Evangelicalismo e Fundamentalismo nas origens do Protestantismo Brasileiro e a urgência do Pacto Educativo Global

Evangelicalism and Fundamentalism in the origins of Brazilian Protestantism and the urgency of the Global Educational Pact

Antônio de Lisboa Lustosa Lopes
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: padre.lisboa@gmail.com

Vinnícius Almeida
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Contato: caminhadafigurada@gmail.com


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Resumo: O presente artigo objetiva investigar as origens do protestantismo brasileiro, explorando a trajetória do evangelicalismo e seus desdobramentos em fenômenos como a Teologia da Prosperidade, o sentimentalismo e técnicas de coaching nos púlpitos. Analisa os elementos do fundamentalismo reprodutores do discurso evangélico na política e destaca como alternativa, a urgência do pacto educativo global proposto pelo Papa Francisco para enfrentar os desafios contemporâneos. Propõe que os protestantismos e pentecostalismos respondam à questão social reconhecendo a importância e historicidade da política de assistência social, comprometendo-se com a justiça social e cidadania a partir desta perspectiva.

Palavras-chave: Pentecostalismos; Protestantismo Brasileiro; Pacto Educativo Global; Política de Assistência Social; Teologia Pública

Abstract: This article aims to investigate the origins of Brazilian Protestantism, exploring the trajectory of evangelicalism and its developments in phenomena such as Prosperity Theology, emotionalism, and coaching techniques in the pulpits. It analyzes the elements of fundamentalism that reproduce the evangelical discourse in politics and highlights, as an alternative, the urgency of the global educational pact proposed by Pope Francis to face contemporary challenges. It proposes that Protestantism and Pentecostalism respond to the social issue by recognizing the importance and historicity of social assistance policy, committing to social justice and citizenship from this perspective.

Keywords: Pentecostalisms; Brazilian Protestantism; Global Educational Compact; Social Assistance Policy; Public Theology

Introdução

Neste estudo quer-se fazer referência às raízes históricas do protestantismo brasileiro, partindo da abordagem sobre o sentido emocional do evangelicalismo, a base fundamentalista e conservadora do “racismo” confessional e o espírito fundante do protestantismo de missão no Brasil. Com base na pesquisa feita pelos professores A. G. Mendonça e Prócoro Velasques, se formulará uma crítica sobre alguns elementos, além de apresentar os principais impactos referentes à política de comunidades. A partir disto, serão apresentados elementos que demonstram a persistência desse quadro originário e a urgência de um pacto educativo global para que estes desafios sejam afrontados pelo cristianismo contemporâneo.

Avivamentos Evangelicais

Na base da teologia protestante está a experiência dos avivamentos (MENDONÇA, 1990, p. 83), que serviu para corroborar a perspectiva evangelical, onde a ênfase principal recaía sobre a promoção de experiências emocionais como sinalizadores eloquentes e efetivos da conversão do indivíduo. Este é o ponto de partida para o trabalho conversionista da evangelização, que tem como referencial teológico a perspectiva da absoluta soberania de Deus e da completa inaptidão humana para alcançar a salvação (MENDONÇA, 1990, p. 82). A comoção do coração pode produzir experiências extáticas que conduzem o indivíduo imediatamente a uma aproximação pessoal de Deus.

O evangelicalismo (Idem) teve como estratégia pastoral significativa os acampamentos fora do espaço urbano, duravam dias, eram realizadas reuniões com pregações, cânticos e orações. Apesar do enfoque bíblico fundante, os desdobramentos históricos demonstram um enfoque fortemente emocionalista na reconfiguração dos acampamentos. Ali o pastor tinha a missão de persuadir seus interlocutores a acolher a sua própria realidade pecaminosa, arrepender-se de vivenciá-la e assumir a salvação. O pavor da condenação respaldava a responsabilidade individual frente à aceitação ou não da salvação oferecida por Deus.

