. Misericórdia. Papa Francisco. Pastoral. 

Abstract: This article aims to provide a theological approach to Luke 15:1-7, drawing pastoral insights from this biblical text. It focuses on the parable of the lost sheep, emphasizing not the lost sheep itself but the joy of the shepherd upon finding it. This joy is analogously linked to the joy of the Heavenly Father over the conversion of a sinner, a joy shared by all of heaven. It is crucial to begin this approach with contextualization of the selected pericope, as it is part of a larger set of three parables known as the parables of compassion, which form the core of Luke's gospel. This contextualization is significant because this biblical fragment bears resemblance to Matthew 18:12-14, with the difference lying in the evangelists' intentions, highlighted by the context in which they place the parable. For Luke, the parable clearly justifies Jesus' actions toward tax collectors and sinners with whom he shares meals. This article will also address the historical-social context and significance of Jesus' choice of associating with tax collectors in response to the moral and exclusive demands of the Pharisees. Finally, pastoral implications for ecclesial praxis in light of this parable of compassion will be drawn.

Keywords: Gospel of Luke. Compassion. Pope Francis. Pastoral.

Introdução

Esta análise teológico-pastoral tem por objetivo aprofundar a perícope Lc 15,1-7. Trata-se da parábola da ovelha perdida. Este texto está articulado em um esquema maior de três parábolas[1], a saber, a ovelha e a dracma perdidas e o Pai misericordioso, provavelmente não pronunciadas sucessivamente, nem na mesma ocasião histórica, mas organizadas pelo trabalho literário lucano a partir de suas fontes (BOVON, 2004, p. 32). Estas parábolas preenchem todo o capítulo 15, que pode ser considerado uma chave de leitura de todo o texto do evangelho lucano, até mesmo, o coração do Evangelho de Lucas (FITZMYER, 1987, p. 648), já que o evangelho é boa notícia para os pobres, para os pecadores, para os doentes, para os que sofrem (MARCONCINI, 2004, p. 194). 

Ao contrário do que se poderia pensar, o centro destas parábolas não está no fato do homem, da mulher ou do pai que vai em busca daquilo ou daquele que se perdeu. Mas, está, justamente, na alegria de reencontrar ou de recuperar o que ou quem foi perdido (MACHADO; SILVEIRA, 2017, p. 289). Afinal, “em todos os momentos do tríptico estava presente a alegria. A alegria do pastor, da mulher e a do pai: a alegria da misericórdia (misericordiae gaudium)” (SILVA, 2016, p. 293). Assim, neste artigo, têm-se como objetivo explorar uma leitura teológica da parábola da ovelha perdida, levando em conta a delimitação do texto, uma aproximação contextual e interpretativa e, por fim, uma abordagem pastoral.

Denominadas como parábolas da misericórdia, demonstram em uma linguagem compreensível, metafórica e acessível a atitude do Pai misericordioso que se alegra imensamente pela conversão/retorno de seus filhos amados (PERONDI; CATENASSI, 2021, p. 129). Mais do que isso, revela a missão fundamental assumida por Jesus, imagem perfeita do Pai, maior demonstração da infinita misericórdia de Deus: buscar aquele que se perdeu, ser sinal do amor do Pai na vida daquele que se sente extraviado ou fora do redil (DIAS, 2020, p. 328-329). 

No contexto de Lucas, o texto se manifesta pertinente para a missão evangelizadora da Igreja cristã. Pois, o autor, que o é também do livro dos Atos dos Apóstolos, possui como projeto literário ligar eminentemente a missão de Jesus à da Igreja (FITZMYER, 1986, p. 32). De modo que: o mesmo Espírito que age em Jesus de Nazaré impelindo-o para o anúncio do Reino de Deus (Lc 3,22) é o que age na Igreja enviada em missão (At 2,1-4); Jesus prega a boa-nova (Lc 4,16-30), assim também a Igreja anuncia a boa-notícia, o evangelho (At 2,14); Jesus é perseguido e injuriado (Lc 14,15), a Igreja encontra contestação e repúdio na sua missão (At 8,1); Jesus é martirizado e entrega seu espírito ao Pai (Lc 23,44-46), Estevão (a Igreja) é apedrejado e entrega seu espírito a Jesus (At 7,55-60), do mesmo modo que o Mestre (Lc 23,34), também Estevão (a Igreja) perdoa aqueles que o matam (At 7,60). 

Desta forma, se Jesus anuncia a misericórdia que procede do Pai (Lc 15,11-32), a Igreja é chamada a ser testemunha fiel da misericórdia de Deus para os pecadores, se o Senhor se senta à mesa com as prostitutas e os publicanos (Lc 5,29-32), a Igreja deve ser testemunha veraz de que o Reino de Deus chegou também e principalmente para estes.

O estudo deste texto se reveste de especial importância em tempos de Magistério do papa Francisco, marcado pelo anúncio da misericórdia, que está no centro da mensagem cristã (MV 1). Uma Igreja misericordiosa e que viva a opção preferencial pelos pobres é: uma fiel seguidora do Jesus pastor, que vai em busca da ovelha perdida e se alegra pelo seu retorno; que se assenta à mesa com os pecadores; que não tem medo de sujar as mãos com aqueles que necessitam de seu afago maternal; que não condena o mundo, mas que deseja salvá-lo, pois esta é sua missão mais profunda e que testemunha a alegria pela conversão e salvação daqueles que precisam desta mensagem de esperança. 

