A humanidade de Deus: uma aproximação entre José María Castillo e José Tolentino Mendonça

The humanity of God: a rapprochement between José María Castillo and José Tolentino Mendonça

Jefferson Zeferino
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: jefferson.zeferino@hotmail.com

Eliabe Simplício da Silva
Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: eliabe.ss@puccampinas.edu.br


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Homens que são como lugares mal situados

Homens que são como casas saqueadas 

Que são como sítios fora dos mapas

Como pedras fora do chão

Como crianças órfãs 

Homens sem fuso horário 

Homens agitados sem bússola onde 

repousem 

(Daniel Faria)

Resumo: Como modo de refletir a respeito do catolicismo na atualidade, o presente texto se debruça sobre o pensamento de dois teólogos distintos entre si, mas que possuem convergências que ajudam a pensar a renovação de uma cultura teológica que assume o humano em suas situações concretas de vida como inspiração do labor teológico. José María Castillo oferece uma cristologia centrada na ideia da humanização de Deus e do humano, fazendo pensar o humano em suas relações mais próximas e seus desdobramentos para a vida em comunhão. José Tolentino Mendonça, o Cardeal poeta, encarna em seus ensaios e poesias os avanços da teologia do século XX, demonstrando acurada sensibilidade com questões fulcrais do tempo presente, reconhecendo também na vida humana uma fonte central para o fazer teológico. Objetiva-se, portanto, por meio de uma análise bibliográfica, apresentar aproximações entre os teólogos ibéricos no que concerne a um dos aspectos centrais da teologia cristã, a saber, a ideia da humanidade de Deus. 

Palavras-chave: José María Castillo; José Tolentino Mendonça; Humanidade de Deus; Cristologia. Ética crista 

Abstract: As a way of reflecting on Catholicism today, this text analyzes the thought of two theologians who are different from each other, but whose convergences help to reflect on the renewal of a theological culture that takes the human person in his/her concrete life situations as the inspiration for theological labor. José María Castillo offers a Christology centered on the idea of the humanization of God and of the human being, which leads to the reflection on the human person in his closest relationships and their consequences for life in community. José Tolentino Mendonça, the Cardinal Poet, in his essays and poetry, embodies the advances of 20th century theology, demonstrating an acute sensitivity to the central issues of the present, while at the same time recognizing human life as a fundamental source for theological work. Thus, through a bibliographical analysis, the text aims to present similarities between these Iberian theologians with regard to one of the main aspects of Christian theology, namely the idea of the humanity of God.

Keywords: José María Castillo ; José Tolentino Mendonça ; Humanity of God; Christology. Christian Ethics

Considerações iniciais

O ano de 2018 testemunhou o encontro do Papa Francisco, Jorge Mario Bergoglio (1936-), com outras duas figuras destacadas no catolicismo, José María Castillo (1929-2023) e José Tolentino Mendonça (1965-). Com o papa, tais personagens compartilham, por exemplo, uma ênfase na dignidade humana, na reflexão a respeito de uma teologia que busca compreender o humano em sua cotidianidade e o interesse de promover uma visão mais humana da própria igreja. 

Entre os dias 18 e 23 de fevereiro de 2018, José Tolentino Mendonça, antes de ser tornado arcebispo em junho do mesmo ano, esteve com o Papa Francisco no retiro espiritual anual da Cúria Romana, durante o qual proferiu as pregações que orientaram os Exercícios Espirituais da Quaresma. Esses ensaios resultaram no livro Elogio da Sede. O Papa Francisco, no prefácio que escreve ao livro, agradece a Tolentino pelo serviço prestado, destacando seu preparo e dedicação. Dirigindo-se a Tolentino, o Papa enfatizou a importância de sua experiência pastoral, teológica e poética, afirmando: “conduziu-nos a refletir sobre um dos desafios mais urgentes para a Igreja de hoje: colocar a sede de Jesus no centro do coração pulsante do Cristianismo” (FRANCISCO, 2018b, p. 9; cf. MENDONÇA, s.d.).

Em abril do mesmo ano, o Papa se reuniu com José María Castillo (1929-2023), teólogo que desde os anos 1980 havia tido retirada sua licença para ensino e que foi reabilitado por Francisco. Durante o encontro, Castillo presenteou o Papa com duas de suas obras Jesus: a humanização de Deus e A humanidade de Jesus. Ao expressar sua gratidão, o Papa, declarou ler com prazer suas obras, afirmando que elas fazem bem para as pessoas (VIDAL, 2018). O encontro se deu após a missa na Capela da Casa Santa Marta, onde Francisco pregou sobre uma evangelização que não se faz da poltrona, destacando a relevância de se estar junto das pessoas em situações concreta da vida (FRANCISCO, 2018a). 

No catolicismo contemporâneo, algo sustentado também pelo atual pontificado, ganha espaço a possibilidade de uma teologia de perfil humanístico e de valorização do cotidiano. O presente texto se propõe a aproximar os pensamentos de José María Castillo e de José Tolentino Mendonça, enfatizando o aspecto da humanidade de Deus, entendendo-os como fruto de um processo de renovação eclesial, herdeiro do Concílio Vaticano II em sua abertura de diálogo com o mundo, e teológica – consciente de uma virada antropológica que coloca em curso a necessidade de se pensar o humano em sua fragilidade e vulnerabilidade como modo de se pensar a questão de Deus e a existência cristã na atualidade. 

A humanização de Deus em José María Castillo

José María Castillo nasceu em Puebla de Don Fadrique, na Espanha, em 16 de agosto de 1929 (Nentwig, 2020) e faleceu em 12 de novembro de 2023[1]. Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, “foi desde o início e até o fim, o teólogo do povo” (VIDAL, 2023). Para ele, a teologia é “muito importante não apenas para os sacerdotes, mas para todas as pessoas que querem ser cristãs de verdade”, por isso compreende que “a teologia deve ser popular” (CASTILLO, 2016, p. 14). Em seus escritos, Castillo manifesta o interesse em abordar a humanidade de Jesus como um caminho para a humanização dos seres humanos. O teólogo argumenta que o homem de Nazaré “foi lugar de encontro, de união, de acolhida para todos” (CASTILLO, 2015, p. 85).

No capítulo dedicado à humanidade de Deus[2], no livro Jesus: a humanização de Deus, Castillo apresenta as prerrogativas que qualificam o que ele denomina “o minimamente humano”. Ele considera que o ser humano possui três qualidades essenciais: “seres vivos de carne e osso”, “seres sociais” e “seres individuais” (CASTILLO, 2015, p. 283). Essas qualidades correspondem, respectivamente, à “carnalidade”, à “alteridade” e à “liberdade”. Segundo Castillo, somente Jesus vive plenamente essas características, sendo a forma pela qual Deus se encontra com o ser humano, revelando que “é no humano que encontramos o divino” (CASTILLO, 2015, p. 288). Na sua teologia, Castillo parte da afirmação cristã da divindade de Jesus, mas coloca sua atenção justamente em sua humanidade, estabelecendo como ponto central a compreensão de que, em sua vida, atos e palavras, Jesus revela algo novo sobre Deus (CASTILLO, 2015, p. 75-79).

O conceito de humanidade, em Castillo, é antagonizado pelo de inumanidade, isto é, um déficit de humanização. O mistério da encarnação representa justamente um aprofundamento da ideia de humanização. Nesse sentido, aproxima-se da cristologia de autores como Barth e Bonhoeffer, para os quais a encarnação se torna um paradigma ético (cf. SINNER; ZEFERINO, 2024, p. 148-160). A desumanização, para o teólogo espanhol, é a impossibilidade do diálogo, isto é, a incapacidade de reconhecimento do outro. A violência, por sua vez, toma lugar justamente quando o outro não é reconhecido. Ao retomar a narrativa sobre Caim e Abel, Castillo identifica a causa de seu conflito em uma razão religiosa, ligada aos sacrifícios e a modos distintos de cultuar as divindades. Atualizando tal divergência, o autor compreende que as diferentes maneiras de se viver uma religião, seguem sendo motivos para conflitos que podem, por sua vez, gerar violência. As religiões, portanto, são desafiadas diante de tal cenário, sendo ambíguas suas resoluções, de um lado podem propor a superação de tais conflitos e, por outro, podem, inclusive, legitimar práticas violentas como se fossem da vontade de Deus (CASTILLO, 2015, p. 287-293). Para a fé cristã, a própria imagem de Jesus pode representar tal ambiguidade, uma vez que pode ser utilizada para fomentar a divisão e uma visão de superioridade do cristianismo sobre as outras religiões. Segundo Castillo, “[...] Jesus, o Crucificado, tem sido constituído como motivo de divisão ou, ao menos, de enorme dificuldade para a união entre os humanos. Dessa maneira, em vez de humanizar-nos, muitas vezes Jesus nos desumaniza sem que tenhamos consciência disso” (CASTILLO, 2015, p. 293).

Segundo Castillo, o Deus que se revela na humanidade de Jesus é a superação da inumanidade e, por consequência, da desumanização. O que há de comum entre os humanos é sua existência carnal, a sua relação com o outro (alteridade) e a sua individualidade, lugar a partir do qual se vivencia a liberdade. Para o autor, é nestes três aspectos que Jesus concentra sua atenção nos evangelhos. 

Jesus fez isso de forma que, de acordo com o que nos informam os evangelhos, aparece claramente a preocupação de Jesus pelo cuidado da vida em nossa condição carnal humana; seu interesse por melhorar as relações humanas; e seu respeito à liberdade. Essas três atitudes básicas aparecem nos relatos evangélicos com muito maior frequência e insistência do que outras questões como a oração, o culto religioso, a organização de um sistema de governo bem-estruturado de acordo com um poder sólido e outras coisas do gênero (CASTILLO, 2015, p. 296). 

Nessa leitura, os evangelhos revelam que a dignidade humana, a saúde, a felicidade e a vida das pessoas estavam entre as preocupações de Jesus. Assim, Castillo, a partir dos temas da carnalidade, alteridade e liberdade, oferece um esforço de concretização da existência humana, falando sobre sociabilidade e sobre questões como a saúde e a alimentação, respectivamente o cuidado com as relações humanas e com a vida. Saúde, comida e relações humanas, a saber, são respectivamente os tópicos centrais dos capítulos oitavo, nono e décimo de seu livro sobre a humanização de Deus. 

Com efeito, o cuidado com a alimentação e com a cura, para Castillo, são temas centrais dos evangelhos, assim como a relação com “o próximo”. Destaca o autor: “Sem dúvida alguma, Jesus considerou que melhorar a saúde das pessoas e dar vida às pessoas era uma tarefa fundamental em sua vida e na missão que tinha que cumprir para nos falar de Deus e para nos tornar Deus presente” (CASTILLO, 2015, p. 302). 

