Maria da Penha da Cruz*
*Mestranda em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato: pastoral.pequenasmissionarias@gmail.com
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Resumo:
O presente artigo tratará do discipulado da Virgem Nazarena à luz da perícope da Anunciação narrada em Lc 1, 26-38. Sendo assim, esta perícope constitui o objeto material deste estudo; por sua vez, o objeto formal é o campo da Teologia bíblica. Essa seleção de versículos coloca o leitor diante de Maria de Nazaré, quando chamada a um seguimento sem reservas, bem como diante do desfecho feliz dessa mútua entrega: a de Deus a Maria, a de Maria a Deus. Pretende-se, portanto, com este trabalho, compreender como o Senhor atua no discípulo, que se compromete, de forma consciente e responsável, com o projeto salvífico. Para tanto, apropriamo-nos da leitura de Lc 1,26-38, com a qual se pode concluir que a Palavra de Deus dirigida a Maria constitui um chamado pessoal específico, que a conforma em um modelo de discípula para todo aquele que for alcançado pelo chamado divino.
Palavras chave: Evangelho de Lucas; Virgem Nazarena; Espírito Santo; Discipulado
Abstract
The aim of this article is to analyze the discipleship of the Virgin Nazarene in the light of the pericope of the narrative annunciation made and Lk 1.26-38. Thus, this pericope constitutes the material object of this study; in turn, the formal object is the field of biblical theology. This selection of verses places the reader in front of Mary of Nazareth, when called to an unreserved follow-up, as well as to the outcome – happy – of this mutual surrender: that of God to Mary, that of Mary to God. It is intended, therefore, with this work, to understand how the Lord acts in the disciple, who commits himself consciously and responsibly to the saving project. To this end, we appropriate of Lk 1.26-38 reading, with which it can be concluded that the Word of God addressed to Mary constitutes a specific personal calling, which conforms it into a model of disciple for all who is reached by the divine call.
Keywords: Gospel of Luke: Nazarene Virgin: Holy Spirit: Discipleship
Nos dias de hoje, em especial, Maria tem sido lida como referência de discipulado. Assim, qualquer reflexão sobre o tema recai, quase de imediato, sobre sua pessoa. Ela é chamada discípula-modelo, a mais perfeita, e é vista como a guia e a mestra no discipulado. Ela seguiu seu Filho, Jesus, com fé qualificada e crescente. Viveu em profunda concordância com o querer de Deus, que se tornou seu, por meio do “sim”.
A análise da perícope almeja destacar as razões que fizeram de Maria de Nazaré uma discípula perfeita. Assim como confirmar que ela se impregna com os qualificativos que descrevem um discípulo em perfeição. Por isso, é modelo acabado para os discípulos de todos os tempos.
A parte fundamental deste artigo é a análise do discipulado da Virgem Nazarena, partindo da narrativa da Anunciação (Lc 1, 26-38), pois essa perícope aclara quais qualificativos são requeridos para um verdadeiro seguimento do Cristo ontem, hoje e sempre (Hb13,8). Compreende-se que a perícope em análise ao revelar seus convites, silêncios, perguntas e explicações, oferece elementos suficientes para sustentar e aclarar esse elemento de interesse, a saber, o discipulado mariano.
No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré,uma virgem, desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da Virgem era Maria. Entrando onde ela estava disse-lhe: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo”! Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O anjo, porém, acrescentou: “Não temas, Maria! Encontraste graça diante de Deus. “Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor lhe dará o trono de Davi, seu pai; Ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim”. Maria, porém, disse ao anjo: “Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?” O anjo lhe respondeu: “O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra. Por isso, o santo que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus. Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível”. Disse, então, Maria: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” E o anjo a deixou”. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2000).
O anúncio a Maria aconteceu, desde a perspectiva da narrativa lucana, num contexto de espera intensa pela vinda daquele que seria reconhecido como o salvador; ou seja, o “messias”. Nesse contexto de aguardo e promessa, pode-se imaginar que fosse o sonho de qualquer jovem mulher israelita, ser a mãe do messias. No entanto, mesmo diante dessa possível sugestionabilidade, Maria de Nazaré, jovem e sensata, quis checar os seus sentidos diante da mensagem do anjo.
Διεταράχθη e διελογίζετο (cf. Lc 1, 29). São esses os termos que o autor do terceiro evangelho escolhe para descrever a experiência mariana diante da intervenção angelical. Os dois termos são antecedidos por um mesmo prefixo intensificador (δια), que indica “através, até o limite” e, assim, de forma apropriada, “extremamente, marcadamente, severamente, intensamente, profundamente”. Vê-se, dessa maneira, que a jovem de Nazaré se encontrava “profundamente”, “intensamente” ταράσσω, isto é, “problema” ou “agitação”. Essa condição levou a outra situação, também, intensificada, a saber, λογίζομαι, ou seja, ir e voltar, mentalmente, ao avaliar uma situação. Esse termo, enfim, considera o dado de estar revolvendo algo internamente enquanto se reúnem diferentes razões para algo.
Desse modo, “ficou perturbada” e “começou a pensar” revelam pouco do que era o estado que o autor do texto almejava transmitir ao optar por aqueles dois termos. Essa reflexão é válida, porquanto evidencia que a fé de Maria é uma fé dinâmica que se nutre da oração, da confiança e da entrega a Deus. A posição mariana, nesse texto, resulta de uma conformação – no melhor sentido do termo – diante de desafios. A fé de Maria, então, não é uma receita pronta feita de facilidades.
