Foto: Rita de Cassia Dias Miyagui
Da esquerda para a direita: Prof. Dr. Pe Boris Agustín Nef Ulloa, Diretor da Faculdade de Teologia; Cardeal José Tolentino de Mendonça, Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação; Grão-Chanceler Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer,Arcebispo Metropolitano de São Paulo; Profa. Dra.Maria Amalia Pie Abib Andery, Reitora da PUC-SP; Pe. Everton Fernandes Moraes, Diretor da Faculdade de Direito Canônico
Queridos irmãs e irmãos:
Quando olhamos com atenção para a decisão que Maria tomou de levantar-se e meter-se a caminho para alcançar Isabel apercebemo-nos que esta tem o seu quê de enigmático. A comprovar este caráter intrigante está, por exemplo, o facto de até Isabel se mostrar surpreendida quando a vê chegar: «A que devo eu que a mãe do meu Senhor me venha visitar?» (v.43). Mas também o leitor do Evangelho se pode perguntar porque é que Maria se levantou e partiu tão apressadamente. Que motivos a conduziram a esta ação?
Primeira: Será que Maria se sente de alguma maneira em perigo depois do que lhe havia sido revelado pelo Anjo e, com esta viagem, estará em busca de distanciamento ou à procura de um refúgio? Resposta: Ela tinha a seu lado José que a poderia proteger. Se fosse esse o caso ativaria certamente essa proteção.
Segunda hipótese: Será que ela foi informada que a sua parente Isabel não tinha mais ninguém que a pudesse auxiliar, naquela ocasião particularmente sensível para uma mulher? Resposta: Não é isso que sugere o relato do Evangelho de Lucas quando nos refere a presença, em torno a Isabel e Zacarias, de «vizinhos e parentes» que se alegraram com o nascimento de João Batista (v.58) e que poderiam lhe valer naquela situação.
Terceira hipótese: Será que o motivo da viagem de Maria foi ainda assim a oferta generosa dos seus préstimos de cuidado a Isabel no período em que esta estava para ser mãe? Resposta: Se esta razão utilitária tivesse sido a razão dominante, porque é que se demorou junto dela apenas uns três meses (v.56) e partiu de regresso a Nazaré antes do parto acontecer? Além disso, o Evangelho não relata nenhuma ação desse género, mas faz apenas memória das palavras que Maria e Isabel trocaram entre si.
Para adensar o mistério, Maria aparentemente parte sozinha para aquela povoação da Judeia quando a forma habitual de viajar no tempo era em grupo ou caravana. E Maria tem pela frente mais de 120 Kms de caminho, cerca de três ou quatro dias de viagem a pé! Uma coisa é certa, os elementos oferecidos pelo texto evangélico fazem-nos perceber que para Maria se tratava de uma decisão importante, que ela não quis adiar. Mas o que é que está verdadeiramente em jogo na sua decisão?
Recordemos que a frase que nos informa que «Maria se levantou e partiu apressadamente» (Lc 1:39) surge imediatamente a seguir à cena da Anunciação (Lc 1: 26-38), e que esta se conclui com o assentimento dado por Maria ao plano de Deus: «Eis a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a vossa palavra». Este sim livre e comprometido determina a partir de agora a sua existência. Tudo o que se sucede daqui para diante pede para ser lido à luz deste sim gravado como prioridade no coração de Maria.
Na verdade, quando Maria responde ao mensageiro divino dizendo «eis a serva do Senhor, cumpra-se em mim segundo a vossa palavra» (v.38) ela está a afirmar que a sua vida está colocada nas mãos de Deus e ao serviço de Deus. E esta sua resposta recorda-nos duas coisas: que a História da Salvação interpela de forma concreta a vida de cada membro do Povo de Deus e que a nossa adesão a essa História é dada no real da vida, implicando-nos aí, «e não numa ontologia abstrata» e impessoal.
Porque é que Maria se levanta e parte? A razão – temos de o reconhecer – não é apenas externa, mas interna. Deus entrou na sua vida. Maria é transformada pela visita de Deus. E a consciência do impacto do amor de Deus, experimentado numa forma vital, não a deixa mais parada, nem a autoriza a ser apenas espectadora do curso dos acontecimentos. O acolhimento do dom de Deus que lhe foi comunicado mexe com a sua vida, altera a sua rotina, sugere-lhe que vá além. A viagem «exprime a sua pronta obediência» a se responsabilizar com o acontecer da Palavra do Senhor.
