Amazônia: do discurso tecnocrata da hipermodernidade aos apelos do Papa Francisco

Amazon: from the technocratic discourse of hypermodernity to the appeals of Pope Francis

Ney de Souza
Doutor em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana-Roma (PUG). Professor no Programa de Estudos Pós Graduados em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: nsouza@pucsp.br

Emerson  de Almeida Amaral
Bacharel em Teologia (ITESP). Contato: https://orcid.org/0009-0007-1454-1253

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Resumo: O presente artigo pretende refletir acerca da apatia da sociedade diante da importância da Amazônia para a humanidade, tendo como fundamento a análise crítica do sociólogo francês Gilles Lipovetsky acerca da era da hipermodernidade, numa proposta de diálogo com outras contribuições pontuais e, na riqueza do Sínodo da Amazônia, do Documento Querida Amazônia e da teologia do Papa Francisco, poderemos despertar a sensibilidade e a esperança por um encontrar novas respostas por meio de uma ética verde e o cuidado com a dignidade das pessoas, dos grupos e das minorias amazônicas.  

Palavras-chave: Francisco, Amazônia, hipermodernidade, sinodalidade, discurso digital

Abstract: This article intends to reflect on society's apathy in the face of the importance of the Amazon for humanity, based on the critical analysis of the French sociologist Gilles Lipovetsky about the era of hypermodernity, in a proposal for dialogue with other specific contributions and, in richness of the Amazon Synod, the Querida Amazônia Document and the theology of Pope Francis, we will be able to awaken sensitivity and hope for finding new answers through green ethics and care for the dignity of people, groups and Amazonian minorities.

Keywords: Francisco, Amazon, hypermodernity, synodality, digital discourse

Introdução

O presente artigo pretende refletir acerca da apatia da sociedade diante da importância da Amazônia para a humanidade, tendo como fundamento a análise crítica do sociólogo francês Gilles Lipovetsky acerca da era da hipermodernidade, numa proposta de diálogo com outras contribuições pontuais e, na riqueza do Sínodo da Amazônia, do Documento Querida Amazônia e da teologia do Papa Francisco, poderemos despertar a sensibilidade e a esperança por um encontrar novas respostas por meio de uma ética verde e o cuidado com a dignidade das pessoas, dos grupos e das minorias amazônicas.  

O tema do neoliberalismo, centrado no mercado e na privatização, vem impulsionando muitas reflexões dentro da teologia e outras ciências de profunda importância na compreensão dos atuais problemas. E, algo que não se pode negar nesta reflexão é que passamos por uma mudança de época e dos paradigmas da vida, um reconhecimento de que as coisas mudaram profundamente na sociedade (cf. CODINA, 2003).

Gilles Lipovetsky tem uma riqueza de obras e críticas que ajudam a compreender muito bem o processo desta sociedade em transformação. Para ele, o conceito de hipermodernidade é fator determinante pois define e delimita bem a era atual com as seguintes características: o excesso de consumo, o individualismo exacerbado, a busca pelo prazer imediato e a valorização da imagem e da estética. 

É um tempo de transformações na chamada “hiperglobalização”, e, desde a luta interminável da saúde pública frente a pandemia de Covid-19 até a fragilidade da segurança internacional, na guerra entre Rússia e Ucrânia, vive-se uma acentuada e trágica cultura da indiferença ao cuidado com o meio ambiente, sobretudo aquela que afeta a realidade da Amazônia. 

A destruição da Amazônia, com esta globalização, revela um rosto em que as pessoas são afastadas de suas terras e desfiliadas de seus hábitos, modificando costumes de gerações. O sistema mercadológico desconfigura arcabouços culturais pertencentes a povos seculares, principalmente os indígenas. Neste processo, aparece a força do processo de exploração da floresta e da biodiversidade, incentivada pelos poderes do governo e de interesse privado. O agronegócio e a comercialização de commodities (soja, cana-de-açúcar, madeira e gado) tornaram-se ameaça à conservação do meio ambiente. É dentro desse sistema que percebemos o quanto os poderes tecnocratas se contrapõe às reais necessidades de outro mundo possível na realidade amazônica. 