Nessa direção, “o Deus apresentado e representado por Jesus é um Deus que se faz presente, antes de tudo e acima de tudo, na humanidade, no humano dos seres humanos” (CASTILLO, 2015, p. 298, itálico no original). Exemplifica tal perspectiva, o episódio relatado nos evangelhos em que João Batista envia mensageiros até Jesus para questionar sobre sua identidade, perguntando se ele era de fato o Messias esperado ou se o povo deveria aguardar outro. A resposta de Jesus foca em suas ações e não em sua identidade teológica, visto que “Jesus não deu aos discípulos de João uma aula de cristologia, mas disse o que fazia, concretamente o que fazia em favor da saúde de enfermos, aleijados e pessoas que sofrem” (CASTILLO, 2015, p. 310).

Reside aí a crítica que Castillo faz à Igreja quando esta se limita à dimensão exclusivamente religiosa, afirmando que “não se conhece a Jesus nos dogmas formulados com categorias metafísicas, mas nos fatos que se podem ouvir, ver e palpar” (CASTILLO, 2015, p. 310). O espaço no qual a humanidade pode conhecer e encontrar Jesus está, segundo o autor, “onde se alivia o sofrimento humano, onde se devolve a alegria aos que se veem limitados, privados de sua integridade e de sua dignidade” (CASTILLO, 2015, p. 311).

Outro aspecto fundamental da reflexão de Castillo sobre a humanidade de Jesus é a ênfase dada à comensalidade. O ato de se sentar à mesa revela uma prática cotidiana que se transforma em uma espiritualidade da comunhão. Segundo Castillo, “o fato de comer envolve a vida inteira, é alimento e força não apenas para o estômago e o sangue, mas também para o espírito, para a necessidade que todos temos de companhia, de escuta, de ser escutados” (CASTILLO, 2015, p. 324). A alimentação é um tema recorrente nos evangelhos, e as refeições representam um espaço comum a todos, utilizado por Jesus para proclamar sua mensagem. 

Castillo observa que o tema da alimentação foi de maior interesse para Jesus do que “o culto, a liturgia, os rituais religiosos e mesmo a oração” (CASTILLO, 2015, p. 324). As referências à partilha de refeições nos evangelhos aparecem mais de uma centena de vezes. Os cristãos primitivos reconheceram que “nessa experiência básica e laica da vida humana é onde melhor Deus se comunica a nós, onde melhor o conhecemos e onde melhor experimentamos o Deus que nos revelou Jesus” (CASTILLO, 2015, p. 326). Jesus torna uma cena do cotidiano em local onde ocorre a revelação de Deus e ensina que não se trata apenas de dar ao outro de comer, mas de partilhar a mesa: “colocar alguém sentado à própria mesa para partilhar com ele a mesma energia de vida que nos sustenta” (CASTILLO, 2015, p. 327). Esse ato simples de comensalidade evidencia a nossa profunda natureza humana, “nossa condição de seres de carne e osso, e nossa necessidade de comunicação mútua, de presença, de confiança, de intimidade e de transparência” (CASTILLO, 2015, p. 330).

Compreende-se, portanto, que Castillo desenvolve uma cristologia na qual a espiritualidade de Jesus direciona o humano à humanidade e ao laical, evidenciando aquilo que os humanos têm em comum. O Deus de Jesus aproxima. Por outro lado, 

Quando Deus serve para separar, dividir, confrontar os seres humanos, não é com Deus que nos relacionamos, mas com um ídolo que fazemos à nossa medida e de acordo com nossas estreitas, curtas e torpes conveniências, não precisamente humanas, mas a mais desumanas, as mais sofisticadas e dissimuladamente destrutivas da humanidade (CASTILLO, 2015, p. 300-301).

O Deus de Jesus destacado por Castillo, é aquele que direciona o humano à sua humanização. Conclui o teólogo espanhol: “Porque, de acordo com o que expusemos, o que fica evidente nos evangelhos é que o decisivo para Jesus, e para o Deus que se revela a nós em Jesus, não é a ‘religiosidade’, mas a ‘humanidade’” (CASTILLO, 2015, p. 301, itálico no original). O autor critica duramente os posicionamentos da Igreja, que busca privilégios e títulos que a diferenciam dos demais. Para Castillo, a Igreja deveria assumir como sua principal responsabilidade “o caminho que traçou o próprio Jesus, o caminho da condição laica, que não é exatamente o caminho dos poderes e privilégios que podem ser obtidos com a política e o capitalismo deste mundo” (CASTILLO, 2015, p. 359).

Em A humanidade de Jesus, Castillo propõe uma tese central que orienta a compreensão da mensagem de Jesus, a saber, que “só poderemos encontrar a plenitude do divino na plenitude do humano” (CASTILLO, 2017, p. 130). O autor realiza uma crítica contundente à Igreja, ao afirmar que “se nota, se vê e se sente mais religião do que humanidade” (CASTILLO, 2017, p. 97). Essa crítica reflete a predominância das cerimônias, normas e rituais sobre a vivência do Reino de Deus, que, para Jesus, consiste em aliviar o sofrimento humano. Jesus, embora fosse um homem profundamente religioso, não trazia uma dimensão moralizante. Ao analisar os evangelhos, observa-se que há uma forte relação entre “fé, salvação e cura das enfermidades”, o que evidencia que a religiosidade de Jesus se centrava, acima de tudo, em uma ação tão profundamente humana quanto a de remediar o sofrimento (CASTILLO, 2017, p. 46).

Castillo distingue duas teologias presentes no Novo Testamento: a de Paulo, com forte carga moralizadora, e a de Jesus, caracterizada por uma “profunda proximidade com os que sofrem na vida” (CASTILLO, 2017, p. 86). Em determinado momento, o autor questiona os cristãos: “por que a Igreja cristã venera os evangelhos e confessa Jesus Cristo como seu Senhor e Salvador, mas prefere a ética mais convencional da tradição paulina aos sólidos ensinamentos de Jesus?” (CASTILLO, 2017, p. 85). Castillo considera a presença da religião na Igreja mais proeminente do que o evangelho, e argumenta que os conflitos que Jesus enfrentou foram com “os homens da religião”, os quais, de maneira violenta, orquestraram sua morte. Ele alerta: “um espaço, às vezes, representa o religioso, porém, não o Evangelho” (CASTILLO, 2017, p. 66).

Ao refletir sobre os relatos de cura dos evangelhos, Castillo dá atenção ao seu aspecto de cuidado das pessoas mais vulneráveis. A encarnação, nesses termos, evidencia o cuidado com a vida humana. Indica o autor: 

Desse modo, encontramo-nos diante do seguinte fato central: tudo o que os evangelhos nos contam sobre curas e atos prodigiosos de Jesus não apenas modifica radicalmente a religião, mas modifica, sobretudo, também a ideia que temos ou podemos ter sobre Deus. Quer dizer, isso redefine nossa compreensão de quem é e como é Deus. Vou logo dizendo: não é o Deus do poder, dos feitos estrondosos e dos prodígios, mas o Deus que se mostra a nós como exemplo supreendentemente da mais íntima humanidade (CASTILLO, 2015, p. 307, itálicos no original)

Tal convicção é anunciada pelo autor em sua afirmação de que o caminho pelo qual o humano se encontra com Deus não é o itinerário da divinização, mas a incessante busca da melhor e mais íntima humanização” (CASTILLO, 2015, p. 288). Superar a desumanização, presente na condição humana, é, para Castillo, um problema central”, e, na busca pela solução desse problema, propõe o questionamento sobre o que, de fato, torna alguém humano. Ele sugere que a experiência simbólica joga um papel central aqui. Para ele, a comunicação simbólica “expressa relação, encontro, satisfação mútua, sensibilidade com aquilo que faz os outros felizes, ajuda aos necessitados, diálogo, bondade” (CASTILLO, 2017, p. 28). Essa experiência simbólica, que possibilita a convivência humana, foi fundamental para a humanização das gerações passadas.

Falar da humanidade de Jesus, portanto, não implica apenas reconhecer sua natureza humana, no sentido de ele ter vivido como ser humano, com todas as suas condições e limitações, “mas, sobretudo, de sua forma ou estilo de vida” (CASTILLO, 2017, p. 29). Para o teólogo espanhol, a verdadeira relação com Deus, conforme exemplificado por Jesus, não se esgota nas práticas litúrgicas, mas acontece por meio da misericórdia, que não se reduz à piedade, e da prática da justiça, a saber: “A justiça que Deus quer e que se opõe às estruturas próprias do status quo, que impedem que haja pão (e tudo o que isso representa) para todos os humanos” (CASTILLO, 2017, p. 101). O caminho de justiça e misericórdia trilhados por Jesus segundo os relatos evangélicos, revelam sua humanidade e, por sua vez, “na humanidade de Jesus, conhecemos a humanidade de Deus” (CASTILLO, 2015, p. 294).

Em resumo, parece que o caminho que Castillo pretende desenvolver é de afastamento da violência marcada por questões religiosas, cujo remédio seria justamente uma caminhada firme na busca do humano pelo humano. Buscando compreender aquilo que há de minimamente humano e que pode servir de ponte para a aproximação de cada outro. Tal ênfase na humanidade e no corriqueiro, direciona as atenções deste texto ao cotidiano, tema amplamente explorado por José Tolentino Mendonça.

O humano, a sede e o cotidiano em José Tolentino Mendonça 

José Tolentino Calaça de Mendonça, nascido em 1965, em Machico, Ilha da Madeira, Portugal. Ordenado padre em 1990, tornou-se conhecido para além dos muros da Igreja em virtude de sua vasta obra literária. Fez carreira acadêmica, obtendo o grau de doutor em Teologia em 2004, com uma tese sobre Lucas 7,36-50, e trabalhando em posições de destaque na Universidade Católica Portuguesa. Em 2019 foi proclamado Cardeal pelo Papa Francisco e em 2022 se tornou prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação (cf. MENDONÇA, s.d.). O Cardeal poeta, segundo Cappelli (2024), é um homem do diálogo e habitante das fronteiras, devendo ser lido e compreendido como um artista. 

Em Elogio da Sede (2018), Tolentino faz uma análise teológica da passagem do Evangelho de São João em seu capítulo quarto, até o versículo 42, que narra o encontro de Jesus com a mulher samaritana junto ao poço de Jacó. A abordagem de Tolentino destaca como o Evangelho apresenta Jesus como alguém cansado e necessitado, contrastando com a imagem tradicional de sua divindade. No encontro com a samaritana, Jesus não pede água para beber, mas identifica uma sede mais profunda, uma “sede maior”, que “não se materializa na água, porque não é de água a sua sede. É a sede de tocar as nossas sedes, de contatar com os nossos desertos, com as nossas feridas” (MENDONÇA, 2018, p. 20).

