Para uma Espiritualidade do Encontro: uma Proposta de Espiritualidade Cristã a partir das Encíclicas do Papa Francisco  
For a Spirituality of Encounter: a Proposal of Christian Spirituality From The Pope Francis’s Encyclics   

Chrystiano Gomes Ferraz* 
Dian Henriques Rangel**
* Doutorando e Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (STBSB), Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano e Especialista em Filosofia pela Universidade Cândido Mendes 
**Mestrando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (STBSB). 


Voltar ao Sumário

 

Resumo:

O tema da espiritualidade está cada vez mais em destaque, tanto nos círculos religiosos como não religiosos. Tal despertar para esta dimensão humana tão importante se intensificou ainda mais neste período de crise socioeconômica, antropológica e ecológica acentuada pela pandemia de COVID-19, que expôs ainda mais as já evidentes fragilidades, carências e necessidades humanas. Pensando neste contexto, o presente artigo teve por objetivo oferecer uma proposta de espiritualidade cristã partindo da análise das três encíclicas assinadas pelo Papa Francisco: Lumen Fidei, Laudato Si’ e Fratelli Tutti. Destacamos as ênfases dadas à espiritualidade cristã de cada encíclica de Francisco, compondo assim uma proposta de espiritualidade que tem como fonte a fé no Deus Criador, que nos conduz ao encontro com o todo da criação e que transborda para o encontro com os outros, favorecendo o estabelecimento de uma Cultura do Encontro como um novo ethos. A esta espiritualidade denominamos Espiritualidade do Encontro.  

Palavras chave: Cultura do Encontro; Espiritualidade Cristã; Papa Francisco. 

Abstract

The theme of spirituality is increasingly highlighted, both in religious and non-religious circles. The awakening to this important human dimension has intensified even more in this period of socioeconomic, anthropological, and ecological crisis accentuated by the pandemic of COVID-19, which further exposed the already evident weaknesses and human needs. Thinking in this context, this article aimed to offer a proposal for Christian spirituality based on the analysis of the three encyclicals signed by Pope Francis: Lumen Fidei, Laudato Si’ and Fratelli Tutti. From each encyclical of Francis, we highlighted the emphases given to Christian spirituality in each encyclical of Francis, thus composing a proposal for spirituality that has faith in the Creator God as its source, which leads us to the encounter with the whole of creation and which overflows to the encounter with others, favoring the establishment of a Culture of Encounter as a new ethos. We call this spirituality the Spirituality of the Encounter. 

Keywords: Culture of Encounter; Christian spirituality; Pope Francis.  

Introdução 

Vivemos em uma sociedade onde o desencontro é marcadamente predominante. Desde muito cedo aprendemos a dinâmica de competição que rege a vida de muitos. Somos ensinados que precisamos ser os melhores em tudo o que fazemos e que a busca por uma felicidade particular deve governar nossas ações. Essa visão de mundo tem gerado seres humanos adoecidos pelo hedonismo, individualistas, consumistas etc. Esta prática alienante transforma a todos em produtos e objetos, meios para se atingir o prazer e a satisfação pessoal. 

Esta dinâmica promove o desencontro do homem e da mulher consigo, pois acaba por esvaziar-se de si em meio a tantas ofertas apresentadas. Há ain-da um desencontro com o próximo, pois o não reconhecimento da perseidade de cada pessoa humana – de que elas são um fim em si, de que possuem uma dignidade inalienável – acaba por mitigar o potencial de alteridade e igualdade que são princípios básicos para uma conexão autêntica. 

O desinteresse e desencontro com a natureza é uma das consequências deste desequilíbrio em nossas relações fundamentais. Não mais guardada e cuidada por nós, mas transformada em objeto a ser subjugado pelos nossos interesses mais efêmeros. 

Nesse contexto de total esvaziamento de sentido de vida, a busca por temá-ticas de exercício da espiritualidade tem crescido. Pessoas de diferentes grupos sociais, crenças religiosas ou não religiosas, passam a se interessar por questões que lhe tragam conforto interior. O tema da espiritualidade também entrou no mundo corporativo, seja para maximizar lucros e resultados ou até mesmo por preocupação com a qualidade do ambiente de trabalho.

Nos tempos pandêmicos hodiernos, cenário de perdas, despedidas e de-sencontros, a importância do tema da espiritualidade se intensifica. É com esse intuito, na tentativa de contribuir com o pensamento teológico, que apresenta-mos o presente artigo. Este tem por objetivo propor uma espiritualidade cris-tã tendo como base as cartas encíclicas do Papa Francisco, respectivamente: Lumen Fidei (2013), Laudato Si’ (2015) e Fratelli Tutti (2020).