Ao menos em nível dos discursos da ONU, ONGs, grandes corporações há uma consciência de que o modo de conceber e usufruir as tecnologias hoje tem implicâncias sérias sobre o planeta e isso precisa ser revisto, corregido com boas práticas. Porém, em concreto, isso esbarra em interesses econômicos e corporativistas do próprio mercado, dos produtores das tecnologias e de grandes transnacionais que ainda estão pautadas no paradigma tecnocrático e no imperativo técnico e não estão dispostas à mudança de rota e inserir nas discussões e ações os vulneráveis de nosso tempo: o próprio planeta e os pobres, descartados das benesses do mundo tecnológico (GOMES, 2021, p. 194).

Iluminados pelas vozes proféticas que defendem um caminho oposto ao da hipermodernidade que desumaniza, Papa Francisco, em seus gestos e documentos, vem apresentando à Igreja e ao mundo uma nova ética pastoral que apela à uma conversão sincera ao cuidado com o bem comum (“casa comum”), uma ecologia integral. Ele mesmo sabe que “Igreja se fortalece como contraponto em face da globalização da indiferença e de sua lógica uniformizadora, promovida por muitos meios de comunicação e por um modelo econômico que não respeita os povos amazônicos nem seus territórios em sua diversidade” (SÍNODO PARA AMAZÔNIA, 2018, p. 38).

Desta forma, olhando para Amazônia, como poderíamos lutar contra o discurso contemporâneo que constrói uma cultura da indiferença, da insensibilidade social, do hiperconsumismo e de uma tecnologia individualizante? Que sinais de esperança a fé cristã poderia oferecer ao mundo cada vez mais violento, dividido e fragmentado? Será que poderíamos pensar num cristianismo globalizado comprometido com a saúde do planeta?

A ideologia do capitalismo de consumo constitui uma figura tardia dessa fé otimista na conquista da felicidade pela técnica e a profusão dos bens materiais. Simplesmente, a felicidade não é mais pensada como futuro maravilhoso, mas como presente radiante, gozo imediato sempre renovado, “utopia materializada” abundância. Não mais a promessa de uma salvação terrestre por vir, mas a felicidade para já, esvaziada da ideia de astucia da razão e da positividade do negativo. A plenitude exaltada pelos tempos consumistas não depende mais de um pensamento dialético: e eufórica e instantânea, exclusivamente positiva e lúdica. O discurso profético foi substituído pela sagração do presente hedonista veiculado pelas mitologias festivas dos objetos e dos lazeres (LIPOVETSKY, 2007, p. 208).

1. DISCURSO DA HIPERMODERNIDADE: MERCADO E INDIVÍDUO

O discurso da hipermodernidade apresenta uma antropologia neoliberal que se caracteriza pela centralidade da hiperindividualização, da culpabilização, da concorrência, da competição, do desempenho e da eficiência, revelando um ser humano incapaz de ver uma saída para um mundo alternativo ou possível. O homem, imerso no neoliberalismo, precisa de uma nova experiência de Deus vivo em nossas culturas, e uma nova teologia ecológica pode nos ajudar nisso. (NOVAES, 2021, p. 82). 

A hora é da hiperindividualização da utilização dos bens de consumo, das defasagens dos ritmos no interior da família, da dessincronização das atividades cotidianas e dos empregos do tempo. Em suas bandeiras, a sociedade de hiperconsumo pode escrever em letras triunfantes: “Cada um com seus objetos, cada um com seu uso, cada um com seu ritmo de vida” (LIPOVETSKY, 2007, p. 66).

