SOBRE GUERRAS E INIMIGOS
ABOUT WARS AND ENEMIES

Nilton Rodrigues Junior
Doutorado em Sociologia e Antropologia. Professor de Psicologia da Universidade Estácio de Sá e da UNISUAM. Contato: 
niltonjunior@lwmail.com.br


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Resumo: A etnologia indígena vem observando entre os indígenas brasileiros que há uma narrativa acerca de inimigos e guerras. No pentecostalismo e neopentecostalismo há um forte apelo a ideia da batalha espiritual, tanto do ponto de vista teológico, mas, principalmente, comportamental. Nosso objetivo é utilizar-nos dos conceitos etnológicos para compreender o fenômeno da batalha espiritual. Utilizaremos alguns antropólogos e suas pesquisas para analisarmos o fenômeno cristão.

Palavras-chaves: Batalha espiritual. Etnologia. Pentecostalismo.

Abstract: Indigenous ethnology has been observing among brazilian indigenous peoples that there is a narrative about enemies and wars. In Pentecostalism and neo-Pentecostalism there is a strong appeal to the idea of spiritual battle, both from the theological point of view, but mainly behavioral. Our goal is to use ethnological concepts to understand the phenomenon of spiritual battle. We will use some anthropologists and their research to analyze the Christian phenomenon.

Keywords: Spiritual battle. Ethnology. Pentecostalism.

Introdução

Arco e flechas em uma mão, Bíblia na outra: será possível imaginarmos um cenário que reúna grupos ameríndios e grupos pentecostais em um diálogo acerca de guerras e inimigos? A cada dia que passa presenciamos o avanço missionário pentecostal em direção as diversas tribos indígenas pelos rincões do Brasil. São índios convertidos aos Cristianismos, índios que se ordenam pastores e que atacam as tradições de sua própria tribo, Bíblias traduzidas nas línguas indígenas entre outras ações. Não defendemos aqui a ideia de uma cultura estática, entretanto, o fenômeno do avanço dos Cristianismos, principalmente dos pentecostais e neopentecostais, nas tribos indígenas é recente e necessita de pesquisa.

Mas, uma reflexão a respeito dos conceitos de guerra e inimigo na etnologia indígena e, paralelemente, de um aprofundamento do campo das relações inter-religiosas, nos levou a escrever esse artigo numa tentativa de examinar a eficácia de alguns conceitos forjados pela etnologia indígena para compreender o fenômeno da teologia da batalha espiritual. Os pentecostais reinventaram o conceito de batalha espiritual para dar conta de uma disputa no campo religioso entre grupos cristãos e não-cristãos, estes, no caso do Brasil, quase sempre, pertencentes as religiões de matrizes africanas, notadamente o Candomblé e a Umbanda.

Epistemologicamente não há justificativa para a utilização dos conceitos elaborados pela etnologia indígena na interpretação das conflitualidades internas ao campo religioso de grupos da chamada sociedade complexa. Todavia, o exercício para o qual nos propomos não é o de uma análise comparativa item-a-item, mas um exercício de fazer colidir uma interpretação que surgiu e surge das pesquisas com grupos indígenas com as representações construídas nas sociedades complexas. Gostaria de pedir a condescendência do leitor, para que juntos possamos ver até onde poderemos chegar.

Não cabe, nos limites deste artigo, uma exaustiva revisão da utilização dos conceitos de guerra e inimigos nem pelas etnografias indígenas nem pela teologia da batalha espiritual. Diante do desafio do espaço, optamos, metodologicamente, por fazer um recorte conceitual privilegiando dois etnólogos: Pierre Clastres e Eduardo Viveiros de Castro, sem, contudo, desprezar contribuições de outros autores que possam depurar nossa interpretação.

Campo religioso brasileiro: breve anotações

Foi o missionário americano Ashbel Green Simonton da Igreja Presbiteriana que trouxe para o Brasil o início das igrejas protestantes de missão[1]. Simonton desembargou no Rio de Janeiro em 12/08/1859. A segunda igreja de missão que chegou ao Brasil foi a Igreja Batista, em 1882. Há, contudo, uma diferença entre as missões presbiterianas e as batistas, que interessa em especial ao nosso texto.