Desta forma, manifesta-se de primaz importância o texto que ora se pretende detalhar. Mais do que isso, apresenta-se como o protótipo, o modelo de uma Igreja fiel à sua missão salvífica e continuadora da presença misericordiosa do Cristo no mundo. Afinal, escreve Francisco: “A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo” (MV 10).

Para tanto, seguir-se-á alguns passos: a delimitação da perícope de Lc 15,1-7 no contexto geral da obra lucana, o comentário interpretativo dos versículos e das palavras-chave, uma breve abordagem histórica do texto e, por fim, uma apresentação dos elementos do trecho bíblico que lançam luzes sobre a atividade pastoral da Igreja atual. Na delimitação do texto, procurar-se-á à luz da própria sequência pedagógica de Lucas encontrar elementos que demonstrem a singularidade da perícope estudada. As demais abordagens recorrerão a bibliografias que possam ampliar a compreensão dos versículos em questão. 

1 Articulação e contextualização de Lc 15,1-7

Em uma primeira abordagem do texto de Lc 15,1-7, procurar-se-á delimitar esta perícope, demonstrando o que a diferencia dos textos anteriores e posteriores, bem como o que permite afirmar que seja uma unidade literária (SILVA, 2022, p. 58). Ademais, analisar-se-á os elementos fundamentais do texto, tais como: personagens, trama, estrutura, palavras-chave e seu contexto bíblico. Por fim, aduzir-se-á o comparativo sinótico paralelo com a versão de Mateus. 

1.1 DELIMITAÇÃO DE Lc 15,1-7

Ao delimitar o texto, a principal mudança que corrobora para o início da perícope está na descrição de um novo cenário (BOVON, 2004, p. 28). Antes as multidões acompanhavam e Jesus ensinava (Lc 14,25). Agora, neste novo contexto, “todos os publicanos e pecadores” (Lc 15,1)[2] se aproximam para ouvir Jesus. Os fariseus e escribas também aparecem no início desta perícope, como aqueles que condenam a atitude de Jesus de se sentar à mesa e de comer com pecadores (Lc 15,2). Sentar-se à mesa é uma constante no ministério de Jesus em Lucas: 5,29; 7,36; 9,10-17; 10,38-42; 11,37; 14,1; 19,1-10; 22,7-20; 24,30; 24,41-42 (PERONDI; FERREIRA; MARÇAL, 2012, p. 73). 

Do ponto de vista de conteúdo, esta perícope estende-se até o final do capítulo 15 (FITZMYER, 1987, p. 674). Pois as três parábolas apresentadas neste capítulo representam um conjunto, encerrado apenas com a expressão “dizia ainda a seus discípulos” (Lc 16,1), que inicia o capítulo seguinte. Todavia, dentro do contexto menor, o fragmento da parábola da ovelha perdida é encerrada pela expressão “η τις” do versículo 8, que significa “ou”, denotando o início de uma nova seção do texto: a parábola da dracma perdida. Há também uma alteração que denota atenção: a mudança do protagonista, do cenário e do objeto perdido, agora não mais um pastor, mas uma mulher, não uma ovelha, mas uma dracma, não o deserto, mas a casa (BOVON, 2004, p. 46). A seção é encerrada pela mensagem que se pode deduzir da parábola contada, o que demonstra o encerramento desta primeira parábola de três (Lc 15,7). O gênero literário parábola permanece, já que se forma um conjunto de três parábolas (JEREMIAS, 1986, p. 134). Eloy e Silva (2016, p. 275) desenvolve, por outro lado, a tese de que “(...) o capítulo 15 de Lucas não é composto por três parábolas da misericórdia, mas por uma única parábola em três atos, dos quais o primeiro e o segundo ato tornam-se como que as premissas que portam à magistral conclusão que é o ato final”. Neste sentido, a delimitação da perícope aqui proposta se torna análise do primeiro ato da parábola. 

1.2 Articulação do texto

A perícope selecionada se desenvolve em quatro cenas: situar o leitor na cena (Lc 15,1), explicação do motivo do que se segue (Lc 15,2), parábola em si (Lc 15,3-6) e ensinamento dela extraído (Lc 15,7).

Primeiramente, situa-se o leitor na cena. Trata-se de um novo cenário, apresentando as personagens. Agora não se fala mais em todo o povo ou em multidões, mas se especifica, percebe-se uma intenção bem precisa: aproximam-se publicanos e pecadores para ouvir Jesus (Lc 15,1). Antes das parábolas, à luz da ação de Jesus, coloca-se um novo contexto que permite compreender a motivação das parábolas (FITZMYER, 1987, p. 650).

Em seguida, aparecem os fariseus e os escribas que murmuram, expressando indignação (Lc 15,2). Mais do que a presença de publicanos e pecadores, a presença dos que condenam a atitude de Jesus de estar entre pecadores, são requeridas para o que se segue. As parábolas devem sua razão a este encontro entre os pecadores com os quais Jesus convive e os fariseus e escribas que condenam a atitude de Jesus (BOVON, 2004, p. 655).