O anúncio do anjo a Maria – o texto, comumente, intitulado de “anunciação” – vem depois do anúncio do anjo a Zacarias. Nos dois casos, anunciam-se nascimentos. Vale compará-los, a fim de perceber suas semelhanças e diferenças. Descrevendo, portanto, a visita do anjo a Maria e a Isabel, o autor lucano evoca as visitas de Deus a várias mulheres estéreis do Antigo Testamento: Sara, mãe de Isaque (Gn 18,9-15), Ana, mãe de Samuel (ISm 1,9-18), a mãe de Sansão (Jz 13,2-5). A todas anunciou-se o nascimento de um filho com missão importante na realização do plano de Deus. Nesse texto, o mesmo anúncio é feito a Isabel (esposa de Zacarias) e a Maria.
E Orofino (2014) afirma que Maria, no entanto, não é estéril (cf. Lc 1, 27). Ela é virgem (παρθένος). Encontra-se, nesse dado, uma primeira particularidade da narrativa lucana acerca da figura da jovem de Nazaré. Essa imagem, por sua vez, contrasta, no próprio texto, com a descrição acerca de Isabel, que é (re) apresentada – de conhecimento público – como estéril (στεῖρος), isto é, “rígido, não natural, incapaz de conceber”.
A Palavra de Deus, assim, chegou a Maria não por meio de um texto, mas através de uma experiência profunda de Deus, manifestada na visita do anjo. Foi graças à ruminação da Palavra de Deus, graças ao seu itinerário místico, que ela foi capaz de perceber a Palavra viva de Deus na visita do anjo e obedecê-la.
O autor lucano, apresenta, no capítulo 11 de seu evangelho, Jesus de Nazaré, respondendo a interpelação de uma mulher, no meio do aglomerado de pessoas. Ela havia abençoado o ventre e os seios, dos quais Jesus havia sido gerado e alimentado. Invariavelmente, somos levados a considerar a jovem de Nazaré, desde essa interpelação. A resposta do Cristo, contudo, soa, à primeira vista desconcertante, porquanto ele traz a fala da mulher a uma conclusão, afirmando que, de fato, são abençoados “aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põe em prática” (cf. Lc 11, 28).
Em primeiro, seria possível reconhecer uma ruptura, por parte de Jesus, em relação à referência à sua mãe. No entanto, pode-se compreender, tomando a perspectiva das palavras do Nazareno se referem, fundamentalmente, a Maria, a primeira discípula do Senhor, antes de fazer alusão a quaisquer outros.
Maria, isso posto, configura-se como modelo de acolhida e vivência do Verbo - seja esse conceito tomado na sua percepção de registro do dito de Deus, também como o Filho. Emerge, então, a questão: quando Maria encontrou, de forma decisiva, a Palavra de Deus?
Pode-se buscar responder apontando que a partir do acontecimento da Anunciação, nessa perspectiva teológico-literária lucana, Maria se torna modelo para todo encontro pessoal com a Palavra de Deus; porquanto, ela a acolhe, medita nela, torna-a parte do seu interior e, ainda, faz dessa Palavra parâmetro para o seu viver.
Contemplar, desse modo, o exemplo de Maria no momento da Anunciação, no momento preciso, em que ela é interpelada pela Palavra de Deus, afiança que se venha a saber quais são as disposições interiores necessárias para se tornar um discípulo de Jesus.
Se naquela hora decisiva para a humanidade, Gabriel aparece como o embaixador de Deus, Maria – por eleição divina – pode ser alçada à condição de representante para a humanidade. Essa mulher simples acolheu a palavra interpeladora de Deus, transformando a saudação do anjo num momento de mútua entrega: de Deus, por um lado, que se deu a Maria, por meio da graça; e, por outro, de Maria, que se sabendo cheia de graça, rendeu-se a ela, respondendo “sim” à singular dádiva de ser a mãe do Messias. Paredes comenta a partir dessa noção da “Anunciação” como momento de encontro, que em Maria, então, deve-se reconhecer.
A primeira comunidade cristã, autêntico resto de Israel, filha de Sião, quem se sente saudada por Gabriel em Maria. Ela representa corporativamente o novo povo de Deus. A comunidade de Lucas se vê tipificada nela. A alegria que o anjo evoca em Maria é a alegria da comunidade que assiste o cumprimento das promessas de Deus (PAREDES, 1997, p. 60.)
Porquê da mesma como a comunidade cristã foi escolhida para participar no curso da história da salvação, através do Cristo, assim também a Virgem Nazarena foi a primícia dos agraciados. Isso dito, com Rita Romio (2014), pode-se, seguramente, afirmar que Maria de Nazaré não se intimidou diante da responsabilidade lhe conferida. Ela assumiu ser a mãe daquele que se chamaria “Jesus”, mesmo sabendo que teria a sua ideação pessoal (re)configurada. Por meio da fé, acolheu essa missão, arriscou a própria vida, rompeu barreiras, abriu-se à alteridade.
Outras perguntas que se devem enfrentar diante desse modo lucano de registar esse encontro entre Maria e a intervenção da Palavra divina são: qual a razão dessa marca temporal tão precisa no início da perícope? qual a razão da intervenção angelical?
