José María Castillo e o resgate das memórias perigosas

José María Castillo and the rescue of dangerous memories

Roberto Nentwig
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do rio de Janeiro (PUCRJ). Professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: beto.catequese@gmail.com


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Resumo: Este artigo explora o conceito de "memórias perigosas" na teologia de José María Castillo, inspirando-se em Johann Baptist Metz. Através da análise da obra de Castillo, o texto reflete sobre a importância da memória subversiva de Jesus Cristo e seu potencial libertador, desafiando estruturas de poder e conformismo religioso. O artigo também discute a crítica de Castillo às instituições e práticas religiosas que se distanciam do caráter humanizador do Evangelho. A partir dessa perspectiva, é proposto um resgate do compromisso com a justiça e a transformação social por meio de uma fé enraizada na realidade humana e nas aflições dos oprimidos.

Palavras-chave: Jose María Castillo; memórias perigosas; humanização de Deus; ressignificação da religião

Abstract: This article explores the concept of "dangerous memories" in the theology of José María Castillo, drawing inspiration from Johann Baptist Metz. Through the analysis of Castillo's work, the text reflects on the importance of the subversive memory of Jesus Christ and its liberating potential, challenging power structures and religious conformity. The article also discusses Castillo's critique of religious institutions and practices that stray from the humanizing character of the Gospel. From this perspective, it proposes a renewed commitment to justice and social transformation through a faith deeply rooted in human reality and the suffering of the oppressed.

Keywords: Jose María Castillo; Dangerous memories; Humanization of God; Re-signification of religion

Considerações iniciais

O termo perigo refere-se à possibilidade de danos ou perdas, algo que coloca em risco a integridade ou o bem-estar de uma pessoa ou objeto. Tal definição traz uma conotação negativa, ocultando, por outro lado, um potencial subversivo. O perigo não é somente um risco a ser evitado, mas também pode ser o ponto de partida para questionar e desafiar as estruturas já condicionantes. Frequentemente, quando algo é visto como perigoso, significa o desafio das regras e do que é previsto, proporcionando espaço para novos modos de pensar e agir. Afirmar que existem memórias subversivas, automaticamente estamos dando um valor de atualidade àquilo que é memorado.

É neste sentido, que podemos chamar José María Castillo de um teólogo perigoso. Alguém que nos traz memórias contundentes, confrontadoras. A divulgação ampla de sua obra tem causado diferentes posições e sentimentos, Mas, é inevitável uma posição e até mesmo um desconforto.

Este artigo trata exatamente de alguns destes questionamentos de posições deste autor espanhol, que nos deixou a pouco, sobretudo no âmbito da religião. A defesa de uma teologia que resgata a "memória perigosa" de Jesus, conceito originalmente proposto por Johann Baptist Metz, destaca o potencial libertador do Evangelho. Castillo estimula uma reflexão sobre uma fé cristã que não se restringe às formalidades religiosas, mas que está profundamente arraigada na realidade humana, nas aflições e injustiças. Ele sugere uma teologia que desafia a comodidade e incentiva os cristãos a viverem sua fé de forma crítica e comprometida, recuperando o caráter humanizador da mensagem de Jesus.

Memórias perigosas: do que se trata?

Castillo é conhecido como um autor crítico, alguém que coloca o dedo na ferida, não tem medo de falar o que realmente precisa ser dito, sem receios de confrontar hierarquias, poderes políticos e eclesiásticos. Provoca uma interrogação em seus interlocutores:  posso afirmar que vivo verdadeiramente a experiência cristã proposta por Jesus de Nazaré?

Um dos fundamentos importantes desta criticidade castilliana é o seu gosto por resgatar do Evangelho a memória perigosa de Jesus. O termo é de Johann Baptist Metz e se refere à pedagogia subversiva dos textos, próprias do Mestre da Galileia. Metz, que elaborou uma teologia política baseada em uma análise crítica aprofundada da tradição cristã, empregou esse conceito para questionar a forma como o cristianismo e a história foram domesticados e incorporados ao status quo, perdendo sua natureza subversiva e libertadora (cf. METZ, 2007, p. 47).

