A RESSURREIÇÃO CRISTÃ: Relevância para a práxis cristã
THE CHRISTIAN RESURRECTION: Relevance to Christian Praxis

 

“Por que procurais entre os mortos aquele que vive?” (Lc 24,5)
 “Why do you look for the living among the dead?” (Luke 24,5).

 

RESUMO 

O objetivo deste texto é compreender a relevância da ressurreição no âmbito da práxis dos cristãos. Como fato nuclear do cristianismo, a ressurreição de Jesus Cristo configura a totalidade da vida cristã, que abarca o assim na terra (realidade histórica) como no céu (realidade transcendente). Na perspectiva da cristologia trata-se da relação entre o Jesus ressuscitado e o crucificado. A compreensão da ressurreição cristã, portanto, precisa salvaguardar ambas as dimensões dentro do mistério Pascal de Cristo. O imperativo desta reflexão tem seu ponto de sustentabilidade no Concílio Vaticano II que resgata a dimensão libertadora da ressurreição, imprimindo relevância à práxis cristã. Metodologicamente o estudo contempla três momentos. Tendo por base uma investigação bibliográfica, busca-se realçar os sinais de cruzes e mortes que atualizam hermeneuticamente a cruz do Crucificado Jesus de Nazaré. Em seguida, faz-se uma análise de como a Igreja, através do seu magistério responde às questões da vida, sob a luz dos conceitos de dignidade humana, bem-comum e justiça social, sinais de ressurreição. E, por fim, o estudo propõe uma reflexão de como os eventos, cruz e ressurreição, permitem abrir caminhos de salvação na história, pois não é algo do passado, mas contém uma força de vida que penetrou o mundo. É uma força sem igual (EG 276).

 

PALAVRAS-CHAVE: cruz; ressurreição; Jesus; história; cristãos; práxis.

 

ABSTRACT

The purpose of this text is to understand the relevance of resurrection within the scope of Christian praxis. As a core fact of Christianity, the resurrection of Jesus Christ configures the entirety of Christian life, that encompasses the like on earth (historical reality) and the like in heaven (transcendent reality). From the perspective of Christology, it is about the relationship between the risen Jesus and the crucified Jesus. The understanding of the Christian resurrection, therefore, needs to safeguard both dimensions within the Paschal Ministry of Christ. The imperative of this reflection has its point of sustainability in the Second Vatican Council that rescues the liberating dimension of resurrection, giving importance to Christian praxis. Methodologically, the study contemplates three moments. Based on a bibliographic investigation, we seek to highlight the signs of crosses and deaths that hermeneutically update the cross of the Crucified of Nazareth. Then, an analysis is made of how the Church, through its magisterium, responds to the questions of life, in the light of the concepts of dignity, well-being and social justice, signs of resurrection. And, finally, the study proposes a reflection on how the events, cross and resurrection, allow opening paths of salvation in history, as they contain a life force that penetrated the world.  It is an unparalleled force.

 

KEY WORDS: Cross, Resurrection; Jesus; History; Christians, Praxis. 

INTRODUÇÃO

Ressurreição (em latim: resurrectio, em grego: anastasis) é o nome e também conceito central na fé cristã. A ressurreição dos mortos é uma crença escatológica padrão nas religiões abraâmicas. Para os cristãos, a ressurreição significa que Jesus: “ressuscitou dos mortos ao terceiro dia, conforme as Escrituras”. Na carta aos Coríntios, encontra-se a seguinte afirmação: “eis aqui vos dou a conhecer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados; num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; pois a trombeta tocará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados” (1Cor 15,51-52).

O Apóstolo Paulo faz referência a uma “transformação” radical, proveniente do contexto do assassinato de Jesus Cristo. Ora, se a crucificação do Filho de Deus já havia tornado caótica a situação e deixado inquietas as mentes e corações dos discípulos, o anúncio da ressurreição no imperceptível da noite, uma vez que ninguém viu e testemunhou a ressurreição, desconcerta ainda mais os discípulos de Jesus (BINGEMER, 2008, p. 126). E o motivo se refere que: “o conceito de um Deus morto e ressuscitado era totalmente alheio à mentalidade dos judeus, os quais tendiam a distanciar cada vez mais dos seres humanos o Senhor Deus” (BINGEMER, p. 123. Por isso, o anúncio do crucificado como ressuscitado aparece segundo o próprio Paulo como escândalo para os judeus e loucura para os gregos (cf. 1Cor 1,23).

A fé na ressurreição de Jesus traz imbuídas questões importantes, porque mesmo sendo o centro da fé cristã, permanecem em aberto várias inquietações como o sentido histórico e teológico da ressurreição; as dificuldades de encontrar uma linguagem adequada para expressá-la; a relação entre a realidade histórica e escatológica/trans-histórica: possibilidade de vida eterna para cristãos. Ainda e, também, a possibilidade de viver o seguimento de Jesus como ressuscitados, ou seja, viver já como ressuscitados na história. Questão por demais importante para o teólogo Jon Sobrino, pois significa que o lugar de verificar sem alienações de que forma se participa já na realidade escatológica é o seguimento de Jesus, com todas as dificuldades que isso acarreta (SOBRINO, 2000, p. 25). Estas questões, mesmo não sendo abordadas neste texto, influenciam, no conjunto da reflexão, sobre o tema da ressurreição. Estas são apenas algumas inquietações que permeiam o acontecimento nuclear e determinante do cristianismo: fé na ressurreição. 