Houve, com o tempo, iniciativas inovadoras, como a permissão da oração em voz alta dada às mulheres que participavam do culto (Finney) e a fomentação de escolas para garantir instrução religiosa substancial (Dwight Lyman Moody) (MENDONÇA, 1990, p. 86). Entretanto, os avivamentos tiveram sempre algumas idas e vindas, avanços e recuos no tangente à questão da emotividade como recurso na evangelização. Segundo Velasques, o movimento pentecostal brasileiro é quem mais carrega, de certa maneira, esta herança avivalista; embora o protestantismo tardio que se inseriu no Brasil tenha trazido marcas da teologia e do ethos evangelical.

Duas correntes avivalista se fazem notar na história: a “puritano-avivalista” e a “arminiano-avivalista”. São correntes teológicas que refletem fortemente o contexto específico de cada período histórico. O acento teológico do primeiro movimento é a absoluta soberania de Deus, reforçado pela doutrina calvinista da dupla predestinação (MENDONÇA, 1990, p. 88), ao passo que, o segundo, procurou enfatizar a liberdade humana e a responsabilidade individual em assumir ou não o que é oferecido por Deus, pensamento muito desenvolvido pela escola de Yale (Samuel Hopkins), com a forte idéia da santidade e da redenção como expressões da absoluta vontade do Criador.

No rumo avivalista, configura-se o metodismo, que se radica originalmente em três correntes, a ética puritana, onde os sinais externos da conversão adquirem relevância (MENDONÇA, 1990, p. 94), o arminianismo que valoriza a vivência da fé e a salvação de todos os que acedem a Jesus Cristo, e o pietismo, cuja característica maior era a subjetivação da salvação como meio de santificação, que radicaliza a teoria da justificação pela fé (MENDONÇA, 1990, p. 95). 

Seguindo a doutrina wesleyana da perfeição cristã, os metodistas desenvolveram a compreensão da presença real de Cristo em cada ser humano, por isso realizaram uma ação missionária itinerante, conduzida por vocacionados surgidos nos acampamentos avivalistas, procurando levar seus ouvintes a decidirem por Cristo e despertarem em si o desejo de santidade (MENDONÇA, 1990, p. 98 e 104). Com o tempo passaram a dedicar-se mais às cidades, envonvendo-se com aeducação, procurando estabelecer melhor suas próprias bases institucionais.

A dedicação à educação é uma característica interdenominacional do protestantismo nascente do Brasil, e teve como escopo combater o “cristianismo corrupto” e difundir a “nova religião” através da cultura protestante (MENDONÇA, 1990, p. 105). É claro que as atividades não se resumiam ao trabalho educacional, mas se estendia também para o campo apostólico no contato com as famílias, nos cultos e “escolas bíblicas dominicais” (MENDONÇA, 1990, p. 102 e 105). 

O idealismo e o empirismo dão embasamento teórico ao fundamentalismo protestante, pois com base nisto a bíblia é assegurada como livro de absoluta inspiração divina, que deve ser compreendido e interpretado (MENDONÇA, 1990, p. 115), de modo literal, uma vez que a verdade é universal, o indivíduo tem condições de expressar linguisticamente a realidade e de conhecer objetivamente o passado, através da memória (MENDONÇA, 1990, p. 117).

No início do século XX o fundamentalismo foi adquirindo força entre o movimento evangelical que afirmava a “pureza doutrinária” a despeito da experiência religiosa (MENDONÇA, 1990, p. 123). O conceito de “inerrância bíblica” e a “escatologia milenista” são concepções fundamentais deste movimento. O primeiro considera que, sendo a Bíblia perfeita inspiração divina, não é possível conter erros, pois isso atingiria a natureza de Deus e da verdade (MENDONÇA, 1990, p. 126). E a segunda, acede à factibilidade do Reino de Deus, com a idéia das “dispensações” contidas no rol da história da salvação contada na bíblia. Uma corrente milenista (pré) acede ao fato de que a justiça divina será estabelecida com a segunda vinda de Cristo e a outra (pós) corrobora com o “esforço missionário dos cristãos” como meio para mudar paulatinamente o mundo com a disseminação do evangelho (MENDONÇA, 1990, p. 125).