O conceito de memórias perigosas refere-se a registros que resistem ao esquecimento e que possuem um potencial perturbador para as estruturas de poder e domínio. São recordações que persistem em registrar as dores dos excluídos e oprimidos, desafiando uma ideologia predominante que procura apagar ou amenizar tais experiências. Segundo Metz, essas lembranças representam um perigo justamente por serem um instrumento de resistência contra o conformismo e a amnésia histórica.

A memória de Jesus Cristo, a memória mais perigosa, é o núcleo da teologia de Metz. A vida, a morte e a ressurreição de Jesus representam um acontecimento que, além de ser uma história de reconciliação, contém uma crítica aprofundada às estruturas de injustiça e violência. A paixão de Cristo é percebida como a gravação do padecimento dos inocentes ao longo da história, aqueles que foram negligenciados pelas promessas de avanço e pelas histórias triunfalistas constantes no discurso e práticas do capitalismo (cf. METZ, 2007, p. 53).

Metz interpreta a cruz como um lembrete constante de que a história é caracterizada por dor e insucesso, e não somente por êxitos e vitórias. No entanto, a natureza trágica da história cristã não conduz ao desespero, mas sim à esperança escatológica, uma esperança que surge precisamente da solidariedade com os que padecem e da garantia da justiça que vem de Deus. No entanto, essa esperança não pode ser separada da lembrança dolorosa dos sofrimentos passados, pois é a partir dessas lembranças que surgem a crítica às situações atuais (cf. METZ, 1980, p. 44).

O autor faz uma crítica feroz ao que ele chama de amnésia histórica ou o esquecimento institucionalizado, que caracteriza as sociedades modernas, especialmente aquelas impulsionadas por uma visão de progresso contínuo. Para ele, a modernidade tem um caráter profundamente seletivo em relação ao que escolhe lembrar e esquecer. Em nome do progresso, os sofrimentos passados, especialmente os dos oprimidos, são muitas vezes silenciados ou minimizados (cf. METZ, 2007, p. 61).

Nesta linha, a Igreja e a teologia têm um papel crucial, não apenas como uma questão de justiça para com as vítimas do passado, mas também como um imperativo para o presente e o futuro. A memória dos sofrimentos passados serve como uma advertência e um chamado à responsabilidade, impedindo que as gerações presentes repitam os mesmos erros e injustiças.

Na linha de Metz, Castillo concorda que a teologia jamais deve nos tranquilizar, mas sim nos despertar criticamente, movendo-nos a uma reflexão crítica, à ação. Para ele, este é o caminho para que nosso discurso não fique vazio, ou seja um motivo de conformismo diante das injustiças da história (cf. CASTILLO, 2015a, p.60-62). Ao resgatar o pensamento de Metz, Castillo fundamenta a necessidade de uma leitura profética de Jesus, de modo que a clássica expressão de Jesus - “odres novos para vinhos novos” – tenha o seu efeito: o Evangelho lido em seu caráter crítico, libertador e subversivo, sem que se tenha o receio de assustar e desinstalar os seus interlocutores, que devem ser avassalados por sua força, como nos diz Bonhoeffer (cf. CASTILLO, 2013, on-line).

Memórias perigosas a partir da humanização de Deus

Antes de se debruçar sobre alguns âmbitos significativos das memórias perigosas segundo Castillo, é fundamental uma palavra sobre o centro do seu pensamento – a humanização de Deus.

Castillo levanta uma questão relevante: ao discutirmos a união entre Deus e o ser humano, estamos abordando a humanização do divino, ou seria mais apropriada a abordagem da divinização do humano? Isso resulta em uma questão antropológica: o objetivo do cristianismo é a nossa divinização ou a nossa humanização? De acordo com o escritor, temos a tendência de separar essas duas realidades, mas cabe à Igreja unir o que é inerente ao divino e ao humano. Nesse caminho de segmentação das realidades, os fiéis tendem a enxergar em Jesus mais a sua divindade do que a sua humanidade, o que dá origem a um monofisismo embrionário. “A missão do cristianismo e da Igreja é tanto nos tornar divinos quanto humanos, simultaneamente” (CASTILLO, 2015a, p. 11). Portanto, a unidade entre Deus e o homem em Jesus é um elemento crucial para qualquer pesquisa séria sobre Jesus e sua relevância para a humanidade, como Castillo se propõe a fazer (cf. CASTILLO, 2015a, p. 49).

