Correspondência entre a redenção universal e a ecologia integral

Universal Redemption related to Integral Ecology

André Luiz Rodrigues da Silva
Doutor em Ciência e Teologia Patrística pelo Institutum Patristicum Augustinianum - Itália. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ). Contato: leleur@yahoo.it


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Resumo: A possibilidade de encontrar uma correspondência entre a Ecologia Integral e a doutrina da Soteriologia Universal motiva a pesquisa deste artigo, com a finalidade de nos questionarmos como a antropologia e a cristologia constroem esse diálogo a partir do tema do cuidado da casa comum e da salvação destinada a todos os homens e mulheres. A proposta se concentra em aproximar a doutrina de Clemente de Alexandria sobre o Lógos Divino ao pensamento do Papa Francisco sobre a Ecologia Integral, na Laudato Si'. Assim, refletimos sobre os elementos descendentes e ascendentes pelos quais a soteriologia universal possa ser descrita em consonância com as preocupações e urgências da Ecoteologia. Ora, consideramos o fenômeno das repetitivas tragédias e desastres naturais como um sinal de alerta pelo qual o cuidado com a Casa comum se faz cada vez mais necessário. O fechamento dessa exposição permanece apoiado na reflexão sobre o exemplo de São Francisco de Assis.

Palavras-chave Ecoteologia; Soteriologia; Papa Francisco; Clemente de Alexandria

Abstract: This article’s main aim is to offer some correspondence between Integral Ecology and the doctrine of Universal Soteriology, so that we may wonder how Anthropology and Christology make their connections based on the care for our common home and on the fact that all men and women are called by God to be saved. Our proposal focuses on bringing Clement of Alexandria’s doctrine about the Divine Logos closer to Pope Francis’ thoughts on Integral Ecology, as it was exposed in the context of the Laudato Si. Thus, we reflect on the descending and ascending elements through which universal soteriology may be described in accordance with the concerns and urgencies of Ecotheology. Therefore, we consider the phenomenon of repetitive tragedies and natural disasters as a warning sign for us to pay attention to our common home, as it becomes increasingly necessary. Finally, we conclude our proposal with the example of Saint Francis of Assisi

Introdução

Este artigo é produzido em concordância com o projeto de Pesquisa “Aplicação da metodologia patrística ao pensamento contemporâneo” do PPG em Teologia da PUC-Rio, nascendo como a junção da pesquisa levada à comunicação nos GTs sobre Religião, Ecoteologia e Consciência Planetária, nos Congressos da SOTER (SILVA, 2023, p. 646) e da ANPTECRE (SILVA, 2023, p. 944). 

A equivalência entre a salvação universal e a ecologia integral resulta dos trabalhos que recentemente foram publicados no livro “O Cristo Redentor Universal”, organizado por nós com o Alexandre Lima Carvalho Pinheiro para ser um material de apoio sobre a universalidade da salvação de Jesus Cristo, a partir do Santuário do Cristo Redentor, no alto do Corcovado, no Rio de Janeiro (SILVA; PINHEIRO, 2022). A partir disso, sustentamos que uma ecologia integral encontra correspondências claras com uma soteriologia universal. Isso se aprofunda na medida em que é possível buscar por elementos de aproximação conceitual nas fontes dos Padres da Igreja, observando mais de perto o pensamento de Clemente de Alexandria a respeito do Verbo Encarnado. Desse modo, a salvação universal pode ser representada, como no livro do Gênesis, pelo mesmo abraço que Rebeca recebe de Isaac (Gn 26,8), sugerindo o mistério da Encarnação. Outrossim, Clemente observa de maneira positiva o mundo e a natureza, distanciando-se do conceito de uma natureza corrompida pelo pecado original, ao mesmo tempo em que sugere a unidade entre o Criador e a sua criação (SILVA; PINHEIRO, 2022, p. 225). É importante lembrar que esse conceito respeita o plano literário que Clemente de Alexandria estabeleceu para a sua atividade à frente da escola de Alexandria, explicando profundamente a posição do autor segundo a qual o processo de revelação do Verbo Encarnado partiu das culturas pagãs até chegar ao cristianismo, numa dinâmica que envolvia a interação do Logos Divino com o mundo criado. 

