Prof. Boris Nef Ulloa
Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG). Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: baulloa@pucsp.br
Magno de Carvalho Xavier
Bacharelado em Teologia pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL). Contato: magnocarvalhosdb@gmail.com
Resumo: O livro de Rute é uma narrativa multifacetada com riqueza de temas e detalhes. A partir de sua leitura é possível identificar o testemunho de uma rica tradição universalista e inclusiva da identidade judaica, contrastando com outra de caráter exclusivista e separatista. Nessa perspectiva, o presente artigo busca refletir o tema da amizade social, a partir da história de uma moabita que demonstra profunda amizade por sua parenta judaita. Diante do crescimento de ciclos migratórios em diversos países, alarga-se igualmente o fenômeno da xenofobia, por isso, urge recuperar narrativas que promova caminhos de abertura, diálogo, interculturalidade e fraternidade, nesse sentido, a novela de Rute pode iluminar a nossa práxis cristã.
Palavras-chave: Rute, Noemi, Amizade Social, Fratelli Tutti, Fraternidade Universal, Estrangeira
Abstract: The Ruth’s book is a plural narrative with a precious themes and details. From its reading it is possible to identify the witness of a rich universalist and inclusive tradition of Jewish identity, contrasting with another with an exclusivist and separatist character. In this regard, this article seeks to reflect the theme of social friendship, based on the story of a Moabite woman who demonstrates deep friendship for her Jewish relative. In the face of growth of migratory cycles in several countries, the phenomenon of xenophobia is also expanding, therefore, it is urgent to recover narratives that promote opening paths, dialogue, interculturality and fraternity. In this sense, Ruth's novel can illuminate our Christian praxis.
Keywords: Ruth, Naomi, Social Friendship, Fratelli Tutti, Universal Fraternity, Foreign
A saga de duas mulheres forçadas a deixar Moab devido à perda trágica de seus maridos e o longo período de escassez de alimentos, ainda hoje causa identificação e comoção nos leitores. A história de Rute e Noemi é uma das novelas presentes nas Escrituras judaico-cristãs mais rica de detalhes, onde cada personagem é marcado por nobres posturas, tais como, senso de justiça, solidariedade, amizade etc.
É possível compreender a novela da moabita como testemunho de uma tradição universalista e inclusiva. Diante de uma religião que estava em formação no contexto do pós-exílio, com uma lógica legalista, exclusivista e separatista, a novela de Rute e seu projeto inclusivista opõe-se a essa lógica e oferece caminhos de abertura, diálogo, interculturalidade e fraternidade (LOPES; NEF ULLOA, 2023, p. 89). O texto base da Campanha da Fraternidade de 2024 afirma que: “a história de Rute e Noemi ilumina o significado da amizade social. Uma realidade que somente é possível quando são superados os limites de sangue e etnia que, na sociedade atual, são manipulados para subsidiar a indiferença e o descaso” (TEXTO BASE, 2023, n. 106).
O objetivo deste artigo é destacar o tema da amizade social a partir do livro de Rute. O que tornaria uma estrangeira, viúva e pobre, que respigou nos campos de um desconhecido para alimentar-se e sustentar a própria sogra, uma mulher tão significativa para a memória do povo judaico-cristão? O que há de tão nobre nesta narrativa, que fez com que Rute, a moabita, fosse recordada pela posteridade, como a bisavó do Rei Davi?
Na Tanakh, o livro de Rute faz parte das cinco Meguilot[1] e encontra-se nos Ketuvim. O livro é lido na festa judaica de Shavuot, também conhecida como “festa da colheita” ou “festa das primícias”. Essa celebração recorda a entrega da Torá a Moisés no monte Sinai e o povo que aceita viver segundo a Lei dada pelo próprio Deus (cf. ALANATI, 2022, p. 72). Para os Rabinos a festa de Shavuot “relembra e atualiza este evento onde Deus e Israel se unem num pacto de amor e fidelidade, como aquele entre um esposo e uma esposa, manifestando um shalom eterno, a plenitude dos bens messiânicos e a felicidade do mundo” (ARAÚJO, 2015, p. 311).