Ao destacar a união entre Deus e o homem, Castillo procura lembrar que Jesus, o homem (sem carecer de profunda humanidade), é o ponto inicial para a revelação de Deus. Ao invés de se buscar uma definição abstrata de Deus, deve-se focar na pessoa de Jesus: Ele é a revelação de Deus, e esta é a sua missão principal (cf. Jo 1,18). Deus é transcendental, infinitamente superior à nossa capacidade de entendê-lo. Portanto, na Cristologia, precisamos compreender o homem que se tornou Jesus para compreender a Deus. Jesus é a visibilidade de Deus (cf. 1Cor 1,15-20; 2Cor 4,4; Fl 2,4-11). Depois de ser revelado pelos profetas antigos, Deus atinge seu ápice quando se revela em Jesus (cf. Hb 1,1). Quando Felipe questiona Jesus: “Mostra-nos o Pai” (Jo 14,8), ele, na realidade, está questionando sobre Deus, já que Deus e Pai são termos intercambiáveis nos textos do Novo Testamento. A réplica de Jesus é clara: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Jesus já havia anunciado anteriormente que, apesar de Felipe estar com Ele há tanto tempo, ainda não havia percebido a manifestação de Deus em Jesus. A conclusão é evidente: o homem de Nazaré é quem nos apresenta Deus – esta frase poderia sintetizar a visão de Castillo sobre a humanização de Deus (cf. CASTILLO, 2015a, p. 23-62).

De acordo com Castillo, nossos conceitos sobre o Deus transcendente não estão livres de projeções e construções ideológicas que obscurecem sua verdadeira essência. Deus é comumente visto como algo que pode ser descrito e até manipulado. Contudo, Ele é o totalmente diferente, inalcançável em sua transcendência (cf. CASTILLO, 2014, p. 47). Para alcançar Deus, precisamos do imanente, o que sempre resulta em um acesso restrito e insatisfatório: toda posse ou certeza sobre quem Deus é será, sem dúvida, uma negação de Deus. Portanto, não devemos começar pela filosofia para elaborar a Cristologia, nem mesmo pela metafísica para compreender Jesus, pois tal abordagem considera Deus como um Absoluto, como um motor inerte. Conforme Castillo, ao longo da história, a Igreja se apropriou de conceitos filosóficos, afastando-se da revelação fundamental contida no Novo Testamento. Em Jesus, não encontramos uma lição brilhante sobre os conceitos de ousía, physis, prósopon, hipóstase, mas uma narrativa na qual aquele humilde galileu viveu de forma específica, interagindo com as pessoas de maneira a atrair uns e repelir outros, manifestando claramente suas preferências e valores. Jesus nos apresentou Deus dessa maneira, não examinando categorias ontológicas (cf. CASTILLO, 2015a, p. 558).

Nosso autor defende que esse Deus filosófico não se importa com os humanos, ao contrário do Deus revelado em Jesus Cristo. No Novo Testamento, Jesus é o portador da revelação divina. Não é relevante questionar se o judeu que viveu historicamente entre nós era Deus, mas se Jesus tem a capacidade de nos revelar algo sobre Deus que não sabíamos e que não conseguiríamos descobrir por nossa própria iniciativa. Certamente, os Evangelhos evidenciam uma nova representação de Deus acessível a nós, humanos: “o que mais caracteriza o Deus de Jesus é sua humanidade” (cf. CASTILLO, 2015a, p. 300). Enquanto algumas passagens do Antigo Testamento revelam Deus através do poder e da magnitude, Jesus apresenta Deus através da fraqueza. Portanto, o Deus de Jesus representa um escândalo para o mundo (cf. 1Cor 1,25). Se Deus se manifesta na fraqueza, cada indivíduo descobre Deus ao se solidarizar com a fraqueza. A estrada para alcançar Deus envolve a fusão com a fraqueza, a dor, o sofrimento e a pobreza. A humanização de Deus proposta por Castillo nos convida a um novo contato com o divino – a conexão com Deus reside no humano (cf. CASTILLO, 2006, p. 38-42).