1. Fundamentação teórica

Intimamente associadas se tornaram a cosmologia e a soteriologia por meio daquele axioma teológico segundo o qual o Deus que salva é o mesmo Deus que cria (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 58). Na própria formação do Antigo Testamento encontramos evidências importantes de que a experiência da saída do Egito trouxe para a religiosidade comum judaica a perspectiva de uma intervenção providencial de Adonai como Deus criador que acompanha o seu povo na caminhada de libertação (FORTE, 1987, p.156). De igual maneira, encontramos, no Novo Testamento, a experiência de salvação dos cristãos que ainda envolve conclusões em termos cosmológicos ao apontar para a criação e para a consumação de todas as coisas (LADÁRIA, 1998, p. 43). Durante o período patrístico, os conceitos se robustecem, ao se renovarem para constituir os fundamentos da elaboração teológica da comunidade cristã primitiva, como, por exemplo, podemos enxergar na Primeira Carta de Clemente de Roma, escrita para a comunidade de Corinto (QUACQUARELLI, 1991, p. 88). Atualmente, a dinamicidade dessa inteiração entre soteriologia e natureza torna fecundas as sementes da ecoteologia. 

2. A correspondência entre o Verbo e a Natureza

Clemente de Alexandria usa o recurso da alegoria da sua escola catequética diante da interpretação da passagem de Gn 26, considerando que o rei dentro do palácio representa a eternidade do Verbo Divino, enquanto a janela do palácio indica a mediação do Verbo entre Deus e o Mundo, pois, de dentro, é possível ver o que existe lá fora e, de fora, compreende-se o que existe dentro do palácio, mesmo que isso só aconteça de forma parcial. Desta forma, o jardim no qual é protagonizado o abraço de Isaac em Rebeca serve para indicar como que o Verbo se une à Igreja neste mundo criado por Deus (1960, p.151). 

Clemente recorre à teoria da revelação do Verbo de maneira progressiva, de modo que possa explorar a ação do Verbo no mundo, dividindo a programação catequética da sua escola em três fases distintas. Ocorre perceber que ele elabora essas fases a partir da uma relação cujo conceito é iniciado pelo Verbo Protréptico que chama, dos homens distraídos, a atenção por causa das religiões pagãs que receberam o convite a que se voltem para Deus. De igual feita, levanta a teoria do Verbo como Pedagogo qual responsável por conduzir através dos mandamentos deixados por Moisés todos aqueles que viveram debaixo ou durante o tempo dos judeus, num profundo processo de familiarização e de conversão com as coisas sagradas. Em terceiro e último lugar, Clemente de Alexandria decide escrever sobre o Verbo Didáscalo, que compreende, à semelhança dos conceitos mais elevados da fé, a função mais nobre do Verbo Divino como mestre que convoca e educa os seus discípulos para que possam ouvir das maravilhas de seus ensinamentos, sem mais usar de recursos obscuros e velados. As obras de Clemente de Alexandria acabaram por ser intituladas em parte a partir desse plano pedagógico (1960, p. 9). 

Nossa proposta, então, se baseia na possibilidade de verificar a importância dessas prerrogativas do Verbo Eterno divino junto à natureza e à criação divina. Dessa forma, orientados pelas palavras do Papa Francisco na Laudato Sí’, é oportuno que considerássemos o caráter protréptico da Natureza, pelo qual as coisas criadas recebem de Deus o poder de entrar num profundo estado de atenção e de convidar o homem a este mesmo estado protréptico em relação às coisas que nos envolvem. Diz o Papa Francisco: 

Entretanto os poderes econômicos continuam a justificar o sistema mundial atual, em que predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética. Muitos dirão que não têm consciência de realizar ações imorais, porque a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito. Por isso, hoje, “qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta”. É previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra causa sempre danos graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos avolumam-se quando se pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com efeito, “não obstante haver acordos internacionais que proíbam a guerra química, bacteriológica e biológica, subsiste o fato de continuarem nos laboratórios as pesquisas para o desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios naturais”. Exige-se da política uma maior atenção para prevenir e resolver as causas que podem dar origem a novos conflitos (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 45).

