Raiz espiritual da Teologia da Libertação: método e escopo em diálogo com Gustavo Gutiérrez 

Spiritual root of the Theology of liberation: method and scope in dialogue with Gustavo Gutiérrez

Pedro Igor Leite
Mestre em Teologia Sistemático-Pastoral pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Contato: pedro.igor@unicap.br


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Resumo: O presente artigo se propõe revisitar parte da obra de Gustavo Gutiérrez com o intuito de investigar, do ponto de vista epistemológico, o método próprio de sua teologia. Nesta empreitada, partimos da espiritualidade como raiz da grande Teologia da Libertação. É, de fato, na experiência místico-contemplativa, interpretada posteriormente como práxis cristã que acontecerá a intuição para uma metodologia estruturada em dois momentos intercruzados: de um lado, a práxis como ato primeiro, lugar da experiência, do silêncio, da compaixão e solidariedade; de outro, como ato segundo a reflexão crítica, científica, elaborada à luz do silêncio primeiro. Todo este projeto para não cair em esterilidade teórica ou utópica precisa ser interpretado através da perspectiva do pobre, de duas formas: através da imersão em seu mundo próprio e com o auxílio das ciências sociais, mesmo que para isto seja necessário o aporte da análise marxista, lida de modo crítico e atento às incompatibilidades teóricas com a fé cristã. Este caminho metodológico-espiritual orienta a Igreja a fazer uma opção preferencial pelos pobres, a fim de uma libertação integral, capaz de dar autêntico testemunho da ressurreição. 

Palavras-chave: metodologia; pobre; libertação; espiritualidade; Gutiérrez.

Abstract: The proposal of this article is to revisit a part of Gustavo Gutiérrez’s work aiming to explore, from the epistemological point of view, his own theological method. In this study, we start from spirituality as the root of the big Theology of Liberation. It is, indeed, in the mystical-contemplative experience, later understood as Christian praxis, that the intuition for a structured methodology will happen in two intercrossed moments: on the one hand, the praxis as first act, a place of experience, silence, compassion and solidarity; on the other hand, as second act, the critical reflection, scientific, designed by the light of the first silence. This whole project, in order not to become theoretical sterility or a utopian, needs to be developed in the perspective of the poor in two ways: through the immersion in its own world and by using the support of the social sciences, even though it is necessary to use the Marxist analysis as the theoretical underpinning, read critically and vigilant to the theoretical incompatibility with the Christian faith. This spiritual-methodological path guides the Church to do a preferential choice for the poor, aiming an integral liberation, able to give an authentic testimony of the resurrection. 

Keywords: methodology; poor; liberation; spirituality, Guitérrez

Introdução 

A importante obra de Gustavo Gutiérrez Teologia de la liberación celebra o seu jubileu de ouro (1971-2021) e com ela o próprio movimento teológico de mesmo nome. Passadas essas primeiras décadas é importante revisitar o conjunto da obra a fim de uma tentativa audaciosa: encontrar aspectos novos e rediscutir outros que, polemicamente, ficaram maculados. O objetivo deste artigo é, pois, demonstrar como a espiritualidade se encontra na raiz da metodologia desta teologia latino-americana e, ao mesmo tempo, apresentar o fundamento espiritual que justifica uma opção preferencial pelos pobres. 

Desenvolveremos a pesquisa em dois tópicos. No primeiro exporemos a compreensão de espiritualidade que passeia nos diversos escritos de Gutiérrez. Para ele, fundamentalmente, viver na ação do Espírito é se abrir a uma experiência místico-contemplativa com forte incidência em um compromisso solidário e na conversão a Deus e ao outro: é, outrossim, a práxis cristã. O segundo momento desta espiritualidade é a fala, ou a reflexão a partir daquilo que fora contemplado. 

Este esquema é, diríamos, um ensaio do próprio método que ele enfatizará em dois atos: a práxis, como ato primeiro e a teologia ou a teoria teológica como ato segundo. Em tese, para Gutiérrez, não pode haver reflexão teológica sem um prévio contato com as realidades do Cristo transfigurado nos pobres, nas não-pessoas. Assim chagamos ao segundo tópico da pesquisa: a perspectiva do pobre.

Esta não é acidental na Teologia da Libertação. Mas, ao lado do método, constitui como que a estrutura deste edifício teológico. O pobre e o seu mundo próprio têm uma função hermenêutica, assim dizemos, porque através deles e de suas urgências libertárias é que haverá o desenvolvimento teórico da Teologia. Nesta imersão no universo dos oprimidos a Teologia reconhecerá sua necessidade de diálogo com as ciências sociais e seus instrumentos (inclusive marxistas). Faz isso com critérios, distâncias e com a convicção do primado da fé. 