Ora, se Cristo não ressuscitou a pregação e a fé são vazias (cf. 1Cor 15,12-14). Esta importância decisiva da ressurreição ocorre porque, segundo Boff: “a ressurreição não é um fato privado da vida de Jesus. É a realização em sua existência da mensagem de global libertação, que ele pregou e prometeu” (BOFF, 1974, p. 61). Sendo assim, a ressurreição mantém o alicerce da mensagem global da vida de Jesus que é percebido pelas narrativas bíblicas, que percorreu um caminho de amor formulado no projeto do reino de Deus; vida plena para todos/as (cf. Jo 10,10). Neste sentido e levando em conta Boff, surge a pergunta de como em meio a tantos sinais de cruzes, destruições e mortes na atualidade é possível encontrar caminhos de libertação e de esperança, entendidos como sinais de ressurreição?

É no horizonte apontado por esta perspectiva que caminha esta reflexão. Em primeiro lugar, explicitam-se os sinais de cruzes e mortes que atualizam hermeneuticamente a cruz do crucificado Jesus de Nazaré. Em segundo lugar, aprofunda-se o modo como a Igreja, através de seu magistério, responde a estas cruzes e mortes, priorizando os conceitos de dignidade humana, bem-comum e justiça social, sinais de ressurreição. Em um terceiro e último lugar, reflete-se sobre o modo como o evento, cruz e ressurreição, permite abrir caminhos de salvação na história, através de ações concretas de solidariedade e fraternidade, símbolos maiores de uma Igreja Pascal e Samaritana.

1. AS CRUZES NA HISTÓRIA TÊM RELAÇÃO COM A CRUZ DE CRISTO

Neste tópico o objetivo é perceber a relação entre a cruz de Jesus e as cruzes no seio da história. Na medida em que as cruzes são historicizadas também elucidam melhor o caminho histórico e humano do Filho de Deus que passou pelo mundo fazendo o bem e terminou na cruz (cf. At 10,38).

Segundo dados publicados pela UNICEF, o Brasil voltou ao mapa da fome. Hoje fala-se em mais de 19 milhões de pessoas em situação de fome, ou seja, a insegurança alimentar quase dobrou. Para se ter noção da gravidade, entre 2018 e 2020, a fome atingiu 7,5 milhões de brasileiros. Já entre 2014 e 2016, esse número era bem menor: 3,9 milhões. Já são 49,6 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar moderada ou grave. É importante ter presente que desde o ano de 2020 a pandemia ajudou a agravar o cenário (CNN Brasil).

Outro cenário preocupante nestes tempos pandêmicos, provocados pela COVD-19, é o aumento da violência em especial contra a mulher. Segundo a Agência Brasil, em 483 cidades houve aumento de casos de violência contra a mulher durante a covid-19, que atingiu o Brasil em fevereiro de 2020. O número equivale a 20% dos 2.383 municípios ouvidos pela nova edição da pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) sobre a pandemia.

Em 269 (11,3%) municípios, houve elevação nas ocorrências de violência contra criança e adolescente; em 173 (7,3%) foram registrados mais episódios de agressão contra idosos, e em 71 (3%) contra pessoas com deficiência. Em outras 1.684 cidades (70,7%), as prefeituras não receberam mais denúncias de violência contra esses segmentos. Somados, os percentuais de cidades onde houve acréscimo de casos de agressão contra diferentes segmentos chegam a 41,9% dos municípios brasileiros conforme dados coletados no mencionado estudo (AGÊNCIA BRASIL).

Outro elemento que chama a atenção, relacionado às minorias, é que mais de dos mil indígenas foram assassinados entre 2009 e 2019 no Brasil, segundo dados divulgados pelo Atlas da Violência 2021. Nessa década, a taxa de mortes violentas de indígenas aumentou 21,6%, saindo de 15 por 100 mil indígenas, em 2009, para 18,3, em 2019, movimento oposto ao que ocorreu com a taxa de assassinatos em geral no país, que foi de 27,2 para 21,7 por 100 mil habitantes).

Estarrecedor é também o número da violência contra crianças e adolescentes. Segundo a UNICEF, entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil – uma média de 7 mil por ano. Além disso, de 2017 a 2020, 180 mil sofreram violência sexual – uma média de 45 mil por ano (UNICEF).

Estes números revelam uma assustadora realidade, representativa de sinais de mortes e crucificações (físicas, sociais, morais e psicológicas) e de destruição. Estes são apenas alguns dos muitos sinais que configuram o atual cenário brasileiro e que desafiam os cristãos de como ser sal da terra e luz do mundo como pede o Evangelho (cf. Mt 5,13-14). O mais triste é que as vítimas são, recorrentemente, os mais vulneráveis, os pobres, os analfabetos, os sem-teto, os sem-terra, os desempregados, idosos, população carcerária, indígenas, negros, homossexuais, crianças, mulheres vítimas de abusos e violências.

Em palavras duras Boff lamenta a lógica das coisas, segundo ele, sempre ambígua, simbólica e diabólica, continua como se não tivesse havido redenção nenhuma, nem se dado nenhum sinal antecipador da ressurreição (BOFF, 2011, p. 144), em detrimento da esperança e da profecia, um Reino inatingível, utopia para  o futuro que está sempre no horizonte e não na concretude da história; no desafio diário diante das misérias, das periferias, das violências, encontrar a   vivência da força transformadora e humanizadora do sonho de Jesus e de seu modo de ser.