A festa de Shavuot, “segundo a concepção agrícola, conclui a colheita dos ‘Ázimos’ (cf. Ex 23,15; 34,18), iniciada com o plantio da cevada e do trigo; e, segundo a concepção histórica, conclui o significado da Páscoa (= saída do Egito e Aliança do Sinai)” (ARAÚJO, 2015, p. 313). Segundo a narrativa de Rute, ela e sua sogra Noemi chegam à Belém vindas de Moab, no início do período da colheita de cevada (cf. Rt 1,22), a protagonista, embora não fosse judaíta, a partir do amor demonstrado para com a sua sogra tornou-se exemplo de quem viveu segundo a Lei de Deus.
Ao falar sobre o gênero literário novela, utilizado na obra, Agostini recorda que “a utilização deste meio literário na antiguidade era fundamental para a formação das futuras gerações, mas, principalmente, para incutir no ouvinte-leitor uma sensibilidade pelas questões tratadas na narração” (FERNANDES, 2012, p. 9). Assim, para a sabedoria judaica, a breve novela de Rute apresenta uma mensagem de resistência e solidariedade que serviria para inspirar e formar as novas gerações.
Scardelai (2012) elenca alguns temas presentes na novela de Rute, nas seguintes palavras:
Camadas diversas de significados se entrelaçam em torno de vários aspectos: social, político, religioso e estético-literário. Entre os temas mais expressivos abordados no livro, os seguintes podem ser elencados: preocupação com a continuidade dos costumes israelitas, apregoar obrigações legais, integrar a lei às questões da vida diária, legitimar direitos monárquicos ligados a Davi, contar um belo relato novelístico, encorajar prosélitos, promover o universalismo, em contraste com o nacionalismo exacerbado, elevar a virtude da amizade e lealdade, exaltar os laços familiares e preservar tradições sobre as mulheres na vida de Israel. Sua importância está, justamente, na variedade de temas tratados e na surpreendente flexibilidade em lidar, simultaneamente, com diversas situações recorrendo a épocas distintas da história de Israel. (SCARDELAI, 2012, p. 150)
A moabita, viúva e pobre, apresentada na novela, encarna em si as faces de inúmeras mulheres, imigrantes, vítimas da opressão realizada em nome do acúmulo de terras e da imposição de leis “separatistas”. Ao observar a realidade das estrangeiras, viúvas, pobres e necessitados dos tempos bíblicos, contemplamos as inúmeras vítimas dos sistemas geradores de morte e exclusão da atualidade. Na amizade entre uma judaíta e uma moabita, vê-se a força salvadora da fraternidade. Na sensibilidade do proprietário de terras, que vê a dedicação de uma moabita respingando em suas terras, visando saciar não apenas a própria fome, mas da sua sogra de idade avançada, descreve-se um homem justo, atento às necessidades dos mais pobres.
O livro de Rute é possivelmente produto do período persa e reflete as tensões desse período, eis alguns argumentos que justificam tal afirmação:
(...) o estilo literário na expressão hebraica wa-yhy bimei schefot (certa vez no tempo dos juízes – Rt 1,1), revela que o autor não é testemunha ocular dos acontecimentos aí descritos, reforça a hipótese de que há uma distância entre escritos e fatos narrados. (SCARDELAI, 2012, p. 152).
Segundo Lopes (1997), na construção literária do livro de Rute:
o(a) autor(a) usa vários recursos, misturando crítica refinada com proposta inteligente. Os nomes das personagens, as repetições, as cuidadosas ligações entre os capítulos, os contrastes ou a retrospectiva histórica, são detalhes que têm significado como a sequência dos fatos e as relações entre os personagens (LOPES, 1997, p. 111).
Os significados dos nomes das personagens estão em sintonia com os papéis que exercem na narrativa. Neste sentido, os nomes, “não só resumem, mas também interpretam as vidas dos personagens” (BAL, 2002, p. 65). Há palavras que são repetidas ao longo do texto e indicam importância no conjunto da obra. A seguir destacam-se alguns significados de nomes e palavras, por meio dos quais é possível aprofundar a riqueza dessa narrativa.