A Igreja Batista deu pouca ênfase na formação teológica de suas lideranças e de seus membros, acreditando que cada membro é potencialmente um missionário, e que a formação não era algo essencial para o trabalho de evangelização. Tal decisão ocasionou uma imagem entre as outras igrejas protestantes que passaram a considerar os batistas como possuidores de uma “doutrina fraca”, na qual os princípios tanto do Cristianismo, no geral, como da Reforma, no particular, ficaram secundarizados frente a tarefa de evangelizar à população.

É importante destacar que as missões americanas que vieram para o Brasil, presbiterianas e batistas, tinham como princípio a Teologia do Destino Manifesto, que pregava que a adesão quase integral da população brasileira ao Catolicismo Romano havia transformado o país em uma terra de idólatras e pagãos. Essas missões partilhavam a crença de que o Brasil deveria ser transformado e corrigido pela aceitação de uma ética pessoal rigorosa e pela doutrina reformada, com forte acento na leitura, vivência e aplicação da Bíblia.

A representação dos batistas como doutrinariamente fracos, aliada a um crescimento numérico dessa denominação e a

ênfase na multiplicação não tão disciplinada da palavra não foi muito bem-vista pelos missionários estrangeiros [...] dando margem para que a alcunha de ‘sapateiros inspirados’ se popularizasse – numa clara referência à condição humilde de muitos deles (MAFRA, 2001:27,28).

O pentecostalismo em terra brasileira teve início em uma igreja Batista.

O pentecostalismo surgiu nos Estados Unidos, quando em 1906, na igreja metodista da Rua Azusa 312, em Los Angeles, alguns fiéis começaram a falar em línguas estranhas, o que foi explicado, teologicamente, como uma manifestação do Espírito Santo. Essa era uma igreja composta por negros e brancos. Entretanto, o primeiro que falou em línguas (glossolalia) foi um negro, despertando, tanto na igreja como fora dela certo mal-estar, o que levou, em 1908, a uma divisão interna e a formação de duas igrejas pentecostais: uma de negros e outra de brancos. A igreja pentecostal dos brancos reescreveu a doutrina e a prática metodista[2] ficando “com a experiência religiosa e a dissociaram das lutas sociais e políticas” (ROLIM, 1987:23). São oriundos dessas igrejas os missionários pentecostais que vieram para o Brasil.

Os dois primeiros pentecostais a chegarem ao Brasil foram os missionários americanos Gunnar Vingren e Daniel Berg, ambos suecos, que se filiaram a Igreja Batista em Belém do Pará em 19/11/1910. Como ambos se destacaram na pregação e nas reuniões de oração - no falar em línguas e nas curas - e por terem arregimentado vários fiéis para suas reuniões, criou-se um clima de inimizade entre o grupo dos missionários e as principais lideranças batistas belenenses. Essa situação perdurou por sete meses, até que em 18/06/1911, após serem expulsos da Igreja Batista de Belém, Gunnar e Daniel fundaram a Assembleia de Deus, a primeira denominação pentecostal no Brasil.

Entretanto, seria cometer anacronismo considerar o pentecostalismo – e neopentecostalismo – contemporâneo como um movimento linear ao surgido na Rua Azusa. Se em terras estadunidenses o movimento sempre se pautou pela ênfase na pureza e na doutrina do sacerdócio comum dos fiéis[3], o pentecostalismo em terras brasileiras sofreu seu turning point ao defrontar-se com o Candomblé e com a Umbanda[4]. Após entrar em contato com as religiões de matrizes africanas, o pentecostalismo acabou por reordenar sua teologia, sua estrutura de culto e suas estratégias de arregimentar fiéis, passando a considerar as religiões afro-brasileiras como essencialmente ligadas as raízes do mal. Se, nos Estados Unidos, a teologia da batalha espiritual pregava uma ação efetiva, mas generalista, contra o demônio, visto principalmente partir da adesão à Igreja católica Romana. No Brasil o demônio passou a ter cara e nome: as entidades do panteão afro-brasileiro, ou seja, os orixás, caboclos e guias[5].

Vejamos, portanto, de que forma podemos entender essa disputa no campo religioso brasileiro entre pentecostalismo e religiões afro-brasileiras utilizando alguns conceitos forjados pela etnologia indígena.