No Documento de Aparecida, procurando discernir os sinais dos tempos, como propôs o Concílio Vaticano II (GS 4; 11), os bispos afirmam que estes sinais de morte, de milhões e milhões de abandonados, excluídos e ignorados contradizem o projeto do Pai e desafiam os cristãos no compromisso da cultura da vida.

As condições de vida de muitos abandonados, excluídos e ignorados em sua miséria e sua dor, contradizem este projeto do Pai e desafiam os cristãos a um maior compromisso a favor da cultura da vida. O Reino de vida que Cristo veio trazer é incompatível com essas situações desumanas. Se pretendemos fechar os olhos diante destas realidades, não somos defensores da vida do Reino e nos situamos no caminho da morte: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos. Aquele que não ama, permanece na morte” (1Jo 3,14) (DAp 358).

 A ressurreição é em definitivo a poderosa força sem a qual Jesus teria caído no esquecimento, como outros líderes na história. Ora, se a ressurreição é para “levantar” e “despertar”, como diz Pagola (PAGOLA, 2016, p. 491) significa que esta realidade de sofrimento e violência, como demonstram os números acima, precisa ser assumida e combatida pelos cristãos.

É da singularidade da ressurreição crer na superação da morte, sem com isso eclipsar sua dimensão escatológica (GS 10; 11; 57; 59; 61; 63; 91; AG 8). Significa que a salvação cristã sem se desviar da plenitude escatológica, quando Deus será tudo em todos, como diz São Paulo (cf. 1Cor 15,28), assume a história, também como determinante no processo salvífico.

Como bem enfatiza Barros: a) a salvação é coletiva e histórica, na qual ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças; b) é preciso insistir que a salvação se dá no mundo, no meio da vida e da história (fora do mundo, não há salvação); c) e “principalmente retomar a afirmação de que só existe uma história e superar a fé no dualismo do natural e sobrenatural” (BARROS, 2019, p. 285-286).

Esta perspectiva abre aos cristãos a possibilidade de viver configurados pelo princípio operante da ressurreição, que é revelado pelo Espírito. Sem este não se entenderia a ressonância que Jesus ganhou na história posterior, nos ajudando a resgatar o Jesus de Nazaré, como a encarnação do Filho do Pai em nossa miséria (BOFF, 2011, p. 64). Sendo pobre entre os pobres tornou-se sinal de esperança de um mundo de justiça, de dignidade, no qual o bem comum se torne realidade universal, emoldurada com valores intrínsecos que a todos os filhos e filhas de Deus devem ser estendidos de forma indistinta, sem qualquer condição e/ou subordinação às estruturas de poder. Na medida em que Jesus, em sua encarnação, assume a totalidade da história com seus infernos e glórias, nada fica à deriva da fé cristã. 

Os Bispos na Conferência de Aparecida reconheceram, retomando o caminho anterior, que a opção pelos pobres deve atravessar todas as dimensões eclesiais, porque é uma marca teológica da fé em Jesus Cristo. Os rostos dos pobres e empobrecidos contém a presença do Senhor, que continua clamando por libertação e ressurreição. Reconhecem, também, profeticamente que “[...] a opção preferencial pelos pobres é uma das peculiaridades que marca a fisionomia da Igreja latino-americana e caribenha” (DAp 391). No centro desta Conferência, houve por parte do, então, Papa Bento XVI, a explicitação o princípio cristológico desta opção. “A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza” (DAp 392).

Esta opção pelos pobres tem se fortalecido cada vez mais depois de Aparecida, ao menos no âmbito do Magistério da Igreja. O Papa Francisco sem fazer rodeios têm proclamado: “no coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo ‘Se fez pobre’ (2Cor 8,9). Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres” (EG 197). E, inclusive, confessa: “posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se agarrar” (EG 7).

O Papa Francisco vem fortalecendo a importância da opção pelos pobres, não somente em afirmações teológicas, mas através de seu testemunho de vida. Entre as iniciativas, instituiu o dia mundial do pobre, celebrado sempre no terceiro domingo do mês de novembro, e a cada ano emite uma mensagem especial. Este ano a sua mensagem traz uma forte provocação no próprio título: “sempre tereis pobres entre vós” (Mc 14,7). Para o propósito desta reflexão:

Faço votos de que o Dia Mundial dos Pobres, chegado já à sua quinta celebração, possa radicar-se cada vez mais nas nossas Igrejas locais e abrir-se a um movimento de evangelização que, em primeira instância, encontre os pobres lá onde estão. Não podemos ficar à espera que batam à nossa porta; é urgente ir ter com eles às suas casas, aos hospitais e casas de assistência, à estrada e aos cantos escuros onde, por vezes, se escondem, aos centros de refúgio e de acolhimento. É importante compreender como se sentem, o que estão a passar e quais os desejos que têm no coração.

 E, tomando as palavras do Mazzolari diz: “gostaria de pedir” para não se perturbar “se existem pobres” e nem perguntar “quem são e quantos são, porque tenho receio que tais perguntas representem uma distração ou o pretexto para escapar duma específica indicação da consciência e do coração”. E acrescenta: “Os pobres, eu nunca os contei, porque não se podem contar: os pobres abraçam-se, não se contam” (PAPA FRANCISCO, 2021).