A partir de tais considerações, é necessário se libertar de qualquer representação e permitir que Jesus desvende Deus, mesmo que seja uma revelação chocante. A solução é considerar a humanização de Deus: Deus, que é absoluto e infinito, tornou-se finito e sujeito a condições humanas. Se persistirmos na ideia de que conhecemos Deus e, a partir disso, buscarmos compreender quem é Jesus, nunca chegaremos a saber nem uma coisa nem outra. Contudo, se entendermos que Jesus é o único Salvador e, consequentemente, o único caminho para a salvação, não conseguiremos iniciar um diálogo sério com indivíduos que professam outras religiões. Com base nessas premissas, Castillo enfatiza que o conhecimento cristológico não é transmitido por meio de conceitos, mas sim por meio de discursos narrativo-práticos. Apesar de não haver a possibilidade de desvendar toda a história de Jesus, é possível, a partir da leitura dos evangelhos, chegar a um conhecimento histórico e narrativo significante e possível (CASTILLO, 2015, p. 59-60). Por fim, é preciso que se diga que, para nos salvar e nos aproximar dele, Deus precisou do sofrimento de Jesus. Caso contrário, não conseguiríamos dialogar seriamente com o Deus que deseja nossa felicidade e que quer que desfrutemos de tudo que é belo e agradável na vida (cf. CASTILLO, 2015a, p. 240).

Como a humanização de Deus se relaciona com as memórias perigosas?

A persistência na radicalidade da encarnação, no Deus que realmente assume uma fragilidade humana, leva-nos a evitar qualquer dualismo. A abordagem de Castillo sobre a humanização de Deus revela rapidamente que a maioria dos cristãos ainda não compreendeu o significado da declaração joanina: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14) e que, portanto, é larga a vivência de uma espécie de cristianismo herético.  Sem um Deus humanizado, a experiência cristã pode se corromper em alienação: a procura pelos enigmas eternos, olhares voltados para o céu e pouco para a existência humana, valorizando-se experiências emocionais em vez da luta pela vida humana — o que de fato era o mais relevante para Jesus.

Os Evangelhos apresentam uma teologia narrativa, uma teologia que surge da vida, de acontecimentos reais, formando assim uma fé inseparável de um modo de viver específico. Castillo sustenta que, mais relevante do que entender Jesus, é segui-lo. Os Evangelhos foram compostos como textos fundamentados na fé dos evangelistas. Os escritores não se dedicaram a contar uma história no sentido moderno, mas sim a transmitir uma mensagem de vida. Hoje, seria inviável recontar a história de Jesus de Nazaré. Assim, ao buscarmos o Jesus histórico, é necessário considerar a intenção e a teologia dos evangelistas. O propósito de ler o Evangelho não é simplesmente adquirir conhecimento, pois isso não geraria convicção alguma. A necessidade urgente de descobrir o humano, a realidade concreta e o significado do Evangelho surge como uma exigência de relevância, uma urgência para a evangelização (cf. CASTILLO, 2015a, p. 23-27).

Por fim, as memórias perigosas a respeito do Deus humanizado em Jesus nos conduzem a termos a mesa e principal preocupação de Jesus – o sofrimento humano. A aspiração principal de Jesus (e nisso ele é muito humano) é a felicidade das pessoas que vivem no mundo, embora isso não seja tão facilmente admitido pelos teólogos. Segundo Castillo, em síntese, o caminho mais coerente da fé é acolher a condição divina revelada na carne e tê-la como caminho de felicidade do ser humano.

Memórias perigosas e a ressignificação da religião

O resgate das memórias perigosas a partir da premissa de um Deus humanizado e histórico, levam Castillo à crítica da religião, pois o autor funda-se na linha profética de Jesus que denunciou as posturas farisaicas, de restrição à liberdade e de implemento da exclusão, no seu tempo. A  mensagem de Jesus vai além do moralismo, incentivando a pessoa a buscar a vontade divina de maneira livre, sem uma submissão predeterminada. O homem da galileia não enfatizava a frequência às práticas religiosas em suas pregações. O cumprimento escrupuloso das formalidades religiosas mantém o fiel na condição de escravo.  Portanto, Jesus se opõe a essa religião, aspirando que seus discípulos se sintam livres como filhos e filhas (cf. Gl 4,1-7).