Por último, poderemos propor três horizontes que a leitura da obra de Gutiérrez nos permitiu. De antemão, é mister se aproximar deste grande autor sem as amarras das leituras equivocadas, dúbias e desonestas. Estamos diante de um Padre da Igreja aos moldes clássicos. 

1. A metodologia da libertação como caminho espiritual

 Em diversas ocasiões Gustavo Gutiérrez apresenta a Teologia como uma linguagem sobre Deus, assumindo funções novas e contextualizadas, sem se desfazer das tarefas clássicas que lhe são próprias. Para ele há um dado que é indiscutível e este é fundamental: “a teologia é um falar sobre Deus animado pela fé; Deus é, na verdade, o primeiro e último tema da linguagem teológica” (GUTIÉRREZ, 2003, p. 9). Tal linguagem não é desprovida de intencionalidade, mas traz consigo um método específico. A profundidade metodológica coincide com uma proposta de estilo de vida e de espiritualidade que tem como ponto de partida a espiritualidade dos anawim (cf. GUTIÉRREZ, 2000, p. 265).

Aqui está o grande paradigma daquilo que Gutiérrez chama de espiritualidade da libertação: o olhar para Deus passando pelo ser humano espoliado e oprimido. Este paradigma, em perspectiva teológica, traz duas consequências: de um lado, aquilo que ele chama de circularidade hermenêutica (cf. GUTIÉRREZ, 1985, p. 18) e, de outro, algumas características de tal espiritualidade que a difere das demais, explicitamente das que têm caráter mais intimista e, por vezes, alienador. 

Esta circularidade ensina “que é necessário passar pelo ser humano para chegar a Deus”, visto que tal movimento “me despoja, me desnuda, universaliza e torna gratuito meu amor pelos outros. Ambos os movimentos se exigem dialeticamente e convergem numa síntese que se dá em Cristo; no Deus-homem encontramos Deus e o homem” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 263). 

Somente tendo em vista esta relação homem-Deus é que temos condições de compreender o que ele entende por espiritualidade da libertação: em sentido estrito é o “domínio do Espírito”; uma “forma concreta, movida pelo Espírito, de viver o Evangelho”; “de viver ‘diante do Senhor’ em solidariedade com todos os seres humanos, ‘com o Senhor’ e diante deles”; uma “reordenação dos grandes eixos da vida cristã em função desse presente” (cf. GUTIÉRREZ, 2000, p. 260). Por sua singularidade, nota-se que ela nasce de “uma experiência espiritual intensa, depois tematizada e testemunhada” [grifo nosso] (cf. GUTIÉRREZ, 2000, p. 260); está centrada de maneira inequívoca em um caminho de conversão, entendido como “pedra de toque de toda espiritualidade”. “Uma espiritualidade da libertação estará centrada na conversão ao próximo, ao homem oprimido, à classe social espoliada, à raça desprezada, ao país dominado. Nossa conversão ao Senhor passa por esse movimento” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 261). Também estará “impregnada de vivência de gratuidade” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 262) e terá o Magnificat como grande síntese desse processo (cf. GUTIÉRREZ, 2000, p. 264).

A partir disto, propomo-nos neste primeiro momento apresentar o desenvolvimento acerca da raiz espiritual da Teologia da Libertação em três tópicos: a) A origem silenciosa da teologia; b) O método como compromisso espiritual e c) As funções permanentes e indispensáveis da teologia. 

1.1 A origem silenciosa da teologia 

Gutiérrez reflete a epistemologia teológica à luz de uma Teologia da Revelação, na qual de modo fundamental está o silêncio acerca do mistério de Deus. Ora, se a Teologia é uma fala sobre Deus e este é revelado como mistério por Jesus Cristo, a “teologia sadia está consciente de tentar algo muito difícil, para não dizer impossível, ao querer pensar e falar a respeito desse mistério” (GUTIÉRREZ, 1985, p. 17). Isso não significa que não pode haver comunicação ou mesmo reflexão, mas que em primeiro lugar não está o discurso acerca do mistério, mas sua contemplação que, na linha de uma prática cristã, funde-se a um compromisso solidário, formando um todo coeso.