Então, Jesus narra a parábola da ovelha perdida (Lc 15,3-6). Nesta, insere todos os que o ouvem, iniciando pela forma “τις ανθρωπος εξ υμων”, traduzida por “qual homem entre vós”. Insere seus interlocutores, portanto, na cena daquele pastor que, ao perder uma ovelha, deixa noventa e nove e vai em busca daquela que se perdeu (FITZMYER, 1987, p. 658). 

Por fim, Jesus revela o seu ensinamento que brota desta parábola (v. 7): a alegria que há no céu por um só pecador que se converte. As palavras-chave (do modo como aparecem na perícope) de Lc 15,1-7 são: publicanos (τελῶναι), pecadores (ἁμαρτωλοὶ), fariseus (Φαρισαῖοι), escribas (γραμματεῖς), dizer/murmurar (λέγοντες), ovelha (πρόβατα), encontrar (εὑρὼν) e rejubilar/alegrar (χαίρων). 

1.3 Comparativo sinótico

O texto de Lc 15,1-7 é uma perícope de dupla tradição (FITZMYER, 1987, p. 652). É encontrada também em Mt 18,12-14. Entretanto, o núcleo do fragmento é distinto. Lucas procura justificar a acolhida e a proximidade de Jesus para com os pecadores e a sua atitude de salvar e procurar o que está perdido. Mateus, por sua vez, tem como intenção olhar os pequenos (Mt 18,10), que podem se perder por causa do desprezo da comunidade ou de um excessivo rigor. Pode-se observar a distinção fundamental em destaque na tabela abaixo:

Lc 15,1-7

Mt 18,12-14

1 Todos os publicanos e pecadores aproximavam-se para ouvi-lo. 

2 Os fariseus e os escribas, porém, murmuravam: “Esse homem recebe os pecadores e come com eles!”.

3 Contou-lhes, então, esta parábola: 

4 “Qual de vós, tendo cem ovelhas e perder uma, não abandona as noventa e nove no deserto e vai em busca daquela que se perdeu, até encontrá-la? 

5 E achando-a, alegre a põe sobre os ombros 

6 e, de volta para casa, convoca os amigos e os vizinhos, dizendo-lhes: “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida!”.

7 Eu vos digo que do mesmo modo haverá mais alegria no céu por um só pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento. 

12 Que vos parece? Se um homem possui cem ovelhas e uma delas se extravia, não deixa ele as noventa e nove nos montes para ir à procura da extraviada? 

13 Se consegue achá-la, em verdade vos digo, terá maior alegria com ela do que com as noventa e nove que não se extraviaram.

14 Assim também, não é da vontade de vosso Pai, que está nos céus, que um destes pequeninos se perca.

Enquanto Lucas situa a parábola no contexto da visita e da refeição de Jesus com os pecadores (Lc 14,1), Mateus coloca o trecho no contexto do Discurso Eclesial (Mt 18): 

a) Textos anteriores (em Mt): a discussão quanto ao maior do Reino (Mt 18,1-5), que ressalta, principalmente, a acolhida que se deve à criança, protótipo do pequeno; o sobreaviso dado aos discípulos das penas devidas àqueles que escandalizarem os pequenos (Mt 18,6-9); o conselho “guardai-vos de desprezar algum desses pequeninos, pois eu vos digo, nos céus os seus anjos se mantêm sem cessar na presença do meu Pai que está nos céus” (Mt 18,10). 

b) Textos posteriores: a correção fraterna (Mt 18,15-18), que aponta para a situação daqueles que admoestavam sem caridade, mas com o objetivo da humilhação e da exclusão da comunidade; a exortação à oração em comum, onde dois ou três se reúnem, o próprio Jesus está em seu meio (Mt 18,19-20); o perdão sem limites (Mt 18,21-22) e a paciência para com os pecados alheios, que deve estar na justa medida do perdão de que se foi objeto (Mt 18,23-35).

O conteúdo de Lucas 15, na opinião de Fitzmyer (1987, p. 652), é extraído, em parte, de Q (a parábola da ovelha perdida) e, em parte, de fonte própria (L) ou por ele elaborado (as parábolas da dracma e do filho reencontrados). A narrativa das cem ovelhas, daquela que se perde, das noventa e nove que ficam e da busca da ovelha desgarrada ou perdida permanecem iguais nas duas perícopes (Mateus e Lucas) paralelas. Entretanto, o interesse maior de Mateus, no contexto do Discurso Eclesial (Mt 18) está nos pequeninos, membros da comunidade cristã, que se perdem pelos escândalos, pela falta de testemunho, pelas duras exigências impostas pela comunidade ou pelo descuido dos líderes (dos “grandes”) da comunidade (TASSIN, 2006, p. 51). Este interesse se manifesta pela diferença do contexto e, fundamentalmente, pela diferença dos ensinamentos que são apresentados após as parábolas:

Mateus reconfigura a narrativa para dar precedência à procura da ovelha: sua descoberta é só uma opção possível. Além disso, a conclusão insiste sobre a vontade divina de não deixar que ninguém se perca. Por outro lado, Mateus não fala como Lucas de ovelha perdida, mas de ovelha extraviada. A figura do pequenino, que dominou o discurso até este ponto, se encontra requalificada na imagem do irmão extraviado. Ao mesmo tempo, o extravio do irmão não possui conotações de falta, mas de um estado de fragilidade que requer o investimento da busca (MARGUERAT, 2013, p. 210).

Possivelmente, Mateus fez a transposição da parábola, recebida de Q, para o ambiente de sua igreja, dirigindo-se aos “grandes” da comunidade que não dirigiam a necessária atenção aos pequeninos ou que não se empenhavam na busca dos que se perderam (ALVES, 1988, p. 302). A atenção de Mateus, no uso da parábola da ovelha perdida, recai sobre a vontade do Pai de que não se perca nenhuma de suas ovelhas (BAUDOZ, 2000, p. 18). A intenção de Lucas, que agora se aprofundará, é distinta: trata-se de salientar a misericórdia, a proximidade, a compaixão, a presença do Pai, manifesta no agir de Jesus, junto aos pecadores, demonstrando a “(...) pura gratuidade da salvação de Deus oferecida ao pecador” (ALVES, 1988, p. 324). A tendência de Mateus é mais comunitária, enquanto a de Lucas é mais universalista.

2 Comentário interpretativo

Procura-se, agora, analisar possíveis conjuntos de versículos que formam pequenas unidades literárias, bem como, neste sentido, as palavras-chave que aparecem e ajudam a interpretar a perícope. Ademais, algumas expressões chamam a atenção e merecem uma melhor explicação. 

O texto de Lucas 15, inicia-se assim: “Todos os publicanos e pecadores aproximavam-se para ouvi-lo. Os fariseus e os escribas, porém, murmuravam: ‘Esse homem recebe os pecadores e come com eles!’. Contou-lhes, então, essa parábola” (Lc 15,1-3). Percebe-se claramente neste versículo o início de um novo contexto literário. Apresenta-se uma introdução, que será seguida por três parábolas (ou três atos de uma parábola), que visam explicar a ação pastoral de Jesus: “Lucas defende a tese de que a misericórdia de Deus rompe todas as restrições humanas em relação a como Deus deveria agir para com os pecadores” (BROWN, 2011, p. 280). O que está em questão é a proximidade de Jesus dos publicanos e dos pecadores (os primeiros também estavam inclusos no segundo grupo). Há um contraste entre fariseus/escribas (primeiro grupo) e pecadores/publicanos (segundo grupo): os primeiros julgam, defensores da tradição religiosa, a atitude de acolhida de Jesus para com o segundo grupo. A parábola que será narrada é uma defesa do comportamento de Jesus (FITZMYER, 1987, p. 655).

Lucas procura frisar o aspecto central do ministério de Jesus: veio chamar os pobres e os desprezados, o que causa indignação, críticas e ódio de muitos. Salienta-se, no v. 2, a atitude de murmuração (BOVON, 2004, p. 34). As parábolas inseridas no capítulo 15 de Lucas procuram explicar a ação de Jesus de se sentar à mesa com os pecadores e publicanos, uma constante lucana, desde 5,29 no chamado de Levi, publicano. No capítulo 7, versículos 36 a 50, Jesus visita um fariseu, Simão, uma pecadora se aproxima para lavar seus pés e esta atitude é digna de murmuração e condenação (PERONDI; FARIAS, 2019, p. 57). Merece destaque, ademais, a condenação a Jesus pela sua atenção para com os fariseus em Lc 11,39ss e o fato da cura em dia de sábado de Lc 13,10ss. 

O versículo 4 de Lc 15 (“Qual de vós, tendo cem ovelhas e perder uma, não abandona as noventa e nove no deserto e vai em busca daquela que se perdeu, até encontrá-la?”) interpela os interlocutores de Jesus. Jesus utiliza o exemplo do gado menor, tradução literal de πρόβατα, que usualmente significa ovelha, já que é o animal mais frequente na Palestina e, junto com a agricultura, é a ocupação mais difundida. Costumeiramente a comparação de Jesus à realidade das ovelhas e do pastor encontra ressonância na realidade pastoril do contexto em que está inserido. Pode-se citar como exemplo o texto de Mt 25, em que o Juiz universal separará ovelhas e cabritos, que está em íntima conexão à atividade comum dos pastores de separar ovelhas e cabritos durante a ordenha. 