O artigo foi construído a partir de revisão bibliográfica, principalmente das cartas encíclicas supracitadas, além de outras obras de Francisco e de outros teólogos e teólogas sensíveis à temática da espiritualidade. No primeiro ponto, apresentaremos algumas nuances acerca da espiritualidade e uma de-limitação do sentido da espiritualidade que trataremos no decorrer do artigo. Em seguida, destacaremos as contribuições à espiritualidade das três encícli-cas assinadas pelo Papa Francisco. Na última parte, explicitaremos a proposta de espiritualidade cristã que denominamos Espiritualidade do Encontro. Esta proposta inspira-se no enlace entre os aspectos levantados das encíclicas com a Cultura do Encontro, do Papa Francisco. Concluiremos com um chamado à Espiritualidade do Encontro, projetando novas perspectivas e abrindo a reflexão para outros desdobramentos.  

1. Apontamentos sobre a Espiritualidade Cristã

Espiritualidade é um termo multifacetado e polissêmico, largamente utili-zado cotidianamente e nas pesquisas acadêmicas. Autores divergem entre si so-bre a definição do termo, enquanto muitos se valem de características descriti-vas mais próximas do conceito de religiosidade (LIBANIO, 2002, p. 119), outros, por sua vez, descrevem-na como experiência, ligada à mística (BOFF; BETTO, 2005. p. 27-28; 53). Há ainda os que defendem espiritualidades não-religiosas, ou independentes de um conceito de religião (OLIVEIRA, 2016. p. 113-116).1

Devemos sublinhar, que, enquanto se apresenta na sociedade um panora-ma de crise em relação às instituições religiosas, o potencial espiritual da huma-nidade continua trabalhando intensamente, expressando-se com criatividade em novas formas de espiritualidade. Cada vez mais atentamos para a impor-tância da espiritualidade na busca por alcançar a plenitude da vida. Sobre tal perspectiva, o teólogo José Maria Vigil aponta para uma necessária distinção:

Diante de tal situação é imperioso estabelecer clara distinção con-ceitual entre o religioso e a religião, o espiritual ou a espiritualidade. Não são a mesma coisa. A espiritualidade é muito mais ampla do que a religião. A espiritualidade não é, como se pensou tradicio-nalmente, um subproduto da religião, uma atitude produzida pela religião em seus adeptos; pelo contrário, a religião é que é uma for-ma dentre muitas nas quais se pode expressar essa realidade abran-gente e maximamente profunda que é a espiritualidade, acessível a todo ser humano, antes e na base de sua adesão a uma religião (VIGIL, 2014, p. 350).

Concordamos com Vigil: a dificuldade está colocada justamente nesta dis-tinção conceitual entre a dimensão religiosa da espiritualidade – enquanto au-totranscedência – e a religião – enquanto organização institucional estabelecida formalmente. Contudo, entendemos que esta experiência pode ser acessível a todos sem a obrigatoriedade do divórcio entre espiritualidade e religião, ambos podem estar relacionados.2

Por este motivo, delimitamos a ideia de espiritualidade que será trabalhada neste artigo: uma espiritualidade cristã que “diz respeito a como as pessoas se apropriam de modo subjetivo de crenças tradicionais sobre Deus, a pessoa hu-mana, a criação e seu inter-relacionamento, e então as expressam na adoração, nos valores básicos e no estilo de vida” (SHELDRAKE, 2005, p. 53). Entende-se que a espiritualidade do indivíduo está relacionada à forma como ele enxerga e se conecta, a partir da relação com Deus, à vida, à si mesmo, aos outros e à na-tureza. Trata-se de um viver segundo o Espírito de Cristo (ESTRADA, 1992, p.4. Apud.: CASTILLO, 2012, p.17) e por isso abarca a totalidade da pessoa humana. 

Pensemos em uma espiritualidade cristã com iluminada pela espiritualidade de Jesus e que seja fundamento para toda pessoa humana (Ver: CATÃO, 2009). Uma espiritualidade integral e dialogal, na qual não há espaços para dualismos de qualquer natureza (corpo e espírito; individual e social; membro da igreja e cidadão do mundo; etc), pois a espiritualidade interessa e afeta tudo aquilo que a humanidade propriamente é em sua existência concreta (CASTILLO, 2012, p.17-18). Um viver no Espírito, como viver levando em conta a espiritualidade, não é um projeto de fuga mundis para alcançar uma vida puramente “espiritual”, mas exatamente o contrário, é colocar-se em contato, ir ao encontro. 

Seguindo a intuição que justifica o caminho por nós escolhido neste tra-balho, analisaremos as encíclicas do Papa Francisco em vista da elaboração de uma proposta de espiritualidade própria para nosso tempo de distanciamentos, faltas, fragilidades, perdas e carências. Para uma Espiritualidade do Encontro.

2. A Espiritualidade Cristã nas encíclicas do Papa Francisco

Para delimitação do nosso objeto de pesquisa, daremos foco no tema da espiritualidade nas cartas encíclicas de Francisco, aqui, analisadas em ordem cro-nológica de publicação, respectivamente: Lumen Fidei, Laudato Si’ e Fratelli Tutti.

2.1 Lumen Fidei 

A carta encíclica Lumen Fidei (LF), de 2013, apresenta uma particularidade: ela é uma encíclica escrita por dois papas. Assim destaca Bertoldo: 

O tema deste documento segue os temas queridos por Bento XVI. Escreve o Papa Francisco que estas considerações sobre a fé preten-dem acrescentar-se ao que escreveu Bento XVI nas cartas encíclicas sobre a caridade e sobre a esperança. O Papa se diz profundamen-te grato e assume o seu precioso trabalho, acrescentando ao tex-to alguns contributos ulteriores (Cf. Lumen Fidei. n. 7). Por isso é possível dizer que o texto foi escrito com a mão de dois Pontífices (BERTOLDO, 2018, p. 157).

Apesar das dificuldades em relação ao empreendimento de apontar as con-tribuições exclusivas de Francisco na carta encíclica Lumen Fidei, já que o ago-ra papa emérito Bento XVI estava adiantado em seu primeiro esboço antes de renunciar ao papado (LF 7), partimos aqui do pressuposto de que, ao assinar o documento em seu formato final, Francisco chancela o conteúdo da encíclica. Houve algum esforço entre os teólogos para apontar o que é exclusivamente bergogliano na Lumen Fidei – palavras, conceitos, pensamentos característi-cos do antes cardeal Bergoglio. Destacamos o artigo do teólogo Aldo Marcelo Cáceres (Cf.: CÁCERES, 2014). Para nossa análise, assumiremos prioritariamente os trechos apontados por Cáceres como exclusivos de Francisco.

Na encíclica Lumen Fidei, o Papa Francisco, ao dissertar sobre a fé em Cristo, tema central da carta, destaca a percepção da fé como verdade do amor, o que para nós é um ponto de contato entre a fé e a espiritualidade cristã:

Se ela é a verdade do amor, se é a verdade que se mostra no encon-tro pessoal com o Outro e com os outros, então fica livre da reclusão no indivíduo e pode fazer parte do bem comum. Sendo a verdade de um amor, não é verdade que se impõe pela violência, não é verdade que esmaga o indivíduo; nascendo do amor pode chegar ao coração, ao centro pessoal de cada homem; daqui resulta claramente que a fé não é intransigente, mas cresce na convivência que respeita o outro (LF 34).

Essa fé como verdade do amor, contudo, aplica-se não só numa expectativa do encontro com Deus no além, longe da realidade terrena. Muito mais que isso, entende-se esta fé em Deus como um amor verdadeiramente poderoso que pode atuar na história e por isso é passível de encontro, “que se revelou em plenitude na paixão, morte e ressurreição de Cristo” (LF 17).

Na fé em Cristo não só se crê passivamente, mas se une a Ele para poder acreditar no que Ele acreditou. É um convite que não abarca somente a con-templação de Jesus enquanto Cristo, nos chama a partilhar de sua perspectiva. A fé em Cristo implica prática. Trata-se de uma vivência em – e com – Deus que resulta em mudança de perspectiva. É preciso olhar a vida como Cristo olhou, enxergar as pessoas como Cristo as vê e posicionar-se como Cristo se posiciona-ria. Assim, a fé cristã entende que através de Jesus, achega-se ao próprio Deus, pois o Filho feito homem é o Deus que decide entrar na história humana por amor e isto deveria levar o cristão a buscar viver o mesmo caminho (LF18).