2. SINAIS DE RESSURREIÇÃO: DIGNIDADE HUMANA, BEM-COMUM E JUSTIÇA SOCIAL

Se a ressurreição não é algo do “passado” e tem uma “força sem igual”, seguindo as afirmações do Papa Francisco (EG 276), e se a fé e a pregação cristã dependem da ressurreição, ela precisa estar conectada com a história, por mais que em si seja um evento trans-histórico, que não depende das configurações da história. Consequentemente, torna-se importante escutar com atenção e discernir a presença do Ressuscitado soprando vida em abundância na realidade.

Dimensão importante, porque reconhece a “força sem igual”, da ressurreição atuando nos acontecimentos históricos. “A pastoral da Igreja não pode prescindir do contexto histórico onde vivem seus membros” (DAp 367). O que justifica falar de promoção da dignidade humana, de busca da concretização do bem-comum e da defesa incondicional da justiça social, como dimensões que integram o caminho salvífico da ressurreição.

 2.1- Dignidade da pessoa humana (Pressuposto de Vida).

Partindo do conceito de dignidade da pessoa humana, entendida de forma geral como qualidade inerente ao ser humano que o protege contra todo tratamento degradante e discriminatório, assegurando-lhe condições mínimas de sobrevivência. Encontramos, também este princípio na Encíclica Pacem in Terris, cujo conceito está direta e intrinsecamente ligado à natureza humana e não a leis.

Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão possui em si mesmo, direitos e deveres que emanam, direta e simultaneamente, de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis e inalienáveis (JOÃO XXIII, 1963, n. 9).

Tais direitos encontram-se consolidados, em grande parte dos Países democráticos, e se acham inscritos nas Cartas Constitucionais. No Brasil, este princípio da dignidade da pessoa humana, está previsto no artigo 1º, inciso III da CF/88: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento no inc. III - a dignidade da pessoa humana.

A dignidade, como dito, é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Sua finalidade, na qualidade de princípio fundamental, é assegurar à pessoa humana, um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade, atendidos pelo poder público, de forma a preservar a valorização do ser humano. Neste sentido, Flávia Piovesan, esclarece que:

A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora ‘as exigências de justiça e dos valores éticos’, conferindo suporte axiológico a todo o sistema brasileiro (PIOVESAN, 2004, p. 92).

Logo, como pilar básico, a dignidade da pessoa humana constitui-se fundamento que assegura os direitos que garantem a existência digna e não podendo ser relativizada por constituir valor absoluto dever de garantia por parte dos órgãos responsáveis e extensivo a todos, de modo especial para os que se encontrem em situação de vulnerabilidade.

Neste sentido, encontra ressonância no magistério da Igreja, quando este afirma que se trata de direitos “inatos” do ser humano. O Concílio Vaticano II pontuou que esta dignidade é inalienável, porque “foi criada à imagem de Deus” (GS 12), e que “a Igreja sente profundamente estas dificuldades e, instruída pela revelação de Deus, pode dar-lhes uma resposta que defina a verdadeira condição do homem, explique as suas fraquezas, ao mesmo tempo que permita conhecer com exatidão a sua dignidade e vocação” (GS 12). Eis que o ser humano é um ser social, que não pode viver e nem desenvolver as suas plenas qualidades sem entrar em relação com os outros. Portanto, coletivamente é que se mostra este caminho do aperfeiçoamento e concretização da dignidade humana.

Como afirma o Papa Francisco, “O crente, contemplando o próximo como irmão e não como estranho, olha para ele com compaixão e empatia, não com desprezo ou inimizade. E, contemplando o mundo à luz da fé, esforça-se para desenvolver, com a ajuda da graça, sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas da história.[1]

Em suma, em nossas ações estamos desafiados por uma ética que se sustenta no princípio da dignidade, porque todos sendo filhos e filhas de Deus, somos, indistintamente, seres com os mesmos direitos sem quaisquer discriminações ou interdições. 

2.2. Justiça Social: configuração da solidariedade 

Cumpre salientar inicialmente, antes de abordar a temática da Justiça social, que os conceitos de dignidade, justiça social e bem comum, não são estanques e separados um do outro. Pelo contrário, estão diretamente imbricados. Um não subsiste sem o outro. Tal afirmação pode ser comprovada pela leitura do conceito de “Justiça social”, aqui entendida como sendo uma construção moral e política baseada na igualdade de direitos e na solidariedade coletiva.

O conceito engloba ações que, dentro de uma sociedade composta pelos mais diferentes tipos de pessoas, e com as mais diferentes situações econômicas, promovam justiça e prezem pelo valor da igualdade material. Destes princípios deriva a luta pela melhoria das condições sociais daqueles que vivem em situação precária. Uma luta que se dá através de medidas práticas e protetivas para estas camadas sociais. Por exemplo: Cotas raciais, bolsa-família.

Transversalizando o conceito de justiça social, os Bispos na Conferência de Aparecidaesclarecem o sentido de sua preocupação baseada na igualdade de direitos e na solidariedade coletiva. Segundo o Episcopado, a justiça social está intrinsecamente ligada à defesa e opção do sujeito social, uma vez que este, está diretamente ligado à construção de novas estruturas sociais. Segundo os Bispos: na opção pelo sujeito social e na defesa de novas estruturas, o sujeito que deve ser alçado como o preferencial – é o pobre. Seu lugar social faz dos cristãos, também, agentes da criação de estruturas que consolidam uma ordem social, econômica e política, inclusiva de todos (DAp 406).

São João Crisóstomo, ainda no Século IV, afirma: “Deus não fez uns ricos e outros pobres. Deu a mesma terra a todos. As palavras “meu” e “teu” são motivo e causa de discórdia. A comunhão de bens é uma forma de existência mais adequada à natureza do que à propriedade privada (São João Crisóstomo apud BRIGHENTI, 2021, p. 110).

Recentemente, o Papa Francisco se referindo a este tema, afirmou: A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor ao bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde (EG 189).

Para a Igreja, em especial nos documentos da Doutrina Social, os direitos inalienáveis e intrínsecos à dignidade do ser humano, que conduzem à justiça social plena, são os que estão de acordo com a natureza do homem e que proporcionem uma vida em liberdade, dignidade e igualdade de direitos. Eles podem ser reconhecidos pela razão e radicam, em última análise, na dignidade que o homem possui pela sua condição de ser criado à imagem e semelhança de Deus.

Dessa forma, cada ser humano tem, desde o primeiro instante, uma dignidade intocável, porque desde toda a eternidade Deus o desejou, amou, criou, remiu e destinou para a eterna felicidade e salvação. Porque Deus tem o Seu olhar sobre o menor dos seres humanos, este possui uma dignidade infinita que não pode ser destruída por ninguém.

Todas pessoas, mas sobretudo os cristãos, devem fazer ouvir a sua voz quando se tornam conhecidos atentados contra esses direitos fundamentais ou quando determinados direitos não são ainda reconhecidos. Nesta direção, conclama Papa Francisco, a sair da comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho (EG 20). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário- até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo (EG 24).

2.3. Bem-comum: primazia do “Todo” da “Coletividade” 

Os conceitos acima mencionados, dignidade e justiça social, encontram-se diretamente relacionados ao conceito de bem comum. Este por sua vez, entendido como a concretização do bem estar para toda a coletividade. Para a sua concretização faz-se necessário que as partes que o compõem se igualem, em benefício do todo. Uma vez que se trata de direitos de todos, da coletividade requer um esforço comum para a sua realização e sua manutenção, finalidade última da vida social e que se encontra diretamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana.

A busca pelo bem comum como condição para a dignidade, a igualdade e a unidade do ser humano, é essencial, pois o bem comum busca “o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (GS 74).

A partir desta ótica, Paulo VI, na Octogesima Adveniens, com relação ao bem comum, o define como um bem autêntico e completo do ser humano.

[...] deve ter como finalidade a realização do bem comum. Assim, deverá ele agir com respeito pelas legítimas liberdades dos indivíduos, das famílias e dos grupos subsidiários, a fim de criar, eficazmente e para proveito de todos, as condições requeridas para atingir o bem autêntico e completo do homem (PAULO VI, 1977, nº 46).

 Do conjunto de benefícios que são compartilhados pela maioria dos membros de uma comunidade, de um coletivo e que merecem ser repartidos entre todos os membros de um grupo, se pode elencar como exemplos: o bem-estar, a água, mudanças climáticas, a felicidade, biodiversidade, a fé, a paz. São dimensões essenciais para a vida humana, bens de todos e para todos e que nos levam a pensar o todo como aberto à transcendência de Deus. A partir desta, se desenvolve, como refere o Papa Francisco, tudo que existe. Encontram-se na interdependência umas das outras, com o objetivo da complementariedade mútua e para todos (LS 79). Trata-se de um apelo à solidariedade e uma verdadeira opção preferencial para os mais pobres. Nesta opção encontra-se implicada uma exigência ética fundamental para a efetiva realização do bem comum.

Nesta direção, para Hurtado, o bem comum personifica-se ao seguir o “estilo” de Jesus em sua prática e ensinamentos. Nestes encontram-se representadas a manifestação da força libertadora diante de tantas injustiças e abusos; a solidariedade com os que sofrem, a defesa dos pobres em vista de uma vida mais digna e igualitária para todos.

O seguimento de Jesus configura e define a nova proposta de vida decorrente da sua pregação e da sua práxis. Essa nova proposta de vida continua mesmo depois do evento pascal, isto é, depois da morte e ressurreição de Jesus. Portanto, mais do que uma figura mística e fora do mundo, seguir Jesus significa hoje viver ao ‘estilo’ de Jesus e com isso promover a sua Ressurreição (HURTADO, 2012, p.12).

 Estes conceitos, dignidade, justiça social e bem-comum, encontram-se (in)diretamente relacionados nas mensagens dos evangelhos. Trata-se de um desafio constante para uma Igreja que se insere na realidade diária das pessoas e ainda para todos os cristãos, uma vez que não existe conversão ao Evangelho sem conversão à realidade, lugar aonde Deus se revela. Como nos diz Brighenti:

Quando a Igreja toma consciência de que ela está no mundo e que sua missão é contribuir com a salvação do mundo, ela se dá conta da necessidade, por um lado, de uma racionalidade indutiva, práxica, capaz de apreender a realidade circundante e de contribuir com uma ação evangelizadora consequente com os desafios de um contexto determinado, e, por outro, de uma ação pastoral pensada... a Igreja descobre e assume que não é o mundo que está na igreja, mas é a igreja que está “no” mundo (BRIGHENTI, 2021. p.15).

E, estando no mundo, não pode se fechar ou estar alheia às causas estruturais da pobreza, violência, fome e da exclusão promovia pela injustiça institucionalizada. Como a pobreza é um fenômeno estrutural, é preciso justiça social e uma mudança radical nas práticas, uma mudança nas estruturas de uma sociedade excludente (BRIGHENTI, 2021, p.55).

Esta reflexão não tem pretensão de encontrar respostas. Propõe-se suscitar e promover o diálogo, na direção do constante desafio pessoal e coletivo da “conversão em ações”, como afirmado por Brighenti: “Se não mudam as práticas, pouco ou nada muda” (BRIGHENTI, 2021, p.164).

Neste sentido, afirma-se cristãmente que a salvação que o Cristo trouxe não é algo a-histórico, transcendente ou para além desta vida, mas começa com uma transformação radical deste mundo e das situações de injustiça e de morte. A redenção não é uma realidade metafísica ou trans-histórica, mas tem uma concretude histórica. Como dizem os Bispos do Celam em Medellín:

É o mesmo Deus que, na plenitude dos tempos, envia seu Filho para que feito carne, venha libertar todos os homens, de todas as escravidões a que o pecado os sujeita: a fome, a miséria, a opressão e a ignorância, numa palavra, a injustiça que tem sua origem no egoísmo humano (Jo 8,32-34) (Justiça, 2).

Narrativas bíblicas assinalam que o caminho do seguimento produz ressurreição quando os discípulos servem e acolhem os vulneráveis, os invisibilizados, os excluídos; quando se fazem humildes e simples como as crianças. Por isso, são sinais de ressurreição também a cultura do “encontro”, os gestos de vida e bens partilhados, a escuta compassiva e ativa, na forma proposta pelo Papa Francisco. Porque aquilo que salva não é uma ideia, mas um encontro com uma pessoa (Jesus Cristo). E o rosto do outro é capaz de despertar para a conversão e a mudança de vida.

Para Marcelo Barros, o que Jesus fez de mais revolucionário politicamente não foi nenhuma atividade diretamente subversiva no plano social ou político; e sim transmitir uma nova forma de compreender quem é Deus e uma nova forma de relacionamento com a divindade. Na meditação dos evangelhos se encontra como Jesus se relacionava com o Deus-Pai de Amor. Segundo Barros, este Deus que é Abba, paizinho:

está radicalmente interessado na causa dos oprimidos, e quando Jesus, seu filho foi condenado à morte em Cruz, Ele mesmo, Deus se tornou, como afirmou Jungmann Moltmann, um Deus Crucificado... A Ressureição é o amor que vence a morte, mas na cruz e através da cruz, não como projeto divino (A cruz não é a vontade de Deus) e sim como um amor que vai além da crueldade humana que se expressa na cruz....Ressuscitar é como se insurgir e se libertar duas vezes. Poderíamos de forma fantástica imaginar um termo como re-insurreição, ou seja, uma insurreição nova e mais radical (BARROS, 2019, p. 165-166).

Resta, portanto, assinalar que se Jesus ressuscitou, foi para que em nome do Deus da vida inspire a insurreição contra políticas públicas e partidária que penalizavam e penalizam ainda hoje o povo, especialmente os mais pobres. Também foi em concretude de um amor profundo de Deus pelo seu povo, um Deus misericordioso, que quer a vida e não a morte. Reforçando a ação em vista de uma nova relação libertadora para com a natureza, para com todos e para com Deus, a fim de promover a dignidade, bem-comum e uma justiça maior, concretizando assim a verdadeira ressurreição.

3. Ressurreição na perspectiva das vítimas e da missão cristã na história

Seguindo a perspectiva aberta pelo teólogo Jon Sobrino, o final da vida de Jesus não foi seu fim, do escândalo da cruz surgiu a novidade do impossível. A partir da ressurreição de Jesus, há a aceitação por parte de seus discípulos de que a suprema e irrevogável revelação do que é Deus, do que é Jesus e do que são eles mesmos (SOBRINO, 2009, p.134). O mesmo autor afirma que este escândalo e o temor incutido, a desesperança da morte pela cruz, deu lugar a compreensão de que:

O fato fundamental consiste na afirmação do que a cruz não foi o final de Jesus… a) Jesus vive, foi visto, apareceu; b) Jesus foi exaltado, está à direita do Pai, é aquele que há de vir para julgar; c) Jesus foi ressuscitado por Deus dentre os mortos. Dessa forma, afirmam que a vida e a causa de Jesus foram verdadeiras e que aquilo a que Jesus faz referência, reino de Deus e Deus do reino, não pode agora ser entendido sem Jesus (SOBRINO, 2009, p. 134).

 Nesta direção Pagola, afirma que a ideia de Ressurreição pode ser expressada com dois termos: “levantar” e “despertar”. Deus “despertou” Jesus, o crucificado, o pôs de pé e o “levantou” para a vida. Trata-se da atuação amorosa de Deus, seu Pai (PAGOLA, 2016, p. 491). Segundo a reflexão de Zugno,

[...] é preciso estar muito distanciado da vida deste para não perceber aqui, na afirmação da proximidade de Cristo, manifestada pela expressão ‘Cristo pobre’, uma confissão da presença de Deus na história concreta da humanidade. Uma confissão de Jesus, Filho de Deus, não da boca para fora, mas brotando todos os dias de seus sofrimentos, lutas e esperanças; não de uma ‘ortodoxia’ que se esgota em si mesma, mas de uma verdade vital e profunda e, ao mesmo tempo, pensada e afirmada (ZUGNO, 2008, p.18).