De certo modo, contemplação e compromisso constituem juntos o momento do silêncio diante de Deus. Em contrapartida, o discurso teológico significa um falar sobre Deus. Calar é a condição do encontro amoroso com Deus. A experiência da insuficiência das palavras para exprimir o que vivemos em profundidade fará nossa linguagem mais fecunda e mais modesta. A teologia é uma fala constante enriquecida por um silêncio (GUTIÉRREZ, 1985, p. 17). 

A teologia compreende, portanto, estes dois momentos: o primeiro é marcadamente apofático, rico em silêncio. Somente esta dimensão místico-espiritual pode inspirar o compromisso histórico/teocêntrico para com os pobres. Ele é, por isso mesmo, “central na teologia da libertação”, o “real fundamento da teologia” (cf. GUTIÉRREZ, 2003, p. 50). “Não se trata de compensar o compromisso na história apelando a dimensões espirituais, mas de aprofundá-lo e conferir-lhe toda a sua significação” (GUTIÉRREZ, 2003, p. 51).

O segundo momento é a tentativa humana de desvelamento deste mistério: a contemplação como ato místico e gerador de compromisso é a condição de possibilidade para uma reflexão sobre Deus (cf. GUTIÉRREZ, 1985, p. 18). Noutras palavras, o compromisso que nasce de uma opção pelo pobre e pelos setores sociais oprimidos permite “uma nova experiência espiritual no próprio seio da práxis” (GUTIÉRREZ, 1981, p. 78), ou seja, “o encontro com Cristo no pobre constitui uma autêntica experiência espiritual. É um viver no Espírito, laço de amor entre o Pai e o Filho, entre Deus e o homem, entre os homens” (GUTIÉRREZ, 1981, p. 81). Acrescenta, ainda, que “no início de um itinerário espiritual sempre há uma experiência espiritual. Posteriormente, essa vivência é refletida e proposta a toda a comunidade eclesial como uma maneira de sermos discípulos de Cristo” (GUTIÉRREZ, 2000b, p. 50).

Gutiérrez apreende da espiritualidade o método próprio da Teologia da libertação, do qual passamos a falar. 

1.2 O método como um compromisso espiritual

A relação entre método e espiritualidade se dá a partir da própria compreensão etimológica de hodós, entendida como caminho a ser seguido e conduta a ser assumida no processo de discipulado de Jesus. Se no início de uma relação espiritual com o mistério está o silêncio místico, no princípio do método está aquilo que Aquino Jr. chama de primado da práxis (AQUINO JÚNIOR, 2012, p. 41), isto é, a vida cristã experimentada em sua diversidade (cf. GUTIÉRREZ, 1985, p. 18), sempre marcada por uma decisão de conversão, de mudança radical que impulsiona o discípulo a sair de si e entrar no caminho do outro, especialmente dos mais frágeis e pobres: “entrar no mundo do pobre é um processo longo e, às vezes, penoso, mas é ali que encontramos Aquele de quem a teologia é chamada a dizer algo” (GUTIÉRREZ, 1985, p. 20). 

 Nesta fundamentação espiritual (silêncio-fala) é que Gutiérrez se apoia para dizer que a práxis é ato primeiro do fazer teológico que, somente em um ato segundo, produz reflexão através de uma teoria teológica (cf. AQUINO JÚNIOR, 2012, p. 41). Por teoria teológica entendemos a dimensão epistemológica que é, justamente, construída como tentativa de decodificar aquilo que o silêncio gerou internamente naquele que fora capaz de contemplar. Contudo, por causa de diversos fatores, dentre os quais a influência conciliar de uma fé aberta aos sinais dos tempos e confrontada com aquilo que ele chama de ortopráxis – que privilegia um “comportamento concreto, do gesto, da ação, da práxis na vida cristã” e não somente “o primado e a quase exclusividade do doutrinal na vida cristã (...) que amiúde não passa de fidelidade a uma tradição caduca ou a uma interpretação discutível” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 66-67) – o ato segundo deste método não é visto como uma função ingênua ou deslocada, mas como uma reflexão crítica.           

Esta criticidade é direcionada e objetiva: de um lado, trata-se de uma autocrítica. Gutiérrez aponta que, antes de qualquer ensaio, “a teologia deve ser um pensamento crítico de si mesmo, de seus próprios fundamentos”. Isto é necessário para que, além de uma autoconsciência, ela tenha condições de se apropriar de instrumentos conceituais capazes de um desenvolvimento epistemológico. De outro lado, a criticidade se estende aos condicionamentos econômicos e socioculturais de toda a comunidade cristã. Por este motivo, 

a reflexão teológica seria, então, necessariamente, uma crítica da sociedade e da Igreja enquanto convocadas e interpeladas pela palavra de Deus; uma teoria crítica, à luz da palavra aceita na fé, animada por uma intenção prática e, portanto, indissoluvelmente unida à práxis histórica (GUTIÉRREZ, 2000, p. 68).      