Diante tantos elementos específicos da atual cultura da hipermodernidade, torna-se relevante perceber alguns discursos que determinam os sujeitos da sociedade neoliberal, entre eles, o discurso mercadológico e a individualização. 

Na lógica ou no discurso do mercado, o subjetivismo daquilo que se sente determinará as relações e os desejos, influindo na felicidade e na tristeza humana. Sendo que, nesta dinâmica, aparece o consumo digital ou a vida digital como papel relevante nos meios de produção e marketing do mercado de consumo globalizado. E, como ponto preocupante, as pessoas passam a um conformismo diante de opiniões ou convicções produzidas rasamente que se apresentam como valores absolutos, sendo incapazes de pensá-las ou questioná-las, ou seja, numa clara expressão de uma era da irreflexão.

À medida que aumenta o poder da técnica e do mercado, o domínio ético vê-se revestido de nova importância, redignificado, reativado, como o ilustram os debates referentes as biotecnologias, ao aborto e a eutanásia, ao casamento gay, a adoção de filhos pelos homossexuais, ao uso do véu islâmico, ao assédio moral. (LIPOVETSKY, 2007, p. 223). 

O discurso mercadológico permeia e determina todas as relações sociais, políticas, religiosas, internacionais, dentre muitas outras. Há uma nova força de uma cultura que transforma o próprio sujeito como produto de compra. Este discurso, para tanto, está atento aos desejos mais profundos de cada um de nós: imóveis, investimentos, férias, viagens, celulares, conforto e prazeres. Somos, assim, o sujeito e o objeto do próprio mercado. 

A modernização diminui o papel da cultura e das tradições populares em todo o seu conjunto de mercado simbólico, mas não os elimina. [...] O trabalho do artista e do artesão se aproximam quando cada um experimenta que a ordem simbólica específica em que se nutrem é redefinida pela lógica do mercado. (CANCLINI, 2010, p. 39).

Em desrespeito às necessidades dos mais frágeis da humanidade, percebe-se que na cultura mercadológica “surge um estilo elegante de olhar para o outro lado, que se pratica de maneira recorrente: sob as aparências do politicamente correto ou das modas ideológicas, olhamos para aquele que sofre, mas não o tocamos, transmitimo-lo ao vivo e até proferimos um discurso aparentemente tolerante e cheio de eufemismos” (FT 76). Ou seja, o ser humano se encontra numa construção de um tempo forte de cinismo e duma sociedade dos invisíveis.

A Amazônia, nesta lógica neoliberal, passa a ser manipulada como instrumento de interesses escusos de grandes empresas e países, uma vez que é fonte de lucro para o mercado nacional e internacional, tendo como discurso a linguagem do agronegócio que legitima o desmatamento e a exploração da terra e suas riquezas. O discurso verde ou ecologista se contrapõe ao discurso mercadológico. 

Na análise do discurso da individualização, desde 1980 até hoje, pode-se dizer que há um capitalismo do hiperconsumo que constrói o hiperindividualismo: pensa-se somente em indivíduos! Consequentemente, faz com que se diminua a influência de grupos para predominar os gostos pessoais e a influência do mercado. O senso comunitário ou social dá espaço para uma exaltação do EU e sua cultura hedonista, o desejo de soberania do pessoal em detrimento do coletivo. 

Partido de um olhar sobre o real, a reflexão de Lipovetsky sobre a hiperindividualização contemporânea ganha profunda relevância pois expressa a nova força dominante nas relações humanas em que o indivíduo preza pelo encontro da sua realização pessoal, sacramentalizando sua autonomia e sua identificação através do consumismo. 