E, se Jesus ressuscitou a sua causa continua e prossegue sua obra; é na fé no Deus que salva e liberta que ela se encontra em sua completude, fé que se abre a uma esperança: a esperança do Reino para todos. Ainda, para Sobrino subjaz, a dialética dentro de Deus de fidelidade à história, entregando Jesus, e de poder sobre a história, ressuscitando-o, de um amor eficaz na ressurreição e crível na cruz (SOBRINO, 2009, p. 134). Nesta contraposição e reconciliação de contradições, de movimento e de aparente imobilidade, encontra-se revelada a eficácia do amor mais profundo: amor-doação. 

O amor à humanidade, representada por Jesus, agora ressignificado e cujo ressurgimento, revivescimento traduz o poder de Deus sobre a história através da ressurreição. O mais importante não é a vitória em si, como se fosse uma revanche de Deus sobre os assassinos, mas sua mensagem de erguimento em favor dos mais desvalidos que [precisam] precisa ser continuada por quem crê na ressurreição.

E, nesta direção, somente em uma relação de alteridade com o “outro”, convivendo e se solidarizando em ações concretas é que se encontra a verdadeira autonomia do humano que está na pró-existência de quem toma como norma de sua vida o ser para os humanos. Sobrino ressalta que esta autonomia não consiste na supraexistência de quem está por cima dos demais, nem na contraexistência de quem está contra eles, e sim o estar com outro, na alteridade. (SOBRINO, 2009, p. 134).

O termo “alteridade” é no entendimento de Costa, como sendo a ação do humano sobre o humano, e que se dá como transformação do ser humano na abertura para seu semelhante. Implica sempre uma resposta, uma abertura em forma de ação, de acolhida, de pensamento e de interpretação. O Outro, que me precede, põe-se à minha frente e me chama à responsabilidade ética (COSTA, 2013, p. 47).

E, esta responsabilidade ética acarreta na valorização de cada pessoa humana e no reconhecimento do outro. Nas palavras do Papa Francisco: A abertura a um “tu” capaz de conhecer, amar e dialogar continua a ser a grande nobreza da pessoa humana (LS 119) e com isso a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesmo para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas (LS 240).

Na perspectiva bíblica, o “outro” por excelência é o pobre, a viúva, o órfão e o estrangeiro. Ainda neste sentido, com relação ao outro, segundo o evangelho está ligado com o lugar teológico. Como tem sido enfatizado por vários autores há a necessidade de voltar ao lugar dos pobres, das periferias, que é a “Galileia” de sempre. Segundo Pagola:

É preciso “retornar à Galileia” para seguir seus passos: é preciso viver curando os que sofrem, acolhendo os excluídos, perdoando os pecadores, defendendo as mulheres e abençoando as crianças; é preciso fazer as refeições abertas a todos e entrar nas casas anunciando a paz; é preciso contar parábolas sobre a bondade de Deus e denunciar toda religião que vá contra a felicidade das pessoas; é preciso continuar anunciando o reino de Deus está próximo. Com Jesus é possível um mundo diferente, mais amável, mais digno e justo. Há esperança para todos: “Retorna à Galileia. Ele irá à Vossa frente. Ali o vereis (PAGOLA, 2016, p. 514).

 Experimentar a ressurreição a partir da Galileia se torna “uma força sem igual”, para fazer irromper a vida onde tudo parece ossos secos sem espírito. A ressurreição se revela na pluralidade de caminhos e sensibilidades: na(s) defesa(s) da vida, o respeito e preservação pela criação, no compromisso com os mais vulneráveis, na luta pela justa distribuição das riquezas, na partilha da terra e do pão, na resistência ao consumismo desenfreado, no respeito ao diferente.

Este é o caminho que leva a unir-se aos gritos dos milhões de pessoas que neste mundo estão excluídas do mínimo necessário para as suas vidas. Em outras palavras, dizendo com Marcelo Barros: “como Ezequiel receber de Deus o encargo de ‘profetizar ao Espírito’, para que este mundo se transforme de um vale de ossos secos e ressequidos em uma terra nova na qual a justiça ecossocial e a paz possam florescer” (BARROS, 2021, p. 93). Profetizar ao Espírito para que o mundo deixe de ser um vale de ossos secos e se transforme em terra do bem-viver, Pacha Mama.

A fé no ressuscitado imprime uma radicalidade no seguimento, força para viver com plenitude o compromisso que busca a transformação da sociedade e de suas estruturas de morte em oásis de vida para todas as pessoas. Ou como expressa a teóloga Bingemer:

O seguimento de Jesus e a pertença à sua comunidade implica uma extrema atenção e uma disponibilidade incondicional para servir às necessidades básicas, materiais e corpóreas dos seres humanos: dar pão aos que têm fome, água aos que têm sede, vestir os nus, evangelizar aos pobres e libertar os cativos. Trata-se de um projeto para transformar a realidade no sentido do senhorio de Deus, a construção de uma nova humanidade (BINGEMER, 2008, p.74).

 Desta forma, se percebe que a ressurreição é um processo que começa com Jesus e se expande pela humanidade e pela história, como enfatiza Boff: 

sempre que triunfa a justiça sobre as políticas de dominação, sempre que o amor supera a indiferença, sempre que a solidariedade salva vida sob risco como agora, obrigados ao isolamento social, aí está ocorrendo a ressurreição, vale dizer, a inauguração daquilo que tem futuro e será perenizado para sempre (https://leonardoboff.org/2021/04/03/a-ressurreicao-como-insurreicao-o-verdugo-nao-triunfa-sobre-a-vitima/Acesso em outubro de 2021).

