Denilson Mariano da Silva*
*Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de filosofia e Teologia (FAJE BH). Atualmente é editofr e revisor da Revista “O Lutador”, de Belo Horizonte - MG - Membro do Grupo de Pesquisa Teologia Pastoral da Faculdade Jesuíta de filosofia e Teologia (FAJE BH). Contato: marianosdn@yahoo.com.br
Voltar ao Sumário
Resumo:
A partir de uma breve contextualização sócio eclesial do período em que o Pe. Júlio Maria De Lombaerde, como Missionário da Sagrada Família, veio para o Brasil, percorremos os relatos de sua viagem e dos primeiros anos de missão em Macapá buscando neles os traços que evidenciam a ação do Espírito em seu agir e em seu ser missionário. Isto fazemos distribuindo o percurso deste texto em cinco passos: não querer dominar as pessoas; não ter a ambição de adquirir bens ou vantagens; usar de mansidão, humildade e acolhida; demonstrar verdadeira caridade e apresentar uma vida de testemunho cristão. A ação Espírito revela traços que transcendem os limites de seu tempo histórico e permitem ver os sinais da atualidade da ação missionária do Pe. Júlio Maria para os tempos de hoje.
Palavras chave: Pe. Júlio Maria; Missão; Espiritualidade; Evangelização
Abstract
Starting from a brief socio-ecclesial contextualization of the period when Father Julio Maria De Lombaerde, as a Missionary of the Holy Family, came to Brazil, we go through the accounts of his journey and the first years of his mission in Macapá, seeking in them the traces that show the action of the Spirit in his acting and in his being a missionary. We do this by distributing the course of this text into five steps: not wanting to dominate people; not having the ambition to acquire goods or advantages; using meekness, humility and welcome; showing true charity and presenting a life of Christian witness. The action of the Spirit reveals traits which transcend the limits of his historical time and allow us to see the signs of the actuality of the missionary action of Father Julio Maria for our times.
Keywords: Father Julio Maria; Mission; Spirituality; Evangelization
As escolhas, decisões e tomadas de posição na trajetória histórica de uma pessoa é que nos favorecem evidenciar a presença ou ausência de traços evangélicos, bem como permitem reconhecer com maior clareza a ação do Espírito de Deus. São atitudes que, embora localizadas, transcendem os limites de seu tempo e espaço geográfico e que podem ser atualizadas em outros tempos e circunstâncias. A atenção se volta para o missionário da Congregação da Sagrada Família, Pe. Júlio Maria De Lombaerde, oriundo da Bélgica e que atuou no Brasil por mais de 30 anos. Aborda-se aqui, de modo especial, o relato feito por ele de sua viagem da Europa para o Brasil, mais precisamente, Macapá-AP.
clareza a ação do Espírito de Deus. São atitudes que, embora localizadas, trans-cendem os limites de seu tempo e espaço geográfico e que podem ser atualiza-das em outros tempos e circunstâncias. A atenção se volta para o missionário da Congregação da Sagrada Família, Pe. Júlio Maria De Lombaerde, oriundo da Bélgica e que atuou no Brasil por mais de 30 anos. Aborda-se aqui, de modo especial, o relato feito por ele de sua viagem da Europa para o Brasil, mais pre-cisamente, Macapá-AP.
Para melhor compreender a ação do Espírito na pessoa do Pe. Júlio Maria procuramos ter presente o tempo em que ele viveu e o modelo eclesial no qual estava inserido. Sem isso, corremos o risco de cair em um anacronismo que pode nos levar a uma atitude saudosista e pouco realista em relação à sua vida, missão e testemunho A partir do “Diário Missionário do Pe. Júlio Maria”1, pro-cura-se evidenciar com maior clareza a riqueza do legado que ele deixou. Oxalá sirva de inspiração para a ação missionária dos membros das congregações por ele fundadas, para os leigos e leigas na Igreja e para a as pessoas de boa vonta-de no mundo de hoje.
Depois de uma breve contextualização histórica e eclesial discorre-se sobre algumas atitudes deste missionário que, transcendem o seu tempo e podem ser recriadas na atualidade, pois trazem consigo sinais da presença do Espírito em conformidade com o Evangelho. Entre elas: não querer dominar as pessoas; não ter a ambição de adquirir bens ou vantagens; usar de mansidão, humildade e acolhida; demonstrar verdadeira caridade e apresentar uma vida de testemu-nho cristão.
O início do século XX é marcado por um grande avanço das ciências:
Einstein anuncia a Teoria da Relatividade (1905); Santos Dumont voa com o 14 Bis (1906); Auguste Lumière inventa a fotografia colorida e Picasso e Braque inventam o cubismo (artes plásticas - 1907); na literatura, Marinetti publica o Manifesto Futurista um dos primeiros movimentos da arte moderna, procla-mando a ruptura com o passado e a identificação do homem com a máquina, a velocidade e o dinamismo do novo século (1909). Todo esse avanço do mun-do moderno desafiava a estabilidade e a solidez da Igreja que, percebia-se em um clima de insegurança. Na busca de defender-se, a Igreja tende à postura de autoafirmação e fechamento ao mundo moderno. Para recordar os principais traços deste modelo eclesial dominante naquele tempo, nos servimos da sínte-se feita pelo teólogo Víctor Codina, que em poucas palavras, nos apresenta um retrato desta Igreja da Cristandade:
Uma Igreja que separava o sagrado do profano, uma Igreja separada do mundo, que dividia o corpo eclesial em dois setores desiguais, a hie-rarquia e os leigos; uma Igreja que era definida como uma sociedade de desiguais na qual, enquanto uns ensinam, santificam e mandam, outros aprendem, recebem e obedecem. [...] Era uma Igreja de massa, constituída de fiéis batizados desde a infância, mais instituição que co-munidade; uma Igreja muito hierarquizada, tremendamente piramidal, centralizada e uniformizada... (CODINA, 2015, p. 109).