Lucas não se coloca a questão das noventa e nove ovelhas que permanecem, já que se trata de uma parábola, que não tem pretensão histórica, nem a pretensão de ser modelo em todos os seus pormenores (ALVES, 1988, p. 307). Assim, pode-se interpretar a atitude do pastor de deixar as noventa e nove ovelhas como:

a) por um lado, uma atitude verossímil: aquele que deixa noventa e nove ovelhas em um lugar seguro e, desta forma, pode tranquilamente procurar a ovelha que se perdeu;

b) por outro lado, uma atitude radical. O texto não especifica um lugar seguro, apenas diz no deserto. Nesta interpretação, a ação de Deus seria um contrassenso (o verdadeiro pastor não deixa as noventa e nove ovelhas “no deserto”, porque, ao regressar, teria certamente uma ovelha encontrada e noventa e nove ovelhas perdidas), não se fala de uma atitude comum de qualquer pastor que deixaria noventa e nove ovelhas para buscar uma que se perdeu, “(...) mas a atratividade dessa extravagante preocupação individual faz o ouvinte querer concordar” (BERGANT, 2013, p. 95). Esta interpretação é possível, à medida que considera que Jesus confronta a bondade e a misericórdia do Pai à rigidez e insensibilidade dos fariseus, preocupados meramente com o cumprimento da lei e despreocupados com a vida plena que brota do projeto salvífico de Deus. Ademais, as três parábolas deste conjunto apontam para esta dimensão “incompreensível” do agir de Deus: deixar noventa e nove em busca de uma, uma mulher paupérrima com apenas dez dracmas que faz festa com amigas e um pai que dá herança a um filho menor de idade, que ainda não se casou (BROWN, 2011, p. 280). 

De um modo ou de outro, o que o evangelista quer destacar é a atitude fundamental do pastor que abandona imediatamente aquilo que está fazendo à procura da ovelha perdida, que é uma tarefa urgente, que é preciso executar sem descanso (BOVON, 2004, p. 41).

Outro aspecto a se ressaltar é a imagem do pastor e da ovelha, que são caras à literatura israelita. Já em 1Sm 17,34-36, o rei pastor vai à luta para resgatar uma ovelha; além de uma extensa exposição de Ezequiel (34,11-16) sobre os maus pastores e sobre o pastor segundo o coração de Deus e Is 40,11 na qual o pastor carrega a ovelha nos seus ombros.

O número de uma ovelha, em relação a cem ovelhas, no contexto geral do texto, procura demonstrar a especial atenção de Deus por cada um dos seus. No contexto geral das parábolas da misericórdia nota-se uma progressão: na parábola da ovelha a proporção é de noventa e nove para um, na dracma perdida é de nove para um e na do Pai misericordioso é de um para um (SILVA, 2016, p. 280). O amor de Deus é único, especial por cada um. Desta maneira, Jesus justifica a sua atitude ao acolher os odiados publicanos e pecadores. Enquanto a literatura rabínica, por seu turno, chegava a afirmar que os publicanos estavam fora do possível arrependimento, Jesus não pensa assim, chegando a afirmar que os publicanos e as prostitutas terão precedência no Reino dos céus (Mt 21,28-32). Jesus não se preocupa nem apresenta os motivos que levaram as prostitutas e os publicanos a se desviarem do redil, a preocupação recai sobre a atitude de arrependimento, sobre a vida nova que nasce da sua conversão. Do mesmo modo, todos os pecadores são convidados a esta proximidade. 

No contexto lucano, o pastor permanece no deserto à procura da ovelha (Lc 15,4), em Mateus, o pastor se aventura pelas montanhas (Mt 18,12), em ambas as possibilidades, sofre calor, intempéries, arrisca-se para poder salvar a ovelha que se perdeu (ALVES, 1988, p. 307). Tudo isso vale pela salvação de uma única ovelha, esta é a melhor imagem do amor de Deus, revelado na ação histórica de Jesus. 

O versículo 5 de Lucas 15 apresenta dois elementos centrais: a alegria do pastor ao encontrar sua ovelha (BERGANT, 2013, p. 95) e o pôr sobre os ombros. Somente Lucas apresenta a alegria do pastor. A de se notar que o pastor não reclama, no relato parabólico, do esforço necessário para encontrar esta ovelha e, também, não repreende ou castiga a ovelha que se perdeu. Há apenas a alegria daquele que encontra alguém que lhe é precioso. Do mesmo modo, o Pai se regozija por um só filho que se arrepende, conforme conclui Lucas a partir da parábola (Lc 15,7). Quatro são os motivos, segundo Brown (2011, p. 280) que revelam, que geram alegria: a) a universalidade salvífica; b) a conversão como requisito para a alegria; c) a felicidade como disposição para compartilhar da alegria do próprio Deus que dá abundantemente a salvação; d) o convite para participar do amor e da alegria de Deus.

A segunda atitude, isto é, a de por sobre os ombros: a ovelha que vagueava cansada encontra, finalmente, o alívio. O pastor lhe dá repouso, transparece o amor, este não se importa com todo o cansaço sofrido, mas lhe interessa demonstrar seu afeto, dar descanso à ovelha desgarrada: a alegria do pastor é como a alegria de Deus; sua dedicação à ovelha reencontrada, carregando-a de volta ao redil, é reflexo da ternura de Deus. Silva (2016, p. 293) compara-a (a ternura divina) à acolhida do útero materno, que “(...) gera vida e é representado primeiramente pelo pastor que acolhe a ovelha perdida sobre os ombros e a devolve ao convívio do rebanho”.

O versículo 6 retrata a atitude do pastor que convida seus amigos para a alegria e para a festa: “e, de volta para casa, convoca os amigos e os vizinhos, dizendo-lhes: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida’”. Esta atitude de convidar os amigos para a festa, para o júbilo por ter encontrado a ovelha que se perdeu contrasta bruscamente com os fariseus que não se alegram pela atitude pastoril de Jesus de buscar aqueles que se perderam, pois não amam aqueles que Jesus ama. 