O texto do terceiro evangelho registra “Ἐν δὲ τῷ μηνὶ τῷ ἕκτῳ” (Lc 1, 26ª), isto é, “no sexto mês”. A presença desse número específico pode, sim, apenas estabelecer uma datação em relação ao evento com Isabel, que seria retomado ao final dessa perícope. Ainda assim, não se pode deixar de buscar estabelecer um paralelo com a narrativa da criação, em Gênesis, na qual se pode ler que
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra. (...) E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. E foi a tarde e a manhã, o dia sexto (Gn 1, 26,31).
O sexto dia, então, é o momento privilegiado da criação do humano. No marco textual de Gênesis, por um lado, vê-se formado o primeiro humano. Por outro lado, o texto lucano, ao registrar o evento da concepção do Filho de Deus, e o fazendo no sexto mês, reveste esse evento de significado simbólico e, também, confere a ele um status de grande relevância, para a própria compreensão da humanidade. Por isso, pode-se compreender a opção de uma tradução desse trecho do versículo lucano, na qual se lê “quando chegou à plenitude dos tempos” (Gl 4,4). O tradutor opta por retirar o marco numérico e evidenciar o valor simbólico desse tempo.
דֹ֑ אְ מ וב֖ ֹט .Desse modo, o texto vétero-testamentário caracteriza a gênese do sexto dia. Tudo “era muito bom” (Gn 1, 31b). Assim, da mesma forma, algo deve ser “muito bom” no contexto do paralelo lucano. Assim, é que se pode encontrar com a expressão “cheia de graça”.
Κεχαριτωμένη (cf. Lc 1, 28) é uma expressão nova e estranha e aparece como um vocativo, no lugar do próprio nome de Maria. Uma análise superficial do texto – lembrando das considerações acerca do espanto mariano – poderia indicar que foi, justamente, essa forma de tratamento que tenha perturbado a Virgem de Nazaré.
Qual a razão desse sobressalto? Pois, bem, Garcia Paredes (1997) orienta nossa apropriação desse conceito, revelando que ele é capaz de definir Maria diante de Deus.
Por intermédio de seu mensageiro, Deus não a chama “Maria”, mas “agraciada, cheia de graça”, encantadora, (Kecharitomène). Empregado em lugar do nome próprio da Virgem, este vocativo define quem é Maria para Deus, aquela que foi e continua sendo objeto a graça benevolente e encantadora de Deus. O passado, o presente e o futuro de Maria são abrangidos unitariamente neste nome de graça que Deus lhe impõe. A ação benevolente e graciosa de Deus cria em Maria um estado de permanente reflexo dessa graça (PAREDES, 1997, p. 61).
Afirmou-se, anteriormente, que essa expressão é “nova e estranha”. Podese tomar tal posição, porquanto, esse termo, oriundo do verbo χαριτόω, que pode exprimir as noções de “favorecer” e “conceder livremente favor ou graça” aparecem duas vezes em todo o contexto neotestametário. Primeiramente, encontra-se esse termo no capítulo inicial da Carta aos Efésios (cf. Ef 1, 6). A citação lucana, depois, revela o segundo uso desse termo.
A tradição crítica acerca da epístola aos Efésios é bastante conturbada: opõem-se aqueles que afirmam a autoria – direta ou indireta – paulina (e.g. Hoehner, Thielman, Cerfaux e Murphy-O’Connor), contra aqueles que a negam (e.g. Bultmann e Schweizer). Há ainda os que preferem manter-se em silêncio sobre o assunto, pois reconhecem a falta de evidências conclusivas (e.g. Cadbury e McNeile).
Levando, portanto, em conta essa variância quanto a autoria da carta, chega-se a um intervalo temporário para a composição que se estende desde os meados dos anos 60 EC até, aproximadamente, a década de 80 EC.
Considerando que aceitamos que a escrita do terceiro evangelho situe entre os anos de 80 e 90 EC, pode-se, desse modo, reconhecer uma possível influência do uso do conceito, na Epístola aos Efésios, sobre o texto lucano. Tem-se, isso posto, uma chave de compreensão desse conceito.
A citação em Efésios, revela o uso desse verbo atrelado a “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (cf. Ef 1, 3). É ele, quem coloca esse verbo em ação, no sexto versículo: ἐχαρίτωσεν, isto é, “sua graça, a qual nos deu gratuitamente” (cf. Ef 1, 6). Vê-se, com esse termo, um verbo conjugado no aoristo ativo.
Esse tempo verbal é de difícil compreensão para muitas das línguas modernas, pois não encontra um paralelo preciso nelas. Swetnam (2002) explica que o aoristo almeja comunicar a ação como num curto instante, sem distinguir passos ou detalhes do seu progresso. Ou seja, esse tempo pretende relatar aquilo que acontece em um tempo passado indefinido, indeterminado ou, ainda, sem fixação do tempo. Superficialmente, as traduções para a língua portuguesa optam por verter esse tempo para o “gerúndio + particípio passado” ou, também, para o pretérito perfeito.
No caso do texto lucano, por sua vez, o termo aparece como um verbo no particípio passado, assumindo função de um vocativo. Mais uma vez, depara-se com uma estrutura bastante complexa da língua grega. Albertim (2013), lançando luz sobre essa forma verbal, explica que o particípio perfeito “dentro da noção de ação acabada, (...) traduz a noção de estado ou de condição do sujeito” que rege a ação. Desse modo, outra vez, o sujeito da ação é Deus, que nesse contexto, livremente concede seu favor (de forma plena) à Virgem de Nazaré.