Destruindo a influência organizadora das grandes instituições, provocando a derrocada das utopias da história e das morais sacrificiais, as sociedades de consumo impulsionaram uma individualização extrema dos modos de vida e das aspirações. Durante mais de dois séculos, o moderno processo de emancipação do indivíduo realizou se pelo direito e pela política, pela produção e pela ciência; a segunda metade do século XX prolongou essa dinâmica pelo consumo e os meios de comunicação de massa. Destruição das práticas tradicionais, alienação e descrença, vida à la carte, investimento excessivo nos gozos privados: organiza-se uma nova cultura, na qual o consumismo, os cultos do corpo e do psicologismo, as paixões por autonomia e realização individuais fizeram da relação consigo mesmo uma dimensão dotada de um relevo excepcional. Narciso é sua figura emblemática (LIPOVETSKY, 2007, p. 96).

2. DISCURSO DIGITAL E A CULTURA DO ÓDIO

O progresso e o avanço da tecnologia revolucionaram todos os aspectos da vida, desde a forma de comunicação até a forma como se enfrenta os desafios globais. A vida digital, na hipermodernidade, além de se caracterizar por favorecer uma conectividade global que derruba qualquer barreira ou fronteira mundial, pode regredir a humanidade através da invasão de privacidade, da insegurança digital, do isolamento social e dos impactos psicológicos do consumo digital. Inclusive, segundo o filósofo Byung Chul han, “a técnica digital não é uma técnica do amor ao próximo” (HAN, 2018, p. 27). 

Sabe-se que a “cibervida” se sustenta pelas decisões políticas e socioeconômicas tomadas por especialistas técnicos altamente treinados, ou seja, busca-se resultados mais eficazes e eficientes através da ciência e do uso da tecnologia. Se de um lado, por meio de técnicos especialistas, o discurso tecnocrata tende ser a resposta para problemas como a degradação ambiental, desemprego e problemas específicos, de outro, deixa-se de lado a realidade social e a ética humana. “Enquanto prossegue a dominação tecnocientífica do mundo, perpetua-se a impotência para conduzir a felicidade. Nosso poder sobre as coisas segue uma curva exponencial, o que exercemos sobre a alegria de existir não anda nem desanda” (LIPOVETSKY, 2007, p. 220). 

Através da internet, dos dispositivos digitais, redes sociais, jogos online, o mundo digital abrange atividades, relacionamentos e sentimentos, transformando o espaço virtual num complemento, concorrente ou substituto da vida real ou vida offline. É um caminho de oportunidades, conexões e acesso a informações e recursos, entretanto um ambiente permeado de narrativas destrutivas que geram consequências nocivas à sociedade, entre elas, destaca-se as desinformações (Fake News), que transforma opinião em verdade. Há uma tendência que provoca sutis recortes de opiniões e convicções pessoais, tornando-as verdades e sensacionalidades.  É a cultura das bolhas que se define como a afirmação do não questionamento dos costumes e valores, ou seja, é a solidificação das experiências vividas em detrimento da atitude reflexiva. Como sugere Gilles Lipovetsky, a hora é da hiperindividualização.

Para Byung Chul han, a sociedade vive embriagada pelas mídias e o “homo digitalis” (homem digital) é tudo, menos um ninguém (cf. HAN, 2018, p. 12). Ele afirma:

O mundo do homo digitalis aponta, além disso, para uma topologia completamente diferente. São estranhas a ele espacialidades como estádios ou anfiteatros, ou seja, lugares de reunião de massas. Elas pertencem à topologia das massas. O habitante digital da rede não se reúne. Falta a ele a interioridade da reunião que produziria um Nós. Eles formam um especial aglomerado sem reunião, uma massa sem interioridade, sem alma ou espírito. Eles são, antes de tudo, Hikikomori isolados para si, singularizados, que apenas se sentam diante da tela. Mídias eletrônicas como o rádio reúnem pessoas, enquanto as mídias digitais as singularizam. (HAN, 2018, p. 12).

É bom, dentro desta crítica à vida digital como desfavorecimento a humanização do indivíduo, citar um exemplo positivo, quando bem usada, servindo ao bem e à justiça social na guerra contra a corrupção e o sofrimento humano. 