Outro elemento importante: a expressão “απολωλος”, que designa “estava perdida” ou “se perdeu” tem um significado mais profundo do que a simples designação de um objeto perdido. Fala-se em voz passiva, portanto, Deus jamais abandona, jamais faz com que alguém se perca, ao contrário, como demonstra o fragmento, vai à procura do que se perdeu. Mas, sobretudo, quem se perde o faz por uma atitude própria, uma decisão pessoal. E, mesmo assim, Deus não se cansa de esperar o retorno deste, daquele que pecou. Esta perspectiva se torna explícita na terceira parábola do conjunto, a do Pai misericordioso, na qual se demonstra o maior desejo do Pai: ver os filhos todos assentados à mesma mesa, sem deter-se em seus confrontos, ódios e mútuas condenações. Justamente aqui, nesta alegria do Pai misericordioso, encontra-se, agora, o ápice da revelação vetero-testamentária sobre a face de Deus (PAGOLA, 2012, p. 260): “a ação de Jesus ao aceitar pecadores e comer com eles reflete o espírito gracioso de Deus para aqueles que eram desprezados pelos fariseus e escribas” (MACHADO; SILVEIRA, 2017, p. 286).

No versículo 7, para encerrar a perícope, Lucas alude a uma conclusão provisória da primeira parábola (ou do primeiro ato da parábola) do conjunto maior de três (atos). Trata-se da alegria do céu pela conversão do pecador: “Eu vos digo que do mesmo modo haverá mais alegria no céu por um só pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento” (Lc 15,7). Alude-se audazmente: a alegria pela conversão se estende ao céu. Enquanto Mateus concluíra a parábola mencionando o fato de que Deus não quer que nenhum dos seus se perca (Mt 18,14), Lucas apresenta uma conclusão mais universal, que inclui toda a humanidade, da qual a ovelha é protótipo: todos devem ser conduzidos ao Pai. Jesus apresenta não só há a possibilidade de uma verdadeira conversão para todos, como, também, um desejo da parte do Pai e de todo o céu pela conversão destes.  

Conforme Silva (2016, p. 277), “na alegoria são comparados dois elementos conhecidos, na parábola um elemento conhecido é posto ao lado de um desconhecido para facilitar a compreensão do que se deseja comunicar”. Na parábola analisada, o elemento conhecido é a imagem do pastor e de sua relação com as ovelhas, enquanto o elemento desconhecido é o modo de Jesus agir com os publicanos e pecadores que reflete o modo de Deus ser: Jesus é reflexo da misericórdia do Pai. As parábolas da misericórdia “(...) são um anúncio sobre ele, uma autorrevelação (...)” (BROWN, 2011, p. 727).  

3 Enfoque histórico

Tendo presente a articulação da perícope de Lc 15,1-7 dentro da obra lucana e sua interpretação à luz de sua estrutura, propõe-se, agora, uma abordagem contextual da perícope salientando a situação político-religiosa-judaíca do primeiro século na Palestina, com ênfase nos fariseus e na sua influência, nos impostos romanos e nos publicanos e cobradores de impostos.

3.1 Os fariseus

Os fariseus tomam parte da história a partir do governo de Alexandre Janeu (103-76 a.C.), com o qual guerrearam e saíram vitoriosos. Entretanto, “as origens deles são de fato mais longínquas: são relacionados com o grupo dos hassidim e com Esdras, o sacerdote” (SAULNIEER; ROLLAND, 1983, p. 80). Estes formavam o grupo dos judeus piedosos, que desejavam não apenas a reconstrução do Templo, mas também uma renovação espiritual à luz da leitura da Lei, ao contrário dos saduceus e zelotas, que se concentraram na dimensão política da ação judaica em relação aos romanos (COSTA Jr., 2011, p. 48).

Pode-se falar de sete espécies de fariseus: a) os de costa larga, que escreviam suas ações nas costas para serem vistos; b) os vagarosos, retardavam os salários dos operários; c) os calculadores, por terem muitos méritos, permitiam-se alguns pecados; d) os ecônomos, buscavam aumentar seus méritos; e) os escrupulosos, minuciosos no cumprimento da lei; f) os fariseus do temor; g) os fariseus do amor (BORN, 1971, p. 1237). Em síntese, os fariseus buscam viver as exigências da Lei, não apenas escrita, mas também oral, transmitida ao longo das gerações pelos rabis. Resistem à derrocada de Jerusalém em 70, de forma que o judaísmo que renasce tem no farisaísmo suas raízes. 