Elimelec: “Meu Deus é rei”. Este nome próprio aparece somente no livro de Rute (1,2.3; 2,1.3; 4,3.9). Esposo de Noemi e pai de Maalon e Quelion;
Noemi: “Minha alegria”, “meu prazer”, graça ou graciosa. Fischer diz que significa, “jovial”, “aprazível” (cf. FISCHER, 1999, p. 263). Num momento da narrativa chamar-se-á Mará[2], que significa “amarga”, “amargura”. Fischer relaciona os nomes, Noemi e Mará à ação realizada pela personagem na narrativa. Segundo o mesmo autor, “a moça admirável que saiu de Bet-Lehem na juventude voltou com um caráter muito diferente. A mudança de caráter de Noemi é fundamental para a história se desenvolver” (FISCHER, 1999, p. 263).
Maalon: “Doença”, “sofrimento”. Filho de Noemi e Elimelec, esposo de Rute que morreu em Moab;
Quelion: “Fragilidade”. Filho de Noemi e Elimelec, esposo de Órfa que morreu em Moab;
Órfa[3]: Na narrativa, Órfa “dá as costas” à Noemi e Rute. Embora seja uma palavra moabita, o nome está relacionado a dorso, nuca e pescoço. Em Jr 48,39 numa referência a Moab lemos: “virou as costas Moab” ou “Moab virou as costas”. Órfa é a moabita esposa de Quelion e após a morte do marido, decide seguir o conselho de sua sogra e permanecer em Moab (Rt 1,14);
Rute: Embora seja um nome originalmente moabita, acredita-se significar “amiga”, “companheira”. Vemos na narrativa que ao invés de Órfa, que “deu às costas” a Noemi, Rute será a “companheira” fidelíssima de sua sogra, protegendo-a em todos os momentos. O pesquisador Mieke Bal destaca o trecho do capítulo 1,14 que diz, “mas Rute apegou-se a ela”. A maioria das traduções enfraquece o verbo “apegar-se” ou “ligar-se” (mesmo verbo utilizado em Gn 2,24 quando afirma que o homem se ligará à sua esposa). O mesmo autor aponta para a força desse verbo que expressa uma profunda ligação entre as protagonistas da novela. De fato, a lealdade de Rute será elogiada várias vezes ao longo da narrativa e será recordada na tradição judaica (cf. BAL, 2002, p. 62).
Booz (ou Boaz): “Pela força”, “nele está a força”. É descrito como um homem honroso. Casa-se com Rute e com ela têm um filho. Na narrativa, Booz assume o papel, primeiramente, de protetor de Rute, em seguida de seu resgatador e, consequentemente, de Noemi. Sasson (1997) recorda uma curiosidade, Booz era o nome de um pilar no Templo de Salomão (cf. SASSON, 1997, p. 348).
Obed: “Servo”. Filho de Booz[4] e Rute. Obed personifica a esperança que nunca morre. As inúmeras dificuldades encontradas por Noemi e sua família não foram suficientes para impedir que ela e sua nora enxergassem a ação de Deus nos desdobramentos de suas vidas. Obed testifica a presença do Misericordioso na vida do pobre e do indefeso. Essa ação é percebida ao longo de toda narrativa, especialmente, por meio dos homens e mulheres que cumprem a verdadeira justiça e a solidariedade, tornando-se instrumentos da ação divina.
Mesters, a partir do significado dos nomes das personagens, apresenta uma moldura que ajuda a situar o plano geral do livro de Rute. Trata-se de uma espécie de síntese da história do povo judeu. A seguir, apresenta-se uma síntese da sua explicação[5].
Elimelec que significa Meu Deus é rei recorda que somente Deus é o Rei de todo Israel. Quando inicia-se a história dos reis (monarquia unida em Israel), o povo progressivamente transfere a confiança no único Deus e Senhor para o soberano ungido rei. O qual passa a ter controle de tudo (das terras e das vidas das pessoas). Assim, pouco a pouco, o povo distancia-se daquela relação especial exigida pela Aliança com o único Deus e Senhor, o rei e pastor de Israel.
Noemi, que significa graciosa, representa todo aquele que reconhece Deus como rei, tornando-se sua “esposa graciosa”. Recorda-se, então, aquela aliança de amor firmada entre Deus e seu povo. Contudo, quando o povo se distancia do verdadeiro rei (na narrativa Elimelec morre) perde sua graça, tornando-se Mara, isto é, amargosa. O não reconhecimento de Deus como único rei torna a vida do povo amarga. Mesters sublinha que, a maneira de apresentar a história do passado descrita no livro de Rute, “revela ao povo que a causa da sua desgraça tem dois lados, ligados entre si. O lado visível: o governo dos reis foi um desastre para o povo. O lado escondido: o povo perdeu sua fé em Deus, Senhor e Rei do povo” (MESTERS, 1991, p. 25).
Os dois filhos, Maalon (doença) e Quelion (fragilidade) recordam a divisão da descendência de Jacó (Israel - Judá). A ambição por parte dos líderes e a opressão sofrida pelos pobres gerou o rompimento e enfraquecimento do povo. Os líderes políticos e religiosos, pouco a pouco, esqueceram o Senhor, transgredindo seus mandamentos, tornando-se infiéis a Deus e ao povo. A pior transgressão, talvez, tenha sido o esquecimento dos mais pobres e marginalizados.
No exílio, alguns judeus uniram-se às mulheres de outros povos, como também os pobres que permaneceram em Judá (note-se a presença de Órfa e Rute, ambas moabitas). Uma minoria, por estar longe de sua terra e do Templo (que fora destruído), acabou perdendo sua memória e sua identidade. No fim, “restou só a Noemi, mudada em Mara, ‘sem filhos e sem o marido’ (1,5). Sem filhos, sem futuro, sem herdeiro, sem herança! Sem marido, isto é, sem Deus, com a fé enfraquecida, sem força para gerar um novo futuro!” (MESTERS, 1991, p. 25). O reino dividido, Israel (Norte) e Judá (Sul) afastam-se de Deus e de sua Aliança; por isso, tornaram-se doentes (Maalon) e frágeis (Quelion). Note-se que os dois filhos de Elimelec e Noemi morrem deixando suas esposas viúvas e angustiadas.
Aqueles que retornaram do exílio estavam desejosos de continuar a experiência, iniciada na Babilônia, da busca e afirmação da identidade judaica. O retorno a Judá proporcionou-lhes empreender um processo de revisão dos elementos constitutivos de suas tradições. Sobre esse processo, Lopes e Nef Ulloa (2023) afirmam:
O primeiro diz respeito à delimitação e proteção da própria identidade. Dispersos e em meio à cultura tão imponente, como aquela babilônica, Israel experimenta o perigo de desaparecer enquanto nação e cultura (Sl 136). Para reafirmar a identidade, desenvolveu-se uma série de princípios religiosos-comportamentais, entre os quais a defesa do monoteísmo (Ex 20,3; Dt 5,7; 6,4-5), a obrigatoriedade da circuncisão (Gn 17,9-14; Ex 4,24-26), leis de pureza (Lv 17-26); proibição dos matrimônios mistos (Dt 7,3-4; Ex 34,16; Js 23,12). Esses princípios são justificados a partir da perspectiva religiosa caracterizada pela crescente centralidade da Torah (Dt 4,1-3; 5,32-33; 6,1; 7,12; Js 1,7; 23,6).2. O segundo aspecto refere-se a um movimento de resistência impulsionado pelos remanescentes de Judá que se opõe à mentalidade importada pelos exilados repatriados de reconstruir uma sociedade teocrática marcadamente monocultural e monotradicional. A insistência na promessa divina de expulsar as demais nações da terra (Dt 7,1; Js 23,9) e a proibição de se misturar com outras nações presentes em meio de Israel (Js 13,2-6; 23,7) são alguns indícios bastante explícitos de que nunca se alcançou tamanha pretensão. (LOPES; NEF ULLOA, 2023, p. 88-89).
O livro de Rute faz parte da literatura que descreve a resistência desses povos. Assim sendo, diante do retorno do exílio e encontro/choque com os povos que residiam em Israel, a postura indicada pela novela de Rute não é a exclusão, mas da busca de um acordo entre os que estão na terra e os repatriados, de forma que todos possam ter o seu lugar na terra dada por Deus para o seu povo.
Na Encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco afirma “o amor que se estende para além das fronteiras, está na base daquilo que chamamos ‘amizade social’ em cada cidade ou em cada país. Se for genuína, esta amizade social dentro duma sociedade é condição para possibilitar uma verdadeira abertura universal” (FRANCISCO, 2020, p. 7). Francisco sugere a “amizade social” como modo de vida do crente, isto é, a hospitalidade ao invés da hostilidade, a acolhida ao invés da indiferença e o amor generoso como vínculo das relações. Trata-se de um movimento que gera comunhão e fraternidade. Tais elementos estão ricamente presentes nos poucos capítulos do livro de Rute.
Every-Clayton (1993) chama atenção para aquilo que considera essencial no texto bíblico:
O livro de Rute não é uma mera história bonita, de uma pobre estrangeira que encontrou seu príncipe encantado. Nem tampouco é uma simples parábola ensinando acerca de Deus e Seu amor e cuidado por Seu povo, e nem ainda um tratado político ou polêmico. O livro é, acima de tudo, o relato da ação salvífica do Deus que intervém na história humana fazendo convergir vidas sim, mas, o que é mais importante, fazendo convergir em vidas Seu próprio propósito último, a salvação. O livro não é uma mera dramatização dessa salvação – é o próprio registro dela (EVERY-CLAYTON, 1993, p. 76).
Moab era uma região montanhosa vizinha a Judá, localizada ao leste do Mar Morto, “ficava além do Jordão, em uma área que os israelitas nunca conquistaram completamente. Às vezes as relações com Moab eram hostis e às vezes amigáveis” (FISCHER, 1999, p. 263). A palavra Moab (מוֹאָב) significa “sêmen do pai” ou “do pai”, mas curiosamente foi o lugar onde Maalon e Quelion não foram capazes de suscitar descendentes (cf. FERNANDES, 2012, p. 27). Moab torna-se, no início da narrativa, o lugar da esterilidade e da morte dos maridos, pai e filhos.
Dentre os motivos para a contenda entre Moab e Judá, está um fato acontecido no período em que o povo de Israel, liberto da escravidão do Egito, peregrinava pelo deserto, rumo à terra prometida. Tendo o povo hebreu acampado nos campos de Moab, os moabitas temeram o numeroso grupo israelita (Nm 22,3) e negaram passagem ao povo de Israel (Jz 11,17). Também em Nm 22-24, Balac, rei de Moab, convoca o vidente Balaão para proferir uma maldição contra Israel, mas o Senhor impede tal façanha. Assim, aquilo que deveria ser uma maldição contra o povo de Israel, por intervenção divina, configurou-se em bênçãos proferidas pelo vidente Balaão, deixando o rei moabita insatisfeito.
Sem esquecer a origem “incestuosa” do povo moabita (herdeiros de uma mulher que deitou com o próprio pai após embriagá-lo), as muitas guerras entre Israel e Moab (Jz 3,12-30; 1Sm 14,47; 2Sm 8,2; 2Rs 3) e o envolvimento de Salomão com estrangeiras (dentre as quais estavam as moabitas) fizeram parte da tradição do povo de Israel e deixaram uma imagem negativa desse povo vizinho. Tudo isso fez que em Israel progredisse a hostilidade contra Moab, a ponto de não aceitar os moabitas em suas assembleias, “nem na décima geração” (Dt 23,4) e “moabitas nunca poderão pertencer à comunidade de Deus, porque não socorreram os israelitas com pão e água, ‘mas contratou Balaão para que os amaldiçoasse’” (Ne 13,1-2).
Contudo, para surpresa dos leitores, Noemi e Rute formam uma verdadeira parceria. A vivacidade de uma e a experiência da outra, parecem ser dois lados de uma mesma personagem. As duas protagonistas dão o “ritmo” da narrativa, sendo os outros personagens secundários. A maior parte dos diálogos contidos na narrativa é entre as duas protagonistas[6]. O retrato de Deus presente na história tem traços maternos, não é exclusivo, restrito a uma tribo ou povo, nem muito menos a uma raça ou espaço territorial; pelo contrário, Deus é abertura, acolhida, alcança a todos e ultrapassa as fronteiras de Israel. Trata-se de uma mãe que acolhe a todos em seus braços.
A bondade de Rute e sua amizade para com Noemi é reconhecida e louvada por Booz, que acolhe Rute em sua plantação e em sua casa. Mesters comenta as palavras pronunciadas por Booz, em seu primeiro encontro com Rute (Rt 2,11-12):
Usando frases da Bíblia, Booz destaca a importância da opção de Rute. Ele diz: “Você deixou pai e mãe, abandonou sua terra natal”. Esta primeira frase lembra Abraão (Gn 12,1). Escolhendo ficar com Noemi, Rute imitou Abraão, tornou-se filha de Abraão. Booz diz ainda: “Foi debaixo das asas de Javé que você veio buscar abrigo”. Aqui, nesta segunda frase, ele usa uma imagem muito conhecida que lembrava ao povo a libertação do Egito e a proteção de Deus (Ex 19,4; Dt 32,11; Sl 17,8; 36,8; 57,2). Caminhando com Noemi, Rute começou a fazer parte do povo que saiu do Egito debaixo da proteção das asas de Adonai! (MESTERS, 1991, p. 40-41).