Mesmo o grande zelo missionário que motivava o avanço da Igreja se dava por essa autocompreensão da Igreja que se identificava com o Reino de Deus na terra, e fora dela, não havia salvação. Daí sua rejeição à liberdade religiosa e sua atitude de medo, fechamento e defesa diante dos avanços do mundo moderno. A vinda do Padre Júlio ao Brasil, com apenas quatro anos de ordenado, se dá neste contexto, durante o no pontificado de Pio X (1903 a 1914), que foi o su-cessor de Leão XIII, este conhecido pelo seu intelectualismo e responsável pelo desenvolvimento de ensinamentos sociais com sua encíclica Renum Novarum, e suas tentativas de certa abertura da Igreja no que diz a respeito ao pensamen-to moderno. No entanto Pio X, apesar de sua compaixão e benevolência pelos pobres, sua permissão e incentivo para o uso das línguas vulgares na catequese e a prática da comunhão frequente, assumiu uma postura de fechamento ao mundo moderno, tendo-o como uma ameaça à fé católica. Era notável sua es-pecial dedicação à figura de Maria. Sua encíclica Ad Diem Illum, pelo cinquente-nário do dogma da Imaculada Conceição, expressa seu desejo de, por meio de Maria, renovar todas as coisas em Cristo.
Não obstante tudo isso, o Brasil ainda não respirava os ares da Reforma e do modernismo. Devido ao extenso período do regime de Padroado, mantido
por força da colonização portuguesa, podemos dizer que a Igreja do Brasil havia parado no tempo. Ela vivia ainda como se estivesse nos primeiros tempos da Cristandade, com a proximidade e conivência entre os poderes civis e eclesiais. Por causa da grande influência portuguesa sobre a Igreja, ocorreu um distan-ciamento das diretrizes romanas. Por isso, neste período, era forte a busca da romanização do catolicismo brasileiro (cf. TEIXEIRA, 1988, p. 24-33). A ação mis-sionária do Pe. Júlio Maria configura-se também dentro deste esquema de ro-manização. A falta de padres e as grandes distâncias favoreciam o florescimento de confrarias de leigos e o cultivo de uma religiosidade popular mais centrada na devoção aos santos. Era um campo extremamente favorável à missão pela falta de padres para o atendimento ao povo e sem as influências do pensamen-to moderno que questionava a organização vigente na Igreja.
Nestes apontamentos sobre o Diário Missionário, interessa-nos captar os sinais da presença do Espírito que movia o Pe. Júlio Maria. O Espírito se move por toda parte e na linha do pensamento de Santo Agostinho, é “mais interior a nós que nós mesmos”. No entanto, Ele não pode ser captado diretamente, é pelos frutos que podemos identificar sua ação que acontece no mais íntimo, no interior de cada pessoa. É a partir de dentro que Ele move as ações e decisões de quem O acolhe e se deixa conduzir.
Assim, para identificar esses sinais da ação do Espírito na obra, nas atitudes e mais ainda, na pessoa do Pe Júlio Maria, nos apoiaremos em um texto de Bartolomeu de Las Casas (Séc. XVI) que, referindo-se ao apóstolo São Paulo, em seu modo de evangelizar, indica cinco atitudes que constituem a essência da pregação do Evangelho e indicam o verdadeiro missionário, de acordo com o mandato missionário de Cristo:
A primeira é que os ouvintes, sobretudo infiéis, compreendem que os pregadores da fé não têm nenhuma intenção de adquirir domínio sobre eles com a pregação [...]. A segunda parte consiste em que os ouvintes, e, sobretudo os infiéis, entendam que não é a ambição de ter que o move a pregar [...]. A terceira parte consiste em que os pregado-res se comportem de tal maneira doces e humildes, afáveis e corteses, amáveis e benévolos ao falar e conversar com seus ouvintes, sobretu-do infiéis, que estes queiram ouvi-los prazerosamente e tenham sua doutrina na maior reverência [...]. A quarta parte da forma de pregar, mais necessária que as outras, pelo menos para que a pregação seja proveitosa ao pregador [...] é o amor de caridade com o qual Paulo aco-lhia a todos os homens do mundo para que se salvassem; irmãs gêmeas da caridade são a mansidão, a paciência e a benignidade [...]. A quinta parte da forma de pregar o Evangelho é ter uma vida exemplar, res-plandecente com obras de virtude e sem ofender ninguém, totalmente irrepreensível (LAS CASAS, apud TRIGO, 2010 p. 189-190).2
Acreditamos que Pe. Júlio Maria deixa transparecer no seu “Diário Missionário” as motivações mais originais de toda a sua ação missionária rea-lizada no Brasil, não apenas no Norte, mas também nas terras mineiras deste nosso Sudeste brasileiro. Buscaremos identificar a ação do Espírito que movia esse grande Servo de Deus. Percorremos seus relatos na busca de evidenciar cada uma destas cinco atitudes que denotam a ação do Espírito e identificam o verdadeiro missionário.
“A primeira é que os ouvintes, sobretudo infiéis, compreendam que os pregadores da fé não têm nenhuma intenção de adquirir domínio sobre eles com a pregação [...]” (LAS CASAS).
Logo em sua chegada Pe. Júlio Maria se faz aluno dos pequenos, ele apren-de com eles. Ele tem uma grande sensibilidade para com as crianças e para com os pobres, faz-se próximo e solícito a eles. Ele aprende com o pequeno José, órfão de mãe, com nove anos de idade, não apenas o pronunciar de algumas sílabas mais nasalizadas, ele aprende a singeleza e o desprendimento daque-le garoto que, tendo recebido dele uma medalha da Virgem, a devolve para a Imagem na Igreja, pois tudo o que recebia, ele entregava para a sua mãe. Então reconhecendo-a como sua mãe, queria fazer o mesmo por ela. E assim Pe. Júlio Maria conclui: “Bravo menino, sem o saber, acabava de me dar uma lição que jamais esqueceria: só estar contente quando a Santíssima Virgem estiver con-tente” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 158).
O mesmo se dá com a pequena Laura, de três aninhos de idade que espera-va sua galinha botar para trazer o ovo para o Pe. Luiz Bechold que se encontrava doente. Mas, quando a galinha parou de botar, ela trouxe a própria galinha para o padre. Padre Júlio assim se expressa: “Bravo coraçãozinho generoso! Que sa-crifício para a boa menina, [...] A galinha de Laura nos divertiu muito, mas seu coração caridoso não nos edificou menos” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 161).
Outro episódio que revela essa sensibilidade se dá com um velho septua-genário, que já há cinquenta anos não via um padre. Ele havia andado 300 Km para encontrar-se com Pe. Júlio. Na atitude daquele velho, ele lê o sentido da missão presbiteral e de sua presença no meio do povo e ainda ressente a frieza da fé na Europa, em contraste com a fé do povo na Amazônia:
Olhei para ele, por longo tempo e, reclinando a cabeça no seu ombro, derramava eu também lágrimas quentes, exclamando: Meu Deus, como Vós sois bom para com aqueles que Vos procuram! Eu chorava com a lembrança de tantas almas que se perdem na Europa, volunta-riamente, não querendo o padre que, – somente ele, – pode abrir-lhe as portas do Céu! (DE LOMBAERDE, 2018, 2018, p. 165).
E, diante do abandono e da falta de assistência ao povo na Paróquia de Macapá, enfraqueceu-se a prática religiosa levada a um sono letárgico. Diante disso, seu único desejo é ser instrumento de salvação para aquele povo: “Queira o bom Deus servir-se de nós para acordá-los... devolver-lhes a fé e a felicidade eterna!” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 347).
Embora não mencione explicitamente a ação do Espírito, essa sensibilida-de para com os pequenos, idosos e pobres e a atitude de aprender com eles revelam um transcender a superioridade da própria da cultura europeia. Pe. Júlio revela uma disposição kenótica para aprender com o outro na qual, mes-mo sem dizer, ele esvazia-se e abre-se aos pequenos e pobres e, a partir deles, procura ler a vontade de Deus nos acontecimentos. Nos gestos e atitudes dos pequenos, Pe Júlio Maria é capaz de intuir as necessidades e urgências da mis-são em seu tempo. Daí seu grande anseio de servir, livre de qualquer pretensão dominadora, visando somente favorecer a verdadeira vivência da fé. O conjunto destes traços evidencia que estamos diante de um missionário que se deixa guiar pelo Espírito de Deus que age a partir de baixo, nas crianças, nos pobres, nos pequenos.
“[A] segunda parte consiste em que os ouvintes, e, sobretudo os infiéis, entendam que não é a ambição de ter que os move a pregar [...]” (LAS CASAS).
O desapego e espírito de pobreza é algo que acompanha a trajetória do Pe. Júlio Maria em sua missão. O desapego já pode ser visto antes mesmo de sua partida. Ele abre mão de tudo, de sua promissora ação missionária e de sua carreira de escritor, na Europa. Ele dá um salto de confiança abandonando-se nas mãos de Deus e na companhia da Virgem Mãe, e, como ele mesmo atesta, com semelhante desprendimento de S. Francisco Xavier:
“Tirai-nos tudo, Senhor, mas dai-nos almas”, é tudo o que Vos pedimos. Adeus a tudo, Deus nos basta. Ele será nossa vida e nossa força. A doce Virgem, Rainha dos Corações, a Estrela do mar, será nossa luz, nossa consoladora e nosso sustentáculo. E junto de Maria, como é bom lutar e sacrificar-se por Deus! (DE LOMBAERDE, 2018, p. 40).
E, diante da acolhida atenta do povo aos missionários que chegam ao Brasil, é na linha do desprendimento e da gratuidade que ele faz um apelo para que mais missionários se animem a vir para o Brasil. A recompensa que se projeta, nada aponta para um benefício pessoal, mas unicamente a salvação das pesso-as e as bênçãos de Deus:
Que colheita abundante e que bênçãos esperam pelo ministro do Altíssimo, que tem a coragem de deixar sua pátria, enfrentar o calor tropical e dedicar-se à salvação dessas pobres almas! [...] Vocês, cujas almas são grandes e desprendidas, venham... lágrimas de reconheci-mento acolhê-los-ão e bênçãos segui-los-ão por onde passarem (DE LOMBAERDE, 2018, p. 148).
Sua consolação não se dá com bens, posses, pertences, títulos ou glórias pessoais. Ele se alegra e se consola com o crescimento da fé do povo. Isso lhe enche a alma e o coração e nenhuma riqueza ou glória terrena se aproxima do que ele experimenta na ação de Deus junto do povo:
Sentia que não fazia com os meus ouvintes senão um só coração e uma só alma; [...]. Oh! consolação gratificante para um coração de padre! Ver almas nas lágrimas que a verdade as faz derramar; ver corações que se inflamam ao contato com o amor que sua palavra e suas próprias lágrimas fazem irradiar. Não, não existe nada de comparável aqui na terra! (DE LOMBAERDE, 2018, p. 178).
Ele nada esperava em troca ao não ser a aproximação do povo a Deus, oferecia o melhor de si, sem reservas no espírito evangélico de verdadeiro após-tolo: “De graça recebestes, de graça deveis dar! (Mt 10,8)” (cf. DE LOMBAERDE, 2018, p. 468). Outro fato que torna ainda mais evidente seu desapego é a lei-tura evangélica que ele faz de uma doação recebida de uma senhora pobre. Ao depositar-lhe na mão uma moeda de cem ou duzentos réis, Pe. Júlio Maria vê nesta atitude o “óbulo da viúva”, a doação dos pobres de Deus em sua generosidade sem medida:
Boas almas! Compreendem que o missionário é pobre; entendem tam-bém que ele não procura honra e nem riqueza, mas unicamente almas e que, entretanto, deve viver e vestir. Possa o Deus-Menino, em recom-pensa por seus sentimentos, enviar-lhes, enfim, padres zelosos para esclarecê-los, animá-los e mostrar-lhes o verdadeiro caminho do céu (DE LOMBAERDE, 2018, p. 183).
Pe. Júlio Maria era tomado de um grande zelo missionário que o fazia doar--se ao máximo para o bem do povo. Sua vida era uma dedicação contínua à obra de Deus no apostolado missionário: “Ficava confessando toda manhã e uma parte da tarde, dando a essas caras almas, a umas um pouco de luz; a outras, um pouco de coragem; a todos, esperava eu, o desejo de fazer o melhor e de servir a Nosso Senhor com mais generosidade” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 192). E não escondia as dificuldades, as fadigas, a vida sofrida na Amazônia, os sacri-fícios infligidos pelo clima, pelas distâncias, pelos perigos a serem enfrentados. Mas sempre lia os desafios como participação no sacrifício de Cristo pelo bem de toda a humanidade. Sacrifício que deveria ser também assumido, com co-ragem, pelos missionários. E assim ele resume o seu convite para a missão nas terras e plagas amazonenses:
Vou dizer toda a verdade, tanto para espantar os covardes como para dizer às almas generosas: Venham! Há um ministério árduo na Amazônia, mais do que árduo – um ministério cheio de sacrifícios e imolações. O clima é quente, tórrido; as distâncias, a percorrer, imen-sas, penosas, perigosas; há poucas consolações... [...] Aspirais a fadigas, imolações, um apostolado de sacrifícios? As almas engendradas em vossas lágrimas e batizadas em vosso suor? Vinde, vinde! Apertai sobre os vossos corações a cruz ensanguentada d’Aquele que deu pelas almas até à última gota de sangue, e dizei: Eu, eu quero a Amazônia!!! (DE LOMBAERDE, 2018, p. 344).
Somente quem não temesse o sacrifício, somente quem estivesse disposto a empenhar a própria a vida sem esperar recompensas, somente quem tivesse um amor verdadeiro à causa missionária e ao povo de Deus daria conta desta missão. Era preciso abraçar a cruz de Cristo dispor-se totalmente até à última gota de sangue para com coragem exclamar: “Eu, eu quero a Amazônia!”. Ao que nos parece esse frisar o sujeito nesta frase, repetindo-o, é uma indicação clara de sua determinação e seu ardor missionários. Porém, mais que ficar relatando os sofrimentos e fadigas, ele se preocupa em relatar os avanços da mis-são. Ele se alegra com a disposição e acolhida dos negros com a Confraria de São Benedito (DE LOMBAERDE, 2018, p. 404), confiante de que sua missão é semear e que cabe à graça de Deus fazer progredir. A ação do Espírito na pessoa do Pe. Júlio Maria o fazia profundamente desapegado, sensível à realidade e ao sofrimento do povo, capaz de ler os acontecimentos com olhar evangélico e por isso imbuído de uma doação total de si a serviço do povo.
“[A] terceira parte consiste em que os pregadores se comportem de tal maneira doces e humildes, afáveis e corteses, amáveis e benévolos ao falar e conversar com seus ouvintes, sobretudo os infiéis, que estes queiram ouvi-los prazerosamente e tenham sua doutrina na maior reverência [...]” (LAS CASAS).
Todo o relato feito pelo Pe. Júlio nesta obra está permeado de palavras, gestos e atitudes de humildade, mansidão e acolhida. Isso se revela com as crianças, com os idosos e, de um modo particular, com os pobres em geral. Vamos nos ater a alguns acontecimentos que nos parecem mais marcantes. Em suas primeiras Missas, celebradas por ocasião do Natal, o povo e, sobretudo as crianças o apertam de todos os lados. Ele age com grande paciência e tudo contempla com um olhar de fé onde se entrelaçam a humildade, a mansidão e o senso de acolhida em seu coração. Externamente, seus olhos se enchem de lágrimas manifestando o que se passa em seu coração missionário:
Pequenos querubins, dignos de postar em torno da manjedoura. Com os braços, aproximava-os de mim, traçando-lhes sobre as frontes um pequeno sinal da cruz, senti lágrimas a me molharem as pálpebras e irem brilhar sobre as frontes delas como um raio de um coração de pa-dre. Possa esse raio apagar de suas frontes o vício e fazer resplandecer em seus corações o amor do divino Infante, cujo nascimento vamos celebrar (DE LOMBAERDE, 2018, p. 174).
Na segunda Missa, na mesma noite de Natal, vendo a limitação do povo que participava, ele altera o sermão que havia escrito, procura outras palavras para torná-lo mais acessível ao povo, a fim de ser melhor compreendido. Ele não força o povo a moldar-se a ele, antes, vai deixando-se modelar para melhor atender às necessidades do povo. Seu desejo era se fazer compreender e ajudar o povo a penetrar nos mistérios divinos despertando neles o gosto e a alegria de ser cristão e melhor compreender a própria fé. Isso se repete também na terceira missa, na qual ele mesmo vê na mansidão um caminho para ganhar o coração das pessoas e revelar-lhes o gosto pela religião (cf. DE LOMBAERDE, 2018, p. 180-181 e 186-187).
Certa feita, uma vovó o aborda no final da missa, ela deseja confessar-se e comungar. Com um jeito paternal Pe. Júlio Maria a acolhe, senta-se com ela, escuta sua história, gasta tempo com aquela senhora, dá-lhe algo para comer e reconhece nela uma retidão de vida, apesar das misérias sofridas. Qual pastor, ele dava um pouco alento a uma ovelha ferida pela vida sofrida. Com carinho ele abençoa o quadro da Virgem Maria que ela trazia consigo. A esperança da-quela senhora era de que a bênção dada ao quadro recairia sobre ela no dia de sua morte. E, como de costume em seus relatos, Pe. Júlio Maria faz uma leitura espiritual do acontecimento, desta vez postulando a força da presença de Maria na vida do povo: “Fiquei imóvel por um instante, admirando, sem proferir uma palavra, essa cena. Oh! Minha Mãe, murmurei. Eis aí uma de vossas maravilhas! Por toda parte, onde a graça opera esses milagres, sente-se aí a vossa mão!” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 197). Nesta sensibilidade aos idosos, em outra situação, revela seu apreço e admiração pelo velho penitente que se recolhe em sua po-breza numa vida de oração e penitência. Pe. Júlio Maria encoraja esse senhor a perseverar naquele estilo de vida simples e humilde, seguindo o exemplo de intimidade com Deus da Virgem Maria, visando santificar tudo o que faz (cf. DE LOMBAERDE, 2018, p. 272).
No Evangelho Jesus nos adverte que temos de ser como crianças para en-trar no Reino de Deus (cf. Mt 18,3). Um bonito traço de humildade e mansidão pode ser visto no carinho do Pe. Júlio para com as crianças, na sua sensibilidade para com elas e no seu dom de ajudá-las a aproximarem-se mais da fé, através da figura da Virgem Maria. Um dos relatos marcantes se dá em sua viagem para Macapá, a bordo de um barco. Já era noite, a pequena de três ou quatro anos vem beber água perto dele e lhe pede a bênção. Com um sorriso Pe. Júlio a aco-lhe e começa um diálogo em torno da medalha da Virgem que ele traz consigo e pela sua pergunta se ela sabia rezar a ave-maria. Eis uma atitude de quem procura e reconhece a presença de Deus nos pequenos:
Sua voz infantil e melodiosa ressoa sobre as águas como um hino, em que vibram, ao mesmo tempo, a inocência, o amor e a prece. Calando-se sua voz e tendo seus lábios me tocado a mão com um beijo de despe-dida, volta para a rede. Eu lhe escutava ainda a voz, entrevia também, no escuro da noite, essa figura inocente e pura, e ressoavam-me igualmente aos ouvidos as palavras sagradas da ave-maria (DE LOMBAERDE, 2018, p. 312-313).
A sensibilidade para com as crianças (cf. DE LOMBAERDE, 2018, p. 331-332), com os pequenos e pobres revela a proximidade do Pe. Júlio Maria com os desígnios divinos no qual Deus se encarna e assume a condição humana em sua fragilidade, pequenez e pobreza na humildade e simplicidade da vida de Nazaré. Macapá foi, sem dúvida a Nazaré do Pe. Júlio Maria no Brasil. Assim como Nazaré marcou toda a vida de Jesus, seu aprendizado sobre as condições e a vida do povo, sua visão de mundo, sua oração, sua pregação e escolhas durante toda a sua vida pública, Macapá parece ter marcado toda a vida mis-sionária do Pe. Júlio Maria no Brasil. Sua atenção às crianças, aos idosos e par-ticularmente aos doentes o acompanharão por toda a sua vida. Prova isto é seu empenho em Manhumirim-MG pela educação aos pequenos, pela acolhida dos órfãos no Patronato, dos doentes com o Hospital e dos idosos com o Asilo. Os dons da mansidão, humildade e acolhida revelam-se como verdadeiros frutos do Espírito de Deus que floresciam neste grande missionário.
“[A] quarta parte da forma de pregar, mais necessária que as outras, pelo menos para que a pregação seja proveitosa ao pregador [...] é o amor de caridade com o qual Paulo acolhia a todos os homens do mundo para que se salvassem; irmãs gêmeas da caridade são a man-sidão, paciência e a benignidade [...]” (LAS CASAS).
O zelo pelo povo e a busca de bem conduzi-lo espiritualmente é também um traço característico do Pe. Júlio Maria. Logo ao chegar ao Brasil, ele vê a Maçonaria como uma ameaça à fé cristã, um desvirtuar do verdadeiro sentido religioso. Os maçons colocavam dificuldades para os fiéis católicos que verda-deiramente queriam vivenciar a sua fé, como, por exemplo, o impedimento de confessar à hora da morte e ter de levar a bandeira maçônica sobre o caixão. O ardor pela fé, aliado à determinação própria do espírito europeu o faz levantar--se em defesa da fé do povo, ameaçada pela falta de padres:
Isto mostra, uma vez mais, a necessidade urgente de padres no Brasil, e o bem imenso que há de se fazer aqui. Salvar um povo cristão, arrancá-lo das mãos da Franco-Maçonaria, soerguê-lo do chão, onde o prende sua ignorância religiosa, para devolvê-lo à Igreja, sua mãe; para levá-lo a Jesus Cristo, que deve chorar sobre a perda de tantas almas pelas quais sofreu. Essas almas foram lavadas em seu sangue e se perdem por falta de padres (DE LOMBAERDE, 2018, p. 130).
Em seu modo de compreender a religião, Pe. Júlio Maria demonstra com-paixão pelo povo distanciado da fé ou cuja religiosidade não ultrapassa algumas práticas exteriores sem que correspondesse, de fato, a uma atitude de vida. Ele, fixando-se no crucifixo que trazia em seu peito contempla, na sede de Cristo crucificado, uma sede de conduzir o povo em sua vida de fé e nisto podemos antever uma expressão de seu anseio interior que se desdobrará em práticas de verdadeira caridade e solicitude pastoral no atendimento ao povo:
Involuntariamente, abaixo os olhos; olho para meu crucifixo e fico pen-sando que, nos lábios do divino Salvador, há alguma coisa infinitamen-te agradável e triste; um eco desta prece do Calvário: “Tenho sede!...” Sede destas pobres almas que vivem e moram longe de Deus, longe de toda prática religiosa, na ignorância completa da vida cristã e daquilo que somente lhes pode alcançar a salvação (DE LOMBAERDE, 2018, p. 319).
Sua caridade verifica-se também em atitudes de sensibilidade como a solida-riedade ao Pe. Carlos, religioso Capuchinho, que diante do massacre aos indígenas no Alto Alegre, fica tão perplexo a ponto de perder a memória dos fatos recentes. Pe. Júlio Maria, sensibilizado pelo testemunho de fé, transforma em prece seu relato: “Esperemos que o sangue desses mártires, como sempre, seja semente de cristãos para a terra brasileira e que, lá do céu, suas preces nos obtenham a graça de seguir seus passos e ganhar as almas à custa de nosso suor e mesmo, se for preciso, ao preço de nosso sangue” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 288).
Outro gesto de caridade podemos ver no ato de dar pão a uma menina órfã de mãe depois de ouvir sua prece na capela. Ele diz à menina que a Virgem tinha escutado a sua prece já lhe havia mandado o pão que ela pedia. Depois ele conclui: “Não recebi nenhum agradecimento... não tinha direito a isto. Mas, ao sair, a cândida menina me suplicou que dissesse ainda mais uma vez, um obrigado à Sma. Virgem por ela. Eu o fiz... porém, chorando de felicidade” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 356).
Sua caridade pastoral pode também ser vista em sua disposição de cate-quizar a toda hora e em qualquer lugar. “Catequizo um pouco em qualquer lu-gar onde encontro gente” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 357). Sempre com uma grande sensibilidade aos simples e pequenos. Ele tem a preocupação de adap-tar a linguagem para que se faça compreender o que respondia também a um dos apelos de Pio X para que a catequese acontecesse em “língua vulgar” ou
seja, na língua do povo própria do lugar. Chama a atenção gestos pitorescos que revelam sua grande sensibilidade pastoral como a de emprestar a sua murça para que um menino, sem roupas, pudesse entrar na Igreja e pedir a bênção à Virgem Maria (cf. DE LOMBAERDE, 2018, p. 358).
A sua solicitude pastoral, sua busca de ir atrás dos fiéis, sobretudo dos do-entes e afastados da vida de fé também atestam a sua caridade. É invejável a sua prontidão em atender às confissões a ponto de entrar pela noite adentro e, ainda que cansado, sentir-se tomado pela alegria de poder aliviar a muitos do peso de seus pecados: “Saí da igreja à meia-noite com o coração mais cheio de felicidade que o rosto de suor. Dormir? Impossível! Quando a alegria é grande demais, ela afugenta o sono” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 401). Igual solicitude e preocupação o acompanhava na busca de livrar os casais do concubinato (cf. DE LOMBAERDE, 2018, p. 410-414). Para isso percorria grandes distâncias a ca-valo, em meio às matas, sempre com grande alegria e disposição, colocando-se a serviço do povo simples e pobre. E, mesmo cansado de suas andanças tem disposição para acolher, ainda à noite, o pedido para que atendesse a um do-ente moribundo. Eis o que lhe dava tamanha disposição: “Tinha à minha frente uma alma criada por Deus e um irmão que precisava de mim” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 416). Além disso, ele mesmo se desdobrava no cuidado com os doentes como no caso da velha centenária, vinda de barco do interior, a “tia Tereza” (cf. DE LOMBAERDE, 2018, p. 432-433). Ele cuidou pessoalmente dela por três me-ses, não apenas de suas feridas na perna, mas de suas feridas na alma. Somente movido pelo Espírito de Deus para tamanha dedicação direta aos pobres e so-fredores no meio de tantos afazeres ligados às práticas sacramentais e à educa-ção, entre outras.
Impressionante seu cuidado e sua sensibilidade para com os leprosos. Como no caso do Manuel, descoberto por ele em um casebre abandonado. Ele passa a visitá-lo todos os dias, faz uma catequese informal com ele e lhe administra os sacramentos, mas além de todo esse cuidado faz uma leitura es-piritual dos acontecimentos como no momento em que dá a comunhão: “Nesse momento, meu leproso estava feliz e o seu olhar brilhava ardentemente. Com a chegada do Hóspede Divino, deixou-se cair na rede, os braços cruzados sobre o peito, uma grande lágrima nos olhos e assim recebeu a Jesus, o amigo dos miseráveis e dos abandonados” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 439). Sua solicitude com Manuel dura até à transferência dele para Belém.
E como seu espírito se comove diante da realidade de mais de três mil le-prosos no Hospital Leprosário de Pinheiro. Diante do que seus olhos veem nas misérias humanas ele reflete também sobre as misérias da alma humana insen-sível com os pobres e sofredores: “Meu Deus, meu Deus! – Pensei... se o mundo soubesse se os ricos soubessem... não dariam eles um pouco de seu supérfluo para aliviar esses terríveis e degradantes misérias?!...” E doa a um jovem lepro-so, o pouco dinheiro que tem no bolso, o lenço, o canivete... em solidariedade aos seus imensos sofrimentos (DE LOMBAERDE, 2018, p. 511). E grande solida-riedade ao Pe. Daniel, também leproso que se ocupou até a morte no cuidado de outros leprosos. Ele o abraça demoradamente, sem palavras, comovido por seu testemunho de vida e doação. E assim, ele mesmo relata: “O Pe. Daniel está morrendo... ele vai morrendo, sorrindo e consolando os outros. – Cada pedaço de meu cadáver que cai – dizia-me, sorrindo – me aproxima um passo a mais do bom Deus! Oh! Religião divina que produz tais maravilhas de heroísmo e de amor!” (DE LOMBAERDE, 2018, p. 516).
No juízo final seremos julgados pelo que tivermos feito ou deixado de fazer a favor dos últimos, dos mais sofridos (cf. Mt 25). O testemunho de amor em atos de caridade a favor das crianças, dos doentes, dos idosos e dos leprosos, como vemos nos relatos do Pe. Júlio Maria, nos apontam uma vida em sintonia com o Evangelho, na solidariedade com os últimos e mais sofridos. Isso ultra-passa os limites de seu tempo histórico e, neste sentido, mantém a sua perti-nência e atualidade para os dias atuais. Traços que ultrapassam a eclesialidade do pré Concílio Vaticano II, mais marcada pelo sacramentalismo e não raro dis-tante do povo3. Um sinal sensível de que ele se deixava guiar pelo Espírito, fonte de toda verdadeira caridade humana e pastoral.
“[A] quinta parte de pregar o Evangelho é ter uma vida exemplar, resplandecente com obras de virtude e sem ofender ninguém, totalmente irrepreensível” (LAS CASAS).
De tudo aquilo que já pudemos ver dos quatro primeiros passos, em muito transparece o testemunho do Pe. Júlio Maria de uma vida exemplar na proximi-dade com as exigências do Evangelho. Ainda assim destacamos alguns outros traços que evidenciam a virtude de seus atos e atitudes. Fica evidente em seus relatos que ele se deixa guiar pelo ideal de “salvar almas” o que hoje expressa, mais propriamente, o zelo ardente pela verdadeira evangelização. Mas sua dis-posição para isso vai além de um simples esforço pessoal e do cumprimento de uma missão. Ele empenha a vida como uma oferenda total e plena de si mesmo, disposto até mesmo ao martírio, palavra da qual se origina o testemunho. Esse é o seu propósito deste à saída da Europa:
Ganhar almas para Jesus Cristo, e ganhá-las a preço de seu próprio suor, de suas fadigas e de seu sangue, se necessário for. O martírio! Não, esta visão não aterroriza, uma vez que o Salvador nos disse que a maior prova de amor, que se possa dar àqueles que se amam, é morrer por eles. O missionário não aspira a outra coisa a não ser a dar a seu divino Mestre esta prova suprema de amor e zelo. Morrer por Deus é viver eternamente; é trocar o país do exílio e das lágrimas pela pátria da felicidade e da visão sem véu (DE LOMBAERDE, 2018, p. 33).
Para o Pe. Júlio Maria, sofrer ou morrer, não importa. O que de fato importa é a missão, tornar Deus conhecido e amado pelo povo. Antes, morrer na missão é visto como glória, como entrada no Reino de Deus, verdadeiro triunfo. O que se confirma em seu relato no qual faz um apelo para que jovens possam abraçar a missão no Brasil. Imaginemos a força de semelhante espírito de doação nos dias atuais, tão tomados pelo individualismo e pelo subjetivismo que enfraque-cem a capacidade de entrega, o espírito de sacrifício e, consequentemente, o ardor missionário:
Sofrer! Mas que importa o sofrimento! O que importa é que Deus seja conhecido; que as almas sejam salvas e que consigamos a conquista do céu! Morrer! Mas o que importa é u’a morte que dá a vida; é um túmulo que faz entrar na Glória! Padres, eu os espero! Eu não lhes prometo a não ser cruzes? Oh! Não ! Eu lhes prometo mais: Sofrer e morrer por Deus; Eu lhes prometo o triunfo! (DE LOMBAERDE, 2018, p. 122).
Sua determinação e vontade de colocar-se disponível para a missão o le-vava o relevar ou a resignificar as dificuldades enfrentadas e mesmos as intempéries do tempo e do clima. Diante do fustigante calor na cabine do barco, a caminho de Macapá, sem conseguir dormir ele é capaz de enfrentar a situação de maneira serena e jocosa, dizendo-se ter recebido um “batismo equatoriano”. Mais ainda liga as abundantes gotas de suor que caem de seu corpo com a mis-são que o aguarda, tudo sob a proteção da Virgem Maria:
Levantei-me, mas em qual estado? Rindo, perguntava a mim mesmo se eu estava cozido ou assado. Mas, não, visto que estava totalmente mer-gulhado num banho. Camisa, calça e roupa de dormir estavam enchar-cadas e me colavam no corpo, como se eu estivesse caído no rio. [...] Dizia pra mim mesmo: para frente e para o alto! Agradece ao bom Deus, pois agora estás aclimatado e naturalizado equatoriano. E se a Virgem te der uma alma por cada gota de suor, a colheita será farta (DE LOMBAERDE, 2018, p. 315-316).
Em seu modo de contemplar a natureza, ele a enxerga não apenas como obra das mãos de Deus. Ele a vê como que dotada de uma alma, de um cora-ção, de uma liberdade, e por isso, capaz de prestar um louvor ao Criador. Isto não é mera imaginação ou efeito lingüístico em seus relatos. Antes, trata-se de uma sensibilidade que lhe advém de um cultivo constante da espiritualidade, amadurecida pela vida de oração e de intimidade com Deus. Oração não sim-plesmente verbal ou mental, mas profunda e sincera que lhe penetra a mente e o coração e percorre todo o seu ser, moldando suas ações, decisões e sentimen-tos. Isto denota a ação do Espírito de Deus em sua pessoa que o faz ver tudo de uma forma mais profunda, que em tudo vê a presença e a ação de Deus. Em muitos de seus relatos percebemos essa sua sensibilidade eis um deles como ilustração:
A onda que murmura; a folhagem que parece gorjear; a solidão que parece meditar; o céu que parece aproximar-se da terra; o navio que desliza sem barulho sobre as águas serenas. Tudo isto harmonizado pa-rece cantar um hino ao Criador; tudo isto parece animado, dotado de alma e coração, de lábios que cantam e de ouvidos que escutam (DE LOMBAERDE, 2018, p. 318).
Seu testemunho também se revela na atenção e no cuidado para com as mulheres. E nisto podemos ver como ele parecia estar muito adiante de seu tempo e mais aberto em seu agir pastoral que a Igreja naquele momento. Ele reconhece a importância das mulheres para o serviço de evangelização. Veja que elas são uma força na confraria de mulheres e é apostando nelas que ele começa, mesmo sem recursos, a Congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria. A presença das mulheres era vista por ele como uma força social que era ignorada, mas que a seu ver, não poderia ser desperdiçada. Dentro do con-texto social e eclesial da época, esta sua abertura para a valorização da mulher é algo muito significativo, que precisa ser levado em consideração e que pode abrir novas perspectivas diante dos limites a participação das mulheres e dos leigos ainda hoje, quer na Igreja ou na sociedade.
O campo se abria imenso diante de nós. E no entanto, havia uma gran-de lacuna que era preciso preencher de qualquer jeito, sob pena de ver desabar nossa obra inteira e perder o fruto de todos os nossos es-forços e o nosso suor. Aqui no Brasil, a mulher desempenha um papel relevante na sociedade. Há muito tempo que não é aproveitada para a boa causa. Quanto a isto, nada tinha sido feito (DE LOMBAERDE, 2018, 2018, p. 493).
É preciso ter presente que ele, com uma visão clara do contexto em que vivia, vê a necessidade de cercar-se de certos cuidados em relação às mulheres em função de preservar a sua vivência dos votos religiosos e seu ministério. No entanto, em seu relato isso aparece de forma serena e mais uma vez confirma uma abertura à presença e atuação decisiva da mulher.
Ora, a prudência exige, aqui, uma grande circunspecção, uma séria re-serva comas pessoas do outro sexo. A razão disto é simples. Ignorantes como são, não têm do padre uma ideia sobrenatural, que deveriam ter. Não creem, realmente, na sua virtude e também por causa de alguns escândalos, sejam reais, sejam inventados de padres dos velhos tem-pos, o missionário, se quiser salvaguardar sua honra, sua reputação e a auréola de seu caráter, deve evitar o contato direto, seja com as senho-ras, seja com as moças (DE LOMBAERDE, 2018, p. 493).
Outro destaque que merece atenção é o seu testemunho da vida de traba-lho, até mesmo em função da própria manutenção. Ele diz lutar contra um ini-migo “quase invencível” que era a fome que atingia o Norte do Brasil, sobretudo o Pará. Isto era tão grave que, apesar da necessidade de haver vários padres em cada residência a fim de favorecer a missão, no entanto, os recursos para a manutenção não permitiam, senão, um padre por residência. Sua dedicação ao trabalho é algo que o acompanhou em toda a sua vida. Ele não queria ser pesado ao povo, ainda que houvesse doações, ele não ficava esperando ajudas de fora, mas desdobrava-se nos trabalhos e usava a criatividade para garantir a sua manutenção e a gratuidade da administração dos sacramentos. Um teste-munho de trabalho, de espírito de pobreza e de solidariedade ao povo pobre que não pode ser esquecido nem negligenciado por aqueles que o admiram e compõem as fileiras das Congregações por ele fundadas.
Hoje, é necessário fazer quase tudo gratuitamente. Espórtulas de mis-sas não as temos. E, entretanto, temos que enfrentar nossas despesas, por pequenas que sejam. Para sobrevivermos, temos que ter outros meios de vida. Para nos prover, empregamos o tempo, que nos deixa o santo ministério, em dedicar-nos à agricultura, à criação de porco, gali-nha etc. a fim de não sermos pesados a ninguém e podermos sustentar nossas obras (DE LOMBAERDE, 2018, p. 499).
Tamanho zelo pastoral deste missionário e sua capacidade de sacrificar-se e de doar-se até o “martírio”. Sua interioridade espiritual e capacidade contem-plativa diante da natureza criada por Deus, sua sensibilidade com pobres, com as crianças e os idosos; sua valorização da presença e da atuação das mulheres, sua grande dedicação ao trabalho para não pesar o povo e garantir a gratuidade da missão evangelizadora, tudo isso são traços que denotam a ação Espírito em sua vida. Pe. Júlio Maria nos deixa um grande testemunho, um exemplo de verdadeiro missionário. Não que tenha sido ou quisesse ser perfeito em tudo, mas que em tudo procurava fazer a vontade de Deus e se colocava sem reservas a Seu serviço. Assim como agiu em Jesus, nos apóstolos e em tantos santas e santos, podemos reconhecer os traços da ação do Espírito no Pe. Júlio Maria De Lombaerde, um servo de Deus que levou a sério o Evangelho.
Depois destes acenos pincelados no “Diário Missionário do Pe. Júlio Maria, podemos concluir que Pe. Júlio Maria é um homem guiado pelo Espírito de Deus. Espírito que age constantemente na história, que age a partir de baixo, como agiu no escondido das selvas amazônicas na velha Macapá dos relatos deste Diário. Na pessoa do Pe. Júlio Maria, hoje “Servo de Deus”, transparece cada uma das características indicadas por Frei Bartolomeu de Las Casas como sendo o constitutivo de um verdadeiro missionário, pois são as características que permitem uma aproximação ou até mesmo uma conformidade com a mis-são de Jesus e dos apóstolos.
Por isso, torna-se importante revistar o Pe. Júlio Maria. Revisitá-lo, porém, não na perspectiva de repetir o que ele fez ou de imitar os passos, estilos ou trajes externos, ou de simplesmente buscar para ele as honras de um altar, o que poderia nos levar a um saudosismo, cheio de louros, mas vazio das obras de misericórdia. Mas revistar o Pe. Júlio na busca de identificar o espírito com qual ele viveu, na intenção de recriar, no hoje de nossa história, sua sensibi-lidade com os pequenos, com as crianças, idosos e sofredores; recriar em nós seu ardor missionário e sua solicitude no zelo pastoral e no cuidado com os doentes; recriar sua capacidade de doação e seu espírito de sacrifício em nome do Evangelho e da Igreja. Isto sim tem força para nos levar a um verdadeiro testemunho missionário, tem força para recriar em nós o anseio de não querer dominar as pessoas; não ter a ambição de adquirir bens ou vantagens pessoais; moldar em nós pessoas capazes de usar de mansidão, humildade e acolhida; fazer-nos capazes de demonstrar verdadeira caridade para que nossa vida seja uma vida de testemunho cristão, convertendo-nos em verdadeiros missionários e missionárias do Reino. Cabe aos cristãos, mas particularmente aos filhos e filhas espirituais do Pe. Júlio Maria De Lombaerde (Cordimarianas, Sacramentinos e Sacramentinas), cultivar uma sadia espiritualidade que abra maior espaço para que o Espírito Santo possa agir em nós. Que sejamos dóceis à ação do Espírito e, a exemplo do Pe. Júlio Maria, busquemos captar Sua ação a partir de baixo, dos pequenos e dos mais sofridos. Que seu exemplo de vida e seu testemunho missionário sirvam para aguçar a nossa sensibilidade diante dos apelos de Deus na nossa realidade: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz...” (Ap 2,7).
CODINA, Víctor. Nova configuração da Igreja. In: BRIGHENTI, A. e ARROYO, F. M. (Orgs.) O Concílio Vaticano II: Batalha perdida ou esperança renovada? São Paulo: Paulinas, 2015, p. 108-127.
CODINA, Víctor. Parábolas de la mina y el lago: Teología desde la noche oscura. Salamanca: Ed. Sigueme, 1990.
CODINA, Víctor. Una Iglesia Nazarena: Teología desde los insignificantes. Maliaño: Sal Terrae, 2010.
CODINA, Victor; DE PRADA, Miguel Angel; PEREDA, Carlos. Analizar la Iglesia. Madrid: Ed. HOAC, 1981.
DE LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. Diário de um Missionário. Belo Horizonte: O Lutador, 2018, 2ª ed. TEIXEIRA, Faustino Couto. A gênese das CEB´s no Brasil: Elementos explicativos. São Paulo: Paulinas, 1988.
TRIGO, Pedro. A missão como ação do Espírito na Igreja e na Sociedade. In: AMERINDIA. A missão em debate: Provocações à luz de Aparecida. São Paulo: Paulinas, 2010. p. 183-192.
WIKIPEDIA. Manifesto futurista. In: https://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_Futurista, acesso em 01/01/2019.
—
[1] Agora em sua nova edição, revista e atualizada (2018), reúne em um só volume o “Diário de um Missionário” Traduzido pelo Pe. Demerval Alves Botelho, SDN e o “Romance de um missionário na Amazônia, traduzido pelo Dr. Ivan F. Cavalieri.
[2] LAS CASAS, Bartolomé. De unico vocationis modo. Madrid: Alianza, 1990. P. 247-261. Apud TRIGO, Pedro. A missão como ação do Espírito na Igreja e na Sociedade. In: AMERINDIA. A missão em debate: Provocações à luz de Aparecida. São Paulo: Paulinas, 2010. p. 183-192. Obs.: Tendo-o citado aqui, nos dispensaremos de citá-lo por completo nas ocorrências abaixo, citando apenas o seu autor.
[3] Víctor Codina sintetiza esta eclesiologia dominante no pré Vaticano II: “Es una eclesiología cen-trada sobre si misma, eclesiocéntrica, que vive un espándido aislamento con respecto al mundo y a la sociedad. Es una eclesiología transcendente y fixista, que produce impresión de ingravidez perene, sin que la historia parezca jugar ningún papel en ella, como si la sobrenaturalidad de su misión la preservase del impacto del tiempo. [...] La Iglesia se yergue como una fortaleza, un gran faro. Como una roca contra la cual el embate de las olas del mundo se estrella en espuma incon-sistente” (Cf. CODINA; PEREDA, 1981. p. 24).