Mendonça defende que o protestantismo brasileiro é formado originalmente por idéias residuais do destino manifesto e do fundamentalismo norte-americano, mas não com a força dantes assumida. Para ele é importante considerar como marcas importantes desta origem o “pré-milenismo, o pietismo e o escolaticismo” (MENDONÇA, 1990, p. 138), as quais configuram uma mentalidade protestante “isolacionista e anticultural, antipolítica e passiva sob o ponto de vista religioso” (MENDONÇA, 1990, p. 143).

Evangelicalismo Fundamentalista

Para considerar criticamente estas abordagens, recorre-se aqui ao pensamento de um dos autores numa obra sobre a inserção do protestantismo no Brasil (MENDONÇA, 1984, 267). A obra traça um panorama geral deste processo que se deu da metade do século XIX até o final. Ela traz elementos fundamentais para considerar a realidade protestante, com os seus desdobramentos históricos e suas estratégias de inserção. 

Mendonça inicia estabelecendo três eixos sobre os quais a sua reflexão caminha. Primeiro considera que o momento histórico no qual se deu o processo de expansão e a devida inserção do protestantismo no Brasil foi o que podia ser e, por isso, propício para o fato. Segundo, constata que, estando o Brasil no contexto de colonização em andamento, com a devida contribuição do catolicismo romano, o espaço através do qual a mensagem evangélica protestante encontrou caminho foi entre as camadas populares pobres da zona rural, que não eram atingidas pelas expedições conversionistas católicas. E, por fim, a percepção de que o fenômeno do café se constituiu nas trilhas seguidas pelo movimento protestante do começo no Brasil, encontrando ali as brechas para o seu crescimento, junto aos trabalhadores “livres”.

Ele se baseia nos documentos existentes do protestantismo de missão que aqui chegou e se formou, assim como recorre à hinologia e prédicas dos pastores para discorrer sobre a teologia presente. Sua tese é de que, neste processo de inserção, foi se configurando uma estratégia baseada na polêmica com o catolicismo, num esforço conversionista e numa interpretação bíblica literal, espiritual e mística, a qual serviu como processo de aproximação das camadas populares com as letras, das quais elas se encontravam bem distante. 

Este autor, no decorrer da obra, vai apresentando as raízes históricas do protestantismo de missão e o período expansionista que se deu do Norte (EUA) para o Sul (Brasil), com forte acento sobre o pensamento de “destino manifesto”, numa perspectiva milenarista, considerando que todo o processo que se deu com o protestantismo e a sua contribuição na formação social norte americana pudesse ser transplantado para cá. Fortes dificuldades ocorreram neste processo, caracterizando o protestantismo como uma “nova religião” à qual as pessoas iam se convertendo, principalmente devido ao catolicismo ser considerado a religião oficial.

A categoria que é construída pelo autor e serve muito para uma leitura analítica da obra, assim como para uma possibilidade de abordagem das origens do protestantismo de missão no Brasil, é a de “sitiante”, que eram aquelas pessoas que se encontravam em meio às fazendas de café, não eram escravos e nem tinham boas condições econômicas, mas se relacionavam de forma muito livre com as questões materiais. Este sitiante encontrava-se aberto à mensagem apresentada, pois se posicionava na vida com forte caráter de transitoriedade, o que lhe permitia aceder com facilidade ao anúncio da salvação eterna. Isto ajudou a caracterizar missionariamente o protestantismo, devido à exigência de mobilidade frequente que lhe era imposta por este paradigma do sitiante.

É interessante perceber a maneira clara da abordagem e o esforço que os autores (Prócoro Velasques e Mendonça) fazem para conservar-se fiéis à sua tradição, traçando um panorama histórico sucinto e transparente, com as devidas críticas a todos os focos da análise. Talvez, a categoria de sitiante que, no nosso entendimento pode ser um paradigma de análise, pudesse ser explorada na direção de uma abordagem mais crítica sobre as relações, se houveram ou não, da “nova religião” com o Estado e as classes sociais privilegiadas positivamente (Weber).

Avivalismos na formação do protestantismo no Brasil

A formação do protestantismo no Brasil, com sua característica enfática de avivalista, retrata bem um fenômeno hodierno comum entre as comunidades de fé, que se poderia denominar de carismatismo, já que o acento forte é sobre os dons do Espírito e as efetivas emoções decorrentes da experiência com eles. Este fenômeno configura um recuo no que concerne ao espírito fundante das comunidades eclesiais de base, pois elas se constituíram em uma força histórica de evangelização, principalmente devido ao seu corte político-social, devido a uma mistura da fé com a vida, como princípio e como prática. 

O emocionalismo promovido pela “renovação carismática” se junta a um outro fenômeno sócio comunitário que é a fragilidade dos relacionamentos humanos, comum aos tempos hodiernos, que põe em xeque a questão da identidade e da comunidade. Os indivíduos encontram-se cada vez mais marcados por uma cultura de consumo que faz com que os desejos sejam vistos como necessidades e estas sejam suplantadas por aqueles. Nike não é apenas a marca de um tênis, mas é um estilo de vida que fomenta identidade e desperta nos usuários um sentimento de pertença a uma “comunidade” fashion e sem exigências que comprometam as suas individualidades.

Evidentemente que, numa linha de política de comunidades, o fundamentalismo cria algumas resistências no que concerne a relações que exijam dos indivíduos um comprometimento maior com um projeto que tenha como escopo fundamental o bem da coletividade. A centralidade do indivíduo como questão fundante causa impacto às ideias e projetos de corte político-comunitário. O que fazer diante de um discurso rígido, que não tem perspectiva dialógica e se impõe pela afirmação de doutrinas fundamentais em detrimento de outras? Como dialogar com um discurso unilateral e, de certa forma, rígido e excludente? É interessante o que Mendonça aduz em sua crítica ao fundamentalismo:

...resta apenas apontar o devastador efeito do fundamentalismo sobre a fé cristã, no que se refere à vida no mundo e à indigência teológica a que ela submete a Igreja. A incessante preocupação com o ajustamento da história às profecias bíblicas pode conduzir a interpretações errôneas. A datação da volta de Cristo regra geral produz dois efeitos negativos: se muito próxima, conduz à indiferença pela vida, além da frustração pela verificação da não-ocorrência; se muito distante, desanima (MENDONÇA, 1990, 144). 

Faz-se necessário perceber que o contexto eclesial hodierno devido a sua complexidade, não permite uma visão totalizante, assim como torna difícil uma leitura definitiva dos seus desdobramentos. A emoção não é uma dimensão da qual se possa prescindir na prática de evangelização, mas o emocionalismo traz dificuldades para uma vida efetivamente consciente, que seja expressão de uma boa combinação da fé com a vida. A tradição é um elemento importante para a história das igrejas, mas não parece ser significativo que ela se converta em imperativo absoluto e excludente diante das experiências concretas e de cada contexto histórico. Parece ser contraditório prescindir da necessária inventividade comum aos grupos e comunidades. 

Evangélicos após os anos 2000: teologia da prosperidade, política partidária e coach.

São pouco mais de duas décadas, embora demandem uma profunda complexidade. Se nos séculos XIX e XX, conforme supracitado, o fenômeno evangélico era praticamente apolítico, o contexto sociocultural e ideo-político brasileiro imbricam novas configurações, na qual a participação evangélica emerge com um engajamento que passa a ser observado por diferentes setores, como da ciência política à mídia televisiva.

Magali Cunha (2022, p.219), analisa alguns aspectos acerca desse fenômeno: 

  1. O fortalecimento do segmento pentecostal, seguido do aumento exponencial de igrejas autônomas que desencadeou o crescimento da população evangélica no país, bem como da queda no número de católicos;
  2. A participação cada vez maior de grupos evangélicos nos espaços midiáticos, sobretudo o Rádio e a TV, mas também as mídias sociais.
  3. O aumento do mercado da religião e do marketing religioso, que passa a ofertar bens, produtos e serviços, não apenas no segmento religioso, mas também de lazer e entretenimento;
  4. Crescente presença dos evangélicos na esfera política institucional, resultando na consolidação da bancada evangélica no Congresso Nacional, organizada como Frente Parlamentar Evangélica (FPE), e aumento dos esforços, por parte de algumas igrejas e suas lideranças, para uma maior participação nos poderes executivo, legislativo e judiciário;
  5. Surgimento de um engajamento político entre os evangélicos, para além da política institucional, envolvendo discussões e realização de campanhas relacionadas aos temas da agenda política, convocações para ações públicas e uma intensa presença nas mídias digitais.

A síntese que se nos é dada pela autora, aponta que o movimento evangélico reconfigurou sua participação social e tem andado desde então, envolvido nas questões políticas. Mas a pergunta que redunda é: quais questões? 

De semelhante modo, logo no início dos anos 2000, Paul Freston (2006, p. 29) identifica uma nova morfologia do discurso evangélico, que passa a querer moralizar a vida pública, reproduzindo o chavão de que são defensores da família. Freston, argumenta questionando o porquê não há então um envolvimento nos segmentos das políticas públicas e até mesmo sociais. Para ele, a participação evangélica na esfera política se restringe aos pedidos institucionais de suas próprias igrejas acerca de trâmites burocráticos.

Se o "voto de cabresto" é um termo na ciência política que se refere à prática de controle político por meio da coerção ou influência exercida por líderes locais sobre seus seguidores, geralmente utilizando recursos econômicos ou sociais, o "voto de cajado" se dá nas igrejas evangélicas, onde líderes religiosos exercem influência significativa sobre seus membros para direcionar suas escolhas políticas.

Nesse contexto, líderes eclesiásticos podem usar sua autoridade espiritual para influenciar as decisões políticas dos fiéis, moldando assim o comportamento eleitoral dentro da comunidade religiosa. Essa prática pode impactar a autonomia política dos indivíduos, subordinando suas escolhas aos interesses e orientações dos líderes religiosos.

Do Valle (2023) identifica que desde a constituinte, lideranças evangélicas provenientes das denominações pentecostais e neopentecostais articulam-se no campo político e concentram suas respectivas igrejas nessa agenda. Acrescenta ainda que esse engajamento emerge em contraposição aos movimentos sociais dos anos 1980. Em sendo um momento de efervescência dos movimentos sociais nos processos de redemocratização no contexto do regime militar, grupos evangélicos compreendem que tal como estes setores e segmentos políticos estão em processo de organização enquanto sociedade civil, é mister que o corpus evangélico deva reagir às propostas e reivindicações desses grupos. 

Na pesquisa Religiosos e conservadores: o pensamento político da bancada evangélica na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), Melo Junior (2021) através da análise de mais de 800 atas das reuniões da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) e da investigação das transcrições dos discursos dos representantes da bancada evangélica, fornece os elementos para compreender o pensamento político desse grupo durante esse período específico. 

A análise dos discursos dos constituintes ligados à bancada evangélica revela um pensamento político conservador, delineado por três pontos fundamentais. Primeiramente, destaca-se a ênfase no cristianismo como elemento constituinte da identidade nacional brasileira, defendendo-o como tradição religiosa intrínseca à cultura do país. 

Em seguida, observa-se uma associação entre a liberdade de crença e a liberdade de empreendimento, evidenciando uma visão que contrapõe a defesa da autonomia religiosa à intervenção estatal na oferta de direitos sociais, aspecto este também verificado por Freston (1993).  Por fim, Melo ressalta a defesa da família como pilar central da sociedade e da moral como elemento essencial, refletindo preocupações com ameaças percebidas à instituição familiar e à moralidade na sociedade. São essas concepções que moldam o posicionamento político e as demandas da bancada evangélica durante o processo constituinte.  

Contudo, a Teologia da Prosperidade (TP) não teve êxito somente no campo político que favoreceu o engajamento de seus líderes na política-partidária, mas mostrou-se eficaz no crescimento de igrejas e no enriquecimento de pastores. Esse modelo passou a neopentecostal, que, conforme Novaes (2021) - cresce simultaneamente tal como o modelo norte-americano - passam agora, as “neo”, Igreja do Verbo da Vida, Comunidade Rema, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Renascer em Cristo, a exercerem influência sobre as denominações do pentecostalismo clássico, como a Assembleia de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular, O Brasil para Cristo, entre outras. 