O Papa Francisco destaca que na fé em Cristo é possível perceber o amor de Deus pela totalidade da criação. Há o desejo do Pai, seu amor concreto, que to-dos participem da plenitude da salvação no Filho, para que todos se tornem um. A fé entendida como relação de amor do Deus Criador desemboca em ações que proporcionam um melhor convívio entre seres humanos, como também para um olhar mais respeitoso para a natureza (LF 54-55).

2.2 Laudato Si’

Na carta encíclica Laudato Si’(LS), Francisco abre um diálogo com todos os seres humanos acerca da nossa casa comum (LS 3), a nossa Mãe Terra, tão maltratada pelos nossos estilos de vida. Na carta, o papa faz uma análise da crise socioeconômica, ecológica e de sua raiz antropológica, acolhendo a con-tribuições dos diversos saberes (LS 7; LS 17-61). Depois oferece uma importan-te reflexão teológica sobre o Evangelho da criação (LS 62-100), pois a fé cristã aponta para uma origem comum em Deus, o que deveria nos irmanar e nos ligar à criação do Pai. De igual modo, Francisco abre espaço para todas as contribui-ções – para as riquezas vindas de todas as esferas que compõe a sociedade (LS 63) – que possam nos ajudar a desenvolver uma ética do cuidado, objetivando o bem comum (LS 156).

O teólogo Leonardo Boff, nome importante para a ecoteologia, entende que se faz urgente o desenvolvimento de uma ética da Terra que seja acom-panhada “de uma espiritualidade, que lança suas raízes na razão cordial e sen-sível” (BOFF, 2016. p. 11) e completa: “Disso vem a paixão pelo cuidado e o compromisso sério de amor, de responsabilidade e de compaixão para com a Casa Comum” (BOFF, 2016. p. 11). Na LS, Francisco oferece uma proposta de espiritualidade que nos leve a uma conversão ecológica: a espiritualidade eco-lógica (LS 216).

A palavra espiritualidade é encontrada 18 vezes na LS. Cada contribuição para a temática pode ser colocada debaixo do chamado à conversão ecológica, uma conversão interior que nos desperte, “que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus” (LS 217). O Evangelho tem implicações práticas que não permitem um desligamento da corporeidade e nem da natureza (LS 216) – que estão interli-gadas, já que somos terra (LS 2). Daí salta a convicção de que a nossa vocação como cuidadores e “guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa” (LS 217).

Analisando o chamado ao desenvolvimento de uma nova espiritualidade na carta encíclica Laudato Si’, o teólogo Claudio Ribeiro destaca a dimensão prática dessa espiritualidade: 

A espiritualidade se expressa em aspectos práticos e concretos da vida social e política, e estão destacados aí os processos de defesa da vida, da justiça social e econômica, dos direitos humanos e da terra, da cidadania e da dignidade dos pobres, o domínio da lógica do egoísmo tanto em esferas macro e sistêmicas como no cotidia-no e na vida pessoal. A espiritualidade gera espaço de consciência social, alteridade e coexistencialidade, e cordialidade, humanização e integração cósmica. Ela é o empoderamento da vida, não somen-te humana, mas em todas as mais diversas formas de manifestação (RIBEIRO, 2016. p.60).

É a espiritualidade ecológica que nos impulsionará para o estabelecimento de uma nova trama de relações, levando-nos à renovação das nossas três re-lações fundamentais: relação com Deus, com o próximo e com a terra (LS 66). 

Francisco nos adverte que tal espiritualidade não pode prescindir da convic-ção de que está atrelada a um Deus Todo-poderoso, criador de todas as coisas. Somente assim nos despojaremos de toda pretensão de nos tornar senhores do mundo, impondo nossos próprios interesses e leis à realidade, fazendo mal à criação de Deus (LS 75). Lembra-nos que “toda a sã espiritualidade implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar, com confiança, o Senhor pelo seu poder infinito” (LS 73).

A espiritualidade também é caminho de resistência à tecnocracia, lógica que avança globalmente e que se constituiu como um paradigma ao qual não conseguimos superar (LS 111). O paradigma tecnocrático impõe destruição pelo uso desmedido da técnica sem uma ética do cuidado, causando danos à criação e ferindo a liberdade humana. Pela técnica destruímos, com a técnica remedia-mos, tratamos apenas os sintomas sem tocar a raiz da questão (BARROS, 2016. p. 174). Essa dinâmica insalubre atenta contra a vida. A espiritualidade ecológi-ca se apresenta como uma via de equilíbrio:

A espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica do domínio e da mera acumulação de prazeres (LS 222).