A reportagem do dia 26 de julho de 2023, do site IHU UNISINOS, feita por Claudia Antunes, é exemplo de que podemos construir novos espaços de profetismo. Nesta matéria há uma reflexão sobre as ações humanas que camuflam os benefícios e a denúncia sobre empresas/grupos que exploram e enganam os habitantes da grande Amazônia. O tema abordado é o avanço acelerado do mercado do carbono em terras indígenas: 

Para uma parcela das organizações não governamentais, o mercado do carbono é mais uma brecha encontrada pelo capitalismo para incorporar novas áreas de exploração e lucrar com a devastação que ele próprio provocou. Acostumadas com todo tipo de assalto colonizador a suas terras e modos de vida, lideranças de povos originários e tradicionais temem ser enganadas e receber apenas migalhas. Ambientalistas expressam dúvidas sobre a integridade dos créditos – isto é, se eles correspondem a uma redução real da emissão de gases-estufa. Além disso, como o valor dos créditos é mais alto onde a floresta está mais ameaçada, há o temor de que possam ocorrer desmatamentos programados para aumentar o potencial dos lucros. (ANTUNES, 2023). 

Não se pode negar que o cuidado com o meio ambiente de forma integral e futurista está distante do olhar do empresariado e do libertarianismo econômico que rege as relações em tempos de hipermodernidade. Inclusive, a vida digital, o consumo digital, os dispositivos digitais, as mídias digitais que geram proximidade e comunicação, poderiam ser instrumentos de conscientização (como a reportagem acima descrita) e controle da devastação do meio ambiente, no entanto, dentro da cultura atual, o que se vê é a acentuação do individualismo, do preconceito e do fundamentalismo, fomentando divisões, guerras e ódio. Há uma carnificina virtual. Enquanto isso, a Mãe Terra continua em prantos!

Viu-se como o ser humano está se empobrecendo de humanidade. A fragmentação da cultura tecnológica tem atingido o seu ser, e leva, muitas vezes, à perda do sentido de vida. Em face desse momento, a Igreja é impelida a ser uma resposta aos anseios e à dor do indivíduo, perdido em seu egocentrismo reducionista (GRIPP, 2023, p. 109).

Outra característica do discurso tecnocrata na era do hipermodernismo é a ideologia do ódio que emana da exaltação do EGO narcisista, que vê o outro como ameaça ou incômodo. A violência não existe quando o outro não é desumanizado, mas na cultura do medo, o outro deve ser eliminado. Isso fica evidente no ambiente digital em que se predomina a normalização e o incentivo à intolerância, à hostilidade, à polarização, à invasão da privacidade e ao desrespeito sem limites.

A crise da identidade é uma das causas da cultura do ódio, pois provoca no ser humano um sentimento de insegurança e inconstância. O medo do desconhecido, a desigualdade social, a falta de educação e a manipulação política são alguns fatores que provocam a perpetuação da ideologia do ódio entre as pessoas. Não é possível viver a fraternidade num mundo que prega o ódio e o regresso da humanidade. 

Cada ato de violência cometido contra um ser humano é uma ferida na carne da humanidade; cada morte violenta diminui-nos como pessoas. A violência gera mais violência, o ódio gera mais ódio, e a morte mais morte. Temos de quebrar esta corrente que aparece como inelutável. (PAPA FRANCISCO, 2020, p. 118)

Um mundo marcado fortemente pela cultura do ódio revela a grande dificuldade em lidar com sua diversidade, seja raça, religião, etnia, gênero, orientação sexual, entre outros. Sendo que as expressões, opiniões e forma de se comunicar estão cada vez mais agressivas, desrespeitosas, tanto no espaço físico, como em manifestações públicas de ódio, quanto no espaço virtual, sobretudo no mundo das redes sociais e as comunicações on line.