Quitério (2022) apresenta a tríade do neopentecostalismo, onde a mensagem sobre a saúde plena, a prosperidade material e financeira e o triunfo sobre o diabo e quaisquer adversidades são temáticas indissociáveis no discurso religioso da TP.

Não é possível afirmar que haja uma “eologia coaching”[1], mas é inegável a presença e projeção de “coaches evangélicos” nas mídias sociais. Trata-se de youtubers, pastores e até cantores gospel que possuem um discurso eclipsado entre um conteúdo ora motivacional, ora devocional sobre autoconhecimento, metas e superações. A título de exemplaridade, Tiago Brunet é um autor que se autodefine como "treinador de líderes", "mentor de grandes personalidades" e "especialista em pessoas", oferecendo seu próprio método de treinamento por meio de cursos e palestras voltados para liderança e desenvolvimento pessoal.

Brunet se destaca como um profissional fora do padrão no campo do coaching, uma vez que sua abordagem de treinamento é uma simbiose de métodos e técnicas de desenvolvimento pessoal, conceitos da psicologia positiva e uma hermenêutica da Teologia da Prosperidade. Com uma base de seguidores que ultrapassa os 6,3 milhões, Tiago Brunet representa uma figura influente no contexto evangélico, destacando-se por abordar esses temas numa dinâmica de bem-estar pessoal e autoajuda.

De semelhante modo, o youtuber Deive Leonardo, que conta com uma base de seguidores com 14,7 milhões em sua plataforma de mídia social, não se autodenomina como treinador, apresentando-se exclusivamente como pregador religioso, apesar de a análise de seu conteúdo a situar no mesmo grupo que Tiago. Deive realiza pregações sobre temas como ansiedade, controle emocional e processos de tomada de decisão. Em seu vídeo de introdução ao canal, ele discorre sobre "abraçar cada etapa" e "fomentar uma mentalidade de crescimento", destacando a importância de "aceitar falhas como parte do percurso" e "praticar o autoconhecimento".

Embora a mensagem motivacional e sentimentalista não seja incomum no contexto religioso, Spyer (2018, p.58), observa um aprimoramento e uma ênfase quando o assunto aborda o tema da superação.

Ferreira (2022, p. 193) percebe à luz dos estudos da comunicação que o processo de midiatização da religião também passa e é importante acrescentar no debate, o fenômeno do pentecostalismo católico, que é midiático, de onde a Renovação Carismática emerge e está inserida.

O tácito influxo dessas teologias e tendências comprometem os aspectos comunitários e fraternos da Igreja, quando de alguma forma apontam para uma individualização da espiritualidade, que, ausente de uma eclesiologia delineada e de uma doutrina social, reduz a igreja a um espaço de discursos pseudo-terapêuticos, legalista e moralizante. Por vezes, institucionalizado e instrumentalizado para fins políticos, ou ainda, personificado, centralizado em seus líderes, como é o caso de grandes celebridades da fé evangélica. 

O Pacto Educativo Global como proposta de uma fé cidadã

No dia 12 de setembro de 2019, o Papa Francisco apresentou um chamado ao diálogo sobre a maneira como estamos moldando o futuro do planeta e sobre a importância de investir nos potenciais de toda a pessoa humana, pois todas as transformações requerem um percurso educacional para promover o desenvolvimento de uma nova fraternidade global e uma sociedade mais acolhedora.

Com esse propósito, Francisco impulsionou a proposta de um “Pacto Educativo Global" para revigorar o comprometimento com as novas gerações, reacendendo o entusiasmo por uma educação mais justa e inclusiva, capaz de escutar e promover diálogos propositivos com o objetivo de "unir esforços em uma vasta coalizão educativa para formar indivíduos maduros, aptos a transcender a fragmentação e a discordância, e reconstruir a rede de relações para uma humanidade mais solidária".