Em suma, Gutiérrez não compreende o ato de reflexão teológica separado da comunidade cristã ou do mundo onde ela está inserida (GUTIÉRREZ, 1981, p. 58). Assim, se por um lado a teologia “é uma expressão da consciência que uma comunidade cristã adquire de sua fé em um momento dado da história”, a Teologia da Libertação, por outro lado, “é uma tentativa de compreender a fé a partir da práxis histórica, libertadora e subversiva dos pobres deste mundo (...). É por isso que ela vem depois: (...) como reflexão (a TdL) situa-se em um modo diferente de relacionar a prática com a teoria” (GUTIÉRREZ, 1981, p. 58). 

 Como consequência desta intuição metodológica de Gutiérrez, destacamos três situações que não têm uma pretensão conclusiva, senão de síntese ou mesmo de provocação: a primeira é a sua afirmação, segundo a qual “nossa metodologia é nossa espiritualidade (ou seja, um modo de ser cristão) ” (GUTIÉRREZ, 1985, p. 20). Fica evidente desde aqui a riqueza espiritual da Teologia da Libertação, marcadamente fundada sobre a Palavra de Deus e sobre uma ética que se transformam em uma maneira nova de interpretação da realidade. Esta é, aliás, a segunda situação: a Teologia da Libertação não trata de um tema em específico, não é uma teologia do genitivo, mas por causa do seu ponto de partida, ela propõe um novo modo de fazer teologia: “a teologia da libertação nos propõe, talvez, não tanto um novo tema para reflexão quanto uma nova maneira de fazer teologia” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 73), preocupada em ser – sem medos – “uma hermenêutica política do Evangelho” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 71). Esta nova maneira implica o que chamamos de terceira situação: por um lado, o diálogo com as funções/tarefas permanentes da tradição teológica e, por outro, a inauguração, à luz da práxis, de novas funções sobre as quais nos debruçaremos no próximo tópico.            

1.3 As funções permanentes e indispensáveis da teologia

Gutiérrez deixa claro que “a tarefa teológica é permanente e mutante ao mesmo tempo” (GUTIÉRREZ, 1981, p. 57). A dimensão permanente, considerada mais clássica, que não pode ser arquivada ou superada aponta a teologia como sendo uma sabedoria e um saber racional (cf. GUTIÉRREZ, 2000, p. 58). Ora, se na história do pensamento teológico vimos uma separação teórica entre a teologia e a espiritualidade, Gutiérrez aponta a necessidade de retomada do aspecto sapiencial, como caráter permanente do que-fazer teológico: “A função espiritual da teologia, tão importante nos primeiros séculos, depois suspensa, constitui, não obstante, permanente dimensão da teologia” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 59). 

Há a segunda função permanente, isto é, a racionalidade unida ao aspecto sapiencial, visto que a teologia não é somente sabedoria, nem tão pouco uma ciência que em seu âmago traz tantas ambiguidades. Assim sendo, elas permitem um encontro apurado e amadurecido entre a fé e a razão, constituindo como que a natureza própria da teologia: 

a teologia é necessariamente espiritual e saber racional. Trata-se, aqui, de funções permanentes e indispensáveis de toda reflexão teológica. Ambas as tarefas devem, no entanto, ser em parte recuperadas das cisões ou deformações sofridas ao longo da história. Tem-se, sobretudo, de conservar delas a perspectiva e o estilo de reflexão, mais que este ou aquele êxito, alcançado em contexto histórico diverso do nosso (GUTIÉRREZ, 2000, p. 61).

Ligado a isto, há também funções mutáveis que se inserem e se deixam localizar em situações contextuais diferentes. Elas dão conta de sair do acidental e transitório, a fim de intuir aquilo que é indispensável e, por vezes, inédito. Por causa da dimensão racional, a teologia se associará às ciências conforme suas urgências: “é evidente, por exemplo, a importância das ciências sociais para reflexão teológica na América Latina. Um pensamento teológico que não apresente esse cunho variável e desinteressado não seria verdadeiramente fiel à compreensão da fé” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 60). 

