Erica Martinelli Munhoz
Doutora em Teoria Literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem. Contato: ericammz@hotmail.com
Resumo: O presente trabalho retoma a dicotomia entre hermenêutica e crítica das ideologias apresentada por Paul Ricoeur, particularmente a avaliação da tradição por cada um desses gestos filosóficos, de modo a comparar tal dicotomia a uma oscilação observável na história da crítica literária feminista. O modo como a tradição se apresenta para a crítica feminista, primeiramente enquanto força opressiva a ser combatida, em seguida como busca positiva de um passado (na reconfiguração de uma female tradition [Showalter, 1977]), e por fim novamente como problemática a ser criticada, aponta para a oscilação entre o gesto crítico e o impulso hermenêutico intrínsecos a um mesmo campo de estudos. A crítica literária feminista poderia, dessa forma, ser reconhecida enquanto um campo de vocação dupla e dinâmica, servindo de exemplo para a necessária ultrapassagem do impasse entre valorização e crítica da tradição literária no ensino e pesquisa de literatura hoje. Diante das fundamentais críticas ao cânone nos estudos literários, a hermenêutica crítica de Paul Ricoeur pode oferecer pistas para a revalorização da tradição em tais discussões.
Palavras-chave: Literatura; crítica literária feminista; hermenêutica crítica; tradição; Paul Ricoeur
Abstract:This essay reviews the dichotomy between hermeneutics and the critique of ideologies as put forth by Paul Ricoeur, concerning the ways each of these philosophical gestures view the concept of tradition, in order to compare this dichotomy to oscillations observed throughout the history of feminist literary criticism. The way tradition is read by feminist criticism first as an oppressive force to be opposed, secondly as a positive search for the past (in the reconfiguration of a particularly female tradition [Showalter, 1977]), and lastly as a problem to be criticized once again, points to a fluctuation between the critical gesture and the hermeneutic impulse, contained in the same field of studies. Feminist literary criticism may therefore be recognized as a twofold field with a dynamic vocation, and work as an example for the necessary overcoming of the impasse between appreciation and criticism of the literary tradition in the research and education of literature today. In light of the all-important criticism of the canon in literary studies, Paul Ricoeur’s critical hermeneutics may offer a recuperation of tradition in such discussions.
Keywords: Literature, feminist literary criticism, hermeneutics, critique of ideologies, Paul Ricoeur
As contribuições da filosofia de Paul Ricoeur aos estudos literários são bastante conhecidas, não apenas a partir de seus trabalhos que se dedicam mais diretamente à literatura, como em Tempo e Narrativa, mas também da articulação de diversos de seus conceitos, aplicáveis ao pensamento a respeito da literatura ainda hoje. Como aponta a professora Maria Avelina Cecilia Lafuente (1998, p. 219), a filosofia de Ricoeur destaca o “problema da interpretação dos signos culturais”, com objetivo de compreender “o modo de ser do homem enquanto ser que se expressa em seus signos (sejam estes mitos, obras literárias, históricas, etc.)”[2]. A discussão entre as teorias literárias e a filosofia ganha, ao adentrar as propostas de Ricoeur, grande densidade e produtividade, como bem demostraram as reflexões levantadas pelos professores Jean-Luc Amalric, Hélio Salles Gentil e Cristina Henrique da Costa na mesa redonda de título “Filosofia, teoria literária, literatura: a mediação impossível?”, à ocasião do I Congresso Internacional Rede Brasil Ricoeur. Desde o destaque à capacidade da literatura em apreender a condição humana em sua totalidade, ou ao caráter narrativo da construção do sujeito (inclusive do sujeito coletivo), presentes na fala do professor Gentil, até as articulações entre as teorias da imaginação e o pensamento sobre a literatura como redescrição do mundo real, propostas pelo professor Amalric, ou a importância da obra literária como mediadora na discussão a respeito da hermenêutica crítica, como destaca a professora Cristina Henrique da Costa, todas as discussões apontam para um campo ainda profícuo de diálogo.
A aproximação entre as teorias feministas e o pensamento do filósofo Paul Ricoeur, por sua vez, ainda que menos evidente a partir da sua própria produção, tem sido objeto de exploração inovadora, a exemplo da publicação da coleção Feminist Explorations of Paul Ricoeur’s Philosophy (2016). A proposta de tal estudo é destacar o potencial do pensamento ricoeuriano para as teorias feministas sem, contudo, deixar de investigar criticamente também seus limites quanto às questões de gênero, como afirmam as organizadoras Annemie Halsema e Fernanda Henriques na introdução do volume. As autoras reconhecem que, apesar das questões de gênero não terem sido diretamente abordadas por Ricoeur, como mostram os artigos ali reunidos, “não apenas faz sentido abordar seu pensamento filosófico a partir de um ponto de vista feminista, mas que algo filosoficamente novo resulta dessa exploração da sua forma de pensar.” (HALSEMA, HENRIQUES, 2016, p. 1, tradução nossa).
Repensando a ideia de universalismo a partir da filosofia de Ricoeur, no artigo “Transnational Feminist Solidarities and Cosmopolitanism: in Search of a New Concept of the Universal”, Damien Tissot almeja forjar um universalismo inclusivo e dinâmico, que possa contribuir com o pensamento feminista, e assim ultrapassar as características excludentes que tal conceito pode carregar, como apontado nas últimas décadas por correntes pós-modernas e pós-coloniais do pensamento feminista.