Dessa feita, com a plenitude da graça, Maria, sobressai, de modo peculiar, no contexto da comunidade de fé cristã. Esse vocativo – “cheia de graça/agraciada” – revela a virgem como convocada, justificada e mantida por meio da graça.
Maria se torna, por isso, sinal permanente da graça de Deus entre os homens. Nela se manifesta, de modo exemplar, a benevolência e o favor divino, que se conserva constantemente sobre os adeptos da mensagem de Jesus e pode acompanhá-los em todas as suas atividades.
Dizendo que o Senhor é com ela, o mensageiro coloca Maria entre os libertadores e protetores de Israel. A mulher – comumente, humilhada e desprezada – é, com essa fala, colocada no cimo do plano de Deus e, também, destacada como um personagem que levaria a bom termo uma grande missão, para a qual conta com a presença e apoio incondicional de Deus (cf. PAREDES, 1997, p. 62).
A saudação angélica (Lc 1, 28b) – Χαῖρε κεχαριτωμένη ὁ Κύριος μετὰ σοῦ – é, dessa forma, nova. Anteriormente, não havia sido “endereçada a nenhum ser. Estava reservada para Maria. Ela – e ninguém – havia visto essa fórmula sendo dirigida a alguém. Por isso, sua perturbação. O anjo lhe acudiu, portanto, mandando-a não temer e explicando-lhe que havia achado graça diante de Deus (cf. AUTRAN, 1998, p.158).
O encontro com o “mistério fascinante e tremendo” fez com que Maria se sobressaltasse emocionalmente. O que motivou sua reação foram as palavras, que evidenciavam a ação favorável de Deus. Maria reagiu pessoalmente diante da irrupção de Deus em sua vida e se pôs a dialogar consigo buscando uma compreensão mais profunda daquele movimento voluntário de Deus sobre ela, uma vez que foi atingida pela maravilhosa presença do mistério de Deus nela (cf. PAREDES, 2007, p. 62, 63).
“Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus” (Lc 1, 30). Essa é a resposta do mensageiro angélico ao sobressalto de Maria. Faz-se interessante notar, nesse contexto, que há, virtualmente, nenhuma referência da localização de onde o diálogo estava ocorrendo, a não ser a cidade de Nazaré.
O anjo fora enviado, como faz conhecer o texto ao afirmar que “no sexto mês, foi o anjo Gabriel enviado por Deus” (Lc 1, 26). ἀπεστάλη – essa é a forma como o verbo aparece no texto em grego. É válido notar que, uma vez mais, nos deparamos com uma conjugação verbal no aoristo. No entanto, não estamos, nesse caso, diante de uma ação ocorrida em um tempo indeterminado, pois temos uma marcação temporal evidente no início do versículo, a saber, “no sexto mês”. Sendo assim, o que evidencia essa escolha de conjugação?
Swetnam (2002) afirma que esse tempo verbal além de exprimir um passado narrativo, ou um momento indeterminado, configura-se, também, como ferramenta para depositar a atenção narrativa sobre um momento particular, isto é, lançando luz sobre uma ação completa.
Deus, contudo, não o envia a um lugar sagrado, porém a um lugar profano, donde não havia saído nenhum profeta e donde se dizia que não podia sair nada de bom (cf. Jo 1, 46). O anúncio angélico, aquele que marcaria o início da etapa definitiva da história (cf. Gl 4,4-5), “acontece na marginalização e na pobreza política e cultural, onde o homem não pode vangloriar-se de suas obras” (cf. PAREDES, 1997, p. 58).
Maria – a destinatária da mensagem a ser transmitida por Gabriel – é-nos revelada como uma jovem mulher da Galiléia, região que era tida pelos judeus da época como mestiça e pouco ortodoxa, desprezada pelos moradores da capital. Além disso, Nazaré, aparece como um vilarejo obscuro, desconhecido quase totalmente nos registros e profecias vétero-testamentários, no Talmud e para o historiador Flávio Josefo (cf. BOFF, 2004, p. 47).
De mais a mais, Maria nos é apesentada como uma Virgem. O autor lucano opta pelo termo παρθένον (cf Lc 1, 27), isto é, uma mulher além da puberdade, mas que nunca teve relações sexuais e que ainda não está casada.
Sobre essa peculiaridade da caracterização mariológica, Paredes (1997) clarifica que para “sensibilidade hebreia, torna-se ainda mais estranho que o grande mensageiro escatológico de Deus, seja enviado a uma mulher virgem, a uma mulher na sua impotência” (PAREDES, 1997, p. 58).
O mesmo verso 27, no capítulo 1, do terceiro evangelho, prossegue narrando que “o nome da Virgem era Maria”. É importante lembrar que, entre os hebreus, os nomes próprios são indicativos da missão de seus portadores. Posto isto, deve-se buscar compreender o que “Μαρία” pode revelar.
Sabe-se que Maria - a forma latina dos nomes gregos Μαριαμ (Mariam) e Μαρία (Maria) - derivou do hebraico םָיְ רִ מ) Miryam), o nome da irmã de Moisés, no Pentateuco. O seu significado, entretanto, não é conhecido com certeza, mas existem várias possibilidades, as quais tendem a incluir “mar de amargura” e “rebelião”. No entanto, provavelmente era, em origem, um nome egípcio, derivado, em parte, de mry “amado” e, também, de mr “amor”.