No calvário, Jesus também sente sede, para além de seu aspecto físico, que afirma Jesus em sua encarnação, Tolentino faz referência a dois Padres da Igreja que atribuíram um sentido além do literal à sede de Jesus. Santo Agostinho interpretou-a como a sede pela fé que Jesus esperava de seus seguidores, enquanto São Bernardo a viu como a sede da salvação da humanidade. Tolentino conecta a sede no encontro com a samaritana e a sede na cruz, interpretando-as como “o selo de cumprimento da sua obra e, ao mesmo tempo, o do desejo ardente de entregar o dom do Espírito, verdadeira água viva capaz de dessedentar radicalmente a sede do coração humano” (MENDONÇA, 2018, p. 71).

Tolentino também aborda a intersecção entre espiritualidade, justiça social e responsabilidade cristã diante das periferias, sejam elas geográficas, sociais ou existenciais. Ele afirma que “a humanidade em nós precisa ser abraçada sempre, mas com muito mais razão quando ela está ferida, quando ela sente como se estivesse leprosa, diminuída, sufocada pela exclusão e o estigma, feita em cacos sem saber como reconstruir-se” (MENDONÇA, 2018, p. 139). A reflexão sobre a sede, tanto literal quanto espiritual, serve como ponto de partida para a crítica à espiritualidade que não deve se tornar uma “bolha de conforto ou uma forma de escapismo” (MENDONÇA, 2018, p. 127). Tolentino sugere que é preciso olhar criticamente a realidade ao redor, confrontando-se com a pergunta fundamental: “Onde está o nosso irmão?”, presente no livro de Gênesis.

Tolentino destaca a sede como elemento da humanidade como um todo e da humanidade de Jesus, apontando que a construção de um caminho que renuncia à sede representa o início da morte do ser humano, o momento em que “desistimos de desejar, de achar sabor nos encontros, nas conversas partilhadas, nas trocas, nas saídas de nós mesmos [...]. Quando diminui a nossa curiosidade pelo outro” (MENDONÇA, 2018, p. 56). Jesus, ao se sentar junto ao poço com sede, estabelece um encontro com a mulher samaritana. A sede de Jesus convida à reflexão sobre as carências humanas, desenvolvendo maior empatia e compreensão sobre a condição humana.

Mendonça, ao analisar o relato da tentação de Jesus no deserto, amplia a interpretação da resposta de Jesus à tentação de pular do pináculo do templo. Quando Jesus diz “não tentarás o Senhor teu Deus”, ele se refere ao episódio em que o povo de Israel, ao atravessar o deserto de Massa, questiona a Deus sobre a falta de água. Mendonça chama esse momento de “rebelião da sede”, sugerindo que, quando Deus não satisfaz imediatamente as nossas múltiplas sedes, ficamos logo atordoados, sem saber se ele está no meio de nós ou não” (MENDONÇA, 2018, p. 105). Para o teólogo português, o humano é tentando a amar Deus por aquilo que ele dá, mas a humanidade de Jesus “[...] ensina-nos a entregar o silêncio, o abandono e a sede como oração” (MENDONÇA, 2018, p. 105).

Com efeito, Mendonça entende que Jesus assume a humanidade em sua ambiguidade. “A humanidade que nos custa abraçar é a humanidade que Jesus abraça verdadeiramente, porque ele debruça-se com amor sobre a nossa realidade, e não sobre a idealização de nós que vamos construindo” (MENDONÇA, 2018, p. 96). Entre suas características, destaca-se a misericórdia. Mendonça, em Um Deus que dança, desenvolve essa categoria teológica, exemplificada na sexagésima primeira oração do livro, intitulada A estrada da misericórdia, que diz: “faz-nos trilhar, Senhor, a estrada da misericórdia. Dá a cada um de nós a capacidade de acolher apenas, sem juízos prévios nem cálculos. Dá-nos a arte de acolher o trêmulo, o ofegante, o frágil modo com que a vida se expressa” (MENDONÇA, 2016, p. 117).

Em Elogio da Sede, Mendonça dedica um capítulo para “As formas do desejo”, no qual se volta para o evangelho de São Lucas, capítulo 15, mais especificamente à parábola do filho pródigo. Para Mendonça, a parábola não é apenas uma história, mas um “espelho” que Jesus oferece, no qual podemos ver nossa “imagem interior” e refletir sobre como construímos nossas relações conosco e com os outros. Ele afirma que, por meio dessa parábola, “podemos rever nele a nossa imagem interior, a forma como construímos a relação com nós mesmos e com os outros, o que queremos ou não que a vida seja, o modo como nos distanciamos ou nos abeiramos de Deus” (MENDONÇA, 2018, p. 109).

Na parábola, o pai representa a misericórdia de Deus, que não abdica de restabelecer a dignidade do ser humano. O irmão mais novo, com sua busca de autonomia, e o irmão mais velho, com seu ressentimento e incapacidade de perceber a lógica da misericórdia, refletem dilemas internos humanos. O irmão mais velho, dominado pela competitividade e pela expectativa de recompensa, desenvolve uma “patologia do desejo” e não aceita o amor excessivo demonstrado pelo pai, vivendo tomado por um sentimento de inveja, que transforma o outro em rival, ao invés de parceiro (MENDONÇA, 2018, p. 115).

Mendonça também reflete sobre a misericórdia como um evangelho por descobrir, afirmando que a misericórdia é um excesso de amor que cura o outro. Ele propõe “que só a misericórdia, esse excesso de amor que Deus nos ensina, é capaz de nos resgatar” (MENDONÇA, 2018, p. 112). Para Tolentino, a misericórdia não é apenas uma emoção, mas uma prática ética concreta, como se evidencia nas ações cotidianas que refazem a vida humana, através do acolhimento, da consolação, da hospitalidade e da restauração da dignidade aos que a tiveram negada (MENDONÇA, 2015).

Tolentino enfatiza o cansaço de Jesus, manifestado no encontro com a mulher samaritana, quando ele se senta à beira do poço para descansar. Esse cenário, segundo o teólogo português, representa também o lugar do ser humano. A narrativa do evangelho de João contém um mistério, ao afirmar que Jesus tinha “necessidade” de passar por Samaria, mas essa “necessidade” vai além da dimensão geográfica; é, para Tolentino, uma necessidade relacionada à “sua missão messiânica: ele deve alcançar também os dissidentes, os filhos distantes, as periferias, o mundo que está para além das fronteiras de Israel” (MENDONÇA, 2018, p. 16).

Tolentino interpreta o momento de Jesus sentado junto ao poço à luz da reflexão de Agostinho, que sugere que Jesus veio ao encontro da humanidade por meio de sua fragilidade. A humanidade, assim, é socorrida por essa fraqueza. No relato de João, o encontro ocorre ao meio-dia, e Tolentino entende esse “meio-dia” como o ponto central do caminho, o momento exato em que Jesus se encontra com a nossa humanidade necessitada de salvação. O “meio-dia” não se refere a um tempo cronológico, mas sim a “sempre que nascemos e renascemos no encontro com a Palavra [...]. Sempre que nos dispomos à escuta profunda da nossa sede [...]. Sempre que nos abeiramos da fonte em silêncio e esperança” (MENDONÇA, 2018, p. 19).

Tolentino caracteriza a sede como uma dor progressiva, uma realidade difícil de encarar, pois se assemelha a feridas. Ele observa que “a dor da nossa sede é a dor da vulnerabilidade extrema, quando os limites nos esmagam” (MENDONÇA, 2018, p. 33). A sede, nesse contexto, emerge como uma condição que recorda a fragilidade humana, expondo necessidades e anseios profundos. “É como se a sede também nos humanizasse e constituísse uma vida de maturação espiritual” (MENDONÇA, 2018, p. 98). Essa sede é uma experiência comum a todos, e está por trás das “nossas habituais narrativas defensivas, assépticas ou idealizadas; é uma dor antiga que, sem percebermos bem como, encontramos reavivada, temendo que nos enfraqueça” (MENDONÇA, 2018, p. 31-32).

Reconhecer e aceitar a condição da sede como parte da experiência humana é essencial. Tolentino valoriza a “espiritualidade da sede” (MENDONÇA, 2018, p. 51) como um caminho de maior compreensão das próprias necessidades e de uma aceitação mais profunda da vulnerabilidade humana. Ele defende que é necessário “nos reconciliar com a nossa vulnerabilidade” (MENDONÇA, 2018, p. 53), aprendendo com os exemplos bíblicos de homens e mulheres que reconheceram e aceitaram sua condição humana vulnerável. Cita, ainda, o texto de Apocalipse 22,17 – “O que tem sede aproxime-se; e o que deseja beba gratuitamente da água da vida” —, sugerindo que o “pressuposto para receber a água da vida é estar sedento, reconhecer-se sedento” (MENDONÇA, 2018, p. 46).

Tolentino afirma que “o caminho espiritual não nos impermeabiliza em nenhuma etapa em relação à vulnerabilidade, da qual temos de estar conscientes” (MENDONÇA, 2018, p. 97). Não importa o modo como a espiritualidade é desenvolvida, a fragilidade humana permanece como uma constante, sendo o ser humano convidado “a viver o dom de Deus, até o fim, na fragilidade, na fraqueza, na tentação e na sede” (MENDONÇA, 2018, p. 97). Referindo-se aos textos de Paulo, Tolentino destaca que o ser humano carrega um “tesouro em vasos de barro”, o que simboliza a fragilidade de nossa existência e a graça de Deus que se manifesta justamente na fraqueza. De acordo com sua leitura de Paulo, “o grande obstáculo a uma vida de Deus não é a fragilidade e a fraqueza, mas a dureza e a rigidez. Não é a vulnerabilidade e a humilhação, mas o seu contrário: o orgulho, a autossuficiência, a autojustificação, o isolamento, a violência, o delírio de poder” (MENDONÇA, 2018, p. 99).

Enquanto a condição humana é, por sua natureza, vulnerável, Deus, mesmo não estando sujeito à vulnerabilidade à abraça de maneira voluntária. Deus escolhe se identificar com a condição humana na pessoa de Jesus, que experimentou o sofrimento inerente à vida humana. Essa atitude divina é um convite para que cada um aceite a sua própria condição e a do outro, estendendo essa acolhida aos marginalizados e necessitados (MENDONÇA, 2018, p. 124). Tolentino sublinha que este é um dever do cristão, pois a periferia faz parte do seu DNA, e “em todas as épocas há de permanecer para a existência cristã como lugar onde encontrar e reencontrar Jesus” (MENDONÇA, 2018, p. 132).

Tolentino considera o cristianismo como uma realidade periférica, não apenas em virtude de sua origem na Galileia, mas também em razão de seus desenvolvimentos, o que gera uma crítica ao olhar viciado do centro ao qual o cristianismo se acostumou (MENDONÇA, 2018, p. 132). Fazendo menção a Andrea Riccardi, Tolentino destaca que, para a Igreja, “a periferia não é um problema, mas um horizonte” (MENDONÇA, 2018, p. 133). Essas periferias, por sua vez, têm uma sede: a de serem ouvidas. Nesse sentido, Tolentino propõe que corações e olhares estejam voltados para essas realidades, pois “uma Igreja que se enclausura num centro deixa de ouvir a sede das periferias, pois ficou autocentrada e autorreferencial”. As periferias, mesmo quando consideradas “zonas noturnas, lugares de vulnerabilidade e de exclusão”, podem comportar um renascimento onde se fazer ver um raio de sol que pode motivar a Igreja a ressurgir com uma vitalidade mais intensa (MENDONÇA, 2018, p. 134). Para Tolentino, quando distante das periferias a Igreja pode perder justamente tais experiências de vigor: “O que nos enfraquece não é, de fato, a escassez, mas a sobreabundância; não é a vulnerabilidade, mas o poder malcompreendido na sua finalidade; não é a frugalidade, mas sim o desperdício. O que nos enfraquece é não termos escutado até o fim o apelo que está por detrás da fome e da sede” (MENDONÇA, 2018, p. 135). 

A vitalidade da Igreja reside em sua capacidade de ser uma Igreja em saída, que “sente o desafio de ir ao encontro e de cuidar da humanidade vulnerável” (MENDONÇA, 2018, p. 146), abraçando a mesma humanidade que Jesus procurava salvar. Tolentino conclui que a pior realidade para o cristão é estar saciado, pois “a experiência da fé não é para resolver a sede, mas para ampliá-la, para dilatar o nosso desejo de Deus, para intensificar a nossa busca” (MENDONÇA, 2018, p. 146). A sede do outro, como explica o autor em outra parte de seu texto, “é um desafio a uma conversão ao essencial que contrarie a cultura do desperdício e da desigualdade social. A Igreja não tem de ter medo de ser profética e colocar o dedo na ferida” (MENDONÇA, 2018, p. 129). Tal perspectiva aponta para um modo de ser cristão e de ser igreja que possui no horizonte o serviço e amor ao próximo, algo que Tolentino expressa em outro texto seu em forma de oração: “ajuda-nos, Senhor, a ver claro que o importante não é o que podemos oferecer aos outros, mas quem podemos ser para os outros” (MENDONÇA, 2016, p. 90).

O conceito de espiritualidade no cotidiano, abordado com profundidade por José Tolentino Mendonça, destaca a capacidade humana de encontrar significado nas experiências diárias. Para o autor, a presença do divino não se restringe a idealizações ou abstrações, mas se revela na concretude da vida cotidiana. Em suas palavras, “a vida espiritual também não é uma ideologia nem uma idealização que fica sobrevoando a nossa realidade, como um chapéu metafísico que paira. Ela tem de aterrar numa existência concreta” (MENDONÇA, 2018, p. 44). Esse processo de concretização se dá no cotidiano.

Em A mística do instante, Tolentino aborda a espiritualidade cotidiana utilizando uma metáfora baseada nos cinco sentidos humanos, cada um deles funcionando como uma via de acesso à experiência espiritual. A partir do tato, percebe-se a ligação do humano com o tempo e com a memória: “através das impressões do tato fazemos intermináveis viagens sem as quais não seríamos quem somos” (MENDONÇA, 2014, p. 24). O ato de tocar e ser tocado gera encontros que transcendem a mera interação física, carregando consigo significados espirituais. A relação entre saber e sabor também é significativa, já que compartilham uma mesma raiz etimológica, o que sugere que “a sabedoria, tal como o paladar, é a arte do desejo” (MENDONÇA, 2014, p. 28). Da mesma forma, o olfato conecta o humano de forma íntima com o mundo: “ele atua em nós despertando-nos para um contato fusional com o mundo, um contato ao mesmo tempo imediato, flagrante e íntimo” (MENDONÇA, 2014, p. 28). Já a escuta, quando realizada com profundidade, exige mais do que ouvir com os ouvidos, trata-se de “escutar com o coração”, um exercício espiritual que torna os sentidos uma experiência integral da espiritualidade (MENDONÇA, 2014, p. 30-31). A visão, por sua vez, amplia o entendimento da realidade ao permitir perceber “a intensidade luminosa, das cores, da profundidade e distância”, revelando o caráter sublime do cotidiano (MENDONÇA, 2014, p. 31).

O momento místico também se revela na escuta atenta do dia a dia, uma escuta que, paradoxalmente, exige uma surdez para que se possa verdadeiramente ouvir. O autor descreve como a “nossa escuta é permanentemente interrompida por urgências que se impõem, sobretudo falsas urgências, ficções que nos povoam e barram o abraçar do instante” (MENDONÇA, 2014, p. 153). Esse paradoxo da escuta, que demanda a eliminação das falsas urgências, transforma a escuta em uma prática espiritual. Em uma “cultura de avalanche” como a hodierna, a verdadeira escuta se constitui como um “recuo crítico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto pretendem aprisionar-nos”, permitindo o encontro com aquilo que pode ser compreendido como essencial (MENDONÇA, 2014, p. 156).

A recomendação de Tolentino para o olhar cotidiano é de redescobrir o mundo como se fosse a primeira vez, uma experiência que remete ao conceito de viagem, onde o objetivo não é apenas o deslocamento físico, mas uma reconstrução interior. Ele cita Jacques Lacarrière, que observa que “o que está em jogo na viagem é esta tentativa, mais consciente ou implícita, de reconstrução de si” (MENDONÇA, 2014, p. 205). A paisagem ao redor se torna uma metáfora do caminho interior, e a experiência do caminhar no mundo é também uma experiência de introspecção: “estamos, sobretudo, caminhando dentro de nós mesmos” (MENDONÇA, 2014, p. 205).