Guerras em sentido estrito

O pentecostalismo possui uma narrativa acerca de guerras e inimigos. Narrativa que vem sendo aprimorada a cada dia e por cada igreja pentecostal. Em geral, essa formação discursiva é composta por dois elementos complementares. Primeiro, uma apreciação sobre o demônio, suas estratégias de atuação, as consequências da adesão a ações demoníacas, as repercussões na vida individual, mas também na vida coletiva, incluindo, a vida nacional, do culto ao demônio e a batalha travada contra as forças demoníacas. Segundo a formação de comportamentos religiosos dos integrantes das igrejas para o fortalecimento dos mesmos no enfrentamento dessa guerra e, consequentemente, da vitória dos pentecostais. Esse segundo elemento pressupõe uma submissão à Igreja e a fé em Jesus Cristo.

Maduro informa que há “uma guerra espiritual de muitas batalhas, com a qual somos obrigados a nos envolver [...] ou estamos do lado de Deus ou do inimigo: não há neutralidade” (2005:25 grifos meus).

Este estado de guerra é partilhado por outros autores pentecostais: “a vida é um conflito, um combate, uma luta corpo a corpo, incessantemente [...] uma batalha contra forças opositoras” (STEDMAN, 1995:11,12); “quando Jesus chegou, Ele anunciou que estava introduzindo o Reino de Deus, e declarou guerra ao inimigo, guerra essa que prossegue até hoje” (RIBEIRO, s/d:4); “lidamos com esse tipo de coisa há alguns anos e três ou quatro vezes por dia, de segunda a segunda, estamos preocupados em libertar as pessoas de toda a obra do diabo” (MACEDO, 2000:44); “todos nós somos convocados a participar de uma guerra, a guerra espiritual [...] fomos criados para participar do maior de todos os conflitos – a luta entre o bem e o mal” (SHERMAN, 1990:19,22).

Um conceito importante da etnologia indígena foi forjado por Pierre Clastres, o de guerra permanente. Para esse autor “a guerra está inscrita no ser mesmo das sociedades primitivas [...] a sociedade primitiva não pode funcionar sem a guerra; portanto, a guerra é permanente” (2003:250). Em outro trabalho, Clastres afirma que “a guerra faz parte da essência da sociedade primitiva” (1980:119). O argumento de Clastres de um estado de guerra permanente está ligado ao pressuposto teórico de que as sociedades primitivas rejeitam a unicidade, sendo constituídas primeiro e necessariamente pela alteridade, o que, portanto, caracteriza sua rejeição ao diferente e sua consequente belicosidade.

Neste sentido, as guerras possibilitam duas dinâmicas. Primeiro, o impedimento da formação de um estado, pois quando os grupos se organizam para a guerra impossibilitam com que se especializem formas coletivas de poder. Segundo os confrontos entre grupos possibilitam a formação e manutenção do par conceitual nós-eles, sendo, portanto, a alteridade constituinte das relações sociais.

Ainda para esse autor “os efeitos da guerra são manter constantemente a separação entre as comunidades” (2003:251), cremos que o conceito de guerra permanente se harmoniza ao conceito de batalha espiritual, pois ambos se relacionam a formação de fronteiras nítidas e, quase sempre, intransponíveis, diferente das relações inter-religiosas estabelecidas entre a Igreja Católica as religiões de matrizes africana em terrar brasis, que sempre possibilitaram um encontro para além das fronteiras[6]. Nesse caso, podemos entender fronteiras como “uma linha clara de demarcação, em relação à qual uma coisa ou está dentro ou está fora [...] algo através do que se dão os contatos e interações” (HANNERZ, 1997:15,16).

Para Gonçalves, em sua etnografia sobre os Pirahãs, também a guerra mantém relação com a alteridade: “a ideia do conflito como uma das possíveis maneiras de se estabelecer relações entre as diferenças, ao mesmo tempo em que as criam [...] permitem exercitar esta forma de aprender e presentificar as diferenças” (2001:65).

Nas relações no campo religioso brasileiro, principalmente, entre os pentecostais e as religiões afro-brasileiras à construção e manutenção da alteridade é uma das consequências principais da teologia da batalha espiritual. Quando a pregação pentecostal toma, por exemplo, o Candomblé e a Umbanda como inimigos em consequência da identificação dessas com o demônio, ela constrói e afirma o par conceitual nós-eles, trazendo para o grupo pentecostal – nós - o prestígio necessário para sua própria manutenção[7]. Neste caso, o valor construído e agregado, quase sempre, está relacionado com a capacidade da Igreja, no geral e do pastor, no particular de enfrentar o inimigo, derrotá-lo e trazer benesses para os integrantes da Igreja.