Maria, essa jovem nazarena, parece, de fato, ter sido amada sem igual e, também, arrancada do curso normal da História e de uma existência ordinária para ser transformada em protagonista da “aventura” da salvação. Sabendo, pelo Arcanjo, da elevada missão que lhe fora confiada, compreendeu que lhe era oferecida uma muito alta dignidade: vir a ser a mãe do Filho de Deus. A convite divino, com assegura Jean Galot “ela colocou-se a serviço do plano salvífico com esmero de serva e toda a afeição de mãe. Desde aquele “sim”, em Nazaré, a tarefa de servir a Deus, para a Virgem Maria, ganhara uma amplitude e solicitude incomparavelmente agigantadas pelo amor filial e maternal” (GALOT, 2014, p. 34).
Podemos, então, admitir com Murad que o favor de Deus lhe pertence a Maria a partir de dentro. Ela foi envolvida, enriquecida e recriada em gratuidade. Deus fixou-se, amorosamente, nela, colocando-a, pela imensidade de seu favor, ao lado das grandes figuras do Antigo Testamento e a desempenhar um papel ativo e insubstituível na história de seu povo (cf. MURAD, 1996, p. 97,98).
Assim como o nome de Maria, o filho por nascer já tem, também, seu nome determinado pelo mensageiro angelical. O texto lucano coloca em suas palavras: “Tu lhe porás o nome de Jesus (Ἰησοῦς)” (Lc 1, 31)
Ἰησοῦς é a forma grega do nome aramaico ַועּשֵׁי) Yeshu’a). Yeshu’a é, por sua vez, uma contração de Yehoshu’a, isto é, Josué, que significa “YAHWEH é salvação”. No Antigo Testamento, Josué (cujo nome original era Hoshea) foi um companheiro de Moisés e, também, quem liderou a conquista de Canaã, sucedendo Moisés.
Maria foi, desse modo, agraciada por Deus com a maternidade messiânica e, recebendo do anjo a incumbência de dar nome ao Filho, ela assume, contra os costumes da época, uma responsabilidade que era tarefa paterna. Vede, quanto a isso, a controvérsia no processo de nomeação do de João, o batista, cujo nascimento também fora fruto de uma intervenção divina, em Lc 1, 57-63.
Dessa forma, pode-se notar que no processo da anunciação angélica aqueles que acompanham a narrativa lucana são defrontados com muito mais do que a simples apresentação de um nascimento extraordinário.
Apresentam-se, nesse momento, a Maria, referências explícitas de que seu filho viria a ser o Messias-rei, segundo 2Sm 7 e, por isso, participaria da grandeza de Deus e, por ele próprio, seria chamado de filho.
Nesse sentido, a experiência da Anunciação revela o ponto culminante de adesão da figura de Maria a Deus e, por conta disso, toda a transformação da expectativa salvífica para a História.
“Como se fará isso, se não conheço homem”? (Lc 1, 34) Depois da apresentação do anjo e de sua exposição acerca da concepção daquele que viria a ser o Filho do Altíssimo (cf. Lc 1, 32), a posição de Maria é questionar o mensageiro angelical.
Interessante notar, contudo, que a pergunta da Virgem de Nazaré não indaga pelo porquê, ou seja, seu interesse não repousa sobre a razão que sustenta esses possíveis acontecimentos; mas, sim, está buscando compreender o processo através do qual isso pode dar-se. O “de qual modo” interrogativo da Virgem é um sinal indicativo de uma personalidade reflexiva e atenta. Maria não se mostra uma jovem ingênua. Daí a sua pergunta repleta de franqueza.
De certa maneira, pode-se entender que com esse questionamento já nos encontramos diante de um assentimento mariano, pois como acentua Paredes, a Virgem reconhece que Deus almeja realizar, através do intermédio dela, uma maternidade maravilhosa; mas sua atitude de disponibilidade e responsabilidade levam-na a perguntar pelo “como”. Porquanto para que Deus possa engendrar seu plano, a Virgem dá-se conta que nela própria não se encontram a energia, o vigor e a substância suficientes para que isso venha a se concretizar (cf. PAREDES, 1997 p. 64).
Maria pergunta a Deus – por meio de Gabriel – não para procurar desviá-lo de seu intento, nem para lhe impor obstáculos, mas quer apresentar-se diante dele como ela é, na realidade: uma pobre mulher e, além disso, uma virgem.
Autran (1998, p. 158) considera essa cena lucana a partir do contexto constitucional de uma experiência teofânica. Buscando precisar a apreensão desse autor recorremos à contribuição de Eliade (1987), quem concebe que toda teofania é, fundamentalmente, uma hierofania, isto é, uma manifestação do sagrado. A particularidade da teofania encontra-se, na medida em que, essa amostra do sagrado dá-se através da revelação da presença de um ser divino.
Para além dessas distinções conceituais, apropriámo-nos da elaboração de Eliade (1987), visto que, para além das particularidades da experiência hierofânica, esse autor aponta que esses eventos “afetam diretamente a situação da existência humana, a condição pela qual os seres humanos compreendem sua própria natureza e abarcam seu destino” (cf. ELIADE, 1987, p. 315).
As hierofanias, então, podem transbordar em uma experiência epifânica, ou seja, uma experiência repentina e impressionante de percepção, pela qual um aclaramento permite que uma situação seja compreendida a partir de uma perspectiva nova ou talvez mais profunda.
Para Autran as emoções – que o texto do terceiro evangelho permitem entrever em Maria – não parecem ser, portanto, fatos psicológicos, tampouco temor de natureza moral. Todo o relato da Anunciação, através do registro lucano, apresenta a experiência mariana como imagem de uma vivência perfeita por parte do crente. Assegurando que a atenção da Virgem de Nazaré, por conseguinte, aparece toda voltada para aquilo que as palavras do Anjo representam, isto é, o anúncio de algo que vem da parte de Deus (cf. AUTRAN, 1998, p. 158).
É ainda Autran (1997) que nos assegura que a perturbação de Maria é, nesse caso, aquela de quem é convidado a interpretar o mundo e seus acontecimentos de maneira diferente da que sempre o fez. E aquilo que Gabriel revela parece estar longe do que é facilmente compreensível: “o Espírito Santo virá sobre ti e o Poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”. (cf. Lc 1, 35). Este é o vértice do relato da intervenção do Espírito na geração do Messias. No entanto, muitas das traduções em língua portuguesa parecem não fazer justiça àquilo que a opção literária do texto lucano nos evidência.
O termo – que foi nessa perícope traduzido por “cobrir com a [sua] sombra” – é um daqueles pouco, frequentemente, utilizados pelos autores neotestamentários, dessa forma pode-se compreender o que a opção por esse termo deseja transmitir. O verbo grego ἐπισκιάζω ocorre apenas cinco vezes em todo o Novo Testamento, sendo que dessas é utilizado três vezes no registro de um mesmo evento nos evangelhos sinóticos, a saber, o relato da “Transfiguração”.
Em Mc 9, 7; em Mt 17, 5; e, no próprio texto lucano (9, 34), defrontamo-nos com a presença desse verbo designando o resultado da ação da “nuvem” sobre o monte, onde estavam Jesus e os discípulos que ele escolhera. Vale lembrar que esses textos concordam que foi da própria nuvem que saiu a voz, que autorizava Jesus. Interessante notar, também, que a opção vocabular para traduzir esse uso do termo nesse contexto narrativo não é, em todas as vezes, “cobrir com sombra”; mas, sim, “envolver”.
O quarto uso do verbo ἐπισκιάζω está no segundo texto do complexo LucasAtos – 5, 15 – e registra o seguinte: “a ponto de transportarem os enfermos para as ruas e os porém em leitos e macas, para que ao passar Pedro, ao menos sua sombra se projetasse sobre alguns deles”.
Nesse caso, a tradução optou por uma aproximação mais etimológica do termo, fazendo com que nos apropriemos do seu sentido mais próprio. Dessa forma, o relato da Anunciação, talvez, viesse a revelar mais plenamente seu significado se a opção de tradução não viesse de “cobrir”, mas, sim, de “ensombrar” ou “eclipsar”. Compreendendo, todavia, que algo permanece como resultado natural, isto é o plano ou deliberação de Deus para as circunstâncias históricas, sua βουλή.
Diante disso, tem-se que perceber que a apresentação de Gabriel evoca a nuvem misteriosa, que ensombreando, transforma o real em morada de Deus. Eclipsar, portanto, a virgem com a sombra é meio para torná-la fecunda do Filho.
O Espírito Santo – com poder e sombra – transformaria Maria na casa de Deus. Ela viria a ser o novo tabernáculo do encontro, onde a humanidade pode entrar em comunhão com seu Deus (cf. BOFF, 2004, p. 51).
A resposta do anjo acerca da maternidade, portanto, indica como Deus se empenha e compromete com Maria para realizar seu desígnio – sua βουλή. Antecipa-se ao Pentecostes, como se, vindo sobre a Virgem de Nazaré, já estivesse irrompendo-se sobre a comunidade de fé. O Espírito Santo, como dínamo criador, para o qual não há impossível, indica nela uma nova criação (cf. PAREDES, 1997, p. 65).
Desde então, todos os pequenos episódios que constituiriam a trama da existência de Maria, viriam a ganhar um novo relevo. Ao som das palavras do anjo tudo ganhou uma explicação sobrenatural. De súbito, Maria de Nazaré foi colocada – e, também, colocou-se – no centro da História, para além do tempo e do espaço.
“Ele será santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1, 35). Diante dessa afirmação do mensageiro divino, pode-se questionar: que sabia a Virgem de Nazaré da identidade do Filho?
Ela poderia, por essas palavras, intuir de um modo geral e atemático, mas não de forma clara. Segundo a Constituição dogmática Lumen Gentium (58), Maria avançava em uma peregrinação de fé. Como toda comunidade dos féis, ela também caminhou da penumbra para a luz, em direção à verdade plena.
Segundo Paredes a potência divina, portanto, é que imediata e unicamente constitui Maria em autêntica mãe; por isso, o filho nascido viria a ser santo, isto é, pertencente ontologicamente ao divino e reconhecido com autêntico Filho de Deus (cf. Lc 1, 35: Υἱὸς Θεοῦ). O texto lucano, desse modo, patenteia Maria e Deus como empenhados na mesma maternidade. Deus como criador e a Virgem de Nazaré como criatura agraciada (cf. PAREDES, 1997, p. 66).
“A Deus nada é impossível” (Lc 1,37). Essa afirmação de Gabriel, tanto afirma a experiência de Isabel, quanto sustenta, em esperança, a perplexidade de Maria. A encarnação e a transposição da virgindade de Maria são portentos que se opõem, apenas, na esfera das possibilidades divinas são conciliáveis. Fora disso, são incompreensíveis.