A degradação ambiental é o lugar para onde mais os nossos olhos têm se dirigido para entender os riscos que estamos correndo num processo de degradação da dignidade humana. Por isso, também consiste no sinal de alerta que nos convida a sair de uma situação passível e distraída. O Verbo divino se une ao clamor silencioso, mas vingativo em suas consequências, de uma natureza que está sendo abusada por causa da captação de recursos naturais, minerais e ambientais. Assim como o Cristo crucificado injustamente em nome de todos, a Natureza chegou no limite de suas reservas, o que a faz bramir num último suspiro de dor e de ajuda. 

Papa Francisco está nos ensinando que vivemos em um complexo e constante estado de alerta, quando chama a atenção dos líderes mundiais de modo que reconheçam que as iminentes crises políticas e as novas ameaças à população mundial por causa das guerras chegam ao seu clímax ofensivo entre Rússia e Ucrânia, entre Europa e alguns países da África etc., onde, na verdade, nada mais são do que uma ameaça anunciada por meio da crise socioambiental propagada em todo mundo. De fato, aqui se constrói a função protréptica da Casa Comum: a Natureza alerta a desordem que se instala nas relações humanas e, como em lampejos que se tornam cada vez mais intensos, assume o papel de desofuscar os seres humanos das vendas da ganância cuja cegueira prejudica e compromete o equilíbrio global em função de iniciativas que acabaram por assumir algum grau de importância, mas que, na verdade, nada mais são do que acenos da condição de uma liderança e uma população global desgarradas, necessitadas de um pastor que os conduza.

Cumpre-se aqui mais do que a simples consideração da Natureza como um instrumento de Deus para emendar e alertar os homens. Muito pelo contrário, ainda seguindo a orientação da Encarnação do Verbo, a comunhão de Cristo com a história impõe a chancela de protagonismo na criação, conferindo-lhe a grave e urgente tarefa de nos levar a repensar os rumos das políticas globais em nome de uma consciência planetária mais dinâmica e mais proativa. Nesse momento, os desastres naturais e os fenômenos climáticos deixam de se camuflar como o castigo de um tirano acusador que decidiu permanecer distante com o objetivo quase que masoquista de mostrar a maldade e as consequências desordenadas que se espalharam por todo o mundo.  Na verdade, vê-se aqui a origem da desordem dos nossos corações que, motivados pela ambição e pelo domínio desenfreado sobre as coisas criadas, nos desorienta. 

A distração mencionada por Clemente de Alexandria condiz perfeitamente com a condição de uma população mundial desorientada, que inevitavelmente se vê dividida por conta dos conflitos de interesse e pelo fato de se ferir mutuamente enquanto faz a sua busca desenfreada. Ao mesmo tempo, os animais e a biodiversidade não param de coroar o habitat do homem, mantendo-se como uma espécie de entregador ou carteiro que chega por sobre os portões de nossos lares trazendo uma mensagem, acenando-nos com as palmas e aplausos de quem chama a nossa atenção, porque têm a simples tarefa de nos retirar de dentro de nossas residências para que sejamos capazes de receber o anúncio que trazem consigo. Essa metáfora do carteiro nos aproxima do conceito que Clemente de Alexandria queria expressar ao se referir ao protréptico. De todo modo, desde a origem em meio ao caos até a sua glória em meio à bonança, nossa Casa Comum permanece imbuída da missão protréptica.

Debruçamo-nos, em seguida, sobre o caráter pedagógico da Natureza, mais uma vez apoiando-nos nas palavras que o Papa Francisco trouxe na Laudato Si' a fim de que compreendêssemos que: 

A educação ambiental tem vindo a ampliar os seus objetivos. Se, no começo, estava muito centrada na informação científica e na consciencialização e prevenção dos riscos ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos «mitos» da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os itinerários pedagógicos duma ética ecológica, de modo que ajudem efetivamente a crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 159).

Assim, a Natureza participa dos agentes que são responsáveis em conduzir o interior dos corações por aqueles diversos caminhos de conhecimento em direção ao sentido último e mais profundo do interior do homem. Muito do que entendemos hoje sobre ecologia integral está incluído nesse aspecto. Quando esse caminho depende apenas da iniciativa humana, tende-se ao menosprezo da Natureza e, ao mesmo tempo, aparece a inclinação para aquilo que a sobrepuja por causa dos interesses subjetivos ou por causa das ações politicamente duvidosas. A Natureza ocupa a função de pedagoga de si mesma, enquanto nos promove ao cuidado da Casa Comum, tanto por quanto nos tenta convencer das emergências socioambientais quanto pelo fato de nos transmitir o seu esplendor e grandeza. 

Na prática, a função didática da Natureza pode constituir um conceito bastante atinente ao caráter pedagógico aqui reconhecido, todavia, o Papa Francisco deseja que nos convençamos a respeito de uma conversão interior profunda como resposta ao processo de desertificação que se multiplica de forma externa como fruto da vasta sequidão interior. Isso só poderá acontecer quando as relações com o mundo que nos rodeia forem conduzidas pela experiência do encontro com Cristo (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 160).

 As nossas pesquisas em relação ao Santuário do Cristo Redentor no alto do Corcovado, no Rio de Janeiro, têm feito emergir conclusões que pretendem se questionar sobre de maneira concreta e em que termos esta experiência pessoal com Cristo se desdobra nas relações com a Natureza. Precedentemente, afirmou-se que uma ecologia integral deve corresponder a uma soteriologia universal (PINHEIRO, 2021, p. 216), segundo o axioma teológico que propõe que o Deus que salva é o mesmo Deus que cria. Nossas considerações agora delineiam como isso pode ser mais profundamente estimado. 

Quando nos voltamos para os fundamentos teológicos com os seus estatutos sobre a Cristologia Ascendente e sobre a Cristologia Descendente, também é possível descrever uma Ecologia Integral Ascendente em seu ponto de partida com a realidade cosmológica em que cada um de nós se detém, gerando uma preocupação global efetiva, assim como também podemos mencionar a existência de uma Ecologia Integral Descendente que se avia por causa da necessidade de explorar de maneira moderada e ordeira os bens e os benefícios das reservas naturais, partindo de projetos que favoreçam os indivíduos, de modo que aqueles que mais têm possam assumir o compromisso urgente com os mais pobres e marginalizados. 

Segundo o Papa Francisco, as iniciativas individuais que, nesse artigo, se unem para compor essa dinâmica ascendente em direção à Ecologia Integral, correm o risco de se desgastarem como projetos individualistas e vazios, a ponto de alguém se sentir inútil face aos inúmeros desafios socioambientais (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 166). 

A Laudato Si’ se sensibiliza com o papel das espécies em relação à formação e à defesa dos ecossistemas, uma vez que esses complexos conjuntos de vida se tornaram bioindicadores qual censores fundamentais para estabelecer o equilíbrio da vida em determinado lugar (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 29). Fala-se do microplástico presente nos peixes, dos manguezais que filtram e indicam o percentual de poluição dos gases tóxicos, dos alimentos envenenados por agrotóxicos e uma série de outros recursos em que a Natureza mede o quanto ultrapassamos os limites possíveis de impacto sobre o meio ambiente. O projeto de Ecologia Integral funciona como uma excelente resposta ao processo pelo qual o homem se vê na condição de ser tentado a ser onipresente e a se sentir privilegiado no meio em que vive. A Ecologia Integral Descendente redefine o processo de humilhação e serviço que Cristo assumiu no momento da Encarnação, desapegando-se de sua condição divina para se colocar a serviço da salvação de todos. Neste sentido, a Ecologia Integral prevê sempre a interação do ser humano com a Natureza, forçando-o, todavia, a abandonar os seus impulsos tirânicos e as suas atitudes de imposição imperialista sobre o próximo e sobre o mundo que o rodeia (MURAD, 2017, p. 493). Em nenhuma circunstância, a Ecologia Integral pode se valer da presunção de um coração orgulhoso, pois foi neste lugar em que o interior dos corações já foi devastado que as águas, as plantações, as nascentes e as rochas mais duras das montanhas da mesma forma desaparecem.

3. Mudanças climáticas e catástrofes naturais

Escrevendo sobre a “Cidade de Deus”, Agostinho respondia às acusações perpetradas pelos pagãos sobre o Cristianismo pelo fato de ter se tornado uma desvantajosa ameaça no que dizia respeito à ordem pública, pois não beneficiava mais o Império Romano como se pretendeu com a promulgação das leis que garantiam a liceidade do culto cristão, promovendo publicamente a fé cristã para todos os interessados. A adoção da religião cristã, como queriam expor os opositores do cristianismo, promoveu mais desordens e catástrofes no Império, provocando devastação nas mesmas cidades em que a presença dos cristãos deveria ter se tornado proteção e sinal da providência divina. Respondendo à crítica, Agostinho argumenta que de Sião ainda haveria de brotar a Lei do Senhor, enquanto sua Palavra haveria de emergir de Jerusalém (Is 2,2-3), o que valia a dizer que este processo de salvação e de paz não seria destinado apenas para os cristãos, mas para todos os povos, pois a Lei e a Palavra do Senhor não deveriam permanecer em Sião e em Jerusalém, avançando dali para todo o mundo (AGOSTINHO, 2017, p. 300).

De fato, ocorre perceber como Agostinho recorreu ao texto de Jó, para demonstrar que as necessidades e as adversidades do mundo presente foram as condições para colocar os seres humanos em situações extremas por causa de inundações corriqueiras e de um furacão (AGOSTINO, An. in Iob, 14). Embora Jó constituísse um exemplo bem eficiente do justo injustamente perseguido e submetido ao poder do mal, os comentários sobre a vida desse personagem bíblico só foram documentados a partir de Orígenes, que se sentiu motivado pela necessidade de explicar, no mundo, o problema do mal. No museu Pio Cristão do Vaticano é possível ver em amostra permanente o sarcófago de Jonas, cujas referências destacam o dilúvio de Noé (Gn 7,7) associado aos três dias em que Jonas permaneceu dentro do ventre do peixe (Jn 1,17) e à notícia de que Jonas tinha se deitado à sobra de uma mamoneira (Jn 4,6-11). A inspiração do artista antigo pode ter sido motivada pela necessidade de explicar sobretudo as catástrofes naturais e a própria morte do homem, unindo-se pela fé à ressurreição de Cristo, que oferece o peixe como alimento ao mesmo personagem que é abatido pelo sofrimento (LAWRENCE, 1962, p. 289). 

Desde os primeiros documentos da humanidade, filósofos, cristãos e não cristãos tentaram se debruçar sobre o problema do mal, apoiando-se nos conceitos de providência e onipotência divinas, mesmo que fosse apenas com o objetivo de negá-las ou delas duvidar. Nesse sentido, as catástrofes naturais sempre inquietaram os seres humanos em busca de explicações para esses acontecimentos. 