Esta espiritualidade não pode ser vivida sem que nosso interior seja pacifi-cado, que nos leva a harmonia com a criação de Deus:

Ninguém pode amadurecer numa sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte duma adequada compreensão da espiritualidade consiste em alargar a nossa compreensão da paz, que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à pro-fundidade da vida (LS 225).

Na LS a espiritualidade cristã está fundada no encontro com o Deus Amor, Todo-poderoso e criador de tudo, que faz brotar do mistério trinitário uma espi-ritualidade para todos, global, que nos leva ao reencontro com os outros seres humanos e com o todo da criação, na certeza da interdependência das partes, pois estamos todos interligados (LS 240).

2.3 Fratelli Tutti

Por fim, na Fratelli Tutti (FT), carta encíclica sobre a fraternidade e amizade social, apresentada no contexto da pandemia do COVID-19, Francisco relembra que ninguém se salva sozinho e que a existência de cada um sempre estará liga-da a de outro (FT 54; 66), seja na relação interpessoal de um casal, ambiente de trabalho ou até na simples compra de algo pela internet, realidade tão acentua-da devido aos limites impostos pela pandemia. Neste sentido, segundo o sumo pontífice, viver indiferente às mazelas não deveria ser uma opção possível para a humanidade (FT 68-71). 

O demorar no despertar da Igreja para o combate a algumas formas de vio-lência realizadas ao longo da história é motivo de tristeza para o papa – como por exemplo no caso da escravidão humana –, contudo destaca: 

Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e da teologia, não temos desculpas. Todavia, ainda há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados pela sua fé a defender vá-rias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes. A fé, com o humanismo que inspira, deve manter vivo um sentido crítico peran-te estas tendências e ajudar a reagir rapidamente quando começam a insinuar-se. Para isso, é importante que a catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignida-de inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos (FT 86).

As várias religiões podem contribuir para essa valorização da vida humana, para a fraternidade e defesa da justiça social. Por isso, o diálogo inter-religioso se faz necessário, não só por diplomacia, mas sim para se “estabelecer amiza-de, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais num espírito de verdade e amor” (FT 271). Cabe destacar que, para o Papa Francisco, nenhuma forma de violência encontra fundamento nas convicções religiosas, senão nas interpretações equivocadas, nas deformações das fontes dos ensina-mentos religiosos (FT 282).

Na FT, novamente, Papa Francisco ressalta o amor: “a estatura espiritual duma vida humana é medida pelo amor, que constitui ‘o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana’” (FT 92).

Se antes, na Lumen Fidei, amor e fé formam o elo da espiritualidade e na Laudato Si’ o amor se expressa na espiritualidade ecológica afluindo no cuidado com o todo da criação, agora, na Fratelli Tutti, a ênfase está na dimensão fraternal da espiritualidade, em vista do cuidado com o próximo – nossas irmãs e irmãos.3

A dignidade e o valor do ser humano devem ser colocados em primeiro pla-no, não podem ser negligenciados, como princípio de amizade social e fraterni-dade universal, e estendem-se para além das barreiras geográficas e ideológicas (FT 99-106).

Francisco dá importância à tarefa educativa para o desenvolvimento da ca-pacidade de pensar a vida de maneira mais integral. A dimensão espiritual não pode ser negligenciada neste processo:

A profundidade espiritual são realidades necessárias para dar qualidade às relações humanas, de tal modo que seja a própria sociedade a rea-gir face às próprias injustiças, às aberrações, aos abusos dos poderes econômicos, tecnológicos, políticos e mediáticos. Há visões liberais que ignoram este fator da fragilidade humana e imaginam um mundo que corresponda a uma determinada ordem que poderia, por si só, assegurar o futuro e a solução de todos os problemas (FT 167).

Apesar da FT estar direcionada para um chamado aberto à fraternidade e amizade social, a unidade da Igreja também está colocada como missão susci-tada pela ação do Espírito em nós, para que desfrutemos da comunhão, dando testemunho do amor de Deus por todas as pessoas (FT 280). A dimensão fra-ternal da espiritualidade nos conecta e nos mobiliza conjuntamente ao serviço da humanidade.

3. Para uma Espiritualidade do Encontro

Da análise das três encíclicas de Francisco destacamos as ênfases específi-cas no tocante à espiritualidade: a fé no Deus Amor e criador de todas as coisas, que nos leva a uma conversão ecológica e à construção de relações fraternais com os outros. A espiritualidade cristã tem como relação fontal o encontro com Jesus Cristo e, por consequência, o viver de Cristo como critério norteador das ações humanas.