Apesar de haver uma diferença entre algumas teologias da batalha espiritual, que não cabem serem exploradas nesse artigo, há um consenso no pentecostalismo quando se trata de inimigos. Identificamos três correntes da teologia da batalha espiritual. A primeira, é articulada principalmente por John MacArthur que defende que o cristão não deve expulsar demônios, apenas resistir. Para essa corrente não é possível ao crente sofrer possessão demoníaca. A segunda, defendida por Neil Anderson, Alcione Emerich, Neuza Itioka e Rebeca Brown afirma que não basta resistir ao demônio cabe ao cristão expulsá-lo, o exorcismo, entretanto, só pode ser exercido quando o demônio se manifesta, essa corrente crê que o crente pode ser habitado por demônios. A terceira, defendida por Mark Bubeck e Ed Murphy, amplia as concepções anteriores, pregando o amplo exorcismo tanto de crentes como de não-crentes, acreditam que os crentes devem empreender ataques efetivos contra as forças do mal no espaço público.

Sherman, um dos autores mais profícuos da teologia da batalha espiritual, afirma que há três campos de batalha:

nós também temos três áreas estratégicas que precisamos fortalecer a fim de resistir ao ataque do inimigo. São elas: a mente, o coração e os lábios [...] elas constituem posições decisivas que temos de proteger até o último suspiro (1990:45 grifos meus).

A ideia de que a batalha espiritual é travada não só no confronto aberto com o inimigo, no caso o demônio, mas também de maneira subjetiva, no coração e mente dos crentes, marca, contemporaneamente, as diversas narrativas cristãs acerca do enfretamento com as religiões demonizadas.

Els Lagrou apresenta dois modelos etnológicos. Primeiro, o modelo Jê: “teriam elaborados um sistema social dual bastante complexo que se ‘fecha’ para o exterior através da introjeção da diferença”. O segundo, o modelo amazônico: “poderiam ser caracterizados como sociedades ‘abertas’ que reduzem a diferenciação interna para melhor expressar o antagonismo externo” (2007:161).

Aplicando, mutatis mutandis, esses modelos na compreensão dos pentecostais, podemos dizer que há uma tendência da teologia da batalha espiritual que defende a possibilidade de também os cristãos serem alvos da ação demoníaca[8], neste caso, a alteridade seria definida não por uma oposição ao outro, mas por gradações no interior do próprio grupo. Outra tendência afirma que a agência demoníaca pode ser entendida a partir do contraste com o outro, esse sempre um grupo não-cristãos. Em outras palavras, a alteridade é construída a partir do par nós-outros. Enquanto na primeira tendência as conflitualidades entre pentecostais e o demônio podem acontecer no interior do grupo, na segunda, acontecem no espaço externo ao grupo.

Conclui-se daí que a guerra espiritual pode ser travada no interior do sujeito – suas tendências comportamentais, seus desejos, seus sonhos -, ou no espaço público, no qual estão os endemoninhados.

Voltando a Clastres, para quem há dois processos permanentes: o de guerra e o de cisão interna, a definição de sociedades primitivas poderá nos ajudar na compreensão dessas duas formas de construção da alteridade – interna e nós-outros - nos grupos pentecostais. O autor define sociedades primitivas como grupos sociais pequenos nos quais “não pode haver sociedades ao mesmo tempo grande e primitiva [...] há uma técnica, universalmente utilizada nas sociedades primitivas [...] a fissão, a cisão” (CLASTRES, 2003:251). Havendo, para o autor, “um processo permanente de cisão” (2003:251).

Se pensarmos nos pentecostais e na teologia da batalha espiritual, há, em qualquer dos modelos aplicados – da subjetividade ou da alteridade - uma essencialização da cisão. Isto é, por meio da aceitação, incondicional e permanente, de que o ser humano, aqui leia-se o ser humano cristão, trava uma batalha sem trégua e sem fim, pelo menos nessa vida, as cisões irão acontecer menos como consequência e mais como objetivo.

Quando, por exemplo, McAlister (1968)[9] elaborou uma lista de “seis passos para sua libertação”[10], sua preocupação era com a ruptura que o convertido deve operar em sua vida (passo 1 e 2) e o reordenamento das relações sociais (passo 3 e 6), passando, necessariamente, pelo reordenamento da ética comportamental individual. Nesta perspectiva, o processo permanente de cisão não acontece apenas em relação ao outro, na manutenção da “alteridade de fora” (ainda que redundante), mas nas subjetividades, no que os sujeitos devem mudar e abandonar em seus comportamentos.

Clastres afirma que um dos efeitos principais da guerra é a manutenção constante da “separação entre as comunidades” (CLASTRES, 2003:251). Classificando as sociedades primitivas como estando “do lado do múltiplo”, enquanto as sociedades complexas com Estado “do lado do uno” (CLASTRES, 2003:241). O estado permanente de guerra para Clastres, deste modo, tem a função de manter o poder sob controle, mais do que efetivamente empreender expedições guerreiras contra inimigos: “o ataque em questão só se produz de tempos em tempos, mas as relações de hostilidade entre as comunidades são permanentes (CLASTRES, 2003:251). Para o autor a recusa da unicidade se deve ao fato de que as sociedades primitivas evitam facilitar a concentração do poder, fazendo com que as sociedades indígenas mantenham esse estado permanente de guerra, pois, desta maneira, o poder de forma não-centralizado no chefe será mantido. Desta maneira, por meio da guerra ou do estado permanente de guerra a alteridade, fundamento das sociedades e das sociabilidades indígenas, está garantida.

Todo esse argumento serve para iluminar o fato de que nas igrejas pentecostais a alteridade é vista de forma absoluta: “a guerra espiritual também é constante. Se há uma coisa que eu gostaria de colocar na cabeça de cada crente é este fato: nossa batalha é constante” (SHERMAN, 1990:36), “ainda que sua ferocidade não seja sempre constante [do diabo] [...] a guerra jamais terminará” (MURPHY, 1994:87 minha tradução), “a batalha contra as forças das trevas é o que torna a vida humana possível neste planeta” (STEDMAN, 1995:52).

O estado permanente de guerra, portanto, relaciona-se à manutenção do estado de alteridade e da garantia de preservação do grupo, de não ser incorporado pelo outro e deixar, no caso do pentecostalismo, de ser cristão[11].

Meu inimigo

Viveiros de Castro ao tratar do inimigo entre os Araweté afirma que “o estatuto de matador configura um complexo cosmológico central, o que me permite defini-los como um povo de guerreiros” (1986:580). Em outro trabalho o autor afirma:

Progressão nas relações entre a vítima e seu matador. Eles vão da alteridade mortífera à identidade fusional: alguém que era um puro inimigo, um awin, transforma-se primeiramente em um tiwã, um afim potencial; em seguida, torna-se um amigo ritual, uma espécie de duplo social e efetivo do Eu que é na verdade um anti-afim (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:273).

Para o autor a incorporação da vítima no matador é produzida a partir da ideia da complexidade da alteridade, pois para que a vítima seja incorporada ao matador e faça parte de sua “identidade” é necessário um “reconhecimento prévio da vítima como, de algum modo, semelhante a seus agressores” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:289).

Nos parece que a dinâmica de incorporar o inimigo no matador e esse último passar a ser duplo, rechaça a ideia de uma identidade do eu, uma subjetividade apartada das relações sociais. Ainda como diz Viveiros de Castro “a interiorização do outro é inseparável da exteriorização do eu” (2002:290).

Há aqui uma diferença com a teologia da batalha espiritual.

Não há incorporação do inimigo nas práticas cotidianas do pentecostalismo. É na contramão desse movimento que as igrejas pentecostais caminham. Recusando incorporar o inimigo há, consequentemente, a recusa por manter uma consensualidade no espaço público com aqueles considerados inimigos. Em outras palavras, a dinâmica da batalha espiritual está baseada em uma atitude de assumir como uma pluridiscursividade os elementos que compõem diferentes cosmologia.

Lagrou trata, entre os Kaxinawá, que a formação do eu é feita por meio da incorporação do outro, de forma que o processo de se tornar eu, passa, necessariamente, pelo “processo de tornar-se parcialmente outro” (2007:62). Tal dinâmica indígena – de tornar-se eu incorporando um outro – parece, voltamos a insistir, não ser o que se dá efetivamente no pentecostalismo, por uma questão bem simples - ou não tão simples - o outro é essencialmente o mal, a rejeição absoluta da bondade, a ausência de significado, personificado no demônio. Neste caso, as religiões afro-brasileiras são identificadas com o demônio e todas as suas práticas, cultos e doutrinas são “obras de satanás”, neste sentido, não há como incorporar seus elementos. O que vemos entre alguns grupos pentecostais é uma insistência na polissemia dos objetos e narrativas. