Merlise dos Santos*
*Mestranda em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato: merlisee@gmail.com
Voltar ao Sumário
Resumo:
O presente artigo trata da missão da igreja e da relação de cada indivíduo nessa missão. A igreja é apresentada no Novo Testamento como a comunidade que reconhece o senhorio de Jesus e se apoia na ordem do próprio Cristo de anunciar o evangelho a todas as nações. O propósito de Deus ao instituir a igreja no mundo como testemunha viva do seu amor, é justificado pela missão do Reino, ao se manifestar concretamente na história. Estar em missões é acrescentar almas ao Reino celestial, é proclamar o Evangelho do Reino ensinando e incorporando os novos seguidores a uma comunidade de fé, que professe uma fé saudável, despertando em cada vida respostas que atentem às necessidades humanas, a partir da ordem do “Ide” de Jesus em Mt 28,18-20. Isso se faz ainda mais necessário em tempos de transformações socioculturais tão significativas como a dos dias atuais. Assim, a missão é missão para a igreja e para cada um.
Palavras chave: Missão; Discípulo; Jesus; Igreja; Evangelho
Abstract
This article deals with the mission of the church and the relationship of each individual in that mission. The church is presented in the New Testament as the community that recognizes the lordship of Jesus and relies on Christ’s own command to proclaim the gospel to all nations. God’s purpose, in establishing the Church in the world as a living witness of his love, is justified by the mission of the Kingdom, as it concretely manifests itself in history. To be on missions is to add souls to the heavenly Kingdom, is to proclaim the Gospel of the Kingdom, teaching and incorporating new followers into a community of faith, which professes a healthy faith, awakening in each life responses that meet human needs based on the order of “Go” by Matthew 28:18-20, in times of sociocultural transformations so significant today. So the mission is mission for the church and for each one.
Keywords: Mission; Disciple; Jesus. Church; Gospel
Afunção da igreja é a glorificação de Deus, através da união de propostas como: adoração, evangelização, edificação e serviço. O auge desse propósito se faz conhecido a partir do desenvolvimento e aprimoramento dessas funções, inicialmente refletido no coração de cada cristão, como alvo pessoal, sendo compartilhado de forma intensa e real no grande desafio do desenvolvimento da vida cristã.
As quatro funções de maneira nenhuma podem ser vistas sob um ponto de vista isolado, nem tão pouco a igreja deve atentar apenas para uma delas e ignorar a outra, isto seria interromper o ciclo natural do desenvolvimento cristão. A igreja tem o dever de ajudar nesse processo, restaurando a ideia de fraternidade, através da partilha do amor. Conforme a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium,
a evangelização está diretamente relacionada com a proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre o recusaram. [...]Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração. (EG 14)
O mundo está sedento de amor e de pessoas que demonstrem interes-ses umas pelas outras. O papel da igreja é amar e estar inserida na sociedade de maneira a ser um diferencial, onde, resgatar as almas perdidas se torne uma prioridade, curar seus corações um anseio e ensinar a glorificar a Deus, um es-tilo de vida.
As pessoas devem olhar para e igreja e entender que ela é um lugar de amor, um lugar de pessoas pecadoras, com erros, defeitos, mas ali também é um lugar onde o amor impera e assim possam se sentir parte desse círculo vir-tuoso, que é o amor gratuito.
Diante de uma correta interpretação da função da igreja no mundo, tem-se o início de uma correta compreensão da relação do chamado para a igreja, mediante o chamado pessoal. Mas, se existe um chamado para a igreja, uma “Missio Dei” - uma missão de Deus, onde cada indivíduo se encaixa, se
soma a ela em amor, então, qual é o chamado missionário para cada indivíduo? O que cada cristão tem a ver com essa tal missão de todos em cada um? E como compreender a missão pessoal que cada um tem dentro do corpo de Cristo na Missão de Deus?
Para entender a palavra missão, deve-se partir de duas perspectivas teológicas fundamentais, que foram surgindo e se associando à palavra missão ao longo do século XX, a missão de Deus e a natureza missional da igreja. No século XIX, a missão era compreendida como um trabalho, um serviço, que ocu-pava um lugar importante na igreja. Com a chegada do novo século, uma nova concepção foi surgindo. “A missão não poderia mais ser considerada como um trabalho a ser feito, mas passou a ser a centralidade da natureza e existência da igreja” (GOHEEN, 2019, p. 62).
Assim, missão passa a ser não mais o que a igreja faz, mas sim o que ela é. “Missão não está relacionada a atividades específicas, que muitas vezes a igreja se vê obrigada a fazer para cumprir seus cronogramas eclesiais, mas sim à definição e completude de sua identidade” (GOHEEN, 2019, p. 62). Dessa for-ma, uma boa definição de missão é “envio”. E é nesse sentido que a igreja deve ser enviada em missão para o mundo.
Ser enviada para o mundo é estar atenta a todos os sinais do seu tempo, para que seja capaz de conhecer e compreender as épocas, os tempos, suas es-peranças e angústias. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n 4, traz na sua introdução que, “é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho”; para que assim possa responder, de modo adequado e adaptado à cada geração, às eternas perguntas dos ho-mens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas.
O envio tem um caráter fundamentalmente identitário e pessoal e por isso faz referência direta a Deus. Dessa forma, igreja em missão ou missão da igreja, se caracteriza como um envio; e diz respeito, em primeiro lugar, ao mo-delo de envio do Filho pelo Pai, na força do Espírito Santo, adquirindo assim um caráter sobretudo trinitário.
A igreja que possui uma natureza missional é trinitária e enviada para proclamar as Boas Novas do Evangelho de Cristo. Ela é uma igreja que proclama o Logus Encarnado, a Palavra. Conforme Padilla e Couto, a igreja é convocada conforme o evangelho de Jo 20, 21-22, a comissionar através da palavra que sai da boca do próprio Cristo: “Assim como o Pai me enviou, eu os envio. E com isso, soprou sobre eles e disse: Recebam o Espírito Santo [...]” (PADILLA; COUTO, 2011. p. 70).
Dessa forma, o envio consiste na participação ativa à semelhança da Trindade, que pode ser entendida como a explosão amorosa de Deus, o qual, em doação gratuita, se projeta para fora, num movimento de saída de si, toda-via, sem perder nada de si, pelo contrário, dando tudo de si. A igreja é comissio-nada a sair para fora de si, sem perder nada de si, num movimento de encontro até as necessidades que o mundo apresenta no seu tempo e cultura, e, dessa forma, será relevante e se fará presente na continuidade da história.
Pois, assim, como o Filho foi enviado na plenitude do tempo para nascer numa família judia da Galileia, durante a época da hegemo-nia romana na Palestina, aqueles que creem no filho são enviados a encarnar-se na própria cultura. O princípio da missão não será o de reproduzir, por imitação, os modelos religiosos que regeram o padrão cultural da espiritualidade de Jesus (por exemplo, a circunci-são), mas prosseguir criativamente pelo caminho do envio do Filho, na força do Espírito. (PADILLA; COUTO, 2011. p. 71).
Digno de nota, é o fato de que não é missão da igreja evangelizar a cultura, mas se fazer presente nela como um agente de transformação de vi-das, levando em consideração os sinais dos tempos. Segundo Sassatelli, frade dominicano e doutor em filosofia, “ouvir os sinais dos tempos, quer dizer, ouvir a voz de Deus nos acontecimentos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal maneira que, seja capaz de adaptar a cada geração, às questões que precisam de respostas”. (SASSATELLI, 2019)
Para o autor faz-se necessário conhecer e entender o mundo, para que assim a igreja seja capaz de produzir as respostas. Dessa forma, ouvir os “sinais dos tempos” significa “conhecer” o mundo, e os desafios socioeconômico-po-lítico-ecológico-cultural de cada momento histórico, à luz do Evangelho, tendo como mediação a filosofia e a teologia. (SASSATELLI, 2019).
Conhecer o mundo para anunciar o Cristo a todas as culturas, deve ser a principal preocupação da igreja e, também, o objeto missional dela. Para isso, faz-se necessário um “discernimento das culturas como realidade humana a
evangelizar” e como consequência disso, uma nova forma de colaboração entre todos os envolvidos pela evangelização, “já que a nova evangelização deverá projetar-se sobre a cultura ‘emergente’, sobre todas as culturas, inclusive as cul-turas indígenas” (cf. Angelus, 28 de junho de 1992).
A igreja é convocada para estar em saída, com uma proposta de missão que possibilite o “encontro do homem de hoje com o Deus que é Amor, em uma relação fecunda entre fé e razão, de modo que os fiéis possam mostrar a todos como a proposta cristã seja o caminho da verdadeira humanização, [...]”. (FORTE, 2018, p. 41).
Segundo Stott “Jesus fez mais do que traçar um paralelo vago entre sua missão e a missão do cristão. Precisa e deliberadamente, ele fez de sua missão um modelo para a nossa, dizendo: “assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. (STOTT, 2010, p. 27). Portanto, missão é algo pessoal e identitário, pois caracteriza o discípulo e a igreja.
Em se tratando de missões, a ordem de Jesus é clara ao convocar cada discípulo para anunciar seu Evangelho por todo o mundo, pregando para todas as nações (cf. Mt 28,18-20). Sua convocação é baseada na promessa de sua presença constante. Mas, o grande desafio da vida cristã é fazer desse alvo, o alvo de cada um.
É impossível fazer de missões uma realidade de vida, sem a atuação do poder de Deus, através do Espírito Santo. O Espírito Santo é quem dá o direcionamento, motivação, e impulsiona o discípulo a cumprir os seus propósitos missionários.
Diante dessa missão, o papel do discípulo no mundo é fundamental, e sua responsabilidade deve pesar nos ombros de cada um. Blauw afirma que a “Missão é a convocação da Soberania de Cristo” (BLAUW, 2012, p. 109), na me-dida que a realidade de missões deve ser levada a todos os povos.
O termo “discípulos” foi muito usado por Jesus para identificar seus se-guidores. Em Mt 10, 2-4, Jesus convoca os seus seguidores. Logo, discípulo é alguém convocado, é um aluno, e também um seguidor, aquele que se submete aos ensinos de alguém, que trilha os mesmos caminhos, que partilha das mes-mas ideias do mestre. O discípulo procura conhecer, praticar e aplicar o mesmo
modo de vida e a filosofia de vida do seu senhor.
É seguindo essa linha de pensamento, buscando o envolvimento e o desenvolvimento das relações entre si, que os “doze” amigos de Jesus foram um a um sendo convocados, tomados de um espírito profundo de amor, obediência e respeito. “Jesus chamou os doze discípulos e lhes deu poder e autoridade para expulsar todos os demônios e curar doenças. Então os enviou para anunciarem o Reino de Deus e curarem os doentes” (cf. Lc 9,1-2).
O verdadeiro discípulo está interessado no aprendizado constante, está atento aos sinais dos tempos à sua volta, tendo seu mestre como modelo. Ele deseja ampliar seus conhecimentos e acima de tudo desenvolver seu caráter e sua mente, fazendo novos discípulos, num contínuo processo de germinação. “O processo de germinação da liderança cristã se inicia na experiência de ou-vir o chamado de Jesus que diz: vem e segue-me”. (STEUERNAGEL; BARBOSA, 2017, p. 25). A maior virtude do discípulo é a obediência.
O próprio Cristo demonstra essa obediência desde seu nascimento até a morte: “E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz!” (cf. Fl 2,8).
Sabendo Jesus que seria a última vez que estaria junto com seus dis-cípulos, deixa sua ordem final, ordem com implicações na eternidade: “...por-tanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo que eu lhes ordenei”. (cf. Mt 28,18-20).
Seu mandamento é claro “vão e façam”, isto é, enquanto caminham, fa-çam, ensinem outras pessoas a obedecer às minhas ordens, andem com elas, acompanhem suas vidas, até o amadurecimento de seu caráter, a fim de que sejam capazes de gerar mais seguidores. Tais ordens devem ser consideradas e aplicadas em todas as esferas da sociedade. Desde as grandes metrópoles, até os pequeninos e mais paupérrimos vilarejos. Todos devem ter o privilégio de ouvir e responder ao chamado de Deus.
O discípulo, que segue os passos do mestre, não anda na escuridão, porque sabe que pode se perder, pode cair e machucar-se, sua prioridade é sempre andar seguro à sombra do seu mestre, ou melhor, deveriam andar co-bertos pela poeira dos pés do seu rabino, ou seja, literalmente seguindo seus passos, eles eram chamados de Talmidim.
Os meninos talmidim tinham mais uma razão para andar tão próxi-mos de seus rabinos. O objetivo deles não era apenas saber o que seus rabinos sabiam, mas se tornarem o que seus rabinos eram. Eles não queriam apenas o conhecimento que seus mestres possuíam, queriam ser como seus mestres. Mais do que saber o que o rabino sabe, importa ser o tipo de homem que o rabino é. (KIVITZ, 2012. p. 8).
Os meninos em Israel eram iniciados aos estudos aos 6 anos de idade, assim:
no primeiro estágio, o Beit Sefer, decoravam a Torá, os cinco primeiros livros da Bíblia [...], aos 10 anos quando iniciavam o segundo estágio, o Beit Talmud, já haviam decorado toda a lei de Moisés. Passavam então a decorar os livros históricos, poéticos, de sabedoria e dos profetas de Israel. Aos 14 anos, aqueles meninos já haviam decorado o que hoje chamamos de Antigo Testamento, a bíblia Hebraica. (KIVITZ, 2012. p. 7).
Os meninos mais notáveis eram escolhidos pelos rabinos para dar conti-nuidade aos estudos da Torá, esses meninos eram chamados de Talmidim, pala-vra traduzida no Novo Testamento por discípulos. Dessa forma, entende-se por um verdadeiro discípulo, aquele que tem alegria em deixar-se cobrir pela poeira dos pés de seu mestre, e o seguir. Jesus foi um desses meninos, mas muito cedo já foi chamado de Rabbi, rabino, mestre. (KIVITZ, 2012. p. 8).
Na Encíclica Fratelli Tutti n.1, o Papa Francisco faz um convite para que cada um exercite o amor, que ultrapasse todas as barreias de tempo e espaço, e afirma que é declarado feliz aquele que ama o seu irmão, tanto aquele que está longe, como aquele que está perto. O pontífice explica que fraternidade é aquela que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas, indepen-dentemente da sua proximidade física, ou do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.
O que impele o discípulo a pensar a razão primeira que o move é o amor de Deus. E é, o amor que deve impulsioná-lo e lançá-lo para fora de si mesmo. De fato, o amor de Deus precede o amor do homem, a caridade de Deus alicerça a caridade fraterna. Nas palavras de Lautorelle:
O Pai se revela pela ação conjugada do Verbo e do Espírito, que são como os braços de seu amor a humanidade, e a atrai para Cristo. O envolvimento de amor para aquele que o Pai se manifesta, por Cristo, aos homens, e a correspondência do amor dos homens pela fé e caridade, aparecem como submersos no fluxo e refluxo de amor que une ao Pai e ao Filho no Espírito. A revelação inicia um diálogo sem interrupções entre o Pai e seus filhos, adquiridos pelo sangue de Cristo. Tem lugar uma vez no plano dos acontecimentos históri-cos e no da eternidade. Se inaugura com a Palavra e se culmina na visão, no encontro facial. (LATOURELLE, 1989, p. 553).
Guardadas as proporções ético-teológicas do amor, pode-se afirmar que a humanidade é mais do que mera subjetividade autônoma no mundo. Pelo contrário, a humanidade é entendida como guardiã uns dos outros pelo amor.
O termo que melhor corresponde à ideia de responsabilidade é talvez o de “guarda”. Guardar significa estar junto ao outro com atenção de amor, respeitando, acompanhando e se responsabilizando pelo seu caminho, protegendo e cultivando a sua vida como bem absoluto. (FORTE, 2018, p. 133).
A ideia de responsabilidade é cara para Ricoeur, que ressalta que a obediência amorosa dá surgimento à responsabilidade pelos interesses dos outros, a ponto de tornar-se seu penhor. (RICOEUR, 2001, p. 153). Nesse entendimento, trata-se realmente de uma obediência amorosa que emana do ato gratuito da Criação, pois Deus na criação convoca a todos para ser, fazer, seguir e amar à sua semelhança.
O discípulo que entende a sua missão, ama a Deus, mas também ama o seu próximo e procura viver um círculo de amor, como bem ressalta Erickson. Para ele “o amor é um dos atributos de Deus, pois engloba a preocupação e a ação na busca da realização da outra pessoa”. (ERICKSON, 1991, p. 12).
Em todo o perpassar da Palavra de Deus, as relações interpessoais tomam uma volumosa atenção. Tanto o relacionamento entre Deus e o discípulo como o relacionamento discípulo a discípulo é destacado em toda a Bíblia. Esse relacionamento de amor parte da relação amorosa que a Trindade mantém, (cf. Jo 17,24), onde Jesus afirma que o Pai sempre o amou, mesmo antes da criação ser formada. (TOWNSEND; CLOUD, 2003, p. 223).
O Novo Testamento apresenta a revelação do amor, na encarnação e sacrifício de Jesus. A partir desse sacrifício, as compreensões de amor se tornam completas em sentido e propósito, a palavra amor possui diversos significados, porém, deve-se entendê-la como uma palavra cuja raiz nasce a partir da vida em comunidade. Portanto, é tarefa do discípulo que entende a sua missão pessoal, demonstrar o amor em palavras e atitudes, a exemplo do próprio Cristo.
Se a missão é a razão da existência de algo ou papel desempenhado por alguém, cada cristão tem uma razão de ser e um papel a desempenhar no meio em que está inserido, no entanto, o que se pode ver é um envolvimento muito aquém do esperado. Acreditar que fazer discípulos é função da igreja e obrigação do padre e/ou do pastor, é se isentar de uma responsabilidade que é pessoal, deixando assim de compreender qual é o seu papel no mundo.
Uma boa compreensão do que é ser igreja, faz-se necessário, para uma correta compreensão do papel do discípulo. As quatro paredes da igreja não são a igreja. As paredes da igreja não têm a capacidade de evangelizar, muito menos fazer discípulos, quem faz isso, são as pessoas! A responsabilidade é da criação.
Essa imputabilidade está posta de maneira errada sobre os ombros da igreja ou da liderança, quando o olhar deveria se voltar para cada um, no exer-cício de sua responsabilidade pessoal e irrevogável.
Na Exortação Apostólica Pós-Sinodal, Christifideles Laici, o Papa João Paulo II, ao discutir sobre vocação e missão dos leigos na igreja e no mundo afirma,
Nos nossos dias, a Igreja do Concílio Vaticano II, numa renovada efusão do Espírito de Pentecostes, amadureceu uma consciência mais viva da sua natureza missionária e ouviu de novo a voz do seu Senhor que a envia ao mundo como “sacramento universal de sal-vação”. (1) Ide vós também. A chamada não diz respeito apenas aos Pastores, aos sacerdotes, aos religiosos e religiosas, mas estende-se aos fiéis leigos: também os fiéis leigos são pessoalmente chamados pelo Senhor, de quem recebem uma missão para a Igreja e para o mundo. Lembra-o S. Gregório Magno que, ao pregar ao povo, co-mentava assim a parábola dos trabalhadores da vinha: “Considerai o vosso modo de viver, caríssimos irmãos, e vede se já sois trabalhado-res do Senhor. Cada qual avalie o que faz e veja se trabalha na vinha do Senhor” (2). (CHRISTIFIDELES LAICI, nº. 2).
Já dizia Pio XII, no Discurso aos novos Cardeais em 20 de fevereiro de 1946 diz:
Os fiéis, e mais propriamente os leigos, encontram-se na linha mais avançada da vida da Igreja; para eles, a Igreja é o princípio vital da sociedade humana. Por isso, eles, e sobretudo eles, devem ter uma consciência, cada vez mais clara, não só de pertencerem à Igreja, mas de ser a Igreja, isto é, a comunidade dos fiéis sobre a terra sob a guia do Chefe comum, o Papa, e dos Bispos em comunhão com ele. Eles são a Igreja.... (AAS 38 (1946), 149).
A missão é particular e um desafio para cada discípulo que entendeu o sacrifício de Jesus na cruz e que acredita que “esse agir só pode ser salvador”. O “eu” está intimamente ligado à missão, como cooperador, participante e discí-pulo incansável, naquela que é a obra continuada de Deus, na “ideia urgente de que somos cooperadores de Deus”. (ZWETSCH, 2008. p. 89).
Afirmar não ter parte na missão, é afirmar não ter parte no propósito de Deus. Declarar não ter nada a ver com isso é, afirmar um testemunho negativo do próprio Cristo. Pois, em Cristo, a “igreja deverá dar testemunho de ser uma comunidade feliz, rica da alegria que nasce da fé. Feliz porque experimenta e anuncia a ternura do Senhor e vive a esperança, que não conhece resignação, indiferença, divisão”. (FORTE, 2018. p. 41-42).
Existe um abismo entre alguém comprometido com a obra missionária e estar envolvido com ela. À primeira vista parecem palavras que possuem al-guma similitude, porém seus significados são totalmente opostos. Uma pessoa comprometida é, segundo Cabral,
alguém disposto a assumir um compromisso. Estar comprometido é fazer não apenas a sua parte, mas contribuir para que toda a equipe tenha um resultado positivo. É ser participativo. Ir além das expec-tativas do seu chefe. Um profissional que é comprometido e alta-mente engajado no que se propõe a fazer e sente-se motivado para que possa “mergulhar” no trabalho, se entregando de corpo e alma, e assim, apresenta resultados mais do que esperados. (CABRAL s/d. Blog Leme consultoria)
Apesar da referência do autor estar mais relacionada ao desenvolvimento profissional, seu conceito de compromisso faz caminho com aquilo que o discípulo deve fazer.
Por um caminho diferente anda o envolvido! Ele é alguém que aparenta fazer parte do grupo de pessoas que entendeu a sua missão; porém é alguém que quando sufocado pelas pressões do seu tempo e da sociedade, que muda o tempo todo, mostra realmente quem é. Não basta estar apenas envolvido, é necessário sim, estar comprometido com a obra.
O comprometimento é central na proclamação do Evangelho de Cristo, logo, um discípulo comprometido é chamado a continuar a obra de Deus. As boas notícias apresentam uma salvação que propõe uma libertação de toda forma de opressão ao homem, para que se sinta livre para conhecer a Deus.
A proclamação, a partir do Vaticano II, se tornou cada vez mais holística, por meio das várias descrições de missão, assim, a missão pensada de modo dialogal, vai além da postura unidirecional que posicionava a Igreja como a úni-ca detentora da verdade a ser proclamada a todos os povos. Conforme o decre-to Ad Gentes, sobre a atividade missionária da igreja, “tudo quando de bom se encontra semeado no íntimo dos homens ou nos próprios ritos e culturas dos povos. Não apenas permanece, mas é sanado, elevado e consumado para a glória de Deus... Familiarizem-se com suas tradições nacionais e religiosas. Com alegria e respeito descubram as sementes do Verbo aí ocultas” (Cf. Ad Gentes 9b e 11b). (RESTORI, 2015. p. 13).
Descobrir as sementes do Verbo Encarnado é estar comprometido sim com a missão de evangelizar, profetizar para todas as nações, culturas, raças, como uma tarefa encarnatória dos seguidores de Jesus em cada tempo e em cada lugar na história como uma verdadeira igreja missionária.
A igreja de Jesus é a igreja da comunhão dos discípulos que, tornados filhos, se comprometem em reproduzir o amor em palavras e atos. A proclama-ção do Evangelho de Cristo é a proclamação da “notícia alegre”, o Evangelho. Ele tem poder para mudar situações e vidas, numa época, onde as pessoas estão à procura de alguma esperança.
A missão de Deus passa por uma igreja em missão. Tal missão é apontar
para a esperança que é Cristo, “esperança que não desaponta, que é embasada na experiência do amor trinitário, derramado em todos os corações, por meio do Espírito Santo que foi dado” (cf. Rm 5,5). A esperança tem nome, e ela aten-de por Jesus, que por intermédio da comunhão dos santos, deve penetrar nas contradições da história e tornar-se um objeto de fé. (FORTE, 2018, p. 143).
A igreja foi e continua sendo chamada para ser a igreja de Jesus, que é você, sou eu, somos nós. Logo, a atuação do discípulo na atual sociedade exige mudanças no modo de pensar de todos. Estar atento aos sinais dos tempos, a ponto de mudar o olhar para uma realidade dura e muitas vezes insensível, faz o desafio tomar grandes proporções, todavia propõe um caminho para uma igreja em saída.
Segundo França Miranda, estamos habituados a certas práticas, convic-ções, representações da fé cristã que nos foram legadas, que nos proporcionam estabilidade e segurança e que não queremos abandonar. O autor acrescenta que se “o núcleo de nossa fé é a caridade, o cuidado com o outro, a sensibili-dade pelos mais sofridos, então absolutamente tudo devem estar submetidos, pois deste núcleo recebem seu sentido e sua razão de ser.
Cada ato de amor fraterno significa o Reino de Deus acontecendo, a vontade de Deus sendo realizada, o mundo se tornando mais humano e cris-tão”; [...] hoje evangelizamos de modo mais eficaz através do nosso testemu-nho de vida. (MIRANDA, 2014, p. 545).
Assim, a missão da igreja se une ao chamado pessoal, pois, se existe uma “Missio Dei”, existe uma missão de cada um, onde a vida do discípulo é desafiada a viver em comunhão primeiramente com Deus, e com os demais irmãos, onde o seu caráter é desenvolvido à medida que se assemelha ao seu mestre. Um bom discípulo será capaz de fazer mais seguidores, pois seu com-promisso com a ordenança de Jesus é seu estilo de vida.
Portanto, a missão do coração de Deus, é o ministério de todos os cren-tes e a missão de cada um. Não existe a possibilidade de abster-se dessa res-ponsabilidade, pois, o cristão evidencia no decorrer da sua história, a eterna misericórdia de Deus.
O compromisso é como afirma Francisco: “um convite para todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades. (EG 33). Assim, a missão sempre será de Deus, mas será minha e sua também.
BLAUW, Johanes. A natureza missionária da igreja: exame da teologia bíblica da missão. Tradução de Jovelino Pereira Ramos. São Paulo: ASTE, 2012. 178 p.
FORTE, Bruno. A transmissão da fé. Trad. Silva Debetto. São Paulo: Ediçoes Loyola, 2018, 245 p.
GOHEEN, Michael W. A missão da igreja hoje – A Bíblia, a história e as questões contemporâneas. Trad. Valéria L. D. Fernandes. Viçosa: Ultimato, 2019, 392 p.
LATOURELLE, Rene. Teologia de la Revelación - Verdad y Imagen. 7ª Ed. 1989, Salamanca. p. 553.
PADILLA, C. René; COUTO, Péricles. Igreja: agente de transformação. Trad. Albana Neves e Dilmar Devantier. Curitiba: Missão Aliança, 2011.280 p.
RESTORI, Memore. A missão no Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2015. p. STEUERNAGEL, V.; BARBOSA, R. Nova liderança: paradigmas de liderança em tempos de crise. Curitiba: Esperança, 2017, 186. p.
STOTT, John. A missão cristã no mundo moderno. Trad. Meire Portes Santos. Viçosa: Ultimato, 2010. 160 p.
ZWETSCH, Roberto. E. Missão com com-paixão - por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2008. 432 p.
CABRAL, Eliane. Blog Leme consultoria, s/d. Você está comprometido ou envolvido com sua empresa? Disponível em: https://www.lemeconsultoria.com.br/ noticias/voce-esta-comprometido-ou-envolvido-com-sua-empresa/. Acesso em: 20 out. 2021.
MIRANDA, Mário de França. Evangelizar ou humanizar? Revista Eclesiástica Brasileira, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.29386/reb.v74i295.477. Acesso em 20 out. 2021.
PAPA FRANCISCO. Site do Vaticano, 2013. Evangelii Gaudium: Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html. Acesso em: 17 out. 2021.
PAPA FRANCISCO. Site do Vaticano, 2020. Carta encíclica Fratelli Tutti – Sobre a fraternidade e a amizade social. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html. São Paulo, v 15, n. 28, p. 41- 54, jul/dez 2021, ISSN 2177-952X RevEleTeo - PUC - SP 54 Acesso em: 20 out. 2021.
PAPA JOÃO PAULO II. Site do Vaticano, 1992. Abertura dos trabalhos da IV Conferência Geral do episcopado Latino-Americano. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1992/october/documents/hf_jp-ii_ spe_19921012_iv-conferencia-latinoamerica.html. Acesso em: 14 out. 2021.
PAPA JOÃO PAULO II. Site do Vaticano, 1988. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christifideles Laici – Sobre Vocação e Missão dos leigos na igreja e no mundo. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_30121988_christifideles-laici.html. Acesso em: 17 out. 2021.
SASSATELLI, Marcos. Escuta dos sinais dos Tempos. Revista IHU ONLINE UNISINUS, 2019. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/590446-escuta-dos-sinais-dos-tempos. Acesso em: 14 out. 2021.
VATICANO. Site do Vaticano, 1946. Acta Apostolicae Sedis. Disponível em: https:// www.vatican.va/archive/aas/documents/AAS-38-1946-ocr.pdf. Acesso em: 15 out. 2021.
VATICANO. Site do Vaticano, 1965. Decreto Ad Gentes- Sobre a atividade missionária da Igreja. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651207_ad-gentes_po.html. Acesso em: 15 out. 2021.
VATICANO. Site do Vaticano, 1965. Constituição Pastoral Gaudim Et Spes- Sobre a igreja no mundo atual. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: 13 out. 2021.