Com as notícias a respeito do Tsunami de 2011, no Japão, chegaram a nós, por meio de imagens chocantes, cenas de pessoas que morriam bem ali diante dos nossos olhos, amontoadas e engolidas pelos entulhos que impediam qualquer chance de sobrevivência. As imagens capturam a chegada da onda na cidade de Kaishama, onde é possível acompanhar que as pessoas mais jovens alcançam as partes elevadas do vilarejo, ao passo que um senhor de idade é entrevisto ao caminhar de maneira lenta, quando, de repente, todas as construções e estruturas por detrás dele são levadas pelo tsunami. Em poucos instantes, aquele senhor tenta se segurar em algo que lhe pudesse proteger e salvar, pois as águas cresciam violentamente, mas, infelizmente, toda a construção desmorona e, diante dos olhos da audiência, aquela pessoa perde sua vida (MEMORY OF DISASTER, 2018).

Em 2023, foi possível perceber os enormes impactos climáticos em consequência do fenômeno El Niño e do aquecimento global. Assim, no mesmo período em que a cidade de Roca Sales, no Rio Grande do Sul, foi castigada por ciclones devastadores, arrasando com as plantações, destruindo casas, e ceifando muitas vidas (PIMENTEL, 2023), assim também foi possível acompanhar a devastação violentíssima na cidade de Derna, na Líbia, país paupérrimo do norte da África e vitimado por graves problemas sócio-políticos. O desastre aconteceu com o rompimento de barragens que não suportaram a força das enchentes provocadas pelas tempestades (UNICEF, 2023).  Mais recentemente, novas chuvas voltaram a devastar o Rio Grande do Sul, comprometendo muitos municípios por causa das enchentes, enquanto milhares de pessoas continuam buscando sentido para tanto sofrimento e dor (CASTRO, 2024, p. 155).

Em todos esses casos, a despeito da origem natural das tragédias ou do superaquecimento global provocado pelas interferências ambientais pelo homem, ocorre entender e examinar a fragilidade do ser humano que, independente da sua condição social, sofre com seus vizinhos e amigos por causa das mesmas consequências dessas catástrofes. A independer da religião, da cor, ou mesmo da região do mundo em que se vive, objetivamente se trata de quem morra soterrado na mesma terra que deveria prover alimento ou afogado em meio às mesmas águas que deveriam servir para a regeneração daquelas vítimas. Segundo a noção de Ecologia Integral, não importa se nos deparamos com uma vítima fatal ou milhares de corpos que se multiplicam e se aglomeram nos estuários de nossas cidades. A Igreja continua a se debruçar de modo samaritano sobre cada uma das vítimas. 

4. Caráter protréptico dos desastres naturais.

O Papa Francisco nos faz supor que o percurso ecoteológico a ser traçado diante de nós vai do cuidado da Casa comum à vida interior, da promoção da justiça à construção de uma sociedade mais justa e fraterna (FRANCISCO, 2015, p. 159). No que diz respeito à Antropologia, ocorre verificar os elementos da Ecologia Integral que registrem simultaneamente o macro com o microcosmo, tal como o homem religioso possa ser urgentemente condicionado a protagonizar ações de relevância socioambiental. Se a natureza também exerce hoje uma função protréptica, como indicamos acima, os desastres naturais certamente conotam um convite para a humanidade distraída, sobretudo para o homem de fé, de modo que renove o curso de sua vida em direção a um mundo mais saudável e favorável. 

Esse mundo circundado pelas catástrofes exige que deixemos de lado a teologia do castigo, negativa, para avaliar e apontar os critérios de uma hermenêutica de salvação, em que a piedade diante do humano e do divino, a comunhão entre os irmãos, mesmo que desconhecidos, e o diálogo interreligioso possam ser promovidos. Nesse sentido, jamais precisaremos nos questionar se aquele senhor no Japão ou aqueles corpos aglomerados na Líbia pertencem a cristãos, a judeus, a mulçumanos etc. para que possamos fazer algo por eles. Emocionamo-nos e choramos por pessoas cujos nomes desconhecemos, abrindo-nos às funções do altruísmo, da compaixão e da troca de dons entre diferentes. Ao mesmo tempo, com muita clareza a fragilidade e a necessidade de ajuda revelam que, embora sejamos limitados exatamente no desejo de levar para essas pessoas a salvação que gostaríamos, Cristo se apresenta como único redentor e salvador. Se dependesse apenas de nossos empenhos e da decisão em querer ajudá-los, certamente mais pessoas se salvariam. No entanto, esse empenho e essa decisão distam consideravelmente da realidade.  Todavia, fato de talvez não conseguirmos levar a nossa ajuda para todos que gostaríamos em nada torna ineficaz a nossa iniciativa. Pelo contrário, move-nos à compaixão ainda maior.