 Cumpre salientar que para a fé cristã o pensamento da ressurreição não é revivificação de um cadáver, mas a total realização das capacidades do homem, a superação de todas as alienações que machucam a existência desde o sofrimento, a morte e também o pecado e, que a ressurreição é a realidade da utopia do reino de Deus para a situação humana, e resposta completa à esperança humana. 

CONCLUSÃO

O objetivo da reflexão foi compreender a relevância da ressurreição para a práxis cristã. Porque como instiga o teólogo Jon Sobrino, se um acontecimento que é determinante na vida da fé não imprimisse nenhuma consequência na história, em termos de esperança, libertação e salvação, seria desesperador e desalentador.

Nesta direção foram abordados inicialmente quais são, na atualidade, alguns dos principais sinais de morte que se encontram em nosso contexto. Sinais que precisam ser compreendidos a partir das decisões econômicas e ações políticas dos governos, que privilegiam o grande capital nacional e internacional. As consequências são o aumento assustador da exclusão, miserabilidade e desigualdades, cujos reflexos incidem nas relações em sociedade, familiar e individualmente, traduzindo-se muitas vezes em violência física, moral e psicológica de desesperanças. Claro que os mais atingidos são sempre os fracos e vulneráveis na sociedade, os pobres e dentre eles, as mulheres, crianças, negros, indígenas. Ao ponto de hoje, estar sendo publicizado e denunciado a existência de mais de 20 milhões de brasileiros em situação de fome. Fato que deve provocar e desacomodar para ações concretas de fraternidade e solidariedade.

Em seguida, e na perspectiva de que a Igreja deva ser sinal de esperança, samaritana e missionária, ou como nos diz Brighenti “[...] passando de um passivo esperar a um ativo buscar e chegar aos que estão longe com novas estratégias” (BRIGHENTI, 2021, p. 219), foram suscitados os conceitos de dignidade humana, justiça social e bem comum, na defesa de que ao serem colocados em prática, encontram consonância com os ditames abordados pela doutrina social da igreja. Estes elementos podem e devem ser traduzidos como elementos de esperança e de ressurreição, ou ainda como destacado, de re-insurreição nova e mais radical, na direção de que o todo é muito mais do que a mera soma das partes e na perspectiva de que a parte dentro de um todo passa a ser “porção”. E, neste sentido, na visão e sob a ótica histórica de que esta “porção”, é o Povo de Deus que ainda hoje caminha esperançoso pela libertação.  

Nesta direção, Deus continua caminhando junto de seu povo. O mesmo Deus que ressuscitou Jesus, quer a vida e em abundância para todos/as. Por isso, exige a radicalidade do seguimento e do compromisso pela transformação da sociedade. Desta forma, os cristãos atacando as estruturas de morte, promovem a ressurreição das vítimas, através de ações práticas de fraternidade e solidariedade. Junto aos mais vulneráveis e invisibilizados pela sociedade da morte, fazem triunfar a justiça sobre as políticas de dominação. Provoca que o mistério divino, traduzido pelo amor radical e sem medidas, sob a perspectiva da alteridade vista sob a perspectiva do encontro com o(s) outro(s), como instância de enriquecimento e de novas possibilidades, que se inaugure uma nova forma de vida, preconizada e praticada por Jesus. 

E aos que duvidam da presença do ressuscitado, ou mesmo diante das dificuldades não diferentes dos discípulos de ontem, que imaginaram um fantasma, ou jardineiro, fica este pequeno conto de Boff esclarecedor.

Certa feita um velho e santo monge foi visitado em sonho pelo Ressuscitado. Este, o Ressuscitado, o convidou para passearem pelo jardim. O monge acedeu com entusiasmo e cheio de curiosidade. Depois de andarem longo tempo, para frente e para trás pelo caminho do jardim como fazem os monges depois do almoço, ainda hoje, o santo e velho religioso ousou perguntar: ‘Senhor, quando andavas pelos caminhos da Palestina, dissestes, certa feita, que voltarias um dia com toda a pompa e glória. Está demorando tanto esta sua volta!’ Depois de momentos de silêncio que pareciam uma eternidade, o Ressuscitado respondeu: ‘meu irmãozinho querido: quando minha presença no universo e na natureza  for evidente; quando minha presença sob a tua pele e no teu coração for tão real quanto a minha presença aqui e agora; quando esta consciência se tornar corpo e sangue em ti a ponto de não mais pensares nisso; quando estiveres tão imbuído desta verdade que não mais precisas perguntar com curiosidade, então, meu querido irmão, eu terei retornado com toda a minha pompa e glória (https://leonardoboff.org/2021/04/03/a-ressurreicao-como-insurreicao-o-verdugo-nao-triunfa-sobre-a-vitima/).

 Concluir parafraseando o Papa Francisco: O ressuscitado está entre nós apenas nas fímbrias do mistério; quem crer e for sensível perceberá sua presença em cada vida resgatada, na justiça e misericórdia acontecendo, nos pobres e escravos libertados, na eucaristia celebrada., no povo com terra, trabalho e teto. 

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ZUGNO, Luis Vanildo. A Cristologia das Conferências do Celam. Cadernos Teologia Pública- Instituto Humanitas Unisinos- Ano V – nº 43 – 2008.

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Notas

[1] Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2020/documents/papa- francesco_20200812_udienza-generale.html.