Por fim, o que preocupa é o ambiente que a cultura do ódio vem favorecendo na sociedade hipermodernidade: uma certa normalização e disseminação do ódio e da violência como direito e valor. Há um encorajamento e um nutrir-se de sentimentos hostis e negativos em relação ao diferente e àquele que incomoda. O preconceito, a intolerância, a polarização são situações que potencializam esta cultura, gerando rejeição, injustiças e mortes.

Na Amazônia, a normalização da cultura do ódio já se tornou uma forma de resolver os impasses e defender os interesses dos mais fortes. Nela, mina-se a coesão social, cria-se divisões e perpetua-se ciclos de violência, assassinatos e conflitos socioambientais. 

O hedonismo contemporâneo se conjuga com um clima de ansiedade e violência no relacionamento social, dando origem a um verdadeiro punhal de decepção. Os indivíduos se deparam com imposições contraditórias, que se somam à histeria e à excitação provocadas pelo hiperconsumismo. (LIPOVETSKY, 2007, p. 9).

Diante de dos discursos digitais e da normalização do ódio, o ser humano vive um tempo sem limite e respeito, questiona-se qual seria a sua capacidade em superar a lógica deste mundo digital que camufla da realidade e o torna irreflexivo, sem interesse pela promoção de uma consciência que leve a sério o discernimento, a ética, a responsabilidade social e a inclusão das minorias. 

3. PAPA FRANCISCO

Papa Francisco se sustenta por três bases teológicas: a eclesiologia do Concílio Vaticano II (cf. FERREIRA, 2023, p. 97, 111-123), a cristologia do Evangelho (uma volta a Cristo) e a ética dos pobres (cf. MALVEZZI, 2023, p. 77-83). Observa-se vivamente a consciência do Papa Francisco diante da realidade do mundo de hoje e sua sabedoria em compreender a necessidade de superar uma fase de fechamento da Igreja. Ele esquentou os ideais e o espírito do Concílio Vaticano até então adormecidos com os dois últimos papados, sobretudo, no que diz respeito a descentralização da Igreja (cf. PASSOS, 2023, p. 44-45). Há, portanto, um grande esforço papal em se voltar à literalidade e ao espírito conciliar. 

Neste sentido, Papa Francisco torna-se o grande agente inovador e renovador na vida da Igreja, lançando um novo olhar sobre o mundo. As marcas de seu pontificado são tão inseridas na realidade dos novos tempos que, num acréscimo litúrgico, acrescenta três novas invocações à ladainha de Nossa Senhora: Mãe da Misericórdia, Mãe da Esperança e Conforto dos migrantes (“Mater Misericordiae; Mater Spei e Solacium migrantium”). São expressões que rementem às novas periferias existenciais. 

É interessante perceber que os discursos, cartas, documentos e textos do Sumo Pontífice são permeados de ousadia, entusiasmo e cuidado, coerentes com quem se reconhece como um grande irmão da humanidade. Francisco opta pela sutileza da ternura, sem com isso renunciar à sua potência da profecia. Quer apresentar o Reino de Deus através do serviço aos mais pobres de forma a inquietar a cada ser humano (cf. SAYAGO, 2019).

Pode-se afirmar que a luta de Francisco contradiscursos tecnocratas desta sociedade atual, que não respeita a criação, dar-se-á através da conversão acerca deste antropocentrismo que se faz refém do consumismo mercadológico, da vida digital, do hiperindividualismo e da violência socioambiental. É a busca de uma verdadeira conversão integral, como proposta de uma nova vida: mais simples e sóbria (cf. LS 218)

Uma cultura fundada no consumo que - considerando toda relação humana desde essa perspectiva - evidencia uma indiferença em relação ao outro, um não se sentir responsável pelo outro. Uma cultura que considera o homem como objeto de consumo, "descartável" quando seu uso não provê os benefícios esperados (ZACHARIAS; MILLEN, 2020, p. 34).