3.2 Impostos romanos

Era costume os impérios antigos atribuírem impostos aos países a eles submetidos. Entretanto, Israel, no tempo de Jesus, foi alvo de um sofisticado sistema de cobrança tributária idealizado pelas cidades helenísticas. Ao invés das cobranças serem efetivadas diretamente pelo império dominador, o que permitia uma constante insegurança de não receber o total dos tributos pretendidos ao final do ano, era: ora, dado o direito de cobrança (impostos diretos) aos ricos, estes, por sua vez, “eram encarregados de repartir, entre os cidadãos sujeitos ao fisco, o tributo imposto pelos romanos à Judéia e respondiam pelo pagamento exato com seu próprio dinheiro” (MORIN, 1988, p. 34), que se responsabilizavam pela cobrança; ora leiloava-se “o direito de arrecadação entre pessoas privadas, que deviam pagar de antemão a quantia assinada. A partir desse momento, tinham liberdade para fazer o que quisessem” (SICRE, 1999, p. 300) (impostos indiretos). Desta forma, o peso tributário estabelecido sobre a população era potencializado, oprimindo-a e gerando grande descontentamento (BORN, 1971, p. 1237). 

Os impostos recebidos pelos agentes do fisco imperial (os cobradores de impostos) podiam ter duas formas: o imposto da terra, pago pelos produtores, que comportava 20 a 25% da produção, além do imposto pessoal, que era proporcional à situação econômica de cada um (o denário de César) (MORIN, 1987, p. 34). Além destes impostos diretos, existia, também, uma cobrança indireta: alfândega, barreiras em pontes e estradas, entradas de cidades e mercados, que eram muito altos, já que seu direito de cobrança era leiloado. Normalmente este direito era comprado para um período de cinco anos (SICRE, 1999, p. 300). Além do mais existiam impostos judaicos devidos ao Templo, como estabelecia a Lei antiga. 

A partir de todos estes elementos, pode-se partir, agora, para uma análise que procure evidenciar a prática de Jesus direcionada aos publicanos e cobradores de impostos e entender a oposição dos fariseus ao comportamento de Jesus.

3.3 Publicanos, cobradores de impostos e sua relação com Jesus

O termo τελώνης aparece, dentro do Novo Testamento, apenas nos Evangelhos Sinóticos: “3 vezes em Marcos, 8 em Mateus e 10 em Lucas” (BORN, 1971, p. 1237). Além do mais, a tradução por publicano restringe o termo, seu conceito mais exato é: “(...) uma pessoa que arrenda do Estado o exercício da arrecadação estatal dos impostos e tributos... e exige o pagamento dos impostos de quem são obrigados a esta tributação” (BORN, 1971, p. 1237).

Assim, o excesso arrecadado ficava para aquele que cobrava os impostos. Caso não atingisse o necessário, teria que prestar contas, a partir dos seus próprios fundos, do valor estabelecido. Por serem servidores do império romano, do império dominador, os publicanos e cobradores de impostos “(...) eram um dos grupos que faziam parte da classe dos pecadores. Sob esta qualificação caíam não só os ladrões, as prostitutas, mas também os que exerciam certos trabalhos que podiam ser ocasião de desonestidade (...)” (BARBAGLIO; FABRIS; MAGGIONI, 1990, p. 446). Por isso, tinham sérias dificuldades com o grupo farisaico, por serem por eles “considerados exploradores e usurários, [por isso] odiados ou escarnecidos publicamente pelos piedosos observantes da lei” (FABRIS; MAGGIONI, 1992, p. 177). 

3.4 Análise da amplitude do termo “pobre”

A práxis libertária de Jesus é apresentada pelos evangelhos, em especial Lucas, como a ação do Deus que vem visitar os pobres do Reino (CASALEGNO, 1988, p. 26). Nesta perspectiva, do anúncio de um Reino para os pobres e uma mensagem libertadora a eles dirigida, como compreender a opção de Jesus pelos cobradores de impostos, que oprimiam o povo? 

A parábola da Ovelha Perdida, analisada neste artigo, procura demonstrar o especial afeto de Jesus pelos pecadores e o desejo que se convertam. Lucas é aquele que apresenta de maneira mais positiva a atenção de Jesus para com os publicanos (SCHELP, 1975, p. 827). Estes se fazem batizar por João (Lc 7,29s), estão dispostos ao arrependimento (Lc 5,29-32) e são ouvintes de Jesus (Lc 15,1), também apresenta o relato da visita de Jesus à casa de Zaqueu, chefe dos cobradores de impostos (Lc 19,1ss). De forma especial, apresenta o chamado de Levi, um publicano, que se torna discípulo do Senhor (Lc 5,27-28). Além de acender a ira farisaica ao descrever a parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,10-14) como protótipo de salvação: Deus justifica aquele que se apresenta com um coração arrependido e despreza os soberbos e autossuficientes.

Assim, pelos elementos apresentados, justifica-se a ação libertária de Jesus direcionada aos publicanos e cobradores: estes se deixam moldar e se confiam pacientemente à misericórdia de Deus, ao contrário dos soberbos e poderosos. Além de que a missão fundamental do Mestre se encontra no ir à procura das ovelhas perdidas que necessitam de conversão: Jesus não justifica as trapaças realizadas, mas aponta para o chamado universal à salvação. Em uma compreensão alargada de pobreza (CASALEGNO, 1988, p. 12), estes são os pobres para os quais Jesus veio anunciar sua mensagem de libertação: pobres de autoconfiança, pobres de oportunidades, pobres de acolhimento, pobres de afeto, pobres de misericórdia, pobres de alegria, pobres às margens e, mais do que tudo, pobres da salvação de Deus.