Não se podem medir esses mistérios com os parâmetros das possibilidades humanas, desvendadas pela razão natural. A virgindade de Maria torna- -se espaço oferecido à fecundidade do Espírito Criador. “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Diante desse “espaço” de fecundidade, essa resposta, encontrada no versículo citado anteriormente, mostra-se prodigiosa e admirável. No entanto, isso está em concordância com a apresentação lucana da Virgem nazarena. No complexo Lucas-Atos, Maria é uma jovem mulher centrada. Ela ouve, é surpreendida, questiona (especialmente, o “como”), confia e assume as consequências de seus posicionamentos.
Maria de Nazaré, mostra-se, portanto, como uma mulher que diz “sim”, de modo livre e determinado. Sua fé foi ativa e obediente. O título de “serva”, que ela se deu, não marca uma condição social inferiorizada, mas revela uma posição ideológico-teológica. Tal posicionamento patenteia, sobretudo, uma disposição particular em direção daquele com quem se estabelece um vínculo. Com o fiat, Maria se mostra a primeira e mais perfeita discípula de Cristo, aquele que viria a nascer através dela.
Essa compreensão – importa ressaltar – depende de uma apreensão consciente do termo pelo autor lucano. Mais uma vez, pode-se questionar aquilo pelo que as traduções optam e, também, aquilo que o hábito popular consagra. “Serva” e “escrava” são, por certo, termos vinculados a conceitos densamente carregados de significação. Especialmente, no contexto, brasileiro – no qual estamos – visto que o Brasil foi o último país americano a proibir a escravidão.
O autor lucano, então, elege o termo δούλη. A princípio, essa palavra designa, sim, alguém que pertence a outro, portanto, sem nenhum direito de propriedade próprio. No entanto, ainda que os autores neotestamentários, especialmente, os autores evangélicos, façam uso desse conceito a partir de seu sentido mais primário, o uso do autor do terceiro evangelho, nesse caso particular, mimetiza, fundamentalmente, uma apropriação paulina do termo. Leve-se em consideração, para essa afirmação, a aproximação Lucas-Paulo já evidenciada anteriormente.
Tomemos, desse modo, três amostras retiradas da produção do epistolário paulino, a saber: Gálatas, 1Coríntios e Filipenses. Optamos por buscar exemplos nessas cartas, porquanto, encontram-se entre as mais antigas no corpus paulino – com produção estendendo-se entre os anos 53-55 EC – o que as posiciona entre duas e três décadas antes da escrita do terceiro evangelho (garantindo, assim, uma assimilação de seu uso terminológico e conteúdo teológico). Além do mais, essas três peças têm o entendimento de sua autoria garantido pela comunidade de especialistas.
Observe-se, isto posto, o quadro abaixo.
A partir desses exemplos, portanto, podemos ver que o texto paulino apropria-se dos termos a partir de um mecanismo metafórico, tomando, para tanto, o sentido aristotélico atribuído a essa figura de linguagem, para quem, com a metáfora tem-se a ação que “[...] consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia” (ARISTÓTELES, 1996, p. 92).
O δοῦλος, assim, é transportado de seu uso corriqueiro para significar outra forma de relação, a qual, desde essa percepção paulina, representa o vínculo entre o aderente/fiel e Cristo. Pode-se notar, desta forma, que se reverte, nesse uso metafórico, ao sentido mais primitivo da raiz do termo, isto é, “atar, ligar e atrair”. A vinculação, portanto, que o autor lucano parece pretender transparecer, com a afirmação da virgem – em Lc 1, 38 – é essa mesma oriunda da apresentação dos exemplos do corpus paulino.
Maria é “serva”, não por inferioridade ou submissão, mas – metaforicamente – por atração. Uma atitude lúcida motivada pelo seu encontro com o mistério de Deus. Essa vinculação como nos relata Garcia Paredes (1997) chega, deste modo, ao seu ponto culminante, quando ela aceita esse chamamento de ordem divina e manifesta a vontade de que se cumpra o que o Senhor anunciara através do mensageiro celestial.
Nessa resposta final, em vista disso, tem-se Maria dando o seu assentimento e a sua colaboração de serva do Senhor. A promessa começa a se realizar a partir do momento em que Maria aceita a efetivação da Palavra anunciada. Ela é a primeira crente a entrar no plano de Deus mediante a entrega total de sua pessoa, a obediência alegre e uma confiança tranquila na atividade divina.
Após um longo explanar da perícope da Anunciação, pode-se afirmar, seguramente, que a fé de Maria foi dinâmica, sujeita ao tempo, de modo que foi interpretada como tendo positivamente se transformado, ao longo da sua peregrinação da fé (cf.Lumen Gentium, n. 58).
De maneira simbólica, é possível atestar que a experiência mariana, configurou-se como uma passagem do contexto vétero-testamentário da fé para um território marcado pela prática neotestamentário e cristológica, na qual a Virgem de Nazaré revela-se como verdadeira discípula de Jesus, fazendo o caminho do discipulado desde a Anunciação até o Pentecostes.
Os cristãos católicos, comumente, admitem a importância de Maria, porquanto foi a mãe de Jesus. O autor lucano, no entanto, mostra que não reside, exclusivamente sobre esse dado, seu principal atributo. Para Lucas a Virgem nazarena não só é a primeira discípula cristã; mas, sim, a perfeita seguidora de Jesus, porquanto foi a partir das condições concretas de seu cotidiano que ela aderiu – total e responsavelmente – à vontade de Deus. Esse modelo mariano de adesão viria a tornar-se padrão para os demais seguidores de Jesus.
Desse modo, como peregrina na fé e discípula, Maria foi convocada a vivenciar intensa e intimamente a mudança, que, sem dúvidas, lhe afligiria, mas não lhe confundiria, porque a graça – da qual é plena – ajudar-lhe-ia a olhar a realidade. E qual seria essa mudança experimentada por Maria de Nazaré?
Candiotto (2011), refletindo sobre a experiência mariana, na perspectiva da narrativa do terceiro evangelho, aponta que a vivência de Maria tem o caráter de ser uma experiência de síntese. Assim, pode-se reiterar que essa mudança vivida pela jovem de Nazaré assume essa maneira sintetizadora das múltiplas vivências femininas, a saber, a virgindade, a conjugalidade e a parentalidade. Segundo a autora, Maria “é uma figura de síntese, (...). (...) integra ao mesmo tempo a condição de Virgem, Esposa e Mãe, algo inaudito na história humana. A simultaneidade dessa tríplice condição é, (...), subversiva para a sociedade de seu tempo” (cf. CANDIOTTO, 2011, p. 204).
Não se pode deixar de lado, ainda, que para essa Virgem o resultado dessa experiência de síntese foi surgindo lentamente. Bem como para outros aprendizes de Jesus, ela não tinha, de imediato, clareza de tudo. Precisou fazer descobertas na trajetória de seu caminho espiritual. Quando transpassada pela aguda profecia de Simeão (Lc 2, 34-35), precisou calar e perscrutar, quando interpelada pelo Filho, no Templo, ficou a meditar (Lc 2,41-51).
A vida de Maria desenrolou-se amparada pelas urdiduras da fé, as quais são pouco visíveis e compreensíveis à primeira vista, mas que dependem da confiança nos desígnios impenetráveis de Deus. Com seu “sim”, ela avançou na peregrinação de fé e se transformou na máxima realização da existência cristã.
O serviço, por excelência que Maria presta a Deus, na história, é acolher e escutar sua Palavra, torná-la carne em sua vida e oferecê-la ao mundo como salvação e vida. Como tal é tipo ideal daquele que adere à revelação e da Igreja como um todo; daquele que aceita a Palavra e a encarna na vida para logo a dar ao mundo como testemunho e Palavra de vida (cf. SCHILLEBEECKX, 1968, p.13).
Maria alcançou a distinção por cooperar, incansavelmente, com os favores divinos. Quando testada pelo sofrimento, aceitou despojar-se de si para se transformar num composto de força e fé. Ela passou pelo crivo da espada da Palavra, e cresceu mediante cada uma de suas feridas.
Maria, tem-se de concluir, é, desde o princípio, a discípula ideal de Jesus. Ela soube escutar, reter e dar frutos a partir da Palavra que acolhe. Ela não se apegou ao privilégio de sua maternidade, mas fez a caminhada – interna e externa – do discipulado. Soube melhor que todos colocar em prática o que ouvira. A grandeza e a gravidade do discipulado de Maria de Nazaré encontram-se na ação mariana de render-se ao Autor do chamado; ativamente por meio da fé, da escuta e do serviço ao “mistério da redenção”.
A virgem de Nazaré, portanto, no evento da anunciação, despontou como modelo completo de vocacionada e de discípula. Maria é a mulher que se torna ferramenta, que atua livremente, através da posição de serva, para a realização dos desígnios de Deus no processo de consumação da história da salvação. Alexandre Awi oferece uma belíssima contribuição no tema do discipulado ao dizer que:
Ser uma “perfeita discípula” não foi algo acidental na vida de Maria, algo secundário que podia se dar ou não se dar. Ser discípula corresponde ao núcleo central de sua vida e de sua missão, pois Deus ao pensar a encarnação de seu Filho a pensou inseparavelmente unida ao sim e à pessoa de Maria. Ele ainda afirma que ela poderia ter falhado na realização de sua missão, mas a sagrada escritura confirma sua fidelidade a esta atitude discipular (AWI, 2017, p. 37)
Por isso pode- se concluir que a fé de Maria, sua obediência à vontade de Deus, sua constante meditação da Palavra e das ações de Jesus, esculpiram nela o perfeito discipulado do Senhor. Isso é o que parece atestar-nos o texto evangélico lucano, especialmente a partir daquilo que encontramos registrado na perícope da Anunciação, que foi objeto da atenção deste trabalho. Esses caracterizadores da figura mariana encontram-se, por certo, em alguns casos, ainda em estado germinativo.
No entanto, a costura, a trama e os detalhes da narrativa lucana indicam um caminho de desenvolvimento, isto é, um mapa para o crescimento da pessoa de Maria, que podem evidenciar o surgimento de uma perfeita discípula de Jesus. Maria, então, assume a trama – a tessitura – do discipulado. Antevê os detalhes, antes mesmo dos pontos serem dados nesse tecido, que está oferecendo livremente para o mover divino, na composição da História da salvação. E esse tecido é sua própria vida.
Não podemos, por fim, é fato, imitar Maria na sua maternidade divina, pois só ela é a Mãe de Jesus segundo a carne. Ainda assim, podemos imitá-la em seu discipulado ao Senhor, que ela acolheu. Dessa forma, a primeira e maior bem- -aventurança de Maria foi ter acolhido a Palavra de Deus e dela feito a prática de toda a sua vida. Isso pode tornar-se, também, a nossa bem-aventurança.
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