Da perspectiva especificamente literária, o diálogo entre Ricoeur e o pensamento feminista foi sugerido, por exemplo, no artigo “A hermenêutica crítica de Paul Ricoeur posta à prova da imaginação feminina”, da professora Cristina Henrique da Costa (2015), inspirando a presente investigação. Costa aponta a hermenêutica crítica de Ricoeur como potencial aliada da literatura escrita por mulheres na sua dupla tarefa de diálogo crítico com a tradição, de um lado, e libertação do “fado das teorias invasivas” (DA COSTA, 2015, p. 396), de outro. Na esteira dessa tarefa de diálogo já avançada, o presente trabalho propõe uma revisão da seção “Hermenêutica e crítica das ideologias” do livro Do texto à ação, com o objetivo de compreender a hermenêutica crítica de Paul Ricoeur enquanto ferramenta que poderá dar subsídios à ultrapassagem dialética de conflitos ainda não resolvidos na história da crítica literária feminista, em particular o problema da “tradição de mulheres” na literatura.
As discussões em torno do ensino e pesquisa de literatura hoje, diante das fundamentais críticas ao cânone ocidental elaboradas nas últimas décadas, muitas vezes encontram-se no impasse entre recuperação da tradição literária como valor em si, e o questionamento da mesma por via dos estudos culturais, dentre eles, da crítica feminista. Trata-se de um amplo problema que atinge tanto o ensino como a pesquisa em literatura hoje e que demanda estratégias de ultrapassagem dessa dicotomia em diversos âmbitos. Este trabalho propõe certo aprofundamento na crítica literária feminista como exemplo cuja história espelha tal oscilação entre valorização e questionamento da tradição, na esperança de que tal exemplo sirva, também, como incentivo para repensar tal dicotomia de modo geral nas reflexões sobre literatura e estudos culturais hoje. A hermenêutica crítica de Paul Ricoeur pode, acreditamos, oferecer subsídios para a ultrapassagem produtiva de tal dicotomia.
Procura-se aqui desenvolver o seguinte paralelo: De um lado, a dicotomia entre avaliação positiva e negativa do conceito de tradição pela crítica literária feminista anglófona e, de outro, a dicotomia identificada por Ricoeur entre gesto hermenêutico e gesto crítico enquanto bases fundamentais do pensamento filosófico. Apresenta-se, a partir de tal paralelo, a hipótese de que a crítica literária feminista precisa reconhecer-se enquanto campo de estudos de vocação dupla para quem sabe, encontrar pontes, inspiradas por aquelas forjadas pelo filósofo, que possam conciliar tais gestos, à primeira vista antitéticos. Aposta-se, assim, que tal reflexão sirva de exemplo para outras estratégias de reflexão a respeito da literatura e da tradição hoje.
A obra Do texto à ação, originalmente publicada em 1986, reúne quinze anos de produção do filósofo francês na forma de artigos, cujos diversos temas encontram-se na ultrapassagem, segundo o autor, da necessidade de “defender a legitimidade de uma filosofia da interpretação” (RICOEUR, 1990, p. 17). Não sentindo mais a necessidade de “justificar”, portanto, “o direito à existência” da disciplina que pratica, Ricoeur afirma: “entrego-me a ela sem escrúpulo nem preocupação apologética” (RICOEUR, 1990, p. 17). O artigo “Hermenêutica e crítica das ideologias” foi originalmente publicado em 1973, e compõe a terceira e última seção da coletânea (“Ideologia, Utopia e Política”), a qual se apresenta como “exemplo concreto de integração da instância crítica no processo interpretativo” (RICOEUR, 1990, p. 19), intenção já sinalizada pelo filósofo anteriormente. O desenvolvimento do diálogo entre hermenêutica e crítica das ideologias faz parte dos esforços de integração, justamente, entre universo do texto e da interpretação, e o mundo da ação política, como o título do volume sugere.
A seguinte pergunta norteará a discussão de Ricoeur em torno da relação entre hermenêutica e crítica das ideologias: Qual será o “gesto filosófico de base”? (RICOEUR, 1990, p.329). Será aquele proposto pela consciência hermenêutica, a saber, “o reconhecimento das condições históricas às quais toda a compreensão humana é submetida sob o regime da finitude” (RICOEUR, 1990, p.329)? Ou será tal gesto “um gesto de desafio, um gesto crítico, indefinidamente retomado e indefinidamente voltado contra a distorção da comunicação humana por trás das quais se dissimula o exercício permanente da dominação e da violência?” (RICOEUR, 1990, p.329), como sugere a consciência crítica? Os protagonistas de tal dicotomia identificada por Ricoeur são, respectivamente, Hans-Georg Gadamer e Jurgen Habermas.
A ponte entre a discussão de Ricoeur e os debates da crítica feminista que aqui nos interessam se constitui a partir da centralidade que a ideia de “tradição” ganha na aparente alternativa entre o gesto hermenêutico e a consciência crítica para Ricoeur:
Tomarei como pedra de toque a apreciação da tradição, numa e noutra filosofia; à sua apreciação, positiva pela hermenêutica, responde a abordagem duvidosa da teoria das ideologias, que quer ver nela apenas a expressão, sistematicamente distorcida, da comunicação sob os efeitos de um exercício, não reconhecido, da violência. (RICOEUR, 1990, p. 330)
A identificação da tradição como conceito central em tal debate, que se sustenta em torno da apreciação positiva ou negativa da mesma, pode interessar não apenas às estudiosas da crítica literária feminista, justamente porque certa oscilação entre posições tomadas pelas diferentes gerações dessa crítica pode ser, igualmente, atribuída à sua apreciação dicotômica da ideia de tradição. Dessa forma, alguns dos debates centrais da crítica literária feminista a partir da década de sessenta podem ser melhor compreendidos se tomados como debates que também se apresentam, a princípio, “nos termos de uma alternativa: ou a consciência hermenêutica ou a consciência crítica” (RICOEUR, 1990, p. 329). A aposta de Ricoeur na ultrapassagem de tal alternativa poderá, quem sabe, inspirar também os esforços de alcançar a ultrapassagem da dicotomia entre tradição como força opressora a ser combatida, ou, alternativamente, positiva a ser recuperada não apenas nos estudos feministas, mas nas discussões literárias em diálogo com os estudos culturais de maneira geral, que se baseiam na necessária valorização da crítica das ideologias em literatura.
