ARTIGO

Currículo e material didático no ensino de línguas estrangeiras: reflexões e apresentação de uma proposta

Curriculum and teaching materials in foreign language teaching: reflections and presentation of a proposal

Rogério TILIO

rogeriotilio@letras.ufrj.br

Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil .

FLUXO DA SUBMISSÃO Submissão do trabalho: 25/01/202 3 Aprovação do trabalho: 22/03/202 3 Publicação do trabalho: 07/04/2023

Resumo

Currículo: ponto de partida para um programa de ensino de línguas estrangeiras. Livros e outros materiais didáticos: elem entos articuladores do currículo nas práticas pedagógicas. Muitas vezes o material didático, especialmente o livro didático, acaba exercendo o papel de currículo. Contudo, o material didático é apenas parte do currículo, e precisa ser concebido com base nele. Em outras palavras, o material didático deve estar a serviço do currículo, e não o contrário. Como intuito de se chegar a umaproposta curricular de ensino de língua estrangeira, parte-se da definição de currículo apresentada por Jobrack (2011), de princípios básicos para a elaboração de um currículo (TYLER, 1949) e da discussão de teorias do currículo (TADEU DA SILVA, 2000). Considerando-se que o currículo implica uma linha teórico metodológica, é apresentada uma pedagogia de letramento sociointeracional crítico (TILIO, 2015, 2016a, 2017, 2018, 2019a, 2019b) para o ensino de língua estrangeira e, em seguida, uma proposta de macrocritérios para a elaboração de currículos e/ou materiais didáticos (TILIO, 2016b).

https://doi.org/10.23925/2318 - 7115.2023v44i1a2

Palavras-chave: Currículo; Material Didático; Letramento

Sociointeracional Crítico; Macrocritérios.

A bstract

Curriculum: starting point for a foreign language teaching program. Coursebooks and other teaching materials: elements that articulate the curriculum into pedagogical practices. Teaching materials, especially the coursebook, often end up playing the role of curriculum. However, teaching materials are only part of the curriculum, and need to be designed based on it. In other words, teaching materials should be implemented according to the curriculum, not the other way around. In order to propose a curriculum model for foreign language teaching, we start from the definition

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of curriculum presented by Jobrack (2011), from basic principles for curriculum design (TYLER, 1949), and from the discussion of curriculum theories (TADEU DA SILVA, 2000). Considering that curriculum implies a theoretical-methodological line, a critical socio-interactional literacy pedagogy (TILIO, 2015, 2016a, 2017, 2018, 2019a, 2019b) for foreign language teaching is presented, followed by macro - criteria for the development of curricula and/or teaching materials (TILIO, 2016b).

Keywords: Curriculum; Teaching Materials; Critical Sociointeractional Literacy; Macrocriteria. 1. Introdução

Uma questão que sempre me chamou a atenção, inicialmente enquanto professor de língua estrangeira, e posteriormente como formador de professores, é o papel atribuído ao livro didático no ensino. O que deveria ser apenas mais um recurso à disposição do professor, acaba se tornando, em diversos contextos, um regulador do trabalho pedagógico – seja por meio de uma obrigatoriedade institucional ou pelo uso pouco crítico do material. Ao invés de auxiliar o professor no cumprimento de um programa pedagógico, o livro didático pode acabar, muitas vezes, tomando o lugar do próprio currículo e passando a ser uma voz dominante durante o processo de ensino e aprendizagem.

Enquanto professor, pude perceber que diversas instituições não se preocupam com a elaboração de um currículo, mas com a adoção de um livro didático. No início de cada perí odo letivo, não recebia um currículo a ser cumprido, mas um livro a ser seguido. O conteú do programático era determinado pelo livro adotado. Quando a instituição mudava o livro, o “currículo” do nível mudava também. Gosto de mereferir a tal comportamento como “a ditadura do livro didático” (TILIO, 2006). Apesar de me referir a experiências passadas, meus alunos relatam que esse cenário ainda perdura.

Assumindo que o currículo é o ponto de partida para um programa de ensino, livros e outros materiais didáticos são elementos articuladores do currículo nas práticas pedagógicas. Muitas vezes, entretanto, o material didático, especialmente o livro didático, acaba exercendo o papel de currículo. Contudo, o material didático é apenas parte do currículo, e aquele precisa ser concebido com base neste. Em outras palavras, o material didático deve estar a serviço do currículo, e não o contrário. Com o objetivo de apresentar uma proposta de elaboração de currículo para o ensino de língua estrangeira, este texto parte da definição de currículo apresentada por Joubrack (2011), de princípios básicos para a elaboração de um currículo (TYLER, 1949) e da discussão de teorias do currículo (TADEU DA SILVA, 2000). Considerando-se que o


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currículo implica uma linha teórico-metodológica, é apresentada uma pedagogia de letramento sociointeracional crítico (TILIO, 2017, 2018, 2019a, 2019b) para o ensino de língua estrangeira e, em seguida, uma proposta de macrocritérios para a elaboração de currículos, que também serve à elaboração de materiais didáticos (TILIO, 2016).

2. Currículo e material didático

Muitas são as definições de currículo. Tradicionalmente, pode ser conceituado como “lista de matérias a estudar sob orientação do professor, experiências de aprendizagem para desenvolver habilidades que preparem para a vida; seriação de estudos realizados na escola” (SOARES, 1993, p. 68). A partir da década de 1930, sob a influência do trabalho de John Dewey, passou a ser associado às experiências dos alunos, reconhecendo a necessidade de considerar suas diversas dimensões. Nesse sentido, Tyler (1949), considerado um clássico nos estudos do currículo, propõe quatro etapas para o planejamento curricular:

1. Objetivos: que objetivos educacionais devem ser atingidos?

2. Seleção de conteúdos e experiências: que conteúdos e experiências educacionais podem ser oferecidas para possibilitar a consecução dos objetivos planejados?

3. Organização de conteúdos e experiências: como os conteúdos e experiê ncias educacionais podem ser organizadas de modo eficiente?

4. Avaliação: como mensurar se os objetivos estão sendo alcanç ados?

Tal concepção alia o lado técnico às experiências dos alunos, mas ainda concebe o currículo como “uma prática neutra, instrumento de racionalização da atividade educativa e controle do planejamento” (CAMPOS; SILVA. 2017, p.32). Isso ocorre porque está ligada a uma teoria tradicional de currículo. Diferentes teorias do currículo priorizam a presença de diferentes elementos na elaboração do currículo.

Teorias tradicionais de currículo tendem a se ater apenas aos elementos técnicos do processo de ensino e aprendizagem, compreendidos supostamente de forma neutra: ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência e objetivos. Sem desconsiderar tais elementos, até porque alguns deles articulam-se diretamente com os princípios de elaboração supramencionados, teorias críticas de currículo incorporam preocupações que extrapolam o nível exclusivamente pedagógico e passam a incorporar o

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ambiente sociocultural: ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social, capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação, currículo oculto e resistência. Por sua vez, as teorias pós-críticas de currículo, sem desmerecer as preocupações das teorias críticas, abrem espaço para a conscientização crítica por meio do engajamento com as diferenças e da problematização: identidade, alteridade e diferença, subjetividade, significação e discurso, relação saber-poder, representação, cultura, questões de gênero, raça, etnia e sexualidade, e multiculturalismo (TADEU DA SILVA, 2000).

O currículo de língua estrangeira, entretanto, não parece ter ainda incorporado teorias críticas e pós-críticas do currículo. Isso talvez possa ser explicado pelo caráter aparentemente meramente instrumental atribuído ao ensino de língua estrangeira: o de aprender a língua para usá-la em interações com falantes nativos. Nesse contexto, não causa estranheza uma definição de currículo como a proposta por Jobrack (2011): atividades de ensino, aprendizagem e avaliação e materiais organizados e disponibilizados para o ensino de determinada disciplina. O currículo é entendido como a substância daquilo que é ensinado; envolve materiais educacionais e instrucionais, sejam eles impressos ou digitais: livros didáticos, livros-texto, livros de atividades, experiências e atividades práticas – materiais que professores utilizam para prover conteúdos em suas aulas diárias, para quaisquer disciplinas e em quaisquer níveis (JOBRACK, 2011).

Essa última definição merece atenção por incorporar os materiais didáticos ao currículo, mas também por superestimá-lo. O material didático, sobretudo o livro didático, ocupa lugar de destaque no cenário educacional, especialmente no ensino de línguas: deve ser seguido (CORACINI, 1999); dita grande parte do comportamento do professor em aula (DIAS; CRISTÓVÃO, 2009); a principal fonte de informação no contexto pedagógico (JOHNS, 1997); a principal arma no arsenal do professor (GRANT, 1987), a fonte mais utilizada no ensino, uma fonte de saber institucionalizado (CARMAGNANI, 1999); o depositário de um saber estável a ser decifrado, descoberto e transmitido ao aluno (SOUZA, 1995a); tradicionalmente, o principal mediador no ensino, a principal fonte utilizada por professores (SOUZA, 1999b). Nesse contexto de ensino de línguas, é uma prática recorrente tomar um livro didático como currículo. No entanto, é preciso destacar que o livro didático não é o currículo – apesar do papel fundamental que o primeiro pode vir a desempenhar no segu ndo.

O livro didático pode ser definido como um conjunto de recursos a serem pedagogicamente utilizados como intuito de mediar a aprendizagem. Conceituar o livro didático


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como um conjunto de recursos significa considerá-lo simultameamente um gênero discursivo e um hipergênero (TILIO, 2016). Ele é um gênero porque possui características próprias de conteúdo temático, construção composicional e estilo (BAKHTIN, 1952-1953), com um propósito específico, e circula em determinada esfera social; ao mesmo tempo, é um hipergênero porque uma de suas características é justamente reunir diversos outros gêneros, escritos e orais, de diferentes esferas de circulação, com um propósito específico na esfera pedagógica. Apesar de ser umhipergênero e formar umtodo coerente, seu uso não é necessariamente engessado. Esse conjunto de recursos que forma o hipergênero funciona como um banco de materiais, do qual o professor pode selecionar itens que satisfaçam as necessidades do seu currículo e do seu planejamento. Dessa forma, o livro didático é entendido como um instrumento, jamais como o currículo; em vez de adotar um livro didático, espera-se que o professor o adapte, modificando, retirando e incluindo o que for preciso conforme suas necessidades pedagógicas e seu currículo. É preciso salientar que duas dimensões podem ser dadas ao currículo: uma dimensão institucional, ou até mesmo governamental, e uma dimensão local, mais situada. No primeiro caso, o currículo vem de cima, é imposto, elaborado por instituições de ensino e/ou órgão governamentais; no segundo caso, ele é elaborado pelo docente. Contudo, vale ressaltar que o primeiro não anula o segundo; em outras palavras, mesmo com um currículo impositivo, espera - se que o professor operacionalize esse currículo em seu próprio currículo, muitas vezes chamado de programa. Isso porque, pode-se dizer, o currículo elaborado por instituições é mais impessoal, pensado para um grupo bastante generalizado e heterogêneo, enquanto o currículo elaborado por docentes para seus aprendizes é mais direcionado e localizado. Nesse sentido, o currículo do professor reflete sua leitura do currículo institucional, ao transpô-lo para a dimensão local.

Antes de discutir efetivamente uma proposta de elaboração de currículo, faz- se necessário discutir as premissas para o ensino de língua estrangeira que fundamentam e permeiam tal proposta.

3. O ensino de língua estrangeira

Na sociedade atual, globalizada, densamente semiotizada e marcada por desigualdades profundas, uma língua estrangeira pode ser tida como capital cultural (BOURDIEU, 1977), um

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bem simbólico valorizado (MOITA LOPES, 2005) que possibilita a seus usuários mais acesso ao mundo contemporâneo globalizado, dado o seu caráter de língua franca (SEIDLHOFER, 2011). Dito de outra forma, pode contribuir para a construção do capital social (WARSCHAUER, 2003), entendido aqui como a capacidade que os indivíduos têm de gerar benefícios para si e para suas comunidades por meio de interações sociais. Desse modo, ele pode assumir um papel fundamental na transformação social e, para tanto, é essencial que seu ensino seja orientado por uma perspectiva crítica (MUSPRATT; LUKE; FREEBODY, 1997), com vistas à construção de multiletramentos (THE NEW LONDON GROUP, 1996) e à participação ativa do indivíduo na contemporaneidade (ROJO; MOITA LOPES, 2004). Tal proposta pedagógica é aqui chamada de pedagogia do letramento sociointeracional crítico (TILIO, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019a, 2019b). O compromisso com a construção da cidadania, de forma ética e protagonista (ROJO; MOITA LOPES, 2004), por meio da aprendizagem de uma língua estrangeira acarreta o desafio de transcender visões estruturalistas e comunicativas que têm prevalecido no currículo e na produção de materiais didáticos, visando imprimir nesse contexto características sócio - historicamente orientadas que permitam tratar, de modo situado, questões ideológicas, culturais e identitárias que permeiam toda prática linguística. Aprender uma língua significa mais que se tornar capaz de se comunicar nela; significa aprender conhecimentos a ela relacionados e saber utilizá-los ativamente com vistas à mudança social.

A linguagem e a aprendizagem, portanto, são entendidas dentro de uma perspecti va sociointeracional (BAKHTIN, 1952-1953; VOLÓCHINOV, 1929; VYGOTSKY, 1978, 1939), ou seja, situadas socialmente e construídas em interações, tornando os aprendizes aptos a agir no mundo globalizado, integrando-o e transformando-o. Essa teoria, também referida como teoria sociocultural ou sociointeracionista, tem como objetivo caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento por meio do levantamento de hipóteses de como essas características se formaram no curso da história humana e de como elas se desenvolvem durante a vida de um indivíduo. Ela sugere, ainda, que o desenvolvimento humano é fruto da interação dialética do ser humano com o meio externo — social e cultural —, tendo em vista que ele é agente e produtor de cultura, transformador e transformado constantemente pelo meio no qual vive.

Em uma abordagem sociointeracional, portanto, aprender uma língua estrangeira significa orientar e sensibilizar os/as estudantes emrelação ao mundo multilíngue e multicultural


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em que vivem, conscientizando-os acerca de diferenças culturais e levando-os a respeitar mais o outro e conhecer melhor a si mesmos (MOITA LOPES, 2003), uma vez que é por meio do olhar do outro que se aprende a se conhecer melhor. Além disso, o conhecimento dos discursos em língua estrangeira pode permitir acesso aos mais diferentes tipos de conhecimento no mundo globalizado contemporâneo. O acesso à língua estrangeira, portanto, pode permitir maior inclusão social no mundo globalizado .

Portanto, em uma abordagem sociointeracional, a aprendizagem de uma língua deve envolver a construção de três tipos de conhecimento: conhecimento do sistema linguístico (conhecimento sistêmico), conhecimento da organização dos discursos na língua (conhecimento de organização textual) e conhecimento de mundo. É a partir da interseção desses três tipos de conhecimento que significados são negociados e o conhecimento da/sobre a língua é construído (BRASIL, 19981 ).

Mais do que tornar o indivíduo apto a se comunicar numa língua, o acesso a discursos em uma língua adicional também pode servir para empoderá-lo, uma vez que ele passa a ter acesso a algo que antes desconhecia. De posse desse conhecimento, o indivíduo passa a ter a escolha de tornar-se parte desses novos discursos, construindo e exercitando sua cidadania no mundo globalizado e tendo condições de atuar tanto global quanto localmente.

Em contrapartida, esses mesmos discursos globalizados, que não são únicos, mas que muitas vezes se pretendem absolutos, podem difundir uma ideologia hegemônica que alcança e influencia rapidamente grande parte da população em escala global, beneficiando aqueles a quem tal discurso interessa (MOITA LOPES, 2003). O conhecimento desses discursos pode capacitar seus conhecedores à resistência, construindo, então, uma “outra globalização” (SANTOS, 2000), que, em vez de globalizar a hegemonia, abarca a pluralidade e a diversidade, problematizando as diferenças.

Nesse sentido, três aspectos do ensino de línguas estrangeiras que reforçam o uso do inglês na vida contemporânea para construir novos discursos anti-hegemônicos merecem ser destacados (MOITA LOPES, 2003):

1 Apesar dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998) e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio – OCEM (BRASIL, 2006), não serem mais documentos vigentes, o artigo faz referência a elas em reconhecimento a suas contribuições para pensar a educação brasileira.

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• a elaboração de uma base discursiva em que os/as estudantes se envolvam na construção do significado, de forma que aprender uma língua seja entendido como aprender a se engajar criticamente nos significados produzidos nela, reconhecendo posicionamentos discursivos e sabendo que é possível construir novos significados para alterar esses posicionamentos, que às vezes podem ser de exclusão;

• o desenvolvimento da consciência crítica em relação à linguagem, pois seu uso envolve escolhas de possibilidades de significados por meio dos quais se age no mundo e se colabora para constituí- lo;

• o foco na transversalidade, ou seja, em questões que permeiam a vida social contemporânea (saúde, gênero e sexualidade, vida familiar e social, direitos das crianças e dos adolescentes, preservação do meio ambiente, educação para o consumo, educação fiscal, trabalho, ciência e tecnologia, diversidade cultural, condição e direitos dos idosos, educação para o trânsito, tecnologias da informação e comunicação – cf. BRASIL, 20132), já que, ao usar a linguagem, as pessoas constroem significados acerca desses temas transversais, construindo a si mesmas e o mundo social à sua volta.

O ensino de língua estrangeira mostra como os temas transversais são abordados nos discursos nessa língua, permitindo, a partir daí, reflexões críticas e transposições problematizadoras para o espaço social dos/as estudantes. É importante ressaltar que não se trata de julgar, ou mesmo de comparar, mas de pensar criticamente as diferenças, propondo uma reflexão com base em diferentes contextos. O ensino de línguas, em geral, é um espaço privilegiado para a discussão de tais questões, pois trata do ensino de linguagem por meio do seu próprio uso.

A língua estrangeira assume, assim, um papel educacional e pragmático para a construção da cidadania, servindo de instrumento de libertação e inclusão social (BRASIL, 1998). Seu ensino, portanto, envolve uma série de questões que extrapolam sua organização sistêmica (lexical e gramatical), devendo abarcar também escolhas temáticas responsáveis pela situacionalidade social, histórica e cultural do ensino e pelas escolhas de organização textual — gêneros discursivos que articulam, de um lado, o conteúdo temático e, de outro, a estrutura composicional e o estilo da linguagem (BAKHTIN, 1952-1953), dando conta não apenas da

2 A última referência a temas transversais nos documentos oficiais é nas Diretrizes Curriculares Nacionais – DCN. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o documento mais recente, não aborda diretamente temas transversais, como fizeram PCN, OCEM e DCN.


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estrutura textual e de mecanismos de coesão e coerência, mas também de questões como variação linguística e pluralidade cultural.

Nesse sentido, a teoria sociointeracional de ensino e aprendizagem não só corrobora a ideia de abordagem informada (BROWN, 2007), na qual o/a professor/a precisa tomar decisões informadas, conscientes e que melhor se adequem a seu contexto e aos/às estudantes, mas ainda a extrapola, propondo também uma abordagem conscientizadora, que salienta a função educacional do ensino de língua estrangeira, preparando os/as aprendizes para pertencer ao mundo globalizado e nele agir. É essa função conscientizadora, de cunho crítico, que distingue a abordagem sociointeracional da abordagem comunicativa (TILIO, 2014).

A linguagem e a aprendizagem são construídas nas interações sociais. Assim, as formas de linguagem, sejam elas padrão ou não, são categorizadas desse modo segundo convenções sociais estabelecidas para determinadas interações. A linguagem serve às interações sociais, pois não se interage sem linguagem. Da mesma forma que não há interação sem linguagem nem linguagem sem interação, não há aprendizagem sem a necessidade de os/as aprendizes interagirem s ocialmente.

A linguagem é compreendida de forma plural (abarcando as diversas semioses consideradas na teoria dos multiletramentos [COPE; KALANTZIS, 2000; KALANTZIS; COPE, 2012; THE NEW LONDON GROUP, 1996], sendo a língua uma dessas semioses), dinâmica e (re)construída socialmente, em diálogo com seus contextos de circulação e seus usuários, e aberta (sempre sujeita a modificações). Dentro da perspectiva dos multiletramentos, a linguagem é multimodal —expressa por modos de significação múltiplos e diversos (escritos, orais, visuais, sinestésicos etc.) —e multicultural – variando de acordo com diferentes contextos culturais. O conhecimento de uma língua extrapola as habilidades, muitas vezes mecanicistas, de ler, escrever, falar e escutar. O conhecimento da língua envolve capacidades de letramentos, entendidos como modos culturais de construir significados: ver, descrever, explicar, entender e pensar (THE NEW LONDON GROUP, 1996). Dentre esses letramentos pode-se destacar o linguístico, o visual, o sonoro, o não verbal, o digital, o multimodal, o multicultural e o crítico. Tais letramentos não são isolados e não possuem fronteiras claras, perpassando uns aos outros no discurso. Uma abordagem sociointeracional de ensino de língua estrangeira não só deve

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procurar dar conta dos multiletramentos como também assegurar a onipresença do letramento crítico durante todo o processo de ensino e aprendizagem.

Compatível com uma teoria sociossemiótica de linguagem e sociointeracional de aprendizagem, na medida em que trata o ensino como uma prática sociocultural, por meio da oportunização de situações de interação com o outro e com o meio (VYGOTSKY, 1998 [1978]), o letramento crítico possibilita o questionamento e a ressignificação de relações ideológicas e de poder naturalizadas. Em um trabalho “que visa a um letramento crítico, ganham ênfase as representações e as análises a respeito de diferenças, tais como: raciais, sexuais, de gênero e as indagações sobre quem ganha ou perde em determinadas relações sociais” (BRASIL, 2 006, p.116).

O enfoque no letramento crítico não despreza outros trabalhos, com habilidades linguísticas e léxico-gramaticais, por exemplo, mas o estende à interpretação e à transposição social, tornando a experiência de aprendizagem realmente uma prática social. O trabalho dentro de uma perspectiva de letramento crítico “representa uma ampliação e uma definição desse trabalho de leitura no que se refere à expectativa de desenvolvi- mento crítico dos alunos” (BRASIL, 2006, p.116).

Uma teoria de letramento crítico procura conscientizar os/as estudantes a assumir uma postura crítica perante a aprendizagem, entendendo que o conhecimento é ideológico, jamais natural ou neutro, e que a realidade e o significado não são dados de forma definitiva e única: são múltiplos, (re)construídos e (re)negociados com base em regras discursivas e práticas sociais imersas em relações de poder (CERVETTI; PARDALES; DAMICO, 2001).

Esse trabalho de letramento crítico pode ser viabilizado pelo uso de gêneros discursivos, os quais, segundo Bakhtin (1952-1953), são tipos relativamente estáveis de enunciados, concretos e únicos, que circulam emesferas diferenciadas de utilização da língua. Eles refletem as condições específicas de cada esfera, com suas necessidades temáticas, seus participantes e a intenção do locutor. Aescolha do gênero segue certos parâmetros, comofinalidade, destinatários e conteúdo, ou seja, “há a elaboração de uma base de orientação para a ação discursiva” (SCHNEUWLY, 1994 [2010, p.23]). Os gêneros caracterizam-se por três elementos constitutivos (BAKHTIN, 1952- 1953): conteúdo temático (já discutido anteriormente), construção composicional (conjunto de elementos organizacionais do texto que marcam as possibilidades de compreensão de


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determinado gênero em contextos socioculturais específicos) e estilo da linguagem (seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua).

Gêneros discursivos são, portanto, manifestações sociais da linguagem, materializadas em elementos verbais e/ou não verbais, e intencionalmente selecionados e organizados com um objetivo sociointeracional, dentro de uma esfera social, de modo a permitir aos interlocutores a construção de significados e sua ação nessa esfera, emdecorrência da ativação de conhecimentos prévios de práticas socioculturais de uso. Os gêneros do discurso configuram-se, portanto, como ferramenta do letramento crítico na medida emque consideram não apenas o produto linguístico, mas também suas condições processuais de produção, circulação e distribuição (FAI RCLOUGH, 1992) —quando, onde, como, por quê, para quem, por quem —, viabilizando questionamentos e ressignificações na vida social. Como gêneros discursivos (ou textuais, cf. MARCUSCHI, 2008) são ocorrências relativamente estáveis de formas de linguagem na vida social, ao trabalhar com material autêntico, esta coleção inevitavelmente —e propositadamente —recupera diferentes gêneros discursivos.

Considerando-se os pressupostos sociointeracionais, o ensino só faz sentido com a utilização de textos e atividades autênticos, como apontado anteriormente, capazes de despertar nos aprendizes a autenticidade das interações sociais com e por meio do uso da linguagem ensinada. É importante diferenciar, dessa forma, autenticidade de genuinidade (WIDDOWSON, 1978). Enquanto um material genuíno é algo retirado ipsis litteris de algum contexto real de uso da língua, o material autêntico é aquele capaz de provocar no interlocutor uma reação autêntica, ou seja, uma reação esperada para aquele tipo de mate- rial. Se a responsividade ao material que serviu de insumo para a aprendizagem é autêntica, isto é, similar a uma reação esperada para determinada interação social, não importa se esse material não for genuíno — até porque a genuinidade por si só não é capaz de garantir uma responsividade autêntica, uma vez que, ao ser transposto para o livro didático e trazido para a sala de aula, o texto sai do seu contexto original de circulação e passa a ter fins didáticos.

Dessa forma, é importante entender a organização do currículo e/ou do material didático com base em uma contextualização temática, a partir da qual os conteúdos são trabalhados de forma consciente, sistemática e analítica, sempre com foco nos significados produzidos e

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potenciais. Adota-se uma postura crítica em relação ao conhecimento, que é apropriado e ressignificado em novos contextos – reais e relevantes – de uso.

4. Macrocritérios para a elaboração de currículo e de material didático

Ao construir um currículo e/ou materiais didáticos para operacionalizá-lo, alguns critérios mínimos precisam ser considerados. Várias listas comcritérios detalhados para a análise de livros didáticos de línguas (e que poderiam, também, subsidiar a produção de materiais didáticos e de currículos) já foram propostas (BYRD, 2001; CUNNINGSWORTH, 1995; DIAS, 2009). Muitas dessas listas possuem dezenas de itens (podendo até haver mais de umacentena), que tornam o trabalho praticamente inviável, pois pulverizam a atenção para diversas direções, sem ponderar a relevância de cada item (que certamente não é a mesma em todos os contextos). Ao propor macrocritérios (TILIO, 2016b), sem um nível de detalhamento mais profundo, o objetivo é flexibilizar e customizar a produção de acordo com as especificidades de cada contexto, uma vez que trabalhar com critérios muito específicos, que não necessariamente atendem a todos os contextos, pode acabar falseando as necessidades de certos contextos.

Ao trabalhar com macrocritérios, cada contexto propõe sua própria leitura desses macrocritérios, customizando-os (e expandindo-os, se necessário). Critérios muito específicos devem ser levantados por cada contexto. Critérios muito óbvios já estão inerentes a algum macrocritério (faixa etária e nível de proficiência, por exemplo, podem ser facilmente contemplados dentro do macrocritério “tema”). Essa simplificação de critérios em macrocritérios visa, portanto, não apenas a objetivar o trabalho de quem vai elaborar o currículo e/ou os materiais, mastambéma possibilitar customização local, ao focar apenas emcritérios mais macros que, esses sim, não podem ser esquecidos, mas que muitas vezes acabam p assando desapercebidos em meio a uma profusão de critérios bem específicos e muitas vezes não tão relevantes. Assim, o currículo e/ou o material didático deve atender a macrocritérios mínimos, e, de acordo com cada contexto, o professor busca outros critérios (até mesmo seus próprios critérios, frutos de sua prática docente em determinado contexto) para aprofundar a análise de determinados pontos que sejam particularmente importantes para a sua realidade.

O Quadro 1 sistematiza e define esses macrocritérios. É importante ressaltar que, idealmente, os critérios se entrecruzam e perpassam o itinerário de aprendizagem, não devendo ser propostos comomomentos estanques. Isso também significa que não há umalinearidade para


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abordá-los, embora o TEMA seja talvez o primeiro a ser considerado, por dar conta da criação de todo o contexto emque a aprendizagem se desenvolverá. Mesmo que, por demanda institucional ou governamental, por exemplo, haja aspectos obrigatórios a serem considerados, como é o caso relativamente frequente com conteúdos sistêmicos, é preciso definir a contextualização temática que servirá como ponto de partida para esses aspectos.

Quadro 1: Macrocritérios para a elaboração de currículo e/ou análise e produção de material didático

Macrocritério Def inição

Temas

• temas como ponto de partida para a aprendizagem • relevância e familiaridade (presente ou projetada)

Transculturalidade • atravessamento e transposição de culturas • tratamento das diferenças

• desterritorialização e reterritorialização

• fenômenos culturais: culturas com “C” e com “c” Gêneros discursivos • tema + organização formal + materialidade linguística • diversidade de gêneros socialmente relevantes

• textos autênticos

Multiletramentos (críticos)

• multiletramentos: multiplicidade de modos de significação (multimodalidade) e multiplicidade cultural (os modos de significação são culturais)

• variedade de multiletramentos: letramento linguístico, letramento visual, letramento sonoro, letramento gestual, letramento espacial, letramento digital etc.

• multiletramentos críticos: entendimento dos processos de (re)produção e circulação de discursos; reflexão e entendimento sobre a construção de significados

Autonomia

• autonomia individual: autoaprendizagrm

• autonomia sociocultural: capacidade de agir no mundo social por meio dos conhecimentos aprendidos

Atividades

• diversidade de atividades

• preferência por tarefas em lugar de exercícios

• predominância de atividades que envolvam operações cognitivas mais complexas

• tarefas autênticas

Conteúdo sistêmico • importante na estruturação da linguagem e da língua em uso

• unidades linguísticas descontextualizadas discursivamente são desprovidas de significado

• não é um fim em si; ao invés, serve como um meio para a estruturação de gêneros e seus propósitos

• perspectiva analítica: tornar o aprendiz consciente das possibilidades de significados socioculturais advindos de escolhas lexicogramaticais

Letramento crítico • atravessamento do currículo

• engajamento com as diferenças; prática problematizadora

• espaço para que o aprendiz assuma postura crítica

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É preciso, então, definir os temas a serem abordados considerando sua relevância e/ou familiaridade para o público-alvo. Vale destacar que não se trata de considerar apenas aquilo que os aprendizes considerem relevante ou tenham familiaridade, mas também aquilo que possa ser projetado como relevante para a sua aprendizagem. No caso da relevância ser apenas projetada, é preciso tomar cuidado para a abordagem não parecer muito distante do mundo do aprendiz, o que pode contribuir para a rejeição do que está sendo ensinado; ao contrário, o ideal é tentar fazer uma aproximação do estranho com contextos familiares, de forma que a alegada relevância possa ser, de fato, percebida.

Diretamente ligado ao tema a ser escolhido está o critério da TRANSCULTURALIDADE. A ideia de transculturalidade está ligada ao atravessamento de culturas, a transposição de culturas, e é particularmente relevante no contexto do ensino de línguas. Mais do que ensinar sobre as culturas do outro e problematizar as diferenças, a ideia de transculturalidade traduz as ideias de desterritorialização de culturas e sua reterritorialização: “a perda da relação 'natural' da cultura com os territórios geográficos e sociais, e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas" (CANCLINI, 2012, p. 281) . É importante ressaltar que o conceito de cultura aqui exposto é inerentemente plural e contempla tanto o conceito de culturas com “C” grande/maiúsculo quanto o conceito de “c” pequeno/minúsculo (BROOKS, 1964). Enquanto o primeiro se refere às artes, aos costumes etc., o segundo pode ser associado a práticas cotidianas da vida emsociedade. Sendo assim, qualquer fenômeno cultural/Cultural “envolve formas ou estruturas tangíveis (produtos) que membros individuais da cultura (pessoas) usam em várias interações (práticas) em circunstâncias sociais específicas e grupos (comunidades) de maneiras que refletem seus valores, atitudes e crenças (perspectivas)” (MORAN, 2001, p. 25- 26).

No ensino de línguas, trabalhar com a transculturalidade significa discutir temas que possibilitam problematizar fenômenos culturais, pensando seus atravessamentos e sua desterritorialização e reterritorialização.

Também atrelada à escolha do tema é a seleção dos GÊNEROS DISCURSIVOS que servirão de insumo linguístico para a contextualização da aprendizagem e seu desenvolvimento. Como a linguagem sempre circula por meio de algum gênero, qualquer ensino ou análise de língua em uso só faz sentido quando esta é devidamente gendrificada. Unidades linguísticas não circulam


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socialmente isoladas; a linguagem que circula socialmente, com propósitos e interlocu tores específicos, possui tema, organização formal e materialidade linguística – os elementos dos gêneros do discurso, segundo Bakhtin (1952-1953). Unidades linguísticas são apenas a materialidade linguística da linguagem; fundamentais, mas apenas um dos três elementos que fazem funcionar a língua(gem) em uso.

Ao fazer a seleção de gêneros que comporão o currículo e/ou o material didático, é importante atentar para a diversidade de gêneros discursivos socialmente relevantes para os alunos projetados. Igualmente relevante é que tais gêneros sejam entextetualizados em textos autênticos, condizentes com os contextos desses alunos e considerando-se, mais uma vez, relevância e familiaridade. A autenticidade é fundamental para que familiaridade e relevância façam-se notar.

Aqui cabe uma breve digressão para insistir no conceito de autenticidade e na sua distinção do de genuinidade (WIDDOWSON, 1978). Conforme discutido anteriormente, genuinidade é uma propriedade absoluta da linguagem, refere-se a materialidade ling uística produzida para circular em outros contextos, que não o escolar, e transposta, sem modificações de qualquer natureza, para a sala de aula. Autenticidade, por outro lado, refere-se a autenticidade de uso, a linguagem que desperta no usuário atitudes responsivas pertinentes e condizentes com as práticas sociais que emulam. Genuinidade, portanto, não necessariamente garante a autenticidade de uso, caso o discurso, apesar de genuíno, não pertença às práticas sociais dos alunos, pois pode não despertar neles atitudes responsivas pertinentes. Por outro lado, a autenticidade não precisa ser necessariamente genuína, pois o que importa é a responsividade, e não a origem do discurso. Em uma situação ideal, genuinidade e autenticidade de uso caminham juntas, mas a segunda é preponderante, com a primeira servindo primordialmente para corroborar a segunda.

O próximo macrocritério a ser considerado na elaboração do currículo e/ou do material didático é a presença de MULTILETRAMENTOS. A partir dos temas definidos, é preciso pensar na variedade de multiletramentos críticos a serem incorporados. Conforme já abordado, a linguagem não se resume apenas à modalidade verbal, expressa por meio das quatro habilidades linguísticas – compreensão oral e escrita, produção oral e escrita. A sociedade contemporânea, hipersemiotizada, percebe a linguagem pelo viés dos multiletramentos. Mesmo as chamadas

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quatro habilidades linguísticas não se resumemapenas a habilidades; são letramentos: letramento de leitura, letramento de escrita, letramento de oralidade, letramento de áudio. Mais do que habilidades, são modos culturais de pensar e de construir e expressar significados. Por estarem diretamente relacionados à linguagem verbal, são formas de letramento linguístico. A eles associam-se outros letramentos: letramento visual, letramento sonoro, letramento gestual, letramento espacial, letramento digital etc. Daí decorrem os dois significados do prefixo multi- do termo multiletramentos: multiplicidade de modos de significação (multimodalidade) e multiplicidade cultural (os modos de significação são culturais).

Todos esses letramentos, contudo, não são meramente instrumentais, com o intuito de instrumentalizar o aluno a agir em determinados contextos. Todos esses letramentos incorporam umaspecto crítico, que vai além da função instrumental da capacidade de adaptação a contextos, assumindo o caráter de letrar o aluno a entender os processos de (re)produção e circulação de discursos, e a refletir e criar entendimentos sobre a construção de sign ificados.

Outro macrocritério é a preocupação com o desenvolvimento da AUTONOMIA do aprendiz. Mais do que estimular a autoaprendizagem (autonomia individual), a autonomia aqui é entendida como sociocumtural (OXFORD, 2003). O currículo e/ou o material didático deve cumprir o papel de empoderar o aprendiz a usar os conteúdos ensinados de forma que ele consiga ir além do contexto pedagógico, em que o uso da língua(gem) tende a ser mais controlado, e efetivamente agir no mundo social por meio dos conhecimentos aprendidos. Mais um macrocritério a ser considerado é a pluralidade de tipos de ATIVIDADES. De

modo a atender a heterogeneidade de estilos de aprendizagem dos alunos, é importante que as atividades sejam de natureza diversa. Mesmo diversas, é fundamental atentar para que as atividades sejam tarefas, que envolvam fazer coisas com o conteúdo da aprendizagem, e não meramente exercícios, que não requeiram mais do que reproduzir conhecimentos (ELLIS, 2010). Além disso, as tarefas devem privilegiar operações cognitivas mais complexas – como analisar, interpretar e inferir – à operações cognitivas mais simples – como retirar, identificar e completar (TILIO, 2012). Igualmente significativo é que as tarefas, apesar de pedagógicas, sejam autênticas, ou seja, que emulemsituações de uso social dos conhecimentos aprendidos.

Um macrocritério que não pode deixar de ser considerado é o CONTEÚDO SISTÊMICO (lexicogramática – gramática e léxico), até porque muitas vezes há exigências institucionais e governamentais em relação a esses conteúdos. No entanto, é preciso atentar para o fato de que


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unidades linguísticas descontextualizadas discursivamente são desprovidas de significado (VOLÓCHINOV, 1929). O conteúdo sistêmico é importante na estruturação da linguagem e da língua em uso, mas não é um fim em si; ao invés, serve como um meio para a estruturação dos gêneros e seus propósitos. Mesmo que haja um currículo sistêmico imposto, a implementação desse currículo não pode partir desses conteúdos sistêmicos em si, mas de temas pensados para abarcar esses conteúdos. Além disso, é fundamental que sejam trabalhados emuma perspectiva analítica, de forma a tornar o aprendiz consciente dos significados socioculturais advindos das escolhas lexicogramaticais.

O último macrocritério é a presença do LETRAMENTO CRÍTICO. Embora nenhum dos macrocritérios deva ser concebido isoladamente, o letramento crítico é o que menos pode ser tratado separadamente. Em outras palavras, não faz sentido haver um momento separado para fazer letramento crítico; este deve atravessar todo o currículo, nas escolhas de temas e gêneros discursivos, na abordagem da transculturalidade, dos multiletramentos e do conteúdo sistêmico, e nas propostas de atividades. O letramento crítico, na perspectiva do engajamento com as diferenças e de uma prática problematizadora, é o espaço para que o aprendiz assuma postura crítica ao longo de todo o processo pedagógico.

5. Considerações finais

Esse texto propôs macrocritérios a serem utilizados na construção de um currículo e/ou de materiais didáticos para sua operacionalização desse currículo. A opção por macrocritérios, sem um nível de detalhamento mais profundo, tem como objetivo permitir sua flexibilização e customização, atendendo às especificidades de cada contexto, sem no entanto, deixar de incluir critérios básicos que devem ser considerados ao se pensar o ensino de línguas estrangeiras sob uma perspectiva de letramentos, sociointeracional e crítica (idade, nível linguístico, contexto geográfico e institutional etc.) .

Nesse cenário, um currículo, seja no nível institucional ou no nível do programa de curso, e os matérias didáticos produzidos e/ou utilizados para executá-lo, deve ser estruturado a partir de temas e considerar transculturalidade, gêneros discursivos, multiletramentos, autonomia, atividades, conteúdo sistêmico e letramento crítico.

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