Para Booz, Rute torna-se filha de Abraão, não pelo seguimento de determinadas leis ou pelo lugar de sua origem, mas pelo amor que demonstrou por sua sogra. É o hesed gratuito e desinteressado por Noemi e efetivado nas ações de solidariedade, que fez Booz encantar-se por Rute. Booz enxergou a grandeza de coração da jovem moabita e a beleza da sua amizade por Noemi que rompeu as barreiras das divisões.
O projeto do livro de Rute é inclusivo. A mensagem da novela é de que o hesed (misericórdia, bondade, solidariedade, fidelidade, benevolência) é gerador de vida e amizade entre Deus e as pessoas e, por causa dessa presença divina, a amizade entre as pessoas de alarga, se amplia. Com isso, reforça-se que as leis devem priorizar a defesa dos mais pobres, pois são eles os mais prejudicados pelos sistemas geradores de morte e exclusão. Nessa perspectiva, o Papa sublinha:
Ainda por cima, “nalguns países de chegada, os fenómenos migratórios suscitam alarme e temores, frequentemente fomentados e explorados para fins políticos. Assim se difunde uma mentalidade xenófoba, de clausura e retraimento em si mesmos”. Os migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa. Consequentemente, têm de ser eles os “protagonistas da sua própria promoção”. Nunca se dirá que não sejam humanos, mas, na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos. É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno. (FRANCISCO, 2020, n. 39)
Segundo Alanati, o livro de Rute difere dos demais livros da Bíblia Hebraica, pois, “não há revelações nem intervenções divinas. Nenhum milagre. As escolhas são individuais e não guiadas por profetas. Eis um texto bíblico que valoriza os atos cotidianos de bondade” (ALANATI, 2008, p. 74). Quem poderia imaginar que o ato de amizade de uma nora por sua sogra poderia alcançar todo um povo? Em outras palavras, a amizade de Rute salvou Noemi e desta amizade brotou a continuidade da descendência de um povo.
A reflexão da Campanha da Fraternidade de 2024 destaca:
Não podemos deixar de notar que, para o texto bíblico, a amizade de Rute vale a Noemi muito mais que uma descendência numerosa, que era a imagem mais clara da bênção divina. É em Rute que a bênção de Deus reencontra a esquecida Noemi. Embora o título de resgatador (go’el) seja de Booz, porque ele tem tal direito perante a lei, a verdadeira resgatadora de Noemi foi Rute. Com sua amizade e sua companhia, ela buscou Noemi da solidão e do esquecimento. Se os laços sanguíneos não são suficientes para ligar a sogra ao filho, a compaixão e a bondade de Rute são o vínculo que faz com que todo o Israel entenda que, na descendência de Rute, Noemi ganhou um lugar na história (TEXTO BASE, 2023, n. 105).
A mãe, no Antigo Israel, era a responsável por transmitir ao clã a tradição dos antepassados, elemento basilar e identitário do povo judeu. Neste sentido, a novela de Rute integra o conjunto de histórias pertencentes à tradição judaica, que contribui na formação do sujeito, tendo o objetivo, não apenas de entreter, mas acima de tudo de formar o caráter da criança judia. A mensagem do livro faz parte de um projeto inclusivo e profético, no qual a lei maior é a amizade demonstrada em gestos concretos.
A Bíblia está repleta destes projetos e mesmo que não tenham sido concretizados, aparecem como sinais proféticos, utopias geradoras de vida e de esperança, possibilidades de um mundo mais humano. Tais projetos iluminam o nosso tempo, ainda repleto da cultura da indiferença e do descarte. Somos constituídos de narrativas, elas integram aquilo que somos individualmente e socialmente. Que a história da moabita e da judaíta que testemunharam a força salvadora e libertadora da amizade, inspire nossas comunidades a viver a amizade social além das fronteiras.