No combate à cultura da indiferença e da insensibilidade social, Papa Francisco convocou o Sínodo da Amazônia como um grande sinal de esperança para o futuro da humanidade e uma nova missão para a Igreja latino-americana. É interessante observar que ao falar do pecado ecológico, os pobres tomam a sua maior preocupação.

O nosso é o sonho duma Amazônia que integre e promova todos os seus habitantes, para poderem consolidar o bem viver. Mas impõe-se um grito profético e um árduo empenho em prol dos mais pobres. Pois, apesar do desastre ecológico que a Amazônia está a enfrentar, deve se notar que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres. Não serve um conservacionismo que se preocupa com o bioma, porém ignora os povos amazônicos (FRANCISCO, 2020, p. 13).

A Igreja de Francisco é a do diálogo, da escuta, do olhar e envolvimento com o outro, especialmente o pobre e sofredor. É a Igreja do Poliedro (pensamento de Romano Guardini) que abre a possibilidade de nova visão sobre a realidade, pois sempre há uma posição que não se consegue ver. A capacidade da miopia não pode fechar a força do Evangelho. Há sempre uma possibilidade além das escolhas feitas. É uma questão hermenêutica. Francisco rejeita a tentação de uma pretensão autoritária de uma única visão e resposta aos problemas éticos e pastorais do mundo. Há uma infinita possibilidade diante dos problemas. 

Neste sentido, os apelos de compaixão e misericórdia do Papa Francisco acerca da Amazônia tocam o coração de todos que amam o meio ambiente e não descartam as pessoas mais fragilizadas pelas condições menos favorecidas. E, em espírito sinodal, ele olha e ouve a todos a partir deste pulmão da humanidade, ou melhor, todos devem ser vistos e ouvidos! E expressa, com seu profetismo, o seu desejo: 

Os mais poderosos nunca ficam satisfeitos com os lucros que obtêm, e os recursos do poder econômico têm aumentado muito com o desenvolvimento científico e tecnológico. Por isso, todos deveríamos insistir na urgência de criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma tecno-econômico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça. Se a chamada por Deus exige uma escuta atenta do grito dos pobres e ao mesmo tempo da terra, para nós o grito da Amazônia ao Criador é semelhante ao grito do Povo de Deus no Egito (cf. Ex 3,7). É um grito desde a escravidão e o abandono, que clama por liberdade. (FRANCISCO, 2020, p. 38).

Enquanto Gilles Lipovetsky analisa a sociedade a partir da realidade do “homo consumericus”, que deseja soberania pessoal, Papa Francisco critica o consumismo que fecha o homem em si mesmo. Para este, o individualismo continua sendo ruim e o consumo não pode ser o centro do ser humano. A Igreja de Francisco é chamada a promover e a insistir na vida comunitária e fraterna.

Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo. (FRANCISCO, 2019, p. 38).

Conclusão

A globalização, por esse entendimento, tem sido agressiva e voraz na Amazônia, o que significa que é necessário se repensar estratégias de produção e comercialização de produtos, por meio da agricultura familiar, do comércio solidário e da economia justa, enfatizando o bem viver em detrimento ao modelo do consumo. É, portanto, possível favorecer um cristianismo que conjugue a vivência da fé com o cuidado da saúde do planeta. 

O desafio é assegurar uma globalização na solidariedade, uma globalização sem marginalização. Podem-se encontrar alternativas de pecuária e agricultura sustentáveis, de energias que não poluem, de fontes dignas de trabalho que não impliquem a destruição do meio ambiente e das culturas. Simultaneamente é preciso garantir, para os indígenas e os mais pobres, uma educação adequada que desenvolva as suas capacidades e empoderamento. É precisamente nestes objetivos que se mede a verdadeira solércia e a genuína capacidade dos políticos. Não servirá para devolver aos mortos a vida que lhes foi negada, nem para compensar os sobreviventes daqueles massacres, mas ao menos para hoje sermos todos realmente humanos. (PAPA FRANCISCO, 2020, p. 18)