Somamos a Cultura do Encontro na formulação dessa proposta de espiri-tualidade que salta das encíclicas do papa. Esta articulação não foi arbitrária, mas um desdobramento lógico da pesquisa que perseguiu uma intuição inicial. Tentaremos demonstrar brevemente que todas as ênfases anteriormente des-tacadas estão contempladas na Cultura do Encontro e ao mesmo tempo concor-rem para a implementação deste novo modo de ser no mundo.

Primeiramente, clarearemos o que é a Cultura do Encontro em Francisco. Reconhecendo a (de)limitação do nosso trabalho, não objetivamos esgotar o conceito – tarefa árdua, dada a sua amplitude, vivacidade e abrangência. A Cultura do Encontro é uma “expressão original do vocabulário e da visão ecle-sial do Papa Francisco” (MELLO, 2017, p. 721-750). Partindo do comentário de Víctor Manuel Fernandéz, teólogo argentino e amigo do atual papa, sobre a Cultura do Encontro podemos encontrar algumas pistas: “tudo que aproxima, une, agrega, conecta pessoas e grupos” (FERNANDÉZ, 2013, n.p.). Ele comple-menta esta síntese, afirmando a identificação de Francisco com um dos objeti-vos dessa cultura: ele é “apaixonado pelo bem comum e pela amizade social” (FERNANDÉZ, 2013, n.p.).

Nas pistas de Fernandéz é possível perceber que a Cultura do Encontro é um chamado à relacionalidade, a um novo modo de ser no mundo. Este novo ethos privilegia os acordos e não os conflitos, se baseia no respeito à diversida-de, singularidade e na dignidade de todos os seres humanos. É um novo modo de ser que considera a importância de todos e que podem contribuir para o bem comum, “ninguém é inútil, ninguém é supérfluo” (FT 215). 

A cultura é a alma de um povo, é o que confere pertença, algo que faze-mos juntos, que nos influencia, que criamos e cultivamos. É algo que penetra o interior do povo, “nas suas convicções mais profundas e no seu estilo de vida” (FT 216). 

A Cultura do Encontro se opõe às culturas de morte e violências dissemi-nadas no interior humano: cultura do descarte (LS 16; 22), cultura dos muros (FT 27) cultura do confronto (FT 30), cultura da indiferença (FRANCISCO, 2019. N.p.), entre outras.

O diálogo é a atitude-chave para nos aproximar, para tornar possível o en-contro autêntico: “O diálogo entre as gerações, o diálogo no povo, porque todos somos povo, a capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade” (FT 199).

A espiritualidade que emerge do encontro com Jesus Cristo é a força motriz para a implementação de uma Cultura do Encontro, pois esse encontro transfor-ma todas as dimensões humanas e impulsiona o ser humano a viver uma vida segundo – e seguindo – os passos de Jesus Cristo, o grande artífice do encontro:

Um convite a trabalhar pela “cultura do encontro” de modo simples, “como fez Jesus”: não só vendo, mas olhando, não apenas ouvindo, mas escutando, não só cruzando-se com as pessoas, mas detendo--se com elas, não só dizendo “que pena, pobrezinhos!” mas deixan-do-se arrebatar pela compaixão; “e depois aproximar-se, tocar e di-zer: “Não chores” e dar pelo menos uma gota de vida” (FRANCISCO, 2016. N.p.).

A espiritualidade que é vivida a partir do encontro com o Deus que veio até nós, que assumiu a nossa condição para nos encontrar, é uma espiritualidade kenótica4. Essa espiritualidade nos leva à autodoação em amor, ao envolvimen-to integral com a experiência humana.

Como visto na Lumen Fidei e na Laudato Si’, a espiritualidade se fir-ma na fé no Deus Amor e Criador de todas as coisas. O vínculo do Amor é central para a Espiritualidade do Encontro, que é o preenchimento do ser de Deus em nós. O transbordar da relação com esse Deus cons-trói o elo da nossa relação com a criação de Deus e com as suas criatu-ras geradas à sua semelhança, nos faz família humana, nos irmana a todos:  tutti fratelli, tutte sorelle5.

A Espiritualidade do Encontro deve ser percebida como integradora de toda a humanidade, não pode haver espaço para a solidão e o abandono. Seu fruto é o cuidado da casa comum e dos coabitantes dela. Quando nossas raízes espirituais se firmam em Deus tomamos a consciência de que tudo está interli-gado e não há nada que não seja de nosso interesse no que diz respeito à vida.

Sendo assim, a Espiritualidade do Encontro, que propomos a partir das encíclicas do Papa Francisco é integral e integradora. Encontro com Deus e encontro com o ou-tro. Aproximo-me, torno-me semelhante, não mais distante, agora próximo. Encontro o Deus criador na sua criação. Na contemplação encontro vida, não vivo só, não vivo eu, vive Ele em mim. Me (re)encontro nestes encontros.

4. Conclusão

Destacamos de cada carta um eixo central que corrobora no que denomi-namos Espiritualidade do Encontro. Se na Lumen Fidei tal eixo pode ser percebi-do na fé em Deus como verdade do amor, já na Laudato Si’ acrescenta-se a ên-fase na relação com Deus Criador que nos leva a uma conversão ecológica e, na Fratelli Tutti, uma espiritualidade que é vivida no amor fraterno para com todos. 

A Espiritualidade do Encontro, então, nasce do encontro com Jesus Cristo, revelação do Deus de amor, do amor de Deus por nós. Viver a Espiritualidade do Encontro é mais do que converter-se a uma verdade de fé, não se trata de mera contemplação do transcendente, senão, de uma experiência de caminha-da com o divino e de compromisso prático com a totalidade da vida, finita e eterna. Compromisso que nos faz próximos dos outros e da natureza, em har-monia com a totalidade da criação, revelando nosso papel original na existência terrena. 

Essa espiritualidade poderá nos reconduzir a valorizar as coisas mais sim-ples e fundamentais, pois percebemos que não precisamos de muito para viver a plenitude. Não se afiança aqui um individualismo sectário, mas reafirma-se a necessidade do outro, do encontro com quem estamos interligados. Como afirmou o Papa Francisco no contexto de crise mundial em decorrência da pan-demia de COVID-19, “ninguém se salva sozinho” (FT 54), o que nos remete ao necessário resgate da dimensão coletiva da salvação, perdida nas consciências feridas pelo pecado da indiferença.

A Espiritualidade do Encontro colaborará para a construção conjunta de uma nova forma de ser no mundo, um novo ethos, um ser com, não um ser só. Essa espiritualidade nos impulsionará para uma Cultura do Encontro, que valorize e integre a todos, que potencialize o ser humano para viver responsa-velmente em sociedade. 

Há grande necessidade de pertença e solidariedade para reconciliar a mul-tidão de solitários que vagam nesta terra. Talvez, seja este o momento de re-pensar nossos estilos de vida, um momento de abertura para uma nova espiri-tualidade. Não se trata de – mais – uma espiritualidade nova, mas da renovação da experiência do encontro com Jesus Cristo e com o seu seguimento, assumin-do todas as consequências desse encontro. 

Por fim, um encontro que se quer encontro não se impõe, não há exigên-cias nem obrigações. Fica aqui um chamado gentil, um convite ao encontro que respeita as diferenças, sem exclusões, desigualdade e desequilíbrios. Um cha-mado ao compromisso com a vida, pelo vínculo do amor, para (re)descobrirmos juntos as maravilhas e as belezas da existência, um chamado à Espiritualidade do Encontro.  

Referências

ANDRÉ, G. dq;P’. In: BOTTERWECK, G. J.; RINGGREN, H. (Ed.). Theological Dictionary of the Old Testament. Cambrigde; Michigan: Eerdmans Publishing, 2003. v. XII, p. 50-63. BÍBLIA de Jerusalém. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2004. 

BÍBLIA HEBRAICA STUTTGARTENSIA. 5ª ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft; Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1997. 

BEYER, H. W. evpiske,ptomai. In: KITTEL, G. (Ed.). Theological Dictionary of the New Testament. 5th ed. Michigan: Eerdmans Publishing Company, 1973. v. II, p. 599-605. 

BONORA, A. A fraternidade que salva – Gênesis 37 – 50. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.

CONCORDÂNCIA BÍBLICA. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil,1975, p. 1088. FRANCISCO, Papa. Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. 

FRANCISCO, Papa. Carta encíclica Fratelli Tutti:sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulinas, 2020. 

GIMÉNEZ-RICO, Enrique Sanz. Profetas de misericórdia: transmisores de una palavra. Madrid: San Pablo, 2007, p. 31-76. 

LEWIS, Jack P. Bôr. In: HARRIS, R. Laird (Org). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 144-145. 

MARTINI, C. Vida de Moisés – Vida de Jesus: experiência pascal. São Paulo: Loyola, 1985. 

SPEISER, E.A. Genesis: introduction, translation and notes. Garden City: Doubleday & Company, 1981, p. 378. [The Ancor Bible]. 

SKINNER, J.A. A critical and exegetical commentary on Genesis. Edinburgh: T & T Clark, 1980, p. 540. 

TILLESSE, Caetano Minette de. O Deus pelas Costas: Teologia narrativa da Bíblia. Vol. 2 – Teologia Negativa: O Exílio – Época persa e helenística. Revista Bíblica Brasileira. Fortaleza, número especial 1-2-3-4, ano 13, p. 149- 154, 1997. 

TORQUATO, Rivadalve Paz. “Desceu com ele à cisterna...” (Sb 10,14): Uma abordagem sobre José do Egito na perspectiva do sofrimento e da sapiência. Revista Convergência. Brasília, ano XLIX, n. 475, p. 593-607, out. 2014. 

VITÓRIO, J., Análise Narrativa da Bíblia – Primeiros passos de um método. São Paulo: Paulinas, 2016. WÉNIN, André. José ou a invenção da fraternidade: Leitura narrativa e antropológica de Gênesis 37 – 50. São Paulo: Loyola, 2011. 

Notas

[1]  Sobre as questões levantadas a crítica de Oliveira sobre o uso indiscriminado do conceito de espiritualidade faz-se necessária devido às diferentes idiossincrasias percebidas na aplicação do termo. Convém destacar, seguindo o exemplo de Oliveira, o título temático do dossiê da revista Horizonte de 2014. Veja também: PANAZIEWICZ, R. Secularização: o fim da religião? p. 9-26. In: BINGEMER, M. C. L.; ANDRADE, P. F. C. 2012. 

[2]  Ao restringir o conceito de religião ao institucional, às doutrinas etc., há um esvaziamento das dimensões objetivas e exteriores, próprias do conceito de religião, relegando-a ao subjetivismo e de analise unicamente científico-empírica (Cf.: OLIVEIRA, D. S. O conceito de espiritualidade a partir de uma abordagem filosófica da subjetividade, 2016. p. 130). Ainda sobre a definição do conceito de religião, Oliveira destaca: “Em diálogo com Schleiermacher, reivindicamos a teoria da subjetividade como exemplo de uma abordagem filosófica que formula uma teoria da religião sem ceder a limitações conceituais dogmáticas e subjetivistas. Para este autor, subjetividade não diz respeito à esfera do puramente subjetivo e privado, mas à autocompreensão imediata que o homem tem de si, a partir da qual, conforme sua mediação filosófica ou religiosa, ele estabelece as fronteiras do conhecimento especulativo último (fundamento transcendental) e a condição de possibilidade do conhecimento das religiões históricas ou positivas. Porém, a positividade das religiões históricas, enquanto objeto de uma filosofia da religião, não sucumbe às objetificações positivistas ou materialistas, já que não há identificação entre ‘objetividade’ e ‘empiria’”. 

[3]  Não concordamos com as enfáticas críticas dirigidas ao título da encíclica FT, com os que anteciparam a possibilidade de exclusão da mulher no documento, do seu papel social e de sua luta por liberdade e igualdade. O documento é direcionado a todos, irmão e irmãs (FT 1) e os temas da defesa dos direitos das mulheres estão bem presentes em suas linhas (Cf.: FT 23; 24; 54; 67; 79; 121; 196; 227; 261; 277). 

[4] Sobre espiritualidade e kênosis, há diversos ensaios e pesquisas em andamento, sobretudo em diálogo com o pensamento de Gianni Vattimo (cf. FERREIRA, D. W. Espiritualidade e niilismo: uma análise da pós-modernidade a partir do pensamento de Vattimo e Ferry. In: Congresso Internacional da SOTER, 2017, Belo Horizonte. ANAIS DO CONGRESSO DA SOTER. Belo Horizonte, 2017. p. 1017-1025; ROSA, W. P. Kênosis e espiritualidade: Uma leitura a partir do pensamento, e ZABATIERO: J.P.T. Espiritualidade frágil: viver sob a ótica do Reino de Deus, ambos In: ROCHA, A. S.; OLIVEIRA, D. M.; MARLOW, S. L. Espiritualidades contemporâneas. Vitória: Editora Unida, 2013. 

[5] Frase em italiano que quer dizer: “todos irmãos, todas irmãs”.