Ao contemplar o exemplo de amizade entre uma belemita e uma moabita, o judeu encontra inspiração para viver a Torá, recordando que todos podem fazer parte do povo escolhido. Rute entrou para a história do judaísmo como protótipo de mulher solidária e atenta às necessidades do próximo. É apresentada como uma verdadeira heroína tal como outras protagonistas femininas na história do povo judeu.
Ao fim da narrativa, fica a certeza de que o Deus de Israel é capaz de transformar o pranto em alegria, a morte em vida e a fome em abundância, mas para isso, é necessária a participação de pessoas ousadas e corajosas. A união entre uma estrangeira moabita e um judeu de Belém, salvaguardou a dinastia do rei Davi. Tal linhagem terá importância cabal não apenas para o Judaísmo, mas também para o Cristianismo, pois dela é descendente Jesus de Nazaré (cf. Mt 1.17; Lc 2,4).
O livro de Rute convoca o leitor de todos os tempos a apostar na força do amor e da solidariedade, no encontro entre os diferentes. Para a comunidade que gerou o livro, é impossível conceber uma lei que não esteja fundamentada no hesed e não contribua para a amizade social. Nas palavras do Papa Francisco: “para se caminhar rumo à amizade social e à fraternidade universal, há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância” (FRANCISCO, 2020, n. 106). Muitas histórias como as de Rute, nos dias de hoje, podem despertar as consciências de homens e mulheres para alimentar e impulsionar a cultura do encontro e salvaguardar uma sincera amizade social.
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SASSON, Jack M. Rute. in: Guia Literário da Bíblia. ALTER, Robert. KERMODE, Frank. (Orgs.). Ed. UNESP (Prismas), 1997.
SCARDELAI, Donizete. O escriba Esdras e o judaísmo. Um estudo sobre Esdras na tradição judaica. São Paulo, Paulus, 2012 (Coleção Biblioteca de estudos bíblicos).
SILVA, A. J. da . Leitura socioantropológica do Livro de Rute. Revista Estudos Bíblicos, São Paulo, v. 26, n. 98, p. 107–120, 2022. Disponível em: https://revista.abib.org.br/EB/article/view/545. Acesso em: 16 ago. 2024.
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[1] As Meguilot (rolos) são lidas nas festividades judaicas de Pessach/Páscoa (Cântico dos Cânticos), Shavuot/Pentecostes (Rute), Tishá BeAv/Memorial da destruição do Templo e de Jerusalém (Lamentações), Sucot/Festa das Tendas (Eclesiastes) e Purim (Ester).
[2] “Não me chameis Noemi. Chamai-me Mara, porque o Todo Poderoso me encheu de amargura” (Rt 1,20).
[3] No Midrash Rabbah de Rute vemos o comentário “The name of the one was Orpah (1:4), because she turned her back [oref] on her mother-in-law”. O mesmo Midrash relaciona a figura de Golias à Órfa que teria sido sua avó. Dessa forma, Davi seria descendente de Rute e Golias, descendente de Órfa. O comentário midrashico citado pode ser encontrado no site: https://www.sefaria.org/Ruth_Rabbah.2.20?lang=bi. Acesso em 16. fev. 2024.
[4] Na verdade, mesmo que Booz tenha gerado o filho com Rute, pode-se dizer que Obed é filho de Maalon, pois segundo a lei do Levirato, o fruto desta união garantiria que o nome do falecido não desaparecesse. Dessa forma, a terra que também fora resgatada, pertencerá ao filho de Maalon, Obed (por isso o parente mais próximo que poderia ser o resgatador, ao ouvir o argumento de Booz desiste de exercer o direito de goel). Cf. SASSON, Jack M. Rute. In: Guia Literário da Bíblia. ALTER, Robert. KERMODE, Frank. (Orgs.), p. 350-351.
[5] Cf. MESTERS, Carlos. Como ler o livro de Rute. Pão, família, terra. Ed. Paulus, 1991.
[6] Ilona Rashkow observa que dos 86 versículos do texto, 56 discursos diretos ou falas diretas que “faz a narrativa progredir”. Cf. RASHKOW, Ilona. Rute: o discurso do poder e o poder do discurso. In Rute a partir de uma leitura de gênero, BRENNER, Athalya (org.). São Paulo, Ed. Paulinas, 2002 – (Coleção A Bíblia: uma leitura de gênero), p. 35.