Assim, Gutiérrez pontua que “As teologias trazem necessariamente a marca do tempo e do contexto eclesial em que nascem. Vivem enquanto forem vigentes as condições nas quais nasceram” (GUTIÉRREZ, 2003, p. 11). Mais que isto, 

Reflexão crítica sobre a sociedade e a Igreja, é a teologia uma compreensão progressiva e, de certa forma, variável. Se o compromisso da comunidade cristã assume formas diferentes ao longo da história, a compreensão que acompanha as vicissitudes desse compromisso renovar-se-á continuamente e tomará, de algum modo, rumos inéditos. Uma teologia que só tenta por referência “verdades” estabelecidas de uma vez por todas – e não a Verdade que é também Caminho – só pode ser estática e, afinal, estéril (GUTIÉRREZ, 2000, p. 70).

Sendo mais enfático na temática das funções ou tarefas da teologia, nosso teólogo peruano apresenta algumas que são indispensáveis, levando sempre em conta a “função da teologia como reflexão crítica” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 68). Ei-las: 

a) função libertadora: G. Gutiérrez afirma que, na esteira da reflexão crítica, “a teologia cumpre uma função libertadora do homem e da comunidade cristã” a fim de favorecer todo afastamento das alienações religiosas que interferem na autêntica experiência de Deus (GUTIÉRREZ, 2000, p. 70); 

b) função profética: a teologia é chamada a ler os sinais dos tempos ao mesmo tempo em que dialoga com o presente histórico: “em sua ligação com a práxis, cumpre uma função profética enquanto faz uma leitura dos acontecimentos históricos com a intenção de desvelar e proclamar seu sentido profundo” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 70);

c) função eclesial: a relação da teologia com a Igreja é expressa por Gutiérrez de duas maneiras: de um lado, está a serviço da tarefa evangelizadora da Igreja e, de outro lado, desenvolve-se nela como um serviço eclesial (cf. GUTIÉRREZ, 1985, p. 19). Este serviço orienta a comunidade eclesial, no âmbito da história, a dar um testemunho de vida sobre a cultura de morte (cf. GUTIÉRREZ, 1985, p. 32). 

2. O escopo da Teologia da Libertação: dar testemunho da Ressurreição através da perspectiva do pobre

A meta de chegada da elaboração teológica de Gutiérrez é, sem dúvidas, o anúncio libertador do Deus da vida. Inclusive, no debate que conferiu o título de doutor ao teólogo peruano, o padre Vincent Cosmao, então diretor do Centro Lebret e membro da Pontifícia Comissão de Justiça e Paz, fez a seguinte ponderação: “Já alguns anos me parece que se pode comprovar que a referência é menos ao Êxodo que à Páscoa, e que o eixo central de seu discurso é a vitória da vida sobre a morte. Você já não entrou em uma teologia da Ressurreição? ” (GUTIÉRREZ, 1985, p. 42). Esta intuição foi importante para deixar cristalino o objetivo epistêmico, profético e evangelizador da Teologia da Libertação.

A esta questão, Gutiérrez responde que de fato o Êxodo é o grande tema da Teologia da Libertação e acrescenta: 

Estamos agora mais conscientes que antes de que uma teologia da libertação é, de certo modo, uma teologia da vida ante uma realidade de morte; morte física e cultural, mas também morte no sentido paulino, porque o pecado também é morte. E, quando você diz que se trata cada vez mais de uma teologia da Ressurreição, só posso concordar. É claro que esse tema também esteve presente antes, porque não pode ficar de lado em um trabalho teológico; mas hoje, de fato, somos mais perceptivos e sensíveis ao que isso significa. Houve uma evolução a esse respeito, e cada vez mais se trata de uma teologia da vida, da Ressurreição” (GUTIÉRREZ, 1985, p. 43-44).

Uma Teologia da Libertação/Ressurreição implica, necessariamente, um testemunho compromissado para com a vida, visto que “ser cristão é ser testemunha da Ressurreição” (GUTIÉRREZ, 1984, p. 97). Para que isto se efetive, ela opta em entrar no mundo dos pobres: “Comprometer-se com eles é entrar (...) nesse universo, viver nele; (...) Não ir para esse mundo apenas algumas horas por dia e ali dar testemunho do Evangelho, mas sair dele toda manhã para anunciar a Boa Nova a toda pessoa humana” (GUTIÉRREZ, 1985, p. 24).