Perguntemo-nos então: o que faz mover Maria? O que a leva a levantar-se e a partir apressadamente? A resposta é: Maria quer confirmar a experiência da sua fé; Maria tem fome e sede de ver com os seus olhos; quer tocar a condição tangível e histórica dessa verdade que lhe foi anunciada e que a coenvolve. Por isso, a pressa de Maria não deve ser entendida simplesmente em sentido físico: é dentro de si, no seu coração que Maria tem pressa, que Maria vibra na expectativa de Deus. A sua pressa é o vivo desejo de contemplar alguma coisa que ocupa agora o centro do seu coração. Maria quer ser testemunha. Ela tem a pretensão – que é, no fundo, aquela de todo o coração crente – de verificar que os sonhos de Deus não se dissipam no nada como bolas de sabão no tempo, mas transformam efetivamente a vida, rasgando-a a uma esperança maior do que ela própria. É assim que, pouco mais adiante no texto evangélico, vamos assistir à explosão de alegria e louvor de Maria, magnificando a Deus. Ela vê por si mesma que é verdade que Deus atua na nossa história, e diz: «A minha alma glorifica o Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador; porque pôs os olhos na humildade da sua serva» (Lc 1,46-48).
No episódio da Visitação, Maria recebe de Deus o sinal prometido, mas o sinal vai muito para lá da mera constatação de que Isabel está grávida. Não só a gravidez da parente de Maria é um facto, mas, à sua chegada, o próprio João Batista salta de alegria no seio mãe.
Um comentário muito interessante é aquele que Santo Ambrósio faz deste momento. Escreve ele: «Isabel escutou a voz em primeiro lugar, mas João foi o primeiro a experimentar a graça: ela escutou na ordem da natureza, este exultou pelo efeito do mistério; ela apercebeu-se da vinda de Maria, este da vinda do Senhor». É absolutamente verdade: não chegaremos ao âmago espiritual deste texto se não concordarmos que o fulcro de «toda a cena se funda na presença de Jesus em Maria». Não é por acaso que Isabel lhe chama «a mãe do meu Senhor». Porque no encontro de ambas, Jesus é o protagonista e elas oferecem a sua vida, até as suas entranhas, como mediação histórica desse protagonismo. Por isso Maria e Isabel surgem como intérpretes comprometidas da centralidade salvadora de Jesus que, recorde-se, não é uma coisa do passado, mas é a boa nova para hoje, para as mulheres e os homens deste nosso tempo. É a razão da nossa esperança.
Com Maria, aprendemos que se nos levantamos e partimos é porque primeiro Deus vem ao nosso encontro. Por muito que isso nos pareça surpreendente, Ele entra na nossa história. O contacto com o Seu amor incondicional, a Boa Nova desse amor é a experiência que deve preceder tudo. Saber-se aTomemos estas palavras a sério. Nós somos geradores do Verbo de Deus na história. E como disse uma grande mística do século XX, Etty Hillesum, somos chamados a tornarmo-nos “parteiros da vida” uns dos outros. A Igreja sinodal é isso que nos pede: mulheres e homens crentes, de todas as idades, profundamente irmanados na Eucaristia, comprometem-se em dar à luz Jesus, dar Jesus a cada bairro desta metrópole amada de São Paulo, e no bairro a cada rua, e na rua a cada casa, e na casa a cada coração. mado dá-nos a capacidade de arriscar fazer da vida uma teofania, uma manifestação de Deus.
Quando Maria se levanta e parte o que é que descobre? Descobre a beleza do protagonismo de Deus na história. Como lhe diz Isabel, ela é de facto feliz porque acreditou. Maria relê toda a sua história e a história do seu povo como uma história de salvação, onde é possível detetar a cada momento a fidelidade de Deus. E, por isso, Maria pode cantar no seu cântico de louvor a desfatalização da história que Deus opera através do Seu Filho. Temos todos, por isso, razões para crer. Temos razões para cantar.
Maria ajuda-nos, no fundo, a ver como em cada um de nós confluem todas as promessas de Deus, todos os sonhos, todas as misericórdias. E como somos herdeiros e transmissores da vida divina. Como é fundamental que, acolhendo o exemplo de Maria, nos comprometamos com o protagonismo de Jesus na história, que é a alavanca e o motor da esperança para a história.
Termino com palavras do comentário de Santo Ambrósio à cena do Evangelho que escutamos. Dizia ele: «Vede bem que Maria não duvidou... e por isso obteve o fruto da sua fé. Feliz és tu porque acreditaste. Mas felizes sereis também vós se tendo ouvido, acreditardes. Pois cada alma que acredita, concebe e gera o Verbo de Deus».
Que Maria nos ajude a ganhar velocidade missionária e a assumir aquilo que o Papa Francisco definiu desde o início do seu Pontificado, como «o sonho missionário de chegar a todos». Que assim seja!