Analisar os desdobramentos do protestantismo, do pentecostalismo e de suas novas configurações demanda entender o chão onde pisam. Trata-se de territórios que lidam com a vulnerabilidade ao passo que são lócus cheios de vida. Por mais que a teologia da prosperidade tente, os problemas, vulnerabilidades e rugosidades do território continuam lá. 

Um apontamento é que o protestantismo e o pentecostalismo em suas múltiplas expressões religiosas estão dissociados de elementos propositivos. Como afirma Freston (2006, 165), o envolvimento da igreja evangélica na política não debateu os problemas da questão social - como o fez a tradição católica com a Rerum Novarum, a Doutrina Social da Igreja, ou a calvinista holandesa com o Congresso Social, nem mesmo a produção do Pacto de Lausanne e o Movimento de Missão Integral. Não há um debate cidadão sobre a proteção social dos brasileiros porque o discurso evangélico contemporâneo vem sendo apenas reativo.

Isso se dá quando os mecanismos da democracia representativa são a única via de participação evangélica, preocupada com pautas endossadas por suas respectivas denominações, como se a fome, a violação de direitos, a ausência do Estado e todas as demais manifestações da questão social não fossem igualmente importantes.

Nessa ótica, o Pacto Educativo Global se apresenta enquanto um recurso sofisticado, numa perspectiva dialogal e fraternal, dentro de uma dimensão sócio-transformadora e teopolítica, que procura respostas para esse tipo de situação que afeta a conjuntura social brasileira. 

Na Mensagem para o Lançamento do Pacto Educativo, Francisco destaca a necessidade premente de estabelecer uma "comunidade educacional", na qual sejam empreendidos esforços para promover uma rede de relações humanas inclusivas e transparentes. Ademais, ressalta que tal empreendimento não será viável sem que todos manifestem uma coragem tripla: em primeiro lugar, a centralidade no humano; em segundo lugar, a perspectiva de se investir as melhores energias de forma criativa e responsável; e em terceiro lugar, a determinação de educar indivíduos dispostos a servir à comunidade.

Detalhando o primeiro aspecto, acerca da centralidade humana, Papa Francisco, no discurso de lançamento do Pacto Educativo Global expressa a extrema importância de “infundir alma nos processos educacionais”, sejam estes formais ou informais. Com isso, ressalta que o planeta está profundamente trançado, de modo que partindo de uma antropologia robusta, deve-se buscar novas abordagens para entender as esferas da economia, da política, com o objetivo de um crescimento e progresso que considere sobretudo a perspectiva de ecologia integral, realçando o valor de cada ser, a comunidade humana e o ambiente, propondo assim um modo de vida que vai na contracorrente da cultura do consumismo e do descarte.

Sob essa abordagem, o Pacto Educativo Global promove numa das dimensões-chave a "mística" de viver juntos, que remete à construção de uma comunidade educativa baseada na solidariedade, na compaixão e na busca pelo bem comum.

Este conceito ecoa os princípios de fraternidade e paz, centrais nas encíclicas Laudato Si e Fratelli Tutti, que enfatizam a importância da cooperação entre os povos e o cuidado com a criação como expressões concretas do amor ao próximo e da responsabilidade ambiental. Ao colocar a pessoa no centro, o pacto destaca a importância de priorizar o desenvolvimento integral de cada indivíduo, reconhecendo sua dignidade intrínseca e valorizando suas potencialidades. Esse compromisso enfatiza a interconexão entre todas as formas de vida e a responsabilidade humana de proteger e promover a dignidade de cada ser humano.

Ouvir as gerações mais jovens representa um compromisso fundamental do Pacto Educativo Global, reconhecendo a importância de ouvir e repensar as perspectivas e necessidades das novas gerações. Esse compromisso ecoa os princípios de inclusão e participação presentes na Fratelli Tutti, que convoca as lideranças religiosas e políticas a envolverem os jovens nas decisões que afetam seu futuro e a promoverem uma cultura de diálogo e colaboração intergeracional.

Promover a mulher é outro compromisso destacado pelo Pacto, legitimando o papel fundamental das mulheres na promoção da justiça, da paz e do desenvolvimento humano. Tal iniciativa está alinhada com a visão de igualdade e respeito mútuo apresentada na Fratelli Tutti, que enfatiza a importância de superar todas as formas de discriminação e injustiça de gênero.

Responsabilizar a família é um compromisso essencial do pacto, reconhecendo a centralidade da família na formação moral, espiritual e cultural das novas gerações. Esse compromisso está em consonância com os princípios de solidariedade e subsidiariedade presentes na Doutrina Social da Igreja, que destaca a importância de apoiar e fortalecer as famílias como células básicas da sociedade.

Importante mencionar que responsabilizar não é culpabilizar. Típicas afirmações advindas do preconceito social, compreendem as famílias pobres por uma lente subalterna. Logo, se a família que não estiver no mercado de trabalho, se vive numa periferia ou se as crianças não estudam, não se questiona o porquê, buscando num viés propositivo auxiliá-las nem reivindicar do Estado que promova bens, direitos e serviços em prol dessas famílias, mas o que ocorre é a reprodução do imaginário popular que na pobreza - e consequentemente nos pobres - está o “mal social” (SARTI, 2010, 45).

Aliás, segundo o relatório da Pesquisa Nós e as desigualdades: percepções sobre as desigualdades no Brasil, realizada pela OXFAM e Datafolha, no início 2021, 12,8% da população do país, ou quase 27 milhões de pessoas, 3 sobreviviam com uma renda per capita menor que R$ 246 por mês, sendo este o limiar de pobreza conforme o critério-base do Banco Mundial — o que calcula o rendimento de aproximadamente R$ 8,20 por pessoa/dia.

Conclusão

É imprescindível fazer o debate entre protestantismos e pentecostalismos considerando a política pública de assistência social como ponto de partida. O objetivo é destacar sua relevância preventiva na proteção social dos brasileiros, conforme estabelecido na Constituição de 1988, que a posiciona como parte integrante da seguridade social. Além disso, as diretrizes delineadas na Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004) e em suas legislações complementares devem ser levadas em conta. Destaca-se que a família ocupa um papel central nessa dimensão preventiva, o que dialoga de maneira cabal a proposta do Pacto Educativo Global.

Se abrir à acolhida representa um compromisso de acolher e integrar as pessoas em situação de vulnerabilidade social entre outras formas de exclusão, reconhecendo a dignidade e o valor de cada pessoa, independentemente de sua origem, religião ou condição social. Compromisso que ecoa os princípios elementares de justiça e compaixão presentes na mensagem do Evangelho, que convoca os cristãos a acolherem os estrangeiros e quaisquer pessoas que apresentem necessidades, como a si mesmos.

Renovar a economia e a política é um compromisso de promover uma cultura de solidariedade e justiça social, que priorize o bem-estar comum e a proteção do meio ambiente. Essa iniciativa está alinhada com os princípios de desenvolvimento sustentável e responsabilidade social apresentados na Laudato Si, que busca sensibilizar os líderes políticos e econômicos a adotarem políticas e práticas que promovam o bem comum e o cuidado da casa comum.

Outro compromisso, já tão enfatizado no pontificado de Francisco é Cuidar da casa comum. Um compromisso de proteger e preservar o meio ambiente, reconhecendo a interdependência entre todas as formas de vida e a responsabilidade humana de cuidar da criação. Esse compromisso convoca aos princípios de uma ecologia integral, também presentes na Laudato Si, para que se assuma um posicionamento contundente e contínuo de cuidado e responsabilidade em relação à natureza e às futuras gerações.

Referências

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Notas

[1] Em sua obra, Costa (2024) aborda a "teologia coaching", como um desdobramento da teologia da prosperidade, destacando seu foco no sucesso individual e na autossuficiência. Diferente da teologia da prosperidade, que pressupõe uma relação de troca com Deus para obter prosperidade, a teologia coaching defende que o indivíduo já possui, em si mesmo, todos os recursos necessários para alcançar o êxito, dispensando qualquer intervenção divina.