Conclusão

Em três atitudes pode-se descrever a inspiração sócio-eclesial que nasce do texto bíblico analisado: misericórdia, alegria e opção pelos pecadores, pelos menos favorecidos, pelos excluídos e pelos pobres.

O Magistério do Papa Francisco é eminentemente marcado pelo anúncio da misericórdia. A inspiração maior nasce da síntese da fé cristã: “Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai” (MV 1). A misericórdia de Deus se tornou viva, visível e tomou sua maior expressão, seu ápice, em Jesus de Nazaré. As palavras e os gestos de Jesus revelam a face amorosa divinal. Trata-se de contemplar a expressão amorosa de Deus naquele que se apresenta como o pastor que deixa noventa e nove ovelhas para encontrar aquela que se perdeu. É a lógica do Evangelho, do Reino, que está muito distante dos meros e supérfluos desejos humanos ligados aos interesses mundanos. Contemplar a face misericordiosa de Deus significa, em primeiro lugar, reconhecer a insensatez desta diante dos critérios do mundo. 

Em seguida, o fato de reconhecer-se como ovelha perdida alcançada pelo Senhor. Um olhar para a misericórdia de Deus está para além de pensar-se como uma ovelha do redil, mas está em perceber-se como um pecador alcançado pelo Senhor. Não importa o que se foi no passado, mas importa que “a misericórdia será sempre maior do que qualquer pecado, e que ninguém pode colocar um limite ao amor de Deus que perdoa” (MV 3).

Por fim, colocar-se na postura do pastor. A Igreja, povo de Deus, que tem por missão dar visibilidade ao rosto de Cristo, é responsável por ser sacramento, sinal do amor de Deus pela humanidade (LG 1). Ela mesma é chamada a ir às periferias existenciais buscar as ovelhas desgarradas. Ensina o papa Francisco: “Cada cristão e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). Jamais com uma atitude de condenação e rispidez, porém com a atitude favorável e benigna do pastor, que se preocupa simplesmente em tomar a ovelha cansada nos braços, sem qualquer repreensão ou correção, pois: “a Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém” (MV 12).

Além do mais, a Igreja deve realizar esta missão com alegria, pois “a alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG 1). Aqueles que foram libertados do pecado e que foram objetos da misericórdia de Deus, vivem a alegria do discipulado e anunciam a Boa Notícia do Reino com este mesmo sentimento. Este é o grande convite da nova evangelização para os tempos atuais. Uma Igreja que testemunha com alegria, já que ninguém se deixará cativar por pessoas tristes e desiludidas.

Da parábola aprofundada, ressalte-se o júbilo do pastor que encontra a ovelha. Toda a alegria, portanto, tem sua fundamentação última na festa que o próprio Pai realiza pela conversão, pelo retorno de um de seus filhos ao seu regaço. Desta alegria participa todo o céu. Do mesmo modo, aqueles que anunciam e testemunham a boa nova que receberam do Senhor devem fazê-lo com alegria, este é o convite constante do Evangelho (EG 5). Além de que, recorda o papa Francisco, “a alegria do discípulo é antídoto frente a um mundo atemorizado pelo futuro e oprimido pela violência e pelo ódio” (DAp 29).

Um terceiro e importantíssimo aspecto para a ação pastoral da Igreja é a opção preferencial pelos pobres. Aqui está o núcleo da ação pastoral da Igreja latino-americana e, mais do que isso, a dimensão mais profunda da fé em Jesus Cristo: “(...) a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza. Essa opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo, o Deus feito homem, que se fez nosso irmão. Opção, no entanto, não exclusiva, nem excludente” (DAp 392).

A Igreja só poderá ser fiel a Jesus se fiel às suas opções. E, como expresso pelas parábolas da misericórdia, a opção central do ministério de Jesus é o encontro com os pobres, com os pecadores, com os excluídos, nunca de forma excludente, mas sempre ampla. Todos os que ficam à beira do caminho são pobres, destinatários privilegiados da Boa Nova que liberta e salva. 

Desta maneira, a Igreja será sinal profético na medida em que suas opções pastorais sejam medidas pelas opções radicais do Senhor, isto é, marcadas fundamentalmente pela escolha dos ambientes mais pobres, dos renegados, das periferias existenciais que necessitam da luz que brota do Evangelho.

Assim, pelos elementos apresentados, conclui-se a importância da perícope abordada na ação pastoral dos discípulos de ontem e de hoje. O pastor que busca a ovelha perdida e a carrega nos ombros com alegria pela sua salvação é modelo para uma Igreja serva, solidária, alegre, misericordiosa, dinâmica e acolhedora, que exigem os tempos atuais. A alegria da misericórdia foi o caminho de Cristo e é, por isso, o caminho da Igreja. 

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Notas

[1] Leva-se em consideração, também, a tese de que Lc 15 não trata de três parábolas, mas de uma única parábola em três atos e que, possivelmente, os dois primeiros atos servissem de introdução para o terceiro ato (SILVA, 2016, p. 275.

[2] Todas as citações bíblicas deste trabalho foram retiradas de: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.