“Não será a própria alternativa que deve ser recusada?”, pergunta-se Ricoeur (1990, p. 329). Seria possível, nas palavras do filósofo, “uma hermenêutica que prestasse justiça à crítica das ideologias”, “que mostrasse a sua necessidade exatamente do fundo das suas exigências”? Em contrapartida, Ricoeur pergunta-se quanto à crítica das ideologias: “poderá ela ser despida de pressupostos hermenêuticos”? Antes de passar às reflexões do filósofo a respeito desse diálogo possível, faremos um recuo para compreender de que forma uma dicotomia semelhante se desenha na história da crítica literária feminista, especificamente na sua apreciação da tradição, lida primeiramente como tradição dominante, e interpretada como força opressiva a ser combatida, em seguida reconfigurada positivamente na proposta de uma “tradição de mulheres” e, por fim, também criticada na sua nova formulação.
Ainda que seja possível encontrar traços e aspectos de crítica literária em momentos ainda iniciais na história do pensamento feminista, como nos trabalhos de Mary Wollstonecraft, no século XVIII, estes configuram uma espécie de “pré-história” daquilo que seria posteriormente conhecido como crítica literária feminista, que se configura de fato enquanto campo de conhecimento apenas durante a década de 1960, particularmente no universo anglo-americano, como apontam Gill Plain e Susan Sellers em A history of feminist literary criticism (2007).
Composta por trabalhos de escopo “totalizante” (PLAIN; SELLERS, 2007), a primeira geração da crítica literária feminista proporciona importantes contribuições para a segunda onda feminista. Destacam-se, nessa geração, autoras como Betty Friedan (The Feminine Mystique, 1963), Eva Figes (Patriarcal Attitudes, 1970), Germaine Greer (The Female Eunuch, 1970), Shulamith Firestone (The Dialectic of Sex, 1970) e, finalmente, Kate Millett (Sexual Politics, 1970). Seus trabalhos têm em comum a denúncia dos pressupostos misóginos nos textos da tradição literária. Dessa forma, a ideia de tradição, central para a primeira geração da crítica feminista, é entendida, antes de mais nada, como uma estrutura opressiva a ser reconhecida, denunciada e diretamente combatida.
Nas obras do período verifica-se certa indistinção entre tradição literária e tradição cultural em sentido mais amplo, como é possível notar a partir da imagem da “mão pesada do passado”, presente na crítica ao livro Marriage and Family Life no texto de Betty Friedan, por exemplo, ou na sua menção à educação que “empresta uma nova autoridade aos ‘deveres’ que já trazem o peso da tradição, das convenções, dos preconceitos, da opinião popular – em vez de dar à mulher a capacidade do raciocínio crítico, a independência e a autonomia para contestar uma autoridade cega” (FRIEDAN, 1971, p. 160). Não se trata, por enquanto, de uma discussão a respeito da tradição propriamente literária, ainda que os textos literários tenham importante papel nas críticas do período. Em Patriarchal Attitudes, Eva Figes também se utiliza dos termos tradition e traditional para se referir à tradição cultural mais ampla, que está, para a autora, sob domínio de figuras masculinas, e insiste no aspecto inconsciente por meio do qual a tradição persiste presente nas nossas ações.
Para a primeira geração da crítica literária feminista, não há dúvida do caráter negativo da forma como certas ideias são transmitidas de geração em geração. A tradição é, para elas, um mal inconsciente a ser resistido. Firestone se aproxima sutilmente da crítica à tradição propriamente literária por meio de sua discussão a respeito da arte, na qual aponta a presença de certa “tradição masculina” (da qual a mulher estaria excluída): “Elas trabalhavam dentro dos limites daquilo que tinha sido definido como feminino pela tradição masculina: Elas viam as mulheres pelos olhos dos homens, pintaram uma ideia masculina de mulher.” (FIRESTONE, 1970, p. 159. Grifo e tradução nossos).
Sexual Politics (1970) é o mais ambicioso dentre os estudos “totalizantes” do período, e nele Millett amplia e aprofunda as leituras críticas de obras da tradição literária, discutindo a fundo seus pressupostos misóginos. A obra de Kate Millett é, dentro da sua geração, aquela que mais se aproxima do texto literário. Para Patricia Ticineto Clough, Millett estabelece de uma vez por todas a importância fundamental do texto literário para as discussões feministas, deixando claro que “não é apenas o social que está no coração do literário, mas o literário que está no coração do social” (CLOUGH, 2007, p. 477. tradução nossa). Millett terminará de consolidar, na última parte de sua obra, a ideia de que “o texto literário é mais uma inflexão de vários outros textos literários, filosóficos e de ciências sociais” (CLOUGH, 2007, p. 477), o que aponta para a formulação de um pensamento mais robusto a respeito da tradição literária que, amarrada à noção de tradição como um todo (mas não indistinta desta, como nas obras acima citadas), é influenciada por e exerce sua influência sobre a construção dos valores e pressupostos ideológicos de uma sociedade.
Parece evidente que o conceito de tradição tem, em todas as obras da primeira geração da crítica feminista, uma apreciação negativa, seguindo, por enquanto, a abordagem da crítica das ideologias, que vê nela certo “exercício não reconhecido da violência” (RICOEUR, 1990, p. 330). A geração seguinte, porém, denominada ginocrítica, ao dedicar-se quase exclusivamente à leitura de obras escrita por mulheres e à recuperação de autoras esquecidas pelo cânone literário, opera certo movimento hermenêutico de reconfiguração do conceito de tradição, e recupera, assim, a valorização positiva da tradição, na sua “versão feminina”: o conceito de “female literary tradition”[3] (SHOWALTER, 1977).