As decorrências da prática de Jesus devem seguir seu curso em uma atitude crítica diante das práticas religiosas. Segundo nosso autor, em nome da defesa da religião, pode-se cair na idolatria quando o culto e os atos religiosos passam a ser consideradas as coisas mais importantes: o desejo da fidelidade pode ser deturpado, substituindo-se Deus pela religião. Por isso, afirmar o apreço pela religião sem adesão ao projeto de Jesus é um perigo latente. O risco é que Deus se torne facilmente um objeto de temor e submissão, distanciando-se do Deus do amor (cf. CASTILLO, 2015b, p. 59). É preciso, por outro lado, levar a sério a mensagem de libertação do Evangelho. É neste sentido, na luta contra uma religião sem liberdade, que Jesus foi rejeitado pelas autoridades clericais de seu tempo, sendo visto como um demônio (cf. Mt 12,24), uma ameaça (cf. Mt 12,24; Mc 26,65; Jo 11,48), um insulto (cf. Mt 26,65).

  A cristologia castilliana ainda destaca que Jesus não utiliza os lugares tradicionais para estabelecer sua relação com Deus, pois entende a religião a partir da convivência com as pessoas, principalmente com os que eram rejeitados da sociedade. Jesus foi um homem religioso, mas sua religião foi vívida como uma religião alternativa: observa que a prática da religião proposta era um modo de legitimar um modelo injusto. Por isso, anuncia um novo caminho salvífico. A salvação é realizada a cada dia nas ocupações da vida comum, não quando se retira da realidade refugiando-se no sagrado. A salvação acontece no profano, na secularidade da vida deste mundo, chamada de laicidade (cf. CASTILLO, 2015b, p. 41-42). Como decorrência desta memória perigosa, é preciso resgatar a vivência da experiência cristã na profanidade da história, sem recorrer em demasia aos lugares e atos de culto.

Memórias perigosas e a Igreja do futuro

As memórias perigosas resgatadas por Castillo o colocam na lista dos teólogos destrutivos. Ou seja, é extremamente crítico, sem poupar palavras de objeção contra as posturas da Igreja ao longo da história e da Igreja de nossos dias. Concordante e repetitivo quanto ao adágio que coloca o Evangelho antes da religião, será extremamente tímido a qualquer defesa da instituição eclesial. Afirmar categoricamente que Jesus não quis e nem fundou a Igreja, não foi o fundador de uma nova religião:  “Sejamos claros: Jesus não fundou a Igreja, Jesus não fundou uma religião. Antes, deslocou a religião, tirou-a do ‘sagrado’ e colocou-a ‘na vida’” (CASTILLO, 2014, on-line). Para ele, a Igreja por vezes se apresenta mais como uma instituição religiosa do que evangélica.

 Assim, Castillo critica o esfriamento do impulso iniciado pelo Concílio Vaticano II, refletido em questões que ficaram em aberto e não foram tratadas: o papel da mulher, a participação dos leigos em questões que são de exclusividade dos ministros ordenados, a sexualidade, a disciplina do matrimônio, a prática do sacramento da penitência, as relações com as outras igrejas cristãs, a relação entre a democracia e os valores. Ou seja: a Igreja Católica é muito deficitária em seu diálogo com o tempo (cf. CASTILLO, 2002, p. 100).

A leitura dos textos de Castillo pode nos transmitir a impressão de que a religião, com todas as suas mediações, a liturgia e a oração, está relativizada, mas é preciso salvá-lo neste sentido. O próprio autor faz ressalvas e defesas a respeito dessas questões. Ele afirma que a oração tem sentido, desde que não funcione como um anestésico da consciência ou como uma passividade característica de quem se considera apenas cumpridor do dever religioso. Da mesma forma, os sacramentos são fundamentais, mas não devem ser vistos como práticas intimistas, e sim como celebrações comunitárias que carregam exigências. O Batismo e a Eucaristia, em particular, exigem um modo de viver específico (cf. CASTILLO, 2012, 28-30). Castillo defende a necessidade do culto e dos sacramentos, retomando a natureza simbólica do ser humano, que necessita de ritos e do culto. Ele reforça a importância da religião, pois Jesus foi um homem profundamente religioso. No entanto, é preciso que não se esconda, Jesus enfrentou um conflito mortal contra uma religião que adotava uma postura desumanizadora (cf. CASTILLO, 1995, 151-164; CASTILLO, 2016, p. 109).