Lipovetsky e Francisco têm a mesma posição quanto ao consumo, afirmando que ele não é essencial e deve ser retirado do centro da vida humana. e, neste sentido, talvez urja um profundo discernimento diante da conjugação entre indivíduo e comunidade. O “sentir-se bem” do indivíduo não compromete a vida da comunidade e nem da humanidade quando nasce da lógica de uma educação integral e altruísta. Sendo que o homem pode superar ideologias, o hábito e a obsessão pelo consumo numa vida saudável, como sobriedade e qualidade (cf. LS 205; 209; 222; 233). A educação e o discernimento são esperança do presente e futuro. 

O individualismo problemático não é sinônimo de retraimento completo em relação às necessidades alheias; os indivíduos continuam revelando particular apreço pelas noções de respeito, auxílio mútuo e solidariedade. Muitos espíritos bem-intencionados nutrem o ardente propósito de legar um planeta mais habitável às gerações vindouras. E, diante da corrupção, dos crimes e da violência perpetrada contra o semelhante, ainda se ergue um brado uníssono de indignação. Claro, o que presenciamos é, sobretudo, uma pluralidade de comportamentos éticos tipicamente "indolores” e circunstanciais, sem obrigações ou grandes sacrifícios (doações para o Teleton, onda de solidariedade em favor das vítimas do tsunami...). Em todo caso, os impulsos de compaixão de massa não deixam de atestar que o indivíduo fortemente autocentrado ainda possui uma sensibilidade altruísta capaz de se mobilizar diante do infortúnio de seu semelhante. O homem contemporâneo não é mais egoísta e “desumano” que anteriormente; naquela vida tradicional, a inveja carcomia facilmente os vínculos de amizade entre os seres, e o caráter sagrado do dever não pôde impedir o livre curso das Grandes Guerras mundiais nem os campos de extermínio. Hiperindividualismo quer dizer extinção completa dos valores e dos ideais de abnegação. Essa é apenas uma de suas vertentes, não a única. O individualismo não é, de nenhum modo, incompatível com senso de responsabilidade e exigências éticas. (LIPOVETSKY, 2007, p. 71)

A luta por uma Amazônia preservada e respeitada é um exemplo de que a sociedade deve combater discursos tecnocratas que constroem a cultura do ódio, envolvendo uma nova educação socioambiental, através de diálogos construtivos com os pobres e nativos. Além da promoção da igualdade de direitos e a luta com as desinformações.

Uma sociedade na era da hipermodernidade será mais inclusiva, tolerante e responsável quando construir novos e contínuos discursos que partam, por exemplo, da aplicação do pensamento de Francisco em sua Carta Encíclica Laudato Si’ que apresenta um caminho humanizado aos povos, desde a consciência profunda de cada ser humano que, motivados pelo bem comum, formam um mosaico de ações para que o planeta seja casa acolhedora para todos os seres vivos e local do bem-viver (cf. GOMES, 2021, p. 194). 

Estamos em uma encruzilhada histórica, em um momento de crise de paradigmas, de perplexidade, pois quebrou-se uma nossa visão do mundo e ainda não acaba de nascer a seguinte, apesar das vozes que indicam que “outro mundo é possível”. Muitos desesperam-se e agarram-se ao passado. Contudo, à luz da fé, trata-se de um tempo grávido de esperança e pode-se nele rastrear a força do Espírito. O momento atual pode ser um momento de graça, um verdadeiro kairós, que nos ajude a recuperar o melhor do antigo e do moderno e a abrir-nos ao pós-moderno. Como o pai de família da parábola, que tira o novo e o antigo de seu baú (Mt 13,52). Como o caminhante, que como Abraão avança pela fé, sem conhecer exatamente o futuro: “E partiu sem saber aonde ia” (Hb 11,8) (CODINA, 2003, p. 383).

Referências

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