A ideia de female tradition é anunciada na obra de Ellen Moers (1976) como um tipo de “corrente subterrânea”, “separada mas independente da tradição convencional” (SHOWALTER, 1977, p. 10) e retomada por Elaine Showalter como uma subcultura a ser recuperada, na metáfora de um continente submerso a ser redescoberto: “(...) the lost continent of the female tradition has risen like Atlantis from the sea of English literature. It is now becoming clear that (...) women have had a literature of their own all along.” (SHOWALTER, 1977, p. 10)[4].
A retomada da positividade do passado como construção necessária para um pensamento feminista sobre a literatura passa, para as autoras dessa segunda geração, também pela recuperação do pensamento crítico de uma importante autora da literatura, relida agora também enquanto precursora da crítica feminista: Virginia Woolf. Showalter não é a única a fazer referência ao hoje célebre artigo de Woolf, A room of one’s own (1923), como observa-se na citação acima. O artigo de Woolf passa a ser lido como obra fundante de uma crítica literária feminista dedicada à obra de autoras mulheres. Tomando como inspiração a seguinte frase da autora – “se nós somos mulheres, pensamos no passado através de nossas mães” (WOOLF, 2021, p. 122) – as principais empreitadas do período desenvolvem a proposta do encontro de “mães literárias” esquecidas, e almejam a construção (ou a descoberta) de uma “tradição de mulheres”.
É a necessidade de reconhecer o papel da mulher como produtora de literatura na história, mais do que apenas como figura representada de forma estereotipada pelos autores masculinos, que leva pesquisadoras como Showalter (1977), Moers (1976), Patricia Meyer Spacks (1975), e Sandra Gilbert e Susan Gubar (1979) a recolocar a noção de tradição como valor positivo a ser apropriado pelo pensamento feminista sobre literatura.
Na virada da década de 1970 para os anos 1980, surgem importantes críticas às propostas da ginocrítica, apontando como a female tradition poderia reiterar características excludentes da própria tradição literária hegemônica. Autoras como Barbara Smith (“Toward a Black Feminist Criticism”, 1977) e Bell Hooks (“Ain’t I a woman”, 1981) e outras pesquisadoras que reúnem artigos na coleção “All the Women are White, All the Blacks are Men, But Some of Us Are Brave” (1982) apontam como a tradição de mulheres defendida pela ginocrítica é majoritariamente branca e anglo-americana.
Diversas pesquisadoras das gerações seguintes questionam também as próprias metáforas familiares utilizadas para pensar a tradição literária hegemônica, e reaproveitadas pela crítica feminista para pensar uma “tradição de mulheres”, construída pela ideia de uma “matrilinhagem”. Em “Happy Families? Feminist reproduction and matrilineal thought” (1992), Linda Williams argumenta que as metáforas familiars de paternidade ou mesmo de maternidade literária não servem a uma interpretação verdadeiramente feminista da literatura, e mantêm certo apego nocivo da crítica às estruturas psicanalíticas da família tradicional. Betsy Erkkila, por sua vez, dedica o livro The Wicked Sisters: Women Poets, Literary History & Discord (1992) à investigação de complexas relações conflituosas entre autoras, pondo em xeque a idealização da “sororidade” (versão feminina da irmandade) em literatura. A tradição volta, portanto, à sua apreciação negativa, no gesto de crítica que se volta internamente à própria crítica feminista da década de setenta.
A partir de meados da década de oitenta, a crítica literária feminista parece se dispersar. Enquanto a sua aproximação com teorias diversas permite, de um lado, maior aprofundamento em certas discussões, dissolve, por outro, a impressão de integração dos trabalhos e pensamentos de uma mesma geração. Outros tópicos parecem ocupar as discussões principais da crítica feminista, como o debate em torno do estatuto do termo “mulher autora”, por exemplo. O conceito de tradição parece então deixar de ser um tópico central nas discussões. No entanto, a ideia de um contínuo de obras de mulheres, e o diálogo intergeracional entre as obras literárias escritas por mulheres, são temas que se consolidam na crítica feminista e no senso comum desde então, e aparecem como um tipo de lugar-comum do tema até os dias atuais. Tal fenômeno mostra que, apesar das críticas relevantes à noção idealizada e redutora de “female tradition”, o problema da tradição não se resolve na crítica feminista. Após a alternância dialética entre o gesto crítico de questionamento do conceito, e o gesto hermenêutico de recuperação da tradição, entre os anos 1960 e 1980, a ideia de tradição segue à deriva nas discussões feministas sobre a literatura. A dicotomia não foi resolvida.
Como vimos, o paradoxo em torno da ideia de tradição e da (im)possibilidade de uma tradição de mulheres não se resolve na crítica literária feminista, e a dicotomia entre a recuperação de uma suposta tradição ou sua crítica se estabelece de forma paralela à dicotomia entre hermenêutica e crítica das ideologias, como discutida por Ricoeur. Retomemos, então, a discussão de Ricoeur para tentar entender se, ao encontrar nessa dicotomia pontos de contato, Ricoeur pode nos ajudar a transpor tais ideias para o pensamento feminista sobre literatura. E, portanto, de um ponto de vista mais amplo, para as discussões a respeito do ensino de literatura hoje e o aproveitamento dialético da tradição literária.