Alguns argumentam que Castillo “não é católico, mas tem razão” (BUSTAMENTE, 2011, on-line). O próprio autor responde a essa afirmação, dizendo que, se ser católico significa ter uma postura acrítica em relação à Igreja, ele certamente não se enquadra nessa definição. No entanto, ele defende sua identidade como cristão, crente e católico, afirmando que sua criticidade não é um ataque à sua tradição (cf. CASTILLO, 2012, on-line). Castillo reivindica liberdade para fazer teologia, recusando-se a simplesmente repetir o que já foi dito, como alertou Y. Congar sobre a postura de Pio XII. Ele observa que a Congregação para a Doutrina da Fé e a Conferência Episcopal Espanhola tentaram refutar os textos da Bíblia e da Patrística utilizando afirmações do Concílio de Trento e do Catecismo, o que parece contraditório. Sua busca por liberdade o levou a deixar a congregação dos jesuítas após 52 anos. Castillo afirma que não tomou essa decisão por revolta, mas em nome da liberdade.[1]

O pontificado de Francisco trouxe novo alento a Castillo. Sabe-se que ele recebeu carta, telefonema e encontrou o papa, acolhendo grande afeto e estima de sua parte. O próprio Castillo afirmou que “a leitura de seus textos lhe ajudaram muito”.[2] Nosso autor de memórias perigosas admite que Jorge Mario Bergoglio deu uma “nova orientação evangélica” à Igreja e ao papado: reformas da Cúria Romana com seus novos dicastérios e gabinetes, preocupação com os excluídos e sofredores, ausência de pompas e ostentação. Suas ações trazem a inevitável consequência da perseguição. Não é sem razão que o Papa tem enfrentado muitas resistências dos próprios “homens da Igreja” (cf. CASTILLO, 2024, p. 197-199).

Sobre o futuro da Igreja, Castillo diz claramente que se diz muito, ensina-se, mas vive-se pouco, preocupou-se mais, em sua história, com a ortodoxia do que com a ortopráxis. A Igreja, acostumada mais com a prática da religião do que com a prática do Evangelho, é latente de fidelidade. “A conclusão é que o futuro da Igreja não pode depender do futuro da religião. O futuro da Igreja é o futuro do Evangelho. Dito de outra maneira: do futuro do Evangelho de pende o futuro da Igreja” (CASTILLO, 2024, p. 201).

Ao fim, depois de uma jornada crítica baseada nas memórias perigosas do Evangelho, convém terminar com proposições. Na opinião de Castillo, como deveria ser a Igreja? O autor propõem três decisões indicativas (cf. CASTILLO, 2024, p. 202-206). : a) despojamento das suas riquezas; b) liberdade, sobretudo diante do prestígio, da ambição de ser o mais importante, sem se contaminar com os poderes políticos; c) igualdade, sobretudo entre leigos e clérigos, homens e mulheres. Diante dessas três proposições o teólogo das memórias perigosas deixa algumas pistas para prática eclesial (cf. CASTILLO, 2024, p. 207):

- Diminuir o tamanho das dioceses, para que os fiéis se conheçam mutuamente;

- Conceder o poder dos leigos escolherem seus próprios bispos;

- Atualizar a liturgia de acordo com a ceia de despedida do Senhor, fiel aos evangelhos;

- Centrar as reuniões semanais dos cristãos no estudo do Evangelho;                               

- Reforçar a comunhão eclesial (sinodal) entre dioceses e conferência episcopal nacional e, está o diálogo transparente com o bispo de Roma;

- Por fim, ter em conta que o Evangelho “não é um conjunto de ritos e cerimônias”, mas uma maneira de viver, na fidelidade do Deus humanizado. Somente a verdadeira consciência da humanização de Deus pode nos salvar de um mundo tão desumanizado.