Aqui, ao lado do método teológico, deparamo-nos com outra dimensão vertebral da Teologia da Libertação que é a perspectiva do pobre que irrompe como uma chave hermenêutica do sentido da libertação e da revelação do Deus libertador. Gutiérrez chega a dizer que “Isolar o método teológico dessa perspectiva significa perder o nó da questão e cair no academicismo” (cf. GUTIÉRREZ, 1977, p. 293-294). Pela importância do tema, analisaremos esta perspectiva e, em seguida, os instrumentais utilizados em diálogo com as ciências sociais. 

2.1 A perspectiva do pobre        

Se foi dito que o ato primeiro da teologia é a práxis, não se pode relativizar quem é o sujeito histórico desta práxis. Trata-se, inequivocamente, dos “até então ausentes da história” (GUTIÉRREZ, 1977, p. 294). Desta feita, para Gutiérrez é preciso reler a história a partir do pobre, especificamente de suas lutas, resistências e esperanças. E esta perspectiva, antes de ser uma atividade academicista, precisa ser entendida como uma ação compromissada em refazer a história: “Refazê-la significa subverter essa história, ou seja, ‘vertê-la’, dar-lhe vazão de baixo e não de cima. (...). Essa história subversiva é o lugar de uma nova experiência de fé, de uma nova espiritualidade e de um novo anúncio do evangelho” (GUTIÉRREZ, 1977, p. 296).

Dentro desta história, no contexto da modernidade e das relações críticas de opressão no seio da América Latina, há a irrupção do pobre que toma consciência da incompatibilidade entre a vontade de Deus e a situação na qual vivem. Neste cenário é que será urgente uma adequação da Igreja às demandas que nascem destas classes que, gradativamente, conscientizam-se da necessidade inadiável de libertação. A teologia, deste modo, fala a partir do sofrimento dos injustiçados, visto que os mesmos que são oprimidos, explorados e não-pessoas, são também – ao mesmo tempo – cristãos (cf. GUTIÉRREZ, 1985, p. 23).

Este é, portanto, o novum da Teologia da Libertação em relação às teologias europeias ou a teologia tradicional: a teologia que nasce no contexto latino-americano, faz sua a voz dos sem história (cf. GUTIÉRREZ, 1977, p. 311). Tomamos como exemplo a mudança de perspectiva diante da famosa pergunta de Bonhoeffer, que fora assumida pela teologia contemporânea: “como anunciar Deus num mundo que se tornou adulto (mündig)? ”. 

Esta inquietação que teve o seu lugar histórico, visto que “o não-crente questiona o nosso mundo religioso, exigindo-lhe uma purificação e uma renovação profundas” (GUTIÉRREZ, 1981, p. 87), no cenário latino-americano não se localiza. Aqui a pergunta é outra porque outra é a opressão: “o desafio não provém em primeiro lugar do não-crente, mas sim da não-pessoa, ou seja, daquele a quem a ordem social não reconhece como tal: o pobre, o explorado, o que é sistemática e legalmente despojado de seu ser de homem, o que quase nem sabe que é uma pessoa” (GUTIÉRREZ, 1981, p. 87). 

Frente a isto, somado aos apelos de Medellín (1968) e Puebla (1979), é que a Teologia da Libertação justificará a opção e o compromisso para com os pobres, devidamente fundamentados do ponto de vista cristológico e espiritual. Assim, a opção preferencial (e não exclusiva) se configura em primeiro lugar como uma opção teocêntrica, profética por assim dizer. Não se justifica ela mesma por qualquer razão de compaixão humana ou por outro princípio, mas por causa da gratuidade do amor de Deus. Depois esta preferência não se dá por conta de aspectos morais ou religiosos, “mas porque Deus é Deus” e a fundamentação bíblica orienta a todos neste sentido. Além disto, a opção preferencial transcende as simples questões pastorais e assume com naturalidade sua dimensão espiritual, rica em fecundidade e profundidade. Por último, Gutiérrez diz que este exercício não é um ato de reciprocidade, sem mais. É, antes de qualquer ensaio, uma assimetria ética, isto é, um reconhecimento diante do primado do outro (cf. GUTIÉRREZ, 2003, p. 18).

Junto a descoberta do outro que irrompe para o centro da história, vem o desvelamento do mundo do pobre. Gutiérrez abre o horizonte de reflexão e faz a teologia entender que o conceito de pobreza se refere a destruição das pessoas, dos povos, das culturas e tradições; que ela significa morte física e cultural (cf. GUTIÉRREZ, 1985, p. 24); que “Ser pobre é também uma maneira de sentir e conhecer, de raciocinar, de fazer amigos, de amar, de crer, de sofrer, de celebrar e de orar. Em outros termos, os pobres constituem um mundo” (GUTIÉRREZ, 1985, p. 25). Optar pelos pobres é também fazer uma opção pelo seu mundo, por sua vida, por suas lutas. 

Para se levar a cabo o grito dos espoliados pelas mais diversas opressões e na tentativa de compreensão deste universo, a teologia buscou nas ciências sociais e em suas análises o instrumental metodológico para este fim. Aqui apresentamos a tensa relação entre a Teologia da Libertação e o marxismo. 

2.2 Os instrumentais marxistas

A crítica em relação à utilização dos instrumentais marxistas na Teologia latino-americana ganhou proporções polêmicas porque, na esteira das Conferências episcopais de Medellín e Puebla, ela se utilizou de descrições, análises e interpretações provenientes das ciências sociais. Gutiérrez alerta para o fato de que não pode haver identificação destas ciências com a análise marxista, sem mais. Acrescenta, ainda, que o diálogo da Teologia da Libertação com este campo de saber tem como função “colaborar para um melhor conhecimento da realidade social do povo latino-americano (onde, historicamente falando, muitos vivem sua fé e sua esperança) ”, o que implica necessariamente um exame crítico de todos os métodos (GUTIÉRREZ, 1985, p. 26) [1]

Sobre esta relação, Gutiérrez faz as seguintes ponderações: de um lado, lembra que a utilização da análise marxista não significa uma aceitação do referido pensamento, sobretudo naquilo que tange as especificidades que excluem a fé cristã e suas exigências. Diz Gutiérrez: “Não se trata de forma alguma da eventual aceitação de uma ideologia ateia. Em tal hipótese estaríamos excluindo a fé cristã e não se trataria de uma questão propriamente teológica”. Da mesma forma, continua nosso teólogo, não se trata de uma abertura à visão totalitária produzida por este pensamento. Tanto o ateísmo, quanto o totalitarismo, produzidos pelo marxismo “ficam, por conseguinte, categoricamente descartados, rejeitados a partir de nossa fé, de uma perspectiva humanista e também de uma análise social sadia” (GUTIÉRREZ, 1984, p. 78).

De outro lado, a questão ideológica do marxismo, ligada à análise social, não é tema central na Teologia da Libertação. Gustavo Gutiérrez é objetivo e diz que tal questão é derivada (GUTIÉRREZ, 1984, p. 78). Na linha do seu método teológico, ainda salienta:

Em primeiro lugar, o que está em questão não é fazer teologia; o que realmente importa é a libertação popular. A teologia só vem num segundo momento. A discussão intelectual leva alguns a inverterem os momentos, acarretando obstáculos para o projeto de libertação e a inevitável esterilidade do trabalho teológico (GUTIÉRREZ, 1977, p. 313).

Chama-nos atenção a clareza de fé e a consciência epistemológica de Gutiérrez. Se na introdução à edição original de Teología de la liberación, ele esclarece que seu objetivo não é forjar uma teologia da qual se deduza uma ação política (GUTIÉRREZ, 2000, p. 51), no artigo sobre a Teologia e as ciências sociais ele conclui a questão: “Em nenhum momento, nem explícita nem implicitamente, nos propusemos um diálogo com o marxismo em vista de uma eventual ‘síntese’ ou a considerar um aspecto e deixar outro” (GUTIÉRREZ, 1984, p. 80). O diálogo se dá, exatamente, entre a teologia e as ciências sociais, na medida em que estas últimas colaborem com a libertação humana e com os desafios da evangelização.

Considerações finais

A teologia de Gustavo Gutiérrez apresenta uma riqueza que transcende o tempo e o espaço. Ela tem um caráter universal e o seu método, nascido no sul do mundo, no reverso da história, pode servir como um paradigma a outras teologias que sinceramente busquem a libertação como um testemunho da ressurreição. 

Na abordagem aqui feita foi possível perceber alguns aspectos teóricos que respondem a críticas que ao longo da história foram sendo repetidas, muitas das quais sem fundamento. Assim, neste intento e como provocação para os anos vindouros, apresentamos três horizontes de continuidade para esta pesquisa: a questão da espiritualidade e sua relação com uma Pneumatologia da libertação, a clareza do método e sua indispensabilidade para entender a Teologia da Libertação e, por fim, a questão da análise marxista. 

O primeiro horizonte que trazemos é o da riqueza espiritual dos textos de Gutiérrez. Ele pensa um arcabouço metodológico e epistêmico que não são frutos de análises em gabinete, mas de um contato permanente com o Cristo crucificado e sofrido da história. Esta experiência garante autoridade à sua reflexão teológica. 

Do ponto de vista sistemático, percebemos que sua análise teológica se centra mais nas figuras do Pai e do Filho. Contudo, na apresentação de uma espiritualidade da libertação, deixa subentendida a missão própria do Espírito Santo na vida de quem faz um autêntico processo de discipulado e na da própria comunidade eclesial, chamada a ser porta voz daqueles irmãos e irmãs que vivem as opressões de cada tempo. Outros teólogos desenvolveram melhor o aspecto da Pneumatologia, como José Comblin e Victor Codina. Contudo, há aqui um espaço aberto para a pesquisa: encontrar os elementos referentes à terceira Pessoa da Trindade que está sempre à frente do projeto libertador.

O segundo horizonte é a clareza de um método próprio, o que faz de Gutiérrez um teólogo original e criativo: ele é autor de uma teologia, de uma chave de compreensão que nos auxilia em nosso relacionamento com Deus, com os dados da fé e, por conseguinte, com os outros. A sua novidade metodológica, embora já tenha subsidiado diversos estudos neste continente e em alhures, continua sendo um caminho (espiritual) seguro, confiável e eficaz. Desta maneira, não há como compreender a teoria teológica da libertação se desfazendo deste método em específico. De certo que há outros caminhos (veja-se, por exemplo, o arcabouço teórico de Clodovis Boff), mas eles levarão a outros percursos epistêmicos. 

Por fim, outro horizonte que trazemos é o da relação da Teologia da Libertação com as ciências sociais sem deixar escapar as análises marxistas. O modo com o qual Gutiérrez trata a questão surpreende qualquer leitor que se aproxime do texto sem prévios conceitos. Ele sabe que sua teologia é fincada na Palavra de Deus e, por causa desta identidade cristã, não se fecha a qualquer diálogo. O mais importante, e isto praticamente pode ser ouvido dentre os gritos do texto, é o desejo inadiável de que haja a libertação integral das pessoas, tanto dos condicionamentos sociais e humanos, quanto dos espirituais e religiosos.   

Por esta feita, a Teologia da Libertação e suas pluralidades continuam sendo indispensáveis, sobretudo na época atual em que estamos mergulhados em um contexto de morte lancinante, propagandeada nas redes sociais. É urgente um grito de libertação que venha das comunidades eclesiais missionárias e de suas teologias, pois o sangue de negros, pobres, mulheres, homossexuais; a dignidade e a reputação de jornalistas, políticos, sacerdotes, religiosos (as) e ativistas que não corroboram com o esquema ditatorial de extrema direita em curso no continente estão clamando por presença profética. 

Referências Bibliográficas

AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Teoria teológica. Práxis teologal. Sobre o método da Teologia da Libertação. Ed. Paulinas: São Paulo, SP. 2012.

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. Perspectivas. Ed. Loyola: São Paulo, SP, 2000.

GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber em seu próprio poço. Itinerário espiritual de um povo. Ed. Loyola: São Paulo, SP, 2000b. 

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia a partir do reverso da história (1977). In.: A força histórica dos pobres. Ed. Vozes: Petrópolis, RJ. 1981.

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia e ciências sociais (1984). In.: A verdade vos libertará. Confrontos. Ed. Loyola: São Paulo, SP. 2000.

GUTIÉRREZ, Gustavo. Debate da tese de Gustavo Gutiérrez (1985). In.: A verdade vos libertará. Confrontos. Ed. Loyola: São Paulo, SP. 2000.

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Notas 

[1] Gutiérrez lembra que a Teologia da Libertação também se aproximou da teoria da dependência e que esta tem críticas de setores do próprio marxismo. Diz ele: “o exemplo da teoria da dependência – muito presente nos primeiros trabalhos da teologia da libertação – para mostrar que não é possível reduzir à versão marxista o uso das ciências sociais e tampouco a contribuição latino-americana. Não se trata de negar o papel daquela versão para o conhecimento das realidades econômicas e sociais, e sim de perceber com clareza as distinções necessárias. Além disso, o emprego (crítico) da teoria da dependência não significa adesão total a ela. No contexto do trabalho teológico, ela é simplesmente um meio para conhecer melhor a realidade social [grifo nosso]” (GUTIÉRREZ, 1984, p. 77).