O gesto da hermenêutica é um gesto humilde de reconhecimento das condições históricas a que está submetida toda a compreensão humana sob o regime da finitude; o da crítica das ideologias é um gesto orgulhoso de desafio dirigido contra as distorções da comunicação humana. Pelo primeiro, insiro-me no devir histórico ao qual sei que pertenço, pelo segundo, oponho ao estado atual da comunicação humana falsificada a ideia de uma libertação da fala, de uma libertação essencialmente política, guiada pela ideia limite da comunicação sem limites nem entraves. (RICOEUR, 1990, p. 357)
Do lado da hermenêutica estão, para Ricoeur, portanto, os valores essenciais do reconhecimento e do pertencimento. Enquanto isso, do lado da crítica das ideologias, os valores do desafio e da libertação.
É preciso lembrar que o campo da crítica feminista se constitui, primeiramente, enquanto crítica das ideologias, assim como acontece com os chamados estudos culturais de maneira ampla. A crítica das ideologias é hoje valor inegociável no ensino e na pesquisa a respeito de literatura. Entretanto, além dos valores do desafio e da libertação, próprios da crítica das ideologias, tanto o reconhecimento quanto o pertencimento, associados à hermenêutica, são valores caros ao pensamento feminista. A construção de comunidade e coletividade, fundamental para as mais variadas vertentes feministas, depende, afinal, de tais valores.
A necessidade intrínseca do gesto hermenêutico no seio da crítica feminista já foi apontada também pela professora Cristina Henrique da Costa ao considerar que “a crítica feminista das ideologias literárias também opera por redução do campo literário, e neste sentido precisa do apoio de uma hermenêutica para ser capaz de juízo estético.” (DA COSTA, 2015, p. 5). Nesse sentido, a professora argumenta pela necessidade de ultrapassagem, justamente, da dicotomia entre estética e ética nas prioridades do campo de estudos literários. Em certa medida, é preciso reconhecer o gesto ginocrítico dos anos 1970 de buscar a recuperação de uma “tradição de mulheres” justamente como reconhecimento da necessidade hermenêutica dentro da crítica literária feminista, gesto de reconhecimento positivo do passado e da tradição. Entretanto, como os debates internos ao próprio campo já demonstraram, há diversos problemas na forma como tal proposta foi desenvolvida pela ginocrítica, de modo que o gesto hermenêutico de valorização da tradição não se concretiza plenamente.
Talvez seja preciso, da parte da crítica feminista, reconciliar-se com seu caráter duplo e, portanto, ambivalente, que carrega, em um mesmo campo de reflexão, dois gestos filosóficos distintos, que “falam de lugares diferentes”, como aponta Ricoeur. Enquanto a crítica feminista opera, fundamentalmente, como crítica das ideologias, ela também carrega, inescapavelmente, a necessidade e o impulso hermenêutico. Como equalizar, então, tal dicotomia, que não se quer dicotômica?
O meu propósito não é fundir a hermenêutica das tradições e a crítica das ideologias num super-sistema que as englobaria. Disse, desde o início, que cada uma fala de um lugar diferente. E, de fato, assim é. Mas pode pedir-se a cada uma que reconheça a outra, não como uma posição estranha e puramente adversa, mas como erguendo, à sua maneira, uma reivindicação legítima” (RICOEUR, 1990, p. 357)
Na esteira da proposta de Ricoeur, talvez seja do interesse da continuidade das reflexões feministas a respeito da literatura reconhecer o caráter duplo desse mesmo campo de estudos, e buscar, quem sabe, o encontro de tais gestos em busca do reconhecimento mútuo. Quanto a tal proposta de reconhecimento, o filósofo resume a problemática, para o ponto de vista de cada um desses dois lados, a partir de duas perguntas. É possível formular perguntas paralelas a respeito da relação da crítica feminista com a ideia de tradição de mulheres.
“Em que condição pode uma filosofia hermenêutica dar conta em si mesma da exigência de uma crítica das ideologias? A preço de que reformulação ou que refundição do seu programa?”, pergunta Ricoeur (1990, p. 330). Paralela a tal questão, podemos formular a seguinte pergunta: O conceito de “tradição de mulheres” pode dar conta, por si só, da exigência de crítica às suas próprias características de exclusão, e ao seu caráter idealizado e redutor? A segunda pergunta de Ricoeur formula-se do seguinte modo: “Em que condição é possível uma crítica das ideologias? Em última análise, poderá ela ser despida de pressupostos hermenêuticos?” (RICOEUR, 1990, p. 331). Quanto a esta segunda questão, reconheço o paralelo bastante direto em uma das principais perguntas da minha própria pesquisa, que cito aqui diretamente: “Será possível sustentar uma ideia de literatura através de gerações que negue por completo a noção de tradição?” (AUTOR, 2023, p. 13).
A “solução” proposta por Ricoeur envolve “reformular a questão de base da hermenêutica, de tal forma que uma certa dialética entre a experiência de pertença e a distanciação alienante se torne o próprio motor, a chave da vida interna da hermenêutica.” (RICOEUR, 1990, p. 360). Ou seja, trata-se de buscar no próprio gesto hermenêutico os pontos em que tal gesto se abre para acolher também o gesto crítico. Para ele, há quatro temas que representam o “complemento crítico à hermenêutica das tradições”: O primeiro é a “distanciação”, entendida pelo filósofo como “propriedade da interpretação”, “não como seu contrário, mas como sua condição” (RICOEUR, 1990, p. 360). A transmissão do discurso depende, portanto, da distanciação implicada, por exemplo, “na fixação pela escrita” (RICOEUR, 1990, p. 360). Ou seja, para que o gesto hermenêutico possa se dar, a tomada de distância (caracteristicamente crítica) é necessária, e tal gesto se verifica na própria constituição do texto escrito. A distanciação em relação ao texto “pertence à própria mediação” (RICOEUR, 1990, p. 361), de modo que é possível encontrar tal instância crítica “no seio da interpretação” (RICOEUR, 1990, p. 362).
O segundo tema apresentado pelo filósofo trata-se da ultrapassagem da dicotomia entre “explicar” e “compreender”, herdada de Dilthey. Para Ricoeur, se há uma hermenêutica, “e eu acredito nisso contra o estruturalismo que pretendia limitar-se à etapa explicativa”, afirma o filósofo, “ela não se constitui a contracorrente da explicação estrutural, mas através da sua mediação.” (RICOEUR, 1990, p. 362). Para compreender “a coisa do texto”, continua Ricoeur, é preciso observá-la naquilo “que o arranjo formal do texto mediatiza” (RICOEUR, 1990, p. 362). Em terceiro lugar, a abertura da hermenêutica dos textos à crítica das ideologias se dá, para o filósofo, no mesmo ponto em que se encontra “a ruptura mais decisiva com a hermenêutica romântica” (RICOEUR, 1990, p. 362), ou seja, na ideia de que não se deve procurar intencionalidade a ser revelada por trás do texto, mas a nova realidade que se abre diante do mesmo, em todo o seu potencial de crítica da nossa própria realidade:
Não há nenhuma intenção escondida a procurar por trás do texto, mas um mundo a expor diante dele. Ora, este poder do texto para abrir uma dimensão de realidade comporta, exatamente no seu princípio, um recurso contra toda a realidade dada e, por isso mesmo, a possibilidade de uma crítica do real. É no discurso poético que este poder subversivo é mais vivo. (RICOEUR, 1990, p. 363)
A última forma como a hermenêutica dos textos “designa o lugar vago da crítica das ideologias” diz respeito, segundo Ricoeur, ao “estatuto da subjetividade na interpretação” (RICOEUR, 1990, p. 364). Em vez de relacionar-se com “a subjetividade do autor”, trata-se da relação com o mundo do texto, deslocando também o problema da “subjetividade do leitor”: “compreender não é projetar-se no texto, mas expor-se ao texto” (RICOEUR, 1990, p. 364). A leitura, ao deslocar também a subjetividade do leitor, certa “metamorfose lúdica do ego.” (RICOEUR, 1990, p. 364), que representa o “o potencial mais fundamental”, como destaca o filósofo, “para uma crítica das ilusões do sujeito”: “A distanciação a si-mesmo exige que a apropriação das propostas de mundo oferecidas pelo texto passe pela desapropriação de si” (RICOEUR, 1990, p. 364). Ler significa, nesta medida, transformar-se a si mesmo criticamente.
Quanto aos aspectos pelos quais a própria crítica das ideologias revela sua relação intrínseca com o pensamento hermenêutico, nos limitaremos a destacar alguns pontos que consideramos relevantes ao debate aqui proposto. Como aponta Ricoeur, o interesse crítico na emancipação e na comunicação “sem entraves” depende, para sua consolidação, da constatação de uma experiência prévia de comunicação “por mais reduzida e mutilada”, que permita “desejá-la para todos os homens e para todos os níveis de institucionalização do elo social” (RICOEUR, 1999, p. 367). Para Ricoeur, é “tarefa da hermenêutica das tradições” relembrar à crítica das ideologias a importância da “reinterpretação criadora das heranças culturais” para que seja possível exercer a capacidade crítica de projeção da emancipação (RICOEUR, 1990, p. 367).
Ricoeur destaca, ainda, que, segundo lhe parece, “uma crítica nunca pode ser primeira nem última”, ou seja, ela precisa de um ponto de partida regulador: “só se criticam distorções em nome de um consensus que não podemos antecipar simplesmente no vazio, sobre a forma de uma ideia reguladora, se esta ideia reguladora não for exemplificada” (RICOEUR, 1990, p. 367). É justamente nesse ponto que encontramos, então, a importância da hermenêutica das tradições para o próprio processo de crítica das ideologias: no reconhecimento de um passado que permite a construção do futuro: “Quem não é capaz de reinterpretar o seu passado não pode ser capaz de projetar, concretamente, o seu interesse pela emancipação.” (RICOEUR, 1990, p. 367). Por fim, tal reconhecimento de passado estende-se também para a própria crítica, que não surge sempre como novidade, mas também como reiteração de uma tradição crítica: “Também a crítica é uma tradição” (RICOEUR, 1990, p. 370)
O paralelo apresentado aqui entre a discussão proposta por Ricoeur em nome de uma “hermenêutica crítica”, e a discussão (ainda não resolvida, no âmbito teórico) a respeito da (im)possível tradição literária de mulheres no campo da crítica literária feminista, não pode ser pensado como um paralelo absoluto ou perfeito. Ele aponta caminhos, mas evidencia também lacunas.
Quanto a tais lacunas, destaco apenas dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, a indistinção, no âmbito dos estudos literários, entre a noção de cânone e a noção de tradição. Tal fenômeno torna a questão ainda mais difícil, já que o cânone empresta seu caráter exclusivo e de exercício de poder à noção de tradição, impedindo uma concepção não opressiva da tradição nas discussões a respeito da literatura, especialmente no cenário de importantes críticas ao cânone. Em segundo lugar, destaca-se a ausência de um conceito feminista de tradição. Não tendo a filosofia feminista proposto um conceito propriamente feminista de tradição, não podemos contar com a reformulação especificamente voltada para as questões de gênero, nesse campo de estudos, e todas as propostas de recuperação de uma tradição literária de mulheres deverão se contentar com uma noção de tradição que lhes será, em certa medida, excludente.
A reformulação de tal conceito, é evidente, não poderia ser nem mesmo ensaiada no âmbito deste trabalho, mas vale apontar algumas reflexões de Ricoeur que poderiam, quem sabe, promover inspiração para tal discussão. A distinção, proposta por Ricoeur, entre tradicionalidade, “um estilo formal de encadeamento que garante a continuidade da recepção do passado” e tradição enquanto “instância de legitimidade” que designa “a pretensão à verdade” (RICOEUR, 2010, p. 387), poderia, quem sabe, informar uma nova leitura da recuperação de textos de mulheres do passado como um gesto voltado mais à tradicionalidade do que à tradição propriamente dita. Tal reflexão poderia, inclusive, estender-se a outros grupos excluídos na história literária. De outra perspectiva, a noção de tradições, distinta das duas últimas pelo filósofo como “heranças recebidas na ordem do simbólico”, “proposições de sentido” (RICOEUR, 2010, p. 387), poderia contribuir para a reformulação do conceito no âmbito das discussões feministas, na medida do seu destaque à multiplicidade e diversidade, aspectos fundamentais para a crítica feminista, que precisa sempre perguntar-se “quais mulheres?”. Ou seja, precisa demandar de si própria a consciência das linhas de força e poder que se chocam, das relações de exclusão e privilégio que atravessam a discussão generalizante a respeito “das” mulheres. Seria necessário, é claro, fazer dialogarem tais propostas com conceitos fundamentais da filosofia feminista, como a noção de “alteridade constitutiva”, e a histórica impossibilidade de formar grupo entre as mulheres (levantadas por Simone de Beauvoir), entre outras, para que se pudesse discutir conceitualmente a possibilidade de tradições, tradicionalidade ou uma tradição de um “outro”, como seria preciso para pensar uma “tradição de mulheres”. O problema é complexo e merece uma reflexão mais aprofundada, que excede o escopo do presente trabalho.
Por outro ponto de vista, parece-me que o primeiro ganho possível que os estudos feministas da literatura podem ter com o paralelo aqui traçado seja o reconhecimento de sua dupla vocação enquanto crítica das ideologias, de um lado e, de outro lado, seu também necessário e constitutivo impulso hermenêutico. Ricoeur afirma, ao final de seu ensaio a respeito da hermenêutica e da crítica das ideologias, que não deseja, ao aproximar e propor pontes entre ambas, abolir, de maneira nenhuma, a diferença entre elas: “Na medida em que uma e outra têm sempre necessidade de se regionalizarem para se certificarem do caráter concreto da sua reivindicação de universalidade, as suas diferenças têm de ser preservadas contra qualquer confusão.” (RICOEUR, 1990, p. 370). Na mesma medida, parece fundamental manter a distinção entre ambos os gestos no interior dos estudos literários feministas, reconhecendo, porém, sua vocação dupla e, apenas aparentemente, contraditória. Em um campo de estudos que costuma ser prenhe de conflitos na busca pela escolha de um lado que melhor represente sua vocação, o reconhecimento desse caráter duplo e, quem sabe, complementar, nos parece fundamental.
Segue a ele, porém, a demanda consequente de reconhecimento da capacidade de contribuição de tais polos distintos de pensamento para um diálogo produtivo e, em certa medida, coeso, no próprio campo, que sirva como exemplo para outras discussões no âmbito dos estudos literários hoje. Diversas reflexões de Ricoeur em torno da sua formulação de uma hermenêutica crítica, como o já mencionado potencial de transformação do próprio leitor pelo ato de distanciação crítica que reposiciona o sujeito, têm implicações valiosas para o ensino e pesquisa em literatura hoje, diante da demanda de conciliar o viés ético e estético do trabalho com o texto literário.
A dialética entre distanciamento e adesão, almejada por Ricoeur na sua noção de hermenêutica crítica, permite considerar uma dinâmica entre gestos distintos, que pode ser entendida como constitutiva de tal campo de estudos. Dessa forma, podemos revisitar a alternância entre modos de apreciar (negativa ou positivamente) a noção de tradição nas diferentes gerações da crítica feminista (bem como nos estudos culturais em geral), menos como uma dicotomia sem solução, e mais como um movimento dinâmico e produtor, por si próprio, de sentidos. Além da conscientização de que os estudos literários feministas se constituem de uma vocação dupla, talvez seja necessário compreender que também se trata de uma vocação para a mobilidade e a dinâmica (não à toa o pensamento feminista é descrito a partir da imagem de “ondas” feministas). Ademais, a lembrança de que “também a crítica é uma tradição”, a “tradição dos atos libertadores” (RICOEUR, 1990, p. 370), pode proporcionar à crítica literária feminista o reconhecimento da sua historicidade enquanto construção de uma tradição.
Por fim, é importante apontar como a perspectiva de Ricoeur na busca de uma hermenêutica crítica volta-se para o texto literário, em especial para o texto poético. É no texto literário que Ricoeur encontra a possibilidade de introduzir, na discussão hermenêutica das tradições, o tema crítico do “poder-ser”. Levando “até o fim” a relação entre ficção e redescrição (que está em Gadamer), Ricoeur reconhece um tema crítico contido nas análises heideggerianas sobre “compreender”: “Isso significa que o modo de ser do mundo aberto pelo texto é o modo do possível ou, melhor, do poder-ser; nisso reside a força subversiva do imaginário.” (RICOEUR, 1990, p. 363). No reconhecimento da capacidade transformadora do texto literário, Ricoeur encontra a necessidade hermenêutica de abertura à crítica das ideologias:
Compete, pois, a uma hermenêutica do poder-ser voltar-se para uma crítica das ideologias, da qual ela constitui uma possibilidade mais fundamental. A distanciação inscreve-se, ao mesmo tempo, no seio da referência: é do real cotidiano que o discurso poético se distancia, visando o ser como poder-ser. (RICOEUR, 1990, pp. 363-364)
É sabido que a valorização da imaginação poética na filosofia de Ricoeur tem grande influência de Gaston Bachelard, para quem é a imagem poética quem permite a renovação do passado cultural, apontando para um futuro, e possibilitando a transformação da realidade: “como é possível prever sem imaginar?”, pergunta-se o filósofo (BACHELARD, 2001, p. 16).
O potencial crítico na ideia de tradição literária, inclusive nas suas formas posteriores à crítica do cânone, como a hipótese de uma tradição de mulheres (entre outros grupos historicamente silenciados na literatura), talvez possa ser encontrado no seio da linguagem poética, pois é nela que reside o potencial transformador que distancia-se do real cotidiano, e cria condições para certa reconfiguração. Debruçar-se sobre a poesia pode enxertar, na discussão sobre a tradição, a potência crítica da qual fala Ricoeur:
Ora, este poder do texto para abrir uma dimensão de realidade comporta exatamente no seu princípio, um recurso contra toda a realidade dada e, por isso mesmo, a possibilidade de uma crítica do real. É no discurso poético que este poder subversivo é mais vivo. (RICOEUR, 1990, p. 363)
A inspiração bachelardiana que destaca o caráter transformador da imaginação poética representa também o esboço de um pensamento a respeito da relação entre imaginação e tradição, que reitera a necessidade dialética e dinâmica da relação com o passado: “É preciso sempre se ligar ao passado e sem cessar se desligar do passado. Para se ligar ao passado, é preciso amar a memória. Para se desligar do passado, é preciso imaginar muito. E são essas obrigações contrárias que colocam em plena vida a linguagem.” (BACHELARD, 1990, p. 45) Será o reconhecimento de tal movimento paradoxal enquanto propriedade fundante e fundamental da crítica literária feminista que nos poderá permitir assumir a sua vocação libertadora e, ao mesmo tempo, construtora de um espaço de pertencimento e reconhecimento, inspirando, quem sabe, certa renovação da relação com a noção de tradição nos estudos literários hoje.
BACHELARD, Gaston.: Fragmentos de Uma Poética do Fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BACHELARD, Gaston.: O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CLOUGH, Patricia Ticineto.: The Hybrid Criticism of Patriarchy: Rereading Kate Millett’s Sexual Politics. Sociological Quarterly. 35(3). Abril, 2005. pp. 473 – 486.
COSTA, Cristina H.: “A hermenêutica crítica de Paul Ricoeur posta à prova da imaginação feminina”. Remate de Males. 35.2. Jul/Dez 2015. file:///C:/Users/user/OneDrive/novos%20artigos/artigo%20Ricoeur/A_hermeneutica_critica_de_Paul_Ricoeur_posta_a_pro.pdf
ERKKILA, Betsy. The Wicked Sisters: Women Poets, Literary History and Discord. New York/ Oxford: Oxford University Press, 1992.
FIGES, Eva.: Patriarchal Attitudes: Women in Society.Nova York: Persea Books, 1970.
FIRESTONE, Shulamith.: The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution. Nova Yok: Morrow Editions, 1970.
FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Tradução de Áurea B. Weissenberg. Rio de Janeiro: Editora Vozes Limitadas. 1971.
HALSEMA, Annemie; HENRIQUES, Fernanda (eds).: Feminist explorations of Paul Ricoeur’s Philosophy. Lanham: Lexington Books, 2016.
LAFUENTE, Maria Avelina Cecilia.: “Introducción al pensamento de Paul Ricoeur. Themata Revista de Filosofia. N 19, 1998, pp. 219-223. https://idus.us.es/bitstream/handle/11441/27375/file_1.pdf?sequence=1&isAllowed=y
MILLETT, Kate.: Sexual Politics. Nova York: Doubleday, 1970.
PLAIN, Gill; SELLERS, Susan (Eds.).: A History of Feminist Literary Criticism. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
RICOEUR, Paul.: Do texto à ação. Ensaios de Hermenêutica II. Tradução de Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando. Porto: RÉS-Editora, 1990.
RICOEUR, Paul.: Tempo d Narrativa 3: O tempo narrado. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
SHOWALTER, Elaine.: A literature of their own: British women novelists from Bronte to Lessing. Princeton: Princeton University Press, 1977.
WILLIAMS, Linda R. “Happy Families? Feminist reproduction and matrilineal thought.” In.: ARMSTRONG, Isobel: New Feminist Discourses: Critical essays on theories and texts. London: Rotledge, 1992. pp. 48-64.
WOOLF, Virginia.: Um quarto só seu e três ensaios sobre as grandes escritoras inglesas: Jane Austen, Charlotte & Emily Bronte e George Eliot. Tradução Julia Romeu. São Sebastião: Bazar do Tempo, 2021.
------------
[1] Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no I Congresso Internacional Rede Brasil – Ricoeur: Identidade e Hermenêutica Crítica, em agosto de 2023, e representa o desdobramento de uma discussão proposta em minha tese de doutorado, defendida em setembro de 2023.
[2] Tradução nossa.
[3] É importante assinalar os problemas colocados pela tradução desse conceito. Optamos por manter o termo female literary tradition no original em inglês devido à dificuldade de tradução do termo female, nesse caso, já que “tradição feminina” tenderia a ressaltar o aspecto da “feminilidade”, pouco presente no termo original. Ao mesmo tempo, a tradução “tradição de mulheres”, pela qual optamos em outras passagens, parece reduzir certo tom essencialista presente na formulação original da ginocrítica, aspecto problematizado pelas gerações posteriores.
[4] “O continente perdido da tradição feminina se ergueu como Atlantis do mar da literatura inglesa. Agora se torna claro que (...) as mulheres tiveram uma literatura própria desde o princípio.” (SHOWALTER, 1977, p. 10. Tradução nossa.)