Conclusão

A abordagem teológica de José María Castillo, centrada na humanização de Deus e no resgate das memórias perigosas de Jesus, revela uma visão crítica e profética da religião. Castillo desafia o conformismo religioso e propõe uma fé que se manifesta na vida cotidiana, ao invés de se refugiar em práticas meramente rituais ou alienadas da realidade social. Sua teologia sublinha a importância de uma religião comprometida com a justiça e com a humanidade, especialmente diante das questões e desafios não resolvidos pela Igreja. O granadino, dito perigoso, convida-nos a uma vivência cristã, enraizada na liberdade e na busca pela humanização, tanto de Deus quanto de nós mesmos.

Concluímos afirmando que é um teólogo de vanguarda. Suas proposições em relação à Igreja e à religião são fortes e provocam questionamentos. Não é de se admirar todas reações causadas pela sua leitura. Podemos condená-lo pela força das palavras, mas não podemos fazer ignorar o peso de seus argumentos. Ainda mais se apreciamos e reivindicamos a liberdade de pensar, o que parece ser o único caminho para que se proponha uma teologia significativa para nossos tempos.

Referências

BUSTAMANTE, L. F. P. José María Castillo no es católico pero tiene razón, 2011. Disponível em: <http://infocatolica.com/blog/coradcor.php /1107090735-jose-maria-castillo-no-es-cat>. Acesso em: 06 ago.2016.

CASTILLO, J. M.  A ética de Cristo. São Paulo: Loyola, 2010.

CASTILLO, J. M. Declínio da religião e futuro do Evangelho. Petrópolis: Vozes, 2024.

CASTILLO, J. M. Deus de nossa felicidade. São Paulo: Loyola, 2006.

CASTILLO, J. M. Espiritualidad para comunidades. Madrid: San Pablo, 1995.

CASTILLO, J. M. Espiritualidade para insatisfeitos. São Paulo: Paulus, 2012.

CASTILLO, J. M. Jesus: a humanização de Deus. Ensaio de cristologia. Petrópolis: Vozes, 2015a.

CASTILLO, J. M. La fe en tiempos de crisis. Barcelona: Claret, 2014.

CASTILLO, J. M. La humanidad de Jesús. Madrid: Trotta, 2016.

CASTILLO, J. M. La Iglesia que quiso el Concilio. Ciudad del Mexico: PPC, 2002.

CASTILLO, J. M. La laicidad del Evangelio. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2015b.

CASTILLO, J. M. Num papado para o povo, uma “Teologia popular”, 2013. Disponível em:< http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518833-num-papado-para-o-povo-uma-teologia-popular-artigo-de-jose-maria-castillo >. Acesso em: 23 mai. 2024.

CASTILLO, J. M. Jesus foi um leigo morto pelos sumos sacerdotes. Entrevista. [11 fev. 2012]. Instituto Humanitas Unisinos. Entrevista concedida a Matias Vallés. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/50655-jesus-foi-um-leigo-morto-pelos-sumos-sacerdotes-entrevista-com-jose-maria-castillo>. Acesso em: 06 ago. 2024.

CASTILLO, J. M “A Francisco interessa mais o Evangelho do que a religião, diz José María Castillo. Entrevista. [07 set. 2014]. Instituto Humanitas Unisinos. Entrevista concedida a Jesús Bastante. Disponível em: < http://www. ihu.unisinos.br/notícias/ 535022-a-francisco-interessa-mais-o-evangelho-do-que-a-religiao-diz-jose-maria-castillo>. Acesso em: 23 mai. 2024.

METZ, J. B. Faith in History and Society: Toward a Practical Fundamental Theology. New York: Crossroad, 1980.

METZ, J. B. Teologia do Mundo. São Paulo: Loyola, 2007.

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Notas

[1] Sobre este assunto, cf. IHU. José María Castillo, teólogo espanhol deixa a Companhia de Jesus, 2007. Online; CASTILLO, J. M. Se a teologia se dedica a repetir o que já está dito, nunca avançará, 2012. Online.

[2] O próprio Castillo me confidenciou isso quando lhe no dia 01 de fevereiro de 2017.