5. O Exemplo de Francisco

O Papa Francisco nos recomenda o exemplo de Francisco, ao reconhecer que o santo de Assis se dedicara totalmente ao cuidado daqueles que são frágeis, sendo conveniente para nós que conservemos a partir disso os traços da Ecologia Integral com alegria e com autenticidade. Nas palavras do Papa Francisco, em São Francisco de Assis era possível reconhecer “até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres o empenho na sociedade e a paz interior” (FRANCISCO, 2015, p. 10). Em todos os sentidos, na companhia de Francisco de Assis é possível fazer conhecida a percepção de que as preocupações e os anseios de cada coração descrevem em detalhes a instabilidade e os riscos do mundo que nos cerca, ao mesmo tempo em que o equilíbrio espiritual e interior jamais podem ser alcançados, enquanto a humanidade não se abrir para as graves questões ambientais de um mundo que se vê em colapsos de ordem climática. De alguma forma, quando se discorre sobre a paz interior isso nos coloca mais próximos do conteúdo da Ecologia Integral, enquanto isso nos faz tão complacentes com o próximo quanto nos ajuda a associar o discurso da justiça aos mais pobres com a preocupação com a natureza. Exatamente aqui chega-se nas mesmas consequências ou, pelo menos, nas mesmas raízes da soteriologia universal.

O testemunho de Francisco de Assis prova que o nosso comprometimento, em via descendente ou ascendente, tem consequências relevantes que, sem vacilar, surgem para favorecer toda humanidade. No mesmo lugar em que o esforço ecológico, ou melhor, ecoteológico, se afasta do pessimismo individual, em nome da participação ativa em atitudes que são pensadas e executadas nesse propósito, colhemos benefícios salutares para todos.

Conclusão

No momento em que declaramos que uma Ecologia Integral manifesta correspondências com a Soteriologia Universal, isso nos orienta, em primeiro lugar, para o vínculo natural dos diversos mistérios que tornam única e mesma a realidade da fé para a Teologia. Em seguida, pudemos concluir que aquela missão mediada pelo Verbo Divino para que a revelação de Deus se fizesse presente entre os seres humanos acaba por inserir a própria Natureza num projeto que não pode ser secundário, tanto por causa da sua forma descendente que a projeta como desígnio eterno do amor de Deus, até a sua forma ascendente, pela qual, nós unimos os nossos maiores esforços a fim de que os planos individuais de cada um não se desgastem a ponto de perdermos a esperança por uma conversão ecológica factível e real para as próximas gerações. Enfim, a saúde do mundo, da natureza ou do meio ambiente (PAPA FRANCISCO, 2015, p. 149) sempre envolveu de maneira profunda as questões soteriológicas que se traduzem naquela comunhão do Filho de Deus com todos os homens e mulheres no contexto desse jardim maravilhoso em que Deus abraça tudo que fez. Crer na salvação de todos demanda uma tomada de posição mais voltado para as raízes do homem interior para que descubra que o seu papel em relação às ações de preservação e cuidado com a casa comum é algo indispensável e urgente. Se o homem interior resiste em se envolver com esse projeto de responsabilidade socioambiental, isso provavelmente é indício de lapsos na sua compreensão sobre a redenção que Cristo nos oferece. 

Referências

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