Tolentino, em outro texto, reflete sobre como o cotidiano, muitas vezes desvalorizado e reduzido a uma mera luta pela sobrevivência, pode ser o espaço onde se dá o sentido profundo da existência. Ele observa que “sentimo-nos aprisionados pelas rotinas […] capazes de nos fazer hibernar a nós e ao universo. Ou vemo-nos então num vórtice ofegante de tarefas para as quais só temos esforço, aceleração e cansaço, e não respostas” (MENDONÇA, 2019). Contudo, ao olhar mais atentamente, é possível perceber a riqueza espiritual nas pequenas experiências diárias que, segundo o autor, conectam o humano ao divino. A reconciliação com o cotidiano, em sua vulnerabilidade e contradições, permite aprendizagens e encontros que podem aprofundar e iluminar a experiência de vida. Ao refletir sobre “O Silêncio”, um conto de Sophia de Mello Breyner Andresen, que descreve o processo simples de lavar a louça, Tolentino destaca que essa tarefa aparentemente banal pode ser vista como um ritual de purificação, não apenas dos utensílios, mas também da alma. O conto “fala do que a vida cotidiana nos pede e nos dá, do que ela leva de nós e daquilo que deixa como legado. E legado não só à superfície, mas no âmago do próprio viver” (MENDONÇA, 2019). Nesse sentido, até as tarefas cotidianas podem se transformar em momentos de contemplação e transcendência.

Em O pequeno caminho das grandes perguntas, Tolentino também aborda aspectos aparentemente insignificantes, como um banco de jardim, lembrando as pinturas de Van Gogh. Esses objetos, que muitas vezes passam despercebidos, são símbolos de beleza e de pausa para o olhar atento. Ele observa que “a paisagem do nosso cotidiano está cheia de coisas assim, coisas que não nos damos conta no ritmo ofegante em que circulamos, mas para com as quais, quando caímos em nós, compreendemos que temos uma dívida” (MENDONÇA, 2017, p. 11). Para o autor, tais momentos de pausa oferecem a oportunidade para o humano se reconectar com o tempo e com o divino, revelando a sacralidade no aparentemente banal.

A escrita poética de Tolentino oferece ainda maior concretude à proposta de uma teologia que considera seriamente a vida cotidiana. A vida vivida no dia a dia é matéria prima para o fazer teológico, acompanhada da sensibilidade poética de Tolentino, este olhar atento, a valorização do instante e das pequenas coisas, revelam a profundidade da experiência humana que se doa ao pensamento e que entram em ebulição (cf. CAPPELLI, 2024) dando origem à poesia e, em certa medida, à espiritualidade. Cappelli e Villas Boas  (2023), auxiliam a perceber que a literatura como exercício espiritual está no pano de fundo dos ensaios de Tolentino que perfazem o Elogio da Sede. Os autores destacam a vulnerabilidade e a nudez como chave para uma percepção do desejo como falta que se realiza na presença sentida como ausência e no reconhecimento da sede, isto é, no reconhecimento de que se tem sede. À quem falta algo, há espaço para um outro, para o encontro e para o diálogo. 

À guisa de conclusão: aproximações entre Castillo e Tolentino

Sem pretender uma abordagem global das obras de Castillo e Tolentino, por meio de textos selecionados em virtude de suas afinidades teóricas, compreende-se a possibilidade de aproximação entre as teologias dos teólogos ibéricos José Maria Castillo e José Tolentino Mendonça. Ambos partilham uma teologia que considera o humano em suas condições concretas de vida, dando ênfase ao humano de carne e osso, em relação com as outras pessoas e em cenas do cotidiano.  

A humanização de Deus em Castillo parte da compreensão de Jesus em sua humanidade, pautada nos relatos evangélicos, dando ênfase ao encontro, a um Jesus que caminha com as pessoas, que está em relação próxima com elas, que senta junto para comer e que se preocupa com sua saúde. O autor busca se distanciar da trilha institucional do catolicismo, entendendo que um Deus que separa e divide dista daquele Deus apresentado e representado por Jesus. A seu modo e em linguagem poética e ensaística, Tolentino dá vida às passagens bíblicas evidenciando justamente esse Jesus do cotidiano que sofre em sua carne e em seu espírito da sede de água, de vida e de relações. Os autores, portanto, atuam na escrita esperançosa de uma renovação da cultura teológica, a partir da qual o cuidado das pessoas ocupa lugar central e assim o fazem inspirados pela humanidade de Jesus que, no mistério da encarnação, torna-se referência de humanização. As ações de Jesus se tornam inspiração de uma ética cristã que toma parte das dores do mundo atual se colocando à serviço.

Referências

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CAPPELLI, Marcio; VILLAS BOAS, Alex. A literatura como exercício espiritual em José Tolentino Mendonça. Teoliterária, v. 13, n. 31, p. 96-117, 2023. DOI: https://doi.org/10.23925/2236-9937.2023v31p96-117

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Notas

[1] Para uma abordagem mais detalhada sobre a vida e obra de José María Castillo veja a recente tese de Glaucio Alberto Faria de Souza (2023), intitulada A humanização de Deus como paradigma cristológico no pensamento de José María Castillo

[2] A questão da humanidade de Deus, vale dizer, é um tema consagrado dentro da teologia cristã, tornando-se tema de destaque em pensadores da estatura de Karl Rahner e Karl Barth (cf. ZEFERINO; BOFF, 2015).