Aislan Fernandes Pereira*
*Doutorando em Filosofia pela Unicamp - Universidade Estadual de Campinas. Bacharel. Contato: aislanfp@gmail.com
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Resumo:
É tradicional a interpretação de que as passagens de Mc 3,28-29, Mt 12,31-32 e Lc 12,10 retratam a “blasfêmia contra o Espírito santo” como o pecado impossível de perdoar: o “pecado imperdoável”. Entretanto, grande tem sido a dificuldade teológica para explicar que tipo de pecado é ou foi capaz de ser imperdoável, dado o sacrifício do Filho de Deus. Diante de tal dificuldade, a estratégia de certas explicações teológicas têm sido enfatizar, sem forte apelo ao texto bíblico, não o pecado da blasfêmia, mas a vida do pecador enquanto um dos fatores principais para a impossibilidade do perdão. Este ensaio busca exatamente reforçar esse fator através de uma rica exegese das passagens, sobretudo em sua língua original, e oferecendo inclusive traduções alternativas. Também, busca-se explicitar uma consequência inesperada à tradição: de que a impossibilidade de perdão não está restrita à blasfêmia.
Palavras chave: Perdão; Pecado Imperdoável; Blasfêmia contra o Espírito Santo.
Abstract
It is traditional interpreting the passages of Mk 3,28-29, Mt 12,31- 32, and Lk 12,10 as expressing the “blasphemy against the Holy Spirit”: the so-called “unforgivable sin”. However, there has been great theological difficulty in explaining what kind of sin is or was able to be unforgivable, given the sacrifice of the Son of God. Faced with such difficulty, the strategy of certain theological explanations has been to emphasize, without strong appeal to the biblical text, not the sin of blasphemy, but the sinner’s life as one of the main factors for the impossibility of forgiveness. This essay seeks exactly to reinforce this factor through a rich exegesis of the passages, especially in their original language, and even offering alternative translations. Also, it seeks to explain this unexpected consequence to the tradition: that the impossibility of forgiveness is not restricted to blasphemy.
Keywords: Forgiveness; Unforgivable sin; Blasphemy against the Holy Spirit.
É tradicional a interpretação de que as passagens de Mt 12,31-32, Mc 3,28-29 e Lc 12,10 retratam a “blasfêmia ao Espírito santo” como o pecado impossível de perdoar: o “pecado imperdoável”. Entretanto, grande tem sido a dificuldade teológica para explicar que tipo de pecado é ou foi capaz de ser imperdoável. Diante de tal dificuldade, a estratégia de certas explicações teológicas têm sido enfatizar, não o pecado da blasfêmia, mas a vida do pecador como fator principal para a impossibilidade do perdão, apesar do pobre apelo aos textos bíblicos. Um retrato de tais explicações pode ser encontrada na Bíblia de Estudo de Genebra (2009, p. 1286), em Berkhof (1990, p. 234–6) e em Grudem (1999, p. 418–420).
O artigo teológico intitulado “Blasfêmia contra o Espírito Santo: posso ser perdoado?” da Bíblia de Estudo de Genebra (2009, p. 1286) tem o objetivo principal de remover dos cristãos genuínos a preocupação de que possam ter cometido o “pecado imperdoável” da “blasfêmia ao Espírito santo”. Ao definir essa blasfêmia como a ação deliberada de associar o poder e a obra de Jesus ao domínio de Satanás, o artigo busca justificar que a condição do “pecado imper-doável” não está no ato em si do pecado cometido, mas antes na vida de quem comete tal pecado, mesmo antes de ter ouvido falar de Cristo. Dito de outro modo, segundo o artigo, o “pecado imperdoável” está reservado aos que não serão de fato cristãos.
O ponto fundamental do artigo é enfatizar que os fariseus nas passagens em questão teriam claramente todas as razões, demonstrações ou evidências, dadas por Jesus, para poder aceitar seu exorcismo como obra do Espírito Santo, não de Satanás. Em outras palavras, eles teriam sido refutados pelo próprio Jesus, mas não teriam se comprometido com a refutação, mesmo diante das evidências e argumentos. Logo, não seria algum ato decorrente de ignorância, erro ou equívoco, contudo a ação deliberada em associar a obra do Espírito à obra de Satanás, em razão da perversidade do coração. Essa explicação teológi-ca, com foco na vida de quem comete o pecado, é compartilhada pelos teólogos Berkhof (1990, p. 234–6) e Grudem (1999, p. 418–420), entre outros. Inclusive, os Cânones de Dort rejeitam e consideram um erro a afirmação de que “ver-dadeiros crentes regenerados podem cometer o pecado que leva à morte ou o pecado contra o Espírito Santo” (BERKHOF, 1990, p. 235).
Berkhof (1990, p. 234–6) discute brevemente sobre o “pecado imperdoá-vel”, apresentando-o como o pecado do “qual é impossível a mudança do cora-ção e pelo qual não é necessário orar” ou “que torna impossíveis a conversão e o perdão”. Porém, o teólogo vai além e afirma que a “raiz desse pecado é o consciente e deliberado ódio a Deus e a tudo quanto se reconhece como divi-no”. Isto é, segundo Berkhof (1990, p. 235), o pecado não se torna imperdoável “porque sua culpa transcende os méritos de Cristo, ou porque o pecador esteja fora do alcance do poder renovador do Espírito Santo”, mas porque há uma lei mantida por Deus “que exclui toda a possibilidade de arrependimento, caute-riza a consciência, endurece o pecador e, assim, torna imperdoável o pecado”. Grudem (1999, p. 420) também enfatiza a vida do pecador em vez do ato do pecado sem fazer menção, contudo, a essa lei divina.
Como poderemos constatar, as explicações teológicas para a interpretação tradicional captaram parcialmente a mensagem das passagens de Mt 12,31-32, Mc 3,28-29 e Lc 12,10 que tratam da “blasfêmia ao Espírito santo”. Carentes de melhor exegese, essas explicações não puderam perceber, sobretudo na lín-gua original, que a qualidade da prática espiritual da pessoa é um dos fatores principais para a possibilidade ou não de perdão e não apenas do pecado da blasfêmia, mas de qualquer pecado. Este ensaio busca ser propedêutico em desenvolver esse ponto, com foco nos textos de Marcos e Mateus, sem negar a possibilidade de outros fatores.
Mc 3,28-29
No espírito das palavras de Klein et al. (2017, p. 506), cada evangelho é uma “biografia teológica”, não nos moldes da fotografia moderna, mas da pintura helenística. Sendo assim, um evangelista pode relatar o mesmo evento sob uma ênfase ou contexto diferente do outro, não apenas com palavras distintas. É o caso do relato envolvendo a “blasfêmia contra o Espírito santo”. Esse relato é descrito de modo teologicamente distinto por Marcos, Mateus e Lucas. O desa-fio, assim, é poder encontrar a mensagem comum entre eles.
Para compreender a passagem de Mc 3,28-29 é imprescindível observar o quadro teológico desenhado em volta pelo evangelista. Esse quadro é constitu-ído da seguinte sequência de eventos, brevemente resumidos aqui:
1. Mc 2,1-12: Jesus é acusado de blasfêmia contra Deus por mestres da lei ao perdoar pecados e atribuir para si a autoridade divina para tal;
2. Mc 2,15-17: Jesus é acusado de cometer pecados por mestres da lei ao comer junto a pecadores e publicanos. Ele refuta expondo sobre a necessidade de chamar pecadores ao arrependimento;
3. Mc 2,23-28: discípulos de Jesus são acusados de violar o sábado ao co-lher espigas. Ele refuta abordando sobre a finalidade do sábado;
4. Mc 3,1-6: Jesus é acusado de violar o sábado ao curar um homem. Ele refuta falando sobre a necessidade de fazer o bem;
5. Mc 3,20-21: familiares ou parentes dizem que Jesus “está fora de si” diante da multidão e dos discípulos;
6. Mc 3,22-27: certos mestres da lei acusam Jesus de estar possesso sob o príncipe dos demônios. Ele refuta com parábolas;
7. Mc 3,28-29: Jesus aborda a “blasfêmia contra o Espírito santo”;
8. Mc 3,30: dizem que Jesus está com espírito imundo;
9. Mc 3,31-35: Jesus ressignifica as palavras “mãe”, “irmão” ou “irmã”.
A sequência acima é importante para mostrar pelo menos a gradação da tensão entre Jesus e certos líderes sociais. Porém, chama a atenção os relatos envolvendo familiares de Jesus antes e após o tema principal. A tensão, então, não seria apenas com os mestres da lei. De fato, por que Marcos menciona a acusação por mestres da lei de Jesus estar possuído do príncipe dos demônios logo após ser chamado por familiares ou parentes de “estar fora de si”? É le-gítimo fazer essa pergunta, ligando os dois eventos, como se o momento com a família de Jesus fosse a circunstância ou o contexto pelo qual os mestres da lei fariam sua acusação. A razão dessa afirmação pode ser extraída a partir da análise da ocorrência do verbo existemi1 (ἐξίστημι) no final de Mc 3,21 na ex-pressão “está fora de si” (ἐξέστη).
A tradução “está fora de si” não está a rigor incorreta, porém é importante não perder de vista o sentido implicado pelo uso do verbo existemi. A atenção pelo rigor da tradução se deve ao fato de que dizer “está fora de si” pode tanto implicar quem não está calmo, mas ainda ciente e no controle de suas ações ex-ternas, como quem está entusiasmado, ao ponto de não ter o controle imediato de suas ações externas. O verbo não se aplica para a primeira situação.
Acertadamente Lourenço (2017) traduz a ocorrência do verbo existemi em Mc 3,21 para “enlouqueceu” em vez de “está fora de si”. A explicação de sua tra-dução em nota de rodapé é bem instrutiva. O primeiro ponto da explicação é o fato dos parentes de Jesus terem saído para o “prender”, cujo verbo é o mesmo usado pelos soldados após o beijo de Judas. O segundo ponto é a nossa palavra cognata “êxtase” derivada do respectivo verbo, que não reflete um estado qual-quer de alteração. E o terceiro ponto é a atitude negativa por parte de familia-res de Jesus, a qual pode ser vista pelos evangelistas como o cumprimento das Escrituras em acordo aos Sl 69.8: “Tornei-me um estranho para os meus irmãos, um desconhecido para os filhos de minha mãe”.
A preferência de tradução por algo similar a “enlouqueceu” em vez de “está fora de si” à ocorrência do verbo existemi em Mc 3,21 é também reforçada pela oposição das ocorrências do verbo sofroneo (σωφρονέω) em outras passa-gens, tais como Mc 5,15 e 2Cor 5,13. Inclusive, as próprias traduções modernas, em geral, para Mc 5,15, trazem o seguinte: “E foram ter com Jesus, e viram o endemoninhado, o que tivera a legião, assentado, vestido e em perfeito juízo [sofronunta, σωφρονοῦντα], e temeram.”. Já na passagem de 2Cor 5,13, temos: “Porque, se enlouquecemos [existemen, ἐξέστημεν], é para Deus; e, se con-servamos o juízo [sofronumen, σωφρονοῦμεν], é para vós.”. Note as variações do verbo sofroneo nas passagens acima com a ideia oposta ao estado de estar endemoninhado ou estar enlouquecido de maneira intercambiável.
Por que encontramos em passagens bíblicas a oposição de estados da pes-soa entre, de um lado, endemoninhado ou enlouquecido, e, de outro lado, “em juízo normal”? A pergunta, aliás, retoma o que seria dito anteriormente como a principal razão a respeito da ocorrência do verbo existemi em Mc 3,21. Em outras palavras, por qual razão a acusação de endemoninhado por parte dos mestres da lei ocorre sob a circunstância em que parentes ou familiares cha-mam Jesus de “louco” ao tentarem prendê-lo? A razão pode ser a seguinte: certas curas físicas e psicológicas estão associadas à expulsão de demônios. De fato, o código cultural-religioso da época respaldava a prática de exorcismo. E não é incomum encontrar nos evangelhos relatos desse tipo de cura associado à expulsão de demônios, conforme afirma Wegner (2003). Uma passagem sig-nificativa, nesse contexto, é Jo 10,20-21:
Muitos deles diziam: “Tem um demônio e está louco. Por que razão lhe dais ouvidos?”. Outros diziam: “Essas palavras não são de um possesso por um demônio. Um demônio não consegue abrir os olhos dos cegos, não?”. (Tradução de Lourenço (2017).
Apesar da tradução “está louco” em Jo 10,20 ser derivado da ocorrência de outro verbo (mainomai, μαίνομαι) diferente de Mc 3,21, a associação entre loucura e possessão é evidenciada biblicamente. A rigor, o verbo em questão (mainomai) no evangelho de João seria uma situação mais específica em rela-ção à loucura: um modo de falar em um estado próximo ao que na atualidade chamamos de “ataque de raiva” ou “surto de raiva”.
Curiosamente, na passagem de Jo 10,20-21, a discussão ou o problema da possível possessão-loucura de Jesus não acontece entre os mestres da lei e o próprio Jesus, porém entre os próprios judeus, os quais se encontram divididos. Isso nos faz questionar algo importante: todos os prejulgamentos ou blasfêmias contra Jesus eram igualmente maliciosos? Realmente, os evangelistas enfatizam a motivação maliciosa dos líderes em conflito com Jesus em outras passagens. No entanto, não é o caso da passagem de Jo 10,20-21. Seria também o caso da passagem de Mc 3? Isto é, ao abordar o tema da “blasfêmia contra o Espírito santo”, Jesus responderia não apenas aos mestres da lei, mas principalmente aos seus parentes e aos judeus no meio da multidão? A tradição reconhece apenas como destinatários da resposta os mestres da lei, contudo podemos verificar a plausibilidade para inserir outros destinatários.
Uma rápida leitura a partir das traduções modernas mais comuns facilmen-te leva o leitor a apenas considerar os mestres da lei, perdendo de vista assim a própria intenção do evangelista na sequência dos eventos relatados em Mc 3. No entanto, se é razoável biblicamente pensar que alguém ser julgado de “louco” é também julgá-lo estar possuído de espírito imundo (em virtude da mentalidade da época), especialmente quando acompanhado de tantos feitos espantosos e singulares à multidão, é também razoável pensar que os mestres da lei teriam se aproveitado (maliciosamente) da situação com a família de Jesus e teriam oferecida a explicação mais exata da possessão-loucura: estar possuído por um poderoso espírito, o príncipe dos demônios, Belzebu. Em re-sumo, os mestres da lei não são os primeiros a sugerir possessão, mas os que oferecem maior exatidão ao julgamento dos parentes. Logo, a resposta pode ter sido endereçada não apenas aos mestres da lei, mas também aos parentes de Jesus ou a quem mais estivesse na multidão endossando tal julgamento. De fato, é possível incluir também a multidão em razão do relato logo em seguida de Mc 3,30: (por) “que diziam: “tem espírito imundo”.”. Sensível a esse quadro, seria de esperar de Jesus uma resposta adequada a cada público: os mestres da lei, os parentes e a multidão.
Primeiramente, Jesus responde aos mestres da lei, conforme relato dos versos de Mc 3,23-27. Com base nessa passagem, a refutação de Jesus explora através de parábolas exatamente a inconsistência da especificidade do espírito imundo da explicação dos mestres da lei: o príncipe dos demônios, Belzebu. Em seguida, nos versos de Mc 3,28-29, Jesus explora algo recorrente em suas pala-vras, especialmente em razão de seus tensos encontros com certas lideranças (da religião e agora também da família): quem está espiritualmente qualificado em suas ações ou em condição adequada para agir segundo interesses espiri-tuais (de Deus). Busca-se argumentar que essa condição é expressa senão pela frase preposicionada “eis to Pneuma to agion” (εἰς τὸ Πνεῦμα τὸ ἅγιον) em Mc 3,29. Essa expressão é comumente traduzida em “contra o Espírito santo”.
Antes de prosseguir, é fundamental compreender o que se quer dizer com “qualificado em” ou “em condição de”. Para começar, precisamos entender que todo aquele que julga, acredita, alega ou diz confiar em Deus assume o compromisso pelo que é dito, alegado, crido ou julgado, caso o compromisso seja sincero ou responsável. Como disse Austin (1990), o revolucionário filósofo da linguagem cotidiana: “nossa palavra é nosso penhor”. Em outras palavras, a ação de assumir o compromisso com o alegado é implicitamente assumir o compromisso com suas consequências. Isto é, quem tem o compromisso deve estar qualificado ou disposto a assumir a responsabilidade pelas consequências do que diz, alega, acredita ou julga. Caso contrário, o compromisso deixa de ser sincero, adequado, verdadeiro ou legítimo.
Segundo o filósofo Brandom (2013, p. 211–212), a alegação só tem real finalidade, propósito ou sentido se obedece à espécie de regra chamada de “comprometimento consequencial”: entender a alegação de alguém em qual-quer de suas formas (de dizer, acreditar ou sentir) requer ao menos entender o que mais a pessoa estaria disposta a fazer mediante essa alegação. Desse modo, o que se torna medida para avaliar a qualidade do compromisso, se legítimo ou não, é a condição de estar qualificado ou disposto a assumir a responsabilidade pelo que se compromete. Uma vez tendo na prática tal qualificação, tem a au-toridade ou legitimidade de assumir certo compromisso ao alegar alguma coisa.
Quem acredita ter certa condição, qualificação ou autoridade espiritual para perdoar ou estar perdoado por Deus deve estar disposto pelo menos a exibir na prática o compromisso com essa crença, para não ser declarado ilegítimo, falso ou irresponsável. E essa condição é expressa por Jesus com a frase preposicionada “eis to Pneuma to agion” em Mc 3,29. Essa frase se traduzida literalmente seria algo como “para dentro do Espírito santo”. E o sentido literal, em especial sua metáfora, tem muito a nos dizer.
A rigor, a escrita na antiguidade, inclusive (καί) no tempo dos apóstolos, não tinha acentos, espaços e letras minúsculas, então aquela expressão sem a preposição inicial (“to Pneuma to agion”) poderia ser traduzida para “Espírito Santo”, “espírito santo” ou “Espírito santo”2. Ou também poderia ser copiada como “to pneuma to agion” (τὸ πνεῦμα τὸ ἅγιον) ou “to Pneuma to Agion” (τὸ Πνεῦμα τὸ Ἅγιον) – dependendo do compromisso teológico do copista. Já a repetição do artigo grego neutro “τὸ” é questão de estilo, bem conhecido da antiguidade, conforme descreve claramente o filósofo Aristóteles em sua Retórica (Ret. III 3 1407b). Quer dizer, conforme constata Peters (2014, p. 1, 9), cada palavra acompanhada do artigo (“to Pneuma to agion”) é sinal retórico de estilo elevado ou nobre, enquanto a junção de palavras com um só artigo (“to agion Pneuma”) expressa concisão retórica.
Um ponto importante a compreender na expressão “eis to Pneuma to agion” é o papel da preposição grega “eis” (εἰς). A ideia original dessa preposi-ção, segundo Murachco (2001, p. 97, 558), é o movimento “para dentro de” ou “na direção de (visando entrar)”, o qual por metáfora expressa a ideia de “na intenção de” ou “com a finalidade de”. De acordo com Murachco (2001, p. 530, 532), toda preposição grega significa originalmente relação espacial e, por pro-cesso metafórico ou figurado, adquire sentido temporal entre outros conforme o uso dessa relação. Logo, estar “dentro” de alguém é uma metáfora por analo-gia a estar dentro de um lugar. Assim, na expressão mencionada, a preposição “eis” ao se relacionar, não mais com espaço, mas com o “Espírito santo” (“to Pneuma to agion”) teria por metáfora o sentido similar a algo como “com vistas à intenção ou vontade de”. E se é para ter em vista a vontade do “Espírito santo” em Mc 3,29 semelhantemente à “vontade de Deus” no relato seguinte em Mc 3,35 (“qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha mãe”), então a nossa interpretação está no caminho certo.
Se compreendermos a locução adverbial “eis to Pneuma to agion” em Mc 3,29 como “com vistas à intenção do Espírito santo” ou “em vista dos interesses do Espírito santo”, torna-se possível compreender mais facilmente de que modo a “blasfêmia contra o Espírito santo” se torna tanto imperdoável como perdoável na leitura da própria passagem de Mc 3,28-29. Tradicionalmente, essa passagem tem sido lida como se Jesus estivesse dizendo o seguinte: se o pecado é de blasfêmia e é direcionado não a outros, mas antes à pessoa do “Espírito santo”, então é imperdoável. Por conseguinte, segundo a leitura tra-dicional, a pessoa de torna réu de pecado eterno. Essa leitura, contudo, não tem sido justa com a força e as possibilidades semânticas de algumas palavras gregas na passagem de Mc 3,28-29.
Para nos aprofundarmos na discussão sobre a passagem de Mc 3,28-29, ve-jamos primeiro o texto grego estabelecido e já a sugestão de tradução alinhada com a interpretação alternativa discutida em seguida.
Ἀμὴν λέγω ὑμῖν ὅτι πάντα ἀφεθήσεται τοῖς υἱοῖς τῶν ἀνθρώπων τὰ ἁμαρτήματα καὶ βλασφημίαι ὅσας ἂν βλασφημήσωσιν· ὃς δ’ ἂν βλασφημήσῃ εἰς τὸ Πνεῦμα τὸ ἅγιον, οὐκ ἔχει ἄφεσιν εἰς τὸν αἰῶνα, ἀλλὰ ἔνοχός ἐστιν αἰωνίου ἁμαρτήματος. (Mc 3,28-29, NA283, ênfase nossa). Amém vos digo que, aos filhos dos homens, serão perdoados todos os erros (pecados) inclusive blasfêmias, quantas se porventura tiverem cometido. Mas, se porventura alguém blasfeme contra (os interesses) do Espírito santo, não tem perdão pelo modo de perpetuamente, an-tes, porém, estar se sujeitando sempre ao erro (pecado). (Mc 3,28-29, tradução e ênfase nossa).
Primeiramente, quanto à tradução, algumas variações são possíveis sem afetar significativamente o sentido desejado. Por exemplo, a frase “pelo modo de perpetuamente, antes, porém, estar se sujeitando” poderia ser também tra-duzida para “sempre que, antes, porém, está sendo sujeito”.
O segundo ponto a verificar na tradução acima é a função da partícula “kai” (καὶ) traduzida para “inclusive”4. Essa tradução torna mais natural a ligação en-tre certos gêneros (“pecados”) e suas espécies (“blasfêmias”), sem deixar de compor ou se incluir no sujeito da oração. Além disso, a tradução não deixa de reforçar a ênfase na blasfêmia existente no texto. Uma questão importante a ser feita, e que será respondida, é entender que tipo de ênfase é essa: exclusi-vista ou oportunamente ilustrativa?
O terceiro ponto a verificar é o adjetivo grego traduzido para “quan-tas” (“hosas”, ὅσας), o qual concorda com o plural feminino de “blasfemiai” (“βλασφημίαι”, “blasfêmias”) e não com o plural neutro de “hamartemata” (“ἁμαρτήματα”, “erros” ou “pecados”). Além disso, a forma básica desse adje-tivo (“-οσο-”) diz respeito à quantidade e número (frequência) e não a tipo ou qualidade, o qual seria de outra forma básica (“-oio-”)5. Em geral, a tradição não enxerga essa dimensão quantitativa no texto: da frequência dos pecados come-tidos. Por conseguinte, afirmam que Jesus falaria de um tipo de pecado. Dessa maneira, imputam a forte oposição (do tipo eliminativa ou exclusivista) ao uso da partícula “de” (“δέ”), que na passagem sofre a elisão de sua vogal (“δ’”). Esse tipo de oposição, porém, não é comum dessa partícula, mas de outra: “alla” (“ἀλλὰ”)6. Normalmente a partícula “de” é utilizada para balancear contrastes, geralmente acompanhada da partícula “men” (“μέν”), e não para estabelecer fortes oposições. Por exemplo, quando se diz “a teoria é fácil, mas a prática é difícil”, a “prática” não é usada de modo a fazer forte oposição como se não houvesse mais a possibilidade ou necessidade da “teoria”. Nesse exemplo, o que há de fato é um contraste entre a “prática” e a “teoria”.
A questão sobre o limite quantitativo do perdão não é pontual. O adjetivo “hosas” (“quantas”) empregado na passagem reforça o que Jesus costumeira-mente pregava sobre o perdão de Deus: ilimitado, sob certas condições – uma dessas condições é enfatizada neste ensaio. A passagem paralela de Mt 18,21-22, por exemplo, reforça a força ilimitada do perdão:
Aproximando-se então, Pedro disse-lhe: “Senhor, quantas vezes errará contra mim o meu irmão e o perdoarei? Até sete vezes?”. Diz-lhe Jesus: “Não te digo [para perdoares] até sete vezes, mas até setenta vezes sete.7
Há sempre perdão. E isso poderia ser um contraste com a mentalidade ju-daica, segundo a qual o perdão de Deus não ocorreria mais de três vezes, com base nas passagens de Jó 33.28-30 e Am 2.68. A razão poderia ser o fato do
número três estar associado à ideia de permanência no Judaísmo9. De qualquer forma, a ideia de limite estava presente. Por outro lado, o ouvinte poderia mali-ciosamente concluir que estaria livre para cometer o mal quantas vezes quises-se em razão da ilimitada bondade de Deus. Especialmente esse lado negativo não foi ignorado por Jesus em sua resposta, ao aplicar paradigmaticamente a espécie de maldade da blasfêmia. Era típico de Jesus o discurso paradigmático, por exemplo, com as parábolas: cada parábola se tornava modelo ou paradigma de certos preceitos ou afirmações gerais. Assim, respondendo questão ante-riormente levantada, a ênfase dada pelo texto à blasfêmia é oportunamente ilustrativa ou paradigmática.
O quarto ponto a verificar é uso da primeira preposição “eis”. Essa prepo-sição tem sido utilizada pela tradição com a mesma força semântica de outra preposição: “pros” (πρός”). Quer dizer, a preposição “eis” tem sido lida sem a força metafórica de “para dentro de” ou “na direção de (visando entrar)”, o qual foi discutido anteriormente. Em vez disso, a preposição tem sido lida com a for-ça apenas de “na direção de”, o qual é exatamente, segundo Murachco (2001, p. 606), o sentido para “pros” quando o seu complemento está no acusativo: “na direção (frontal) de, visando a, em vista de”. Assim, é preciso ter o cuidado para distinguir “em vista de” (“pros”) e “com vistas a” (“eis”): o primeiro expres-sa direção, localização ou ponto de partida da ação enquanto o último codifica finalidade ou intenção. De fato, as preposições em português “para” e “contra” possuem a ambiguidade entre finalidade e direção, consideradas assim sem o contexto. Para evitar essa ambiguidade, é feita a introdução de “os interesses” entre parênteses.
Outro problema em adotar a primeira preposição “eis” com a mesma força da preposição “pros” é assumir que Jesus exortaria os ouvintes da direção ou do alvo da blasfêmia: Deus10. No entanto, é exatamente o que tem sido feito pelos judeus, exortando Jesus de blasfêmia contra Deus: “Por que diz este assim blas-fêmias? Quem pode perdoar pecados, senão Deus?” (Mc 2,7). Dessa maneira, se é uma questão de direção, então Jesus estaria meramente mostrando a dis-cordância do tipo “não sou eu, são vocês que blasfemam contra Deus”.
O quinto ponto a verificar é a partícula “alla”. A leitura tradicional dessa partícula na passagem também não está ausente de problemas. Essa leitura não capta inteiramente a ação linguística de substituição no uso dessa partícula, mas somente o seu caráter adversativo11. Segundo Boas et al. (2019, p. 616), a partícula tem a função básica de introduzir nova cláusula que corrige ou subs-titui algo pressuposto na cláusula anterior, principalmente quando a anterior é negativa. E as cláusulas da passagem aparecem exatamente estruturadas con-forme a seguinte fórmula: “não X, mas (antes) Υ”. Se é o caso do versículo de Mc 3,29 ter essa estrutura, então devemos ler esse verso da seguinte maneira: não se tem perdão (“não X”), antes, porém, (“mas (antes) Υ”) tem sido (“ἐστιν”12) su-jeito (“ἔνοχός”13) de modo frequentemente, continuamente ou perpetuamente (“αἰωνίου”) de erro ou pecado, não de outras coisas (dado o modo de frequen-temente, continuamente ou perpetuamente (“αἰῶνα”) negar na prática a con-dição de visar os interesses do “Espírito santo”). Essa estrutura, logo, reforça a relevância e centralidade da condição espiritual do perdão. Desse modo, Jesus explicitaria a medida dessa condição: que tipo de sujeito a pessoa tem sido ou que tipo de vida a pessoa tem levado ao cometer certo pecado.
O sexto ponto a verificar é o adjetivo “aionios” (“αἰώνιος”), em especial sua força semântica, expressada pela seguinte amostra de palavras: frequente, contínuo, perpétuo, sempre ou eterno. Essas palavras não tomamos necessa-riamente para expressar certo modo, estado ou disposição imutável, mas dura-douro ou que dificilmente mude ou queira mudar. Por exemplo, quando dize-mos “que seja eterno, enquanto dure” ou “ele tem dedicado sua vida perpetu-amente a fazer isso”. Enfim, essas palavras possuem força semântica principal-mente para descrever situações ordinárias desse tipo, como se pode constatar na literatura da antiguidade. Nesse sentido, a frase preposicional “eis ton aiona” (“εἰς τὸν αἰῶνα”) é traduzida de modo a explicitar o alvo concreto da frase: o modo, o estado ou a disposição (frequente) de fazer algo.
O sétimo ponto a verificar, ligado ao ponto anterior, são as ocorrências do adjetivo “aionios” na passagem, no acusativo e no genitivo. Não é por acaso a sua presença, em razão do que foi dito antes pelo adjetivo “ὅσας” (“quantas”). Em outras palavras, por ter dito anteriormente que não importava quantas blas-fêmias pudessem cometer, Jesus não deixou a afirmação solta, pois a conectou responsavelmente com a condição central e relevante, marcada pela partícula “an” (“ἂν”): a observância dos interesses do “Espírito santo”.
O quadro teológico de Mateus, quanto ao tema da “blasfêmia contra o Espírito santo”, em relação ao evangelho de Marcos, permite também afirmar que qualquer pecado é imperdoável ou não sob certa condição? A resposta é sim, porém não com as mesmas palavras de Mc 3,28-29. Além disso, a sequên-cia teológica dos eventos de Mateus, na qual está inserido o tema em questão, apresenta diferenças significativas, conforme podemos verificar a seguir:
1. Mt 9,1-8: similar a Mc 2,1-12;
2. Mt 9,10-13: similar a Mc 2,15-17;
3. Mt 12,1-8: similar a Mc 2,23-28;
4. Mt 12,9-14: similar a Mc 3,1-6;
5. Mt 12,22.23: após Jesus ter curado um endemoninhado de sua ce-gueira e mudez, as multidões “estavam atônitas ou enlouquecidas” (“ἐξίσταντο”). Em Mc 3,21, contudo, era Jesus quem estava “enlouque-cido” (“ἐξέστη”);
6. Mt 12,24-30: similar a Mc 3,22-27 com exceção de Mt 12,27-28;
7. Mt 12,31-32: similar a Mc 3,28-29, no sentido de que Jesus aborda a “blasfêmia contra o Espírito santo”;
8. Mt 12,33-37: Jesus fala em parábolas sobre o homem bom e o homem mau. Em Mc 3,29 temos possivelmente a alusão ao homem mau (“su-jeito sempre de erro”);
9. Mt 12,38-45: Jesus nega o pedido dos fariseus e mestres da lei por um sinal. Não há semelhança com Mc 3,30, exceto à menção a “um espírito imundo”;
10. Mt 12,46-50: similar a Mc 3,31-35 (sobre quem é a “família” de Jesus).
Dentre as diferenças entre Marcos e Mateus, podemos primeiramen-te perceber a ausência da tensão com os familiares de Jesus, antes do relato do tema em questão, os quais julgaram que Jesus estaria “enlouquecido” (Mc 3,21). Entretanto, permanece a ocorrência do verbo existemi com o sujeito di-ferente: em vez de Jesus, quem “estavam enlouquecidas” eram as multidões. A dificuldade, porém, é entender a ocorrência desse verbo nessa passagem do evangelho de Mateus. Em razão disso, tradicionalmente tem sido adotados os adjetivos “atônitas” ou “maravilhadas” em vez de “enlouquecidas” para tradu-zir o verbo “ἐξίσταντο” (imperfeito de existemi) em Mt 12,23. Vejamos o texto grego estabelecido com a nossa tradução:
Καὶ ἐξίσταντο πάντες οἱ ὄχλοι, καὶ ἔλεγον· μήτι οὗτός ἐστιν ὁ υἱὸς Δαυίδ; (Mt 12,23, NA28, ênfase nossa). E todas as multidões estavam enlouquecidas (sem se dispor a qual-quer persuasão contra o que faziam) e diziam: “não é este o Filho de Davi?” (tradução e ênfase nossa).
A chave principal para entender a ocorrência do verbo existemi em Mt 12,23 como “estavam enlouquecidas” é compreender o seu uso, isto é, sob que cir-cunstâncias e consequências o verbo está sendo usado para ter a força semân-tica da ideia de loucura, ou melhor, a força do que está implicado nessa ideia, de modo a receber o longo complemento “sem se dispor a qualquer persuasão contra o que faziam”. Uma das consequências já mencionadas anteriormente é fato de alguém ter sido curado de certa possessão. Essa consequência sinaliza a ideia de loucura, conforme a mentalidade da época. Entretanto, não é o caso de Mt 12,23: as multidões não estavam possessas de demônios.
Outra consequência de julgar alguém “enlouquecido” é a necessidade ou a possibilidade de conduzi-la para algum lugar ou propósito pela força. Assim, o sujeito do verbo existemi não é a pessoa que possa ser conduzida pelo discurso (de certa autoridade), senão normalmente pela força. É o caso exatamente de Mc 3,20-21, em que os parentes de Jesus vieram para levá-lo à força. A chave da interpretação, desse modo, é compreender o uso da ideia de força. Nesse sentido, se a multidão relatada em Mc 3,20 compartilhava do mesmo estado das multidões de Mt 12,23, então temos o caminho adequado para trilhar.
A solução plausível para compreender Mt 12,23 é admitir que as multidões “estavam enlouquecidas” no sentido de que não estavam dispostas a qualquer persuasão contra o que estavam fazendo. Assim, as multidões estavam em um estado tal que necessitavam de força e não de persuasão para deixarem de fazer o que faziam: pelo menos afirmavam que Jesus era o Filho de Davi. Além disso, conforme relato de Mc 3,20, as multidões também não estariam dispos-tas de se afastar fisicamente de Jesus – Jesus e seus discípulos nem conseguiam comer. De fato, diante de algo extraordinário nem sempre reagimos com meras palavras, mas também com ações. Por exemplo, a mãe que acreditava ter perdido o filho há alguns anos não ficaria apenas perguntando “É você mesmo?” se o encontrasse vivo diante de si. Ela naturalmente correia para abraçá-lo de tal modo que alguém diria: “ela estava doida para abraçar seu filho” (e nenhuma persuasão a impediria disso). Essa é a força ou o grau da ideia de loucura em questão. Inclusive, tendo em vista esse cenário, podemos compreender o uso do verbo existemi com interesse próprio (na voz média), como na passagem de 2Cor 5,13 mencionada antes: “Porque, se enlouquecemos [ἐξέστημεν], é para Deus”. Quer dizer, o sujeito do verbo não está disposto a qualquer persuasão contra o que está fazendo. É como se estivesse comprometido implicitamente com algo como: “Ninguém vai nos persuadir de não fazer isso”.
Quanto ao tema principal da “blasfêmia contra o Espírito santo”, o relato principal se encontra em Mt 12,31-32. Vejamos, então, o texto grego estabele-cido e a sugestão de tradução alinhada com a nossa interpretação.
Διὰ τοῦτο λέγω ὑμῖν, πᾶσα ἁμαρτία καὶ βλασφημία ἀφεθήσεται τοῖς ἀνθρώποις, ἡ δὲ τοῦ πνεύματος βλασφημία οὐκ ἀφεθήσεται τοῖς ἀνθρώποις. καὶ ὃς ἐὰν εἴπῃ λόγον κατὰ τοῦ υἱοῦ τοῦ ἀνθρώπου, ἀφεθήσεται αὐτῷ· ὃς δ’ ἂν εἴπῃ κατὰ τοῦ πνεύματος τοῦ ἁγίου, οὐκ ἀφεθήσεται αὐτῷ οὔτε ἐν τούτῳ τῷ αἰῶνι οὔτε ἐν τῷ μέλλοντι. (Mt 12,31-32, NA28, ênfase nossa). Por causa disso digo a vós: de todo erro inclusive da blasfêmia serão as pessoas perdoadas. Quanto à blasfêmia do Espírito, não serão per-doadas. Isto é, quem fala contra o Filho do Homem, estará perdoado; já quem fala contra o Espírito santo, não estará perdoado nem neste estado frequente (de blasfemar) nem no que (mais) pretende fazer. (Mt 12,31-32, tradução e ênfase nossa).
A tradução acima se beneficia em muito da discussão anterior em torno de Marcos. É o caso das partículas “kai” (“καὶ”) e “de” (“δὲ”), e do dativo “aioni” (“αἰῶνι”) de “aionos”. Em vez das partículas, a atenção maior será dada a estas duas frases preposicionadas: “en touto to aioni” (“ἐν τούτῳ τῷ αἰῶνι”) e “en to mellonti” (“ἐν τῷ μέλλοντι”), ambas traduzidas respectivamente em “neste modo frequente (de blasfemar)” e “no que (mais) pretende fazer”14.
Em relação a Mc 3,28-29, primeiramente notamos a ausência do adjetivo grego “hosas” (“quantas”), por conseguinte não surge a ênfase no caráter ilimi-tado do perdão e seu contraste com o uso do adjetivo “aionos”, o qual surge em Mt 12,32 no dativo. Também não há a presença da preposição “eis” ou mesmo da expressão “eis to Pneuma to agion”. Entretanto, temos a expressão “he tou pneumatos blasfemia” (“ἡ τοῦ πνεύματος βλασφημία”) em Mt 12,31, o qual traduzimos por “a blasfêmia do Espírito”. Nesse caso, o elemento gramatical crucial não é mais certa preposição, mas o caso genitivo em “tou pneumatos” (“τοῦ πνεύματος”), o qual por si não é suficiente para esclarecer qual a origem ou procedência em questão está relacionada com o “Espírito” – o caso genitivo, entre outras funções, tem a finalidade de marcar procedência ou origem. A na-tureza dessa origem é exatamente esclarecida com os três versículos seguintes: Mt 12,32, contendo uma descrição mais explicativa; Mt 12,33, com a expressão alegórica das figuras da árvore e do fruto; e Mt 12,34 com as figuras do co-ração e do tesouro. Assim, a condição espiritual de obediência aos interesses do “Espírito santo” continua presente em Mateus como em Marcos, porém de maneira bem mais explícita com uso dessas figuras.
A tradição traduz a expressão “tou huiou tou anthropou” (“τοῦ υἱοῦ τοῦ ἀνθρώπου”) em Mt 12,32 por “Filho do Homem” em vez de “filho do homem”, pois entendem que Jesus está fazendo referência a si mesmo, como em outras passagens do Novo Testamento. No entanto, essa expressão comum a muitas passagens do Antigo Testamento, tal como nos Sl 8.4 e 114.3, não fazia referên-cia necessariamente ao Messias, porém em linhas gerais à vida regida ou limita-da pelos interesses ou aspectos terrenos, tais como o sofrimento, a obediência, a fraqueza, entre outros. De fato, há um choque implícito nessa passagem entre o Messias ideal e o Messias real, que se reflete na questão do perdão. Esse choque será um tema recorrente ao apóstolo Paulo com a pregação do escân-dalo do “Messias crucificado” à educação judaica, segundo a qual o reino do Messias estaria efetivamente completo em sua primeira vinda. Nesse contexto, seria natural de qualquer judeu a crítica, o julgamento, enfim, a blasfêmia a Jesus, dada a junção aparentemente escandalosa das ideias do Messias e do “filho do homem”. Ainda assim, a preocupação da mensagem girava em torno do modo como essa blasfêmia era levada pela pessoa com um conhecimento tradicional incompleto do Messias: o modo da vida voltada aos interesses do “Espírito santo”.
Tomando o contexto explicitado no parágrafo anterior, torna-se mais claro entender o motivo das frases preposicionadas “en touto to aioni” (“ἐν τούτῳ τῷ αἰῶνι”) e “en to mellonti” (“ἐν τῷ μέλλοντι”) terem sido traduzidas respectivamente em “neste modo frequente (de blasfemar)” e “no que (mais) pretende fazer”. Ambas possuem complementos para esclarecer melhor a conexão com o contexto da passagem. No caso da primeira expressão, o contexto é o ato perpétuo (com força cotidiana), contínuo ou frequente de blasfemar. Na última, por sua vez, é exatamente o pronome “neste” (“toutó”) da outra expressão. O contexto da segunda expressão, entretanto, sinaliza o fato de que a impossibili-dade do perdão não está restrita à blasfêmia.
Por fim, a explicação acima em torno da passagem de Mateus se aplica igualmente bem a Lc 12,10: “Todo aquele que disser uma palavra contra o Filho do Homem será perdoado, mas quem blasfemar contra o Espírito santo não será perdoado.”. Nesse caso, não há mais necessidade de exegese para compre-ender essa passagem do evangelho de Lucas, dada a semelhança com Mt 12,32.
Diferente da tradição, buscamos mostrar por que a “blasfêmia ao Espírito santo” não deve ser tomada apenas como “pecado imperdoável” com base nas passagens de Mt 12,31-32, Mc 3,28-29 e Lc 12,10. Pois, baseada numa rica exe-gese delas, oferecendo inclusive traduções alternativas, acreditamos ter sido capazes de afirmar que a qualidade da prática espiritual da pessoa é um dos fa-tores principais para a possibilidade ou não de perdão e não apenas do pecado da blasfêmia, mas de qualquer pecado.
Por falta de espaço, contudo, não exploramos outras passagens geralmente utilizadas para fundamentar a interpretação tradicional: Hb 6,4-6 e 10.26, 27; 1Jo 5,16-17. No entanto, acreditamos que essas passagens não oferecem gran-des dificuldades especialmente aos que compreenderam o que foi proposto.
O importante é ter em mente o espírito da nossa interpretação, presente também em Ef 4,30-31: “livrem-se de toda amargura, indignação e ira, gritaria e blasfêmia, bem como de toda maldade.”. Isto é, a blasfêmia não é a única mal-dade envolvida na (im)possibilidade de perdão.
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[1] Algumas transliterações estão simplificadas, sem acentos.
[2] Nessas passagens a preferência tem sido por “Espírito santo”.
[3] 28ª edição de Nestle-Aland (2018).
[4] Cf. Denniston (1954, p. 293).
[5] Cf. Boas et al. (2019, p. 99).
[6] Cf. Denniston (1954, p. 165).
[7] Tradução de Lourenço (2017).
[8]“Assim diz o Senhor: Por três transgressões de Israel, e por quatro, não retirarei o castigo” (Amós 2.6. Almeida Corrigida Fiel).
[9] Extraído do tópico “Três vezes” do site Beit Chabad Central. Disponível em: www.chabad.org. br/interativo/FAQ/tres_vezes.html . Acesso em: 10 fev. 2021.
[10] Não é fácil assumir nessa passagem que os ouvintes, ainda mais judeus adversários, já tivessem um esclarecimento amadurecido de que Jesus falaria de uma das pessoas da Trindade: o Espírito Santo. E que essa doutrina já fosse popular o suficiente para poder discutir questões morais práticas entre os ouvintes a partir dela. Ainda assim, sendo ou não o caso, a argumentação principal deste trabalho não é afetada por essa dificuldade.
[11] Cf. Murachco (2001, p. 625).
[12] Note a aplicação da ideia de ação contínua presente no verbo “estin” (“ἐστιν”).
[13] Preferi “sujeito” a “réu” para traduzir o adjetivo “enochos” (“ἔνοχός”) dada a ideia de sujeição frequente ao pecado ou erro.
[14] Adoto o particípio no dativo do verbo méllo (μέλλω), de modo a aplicar o sentido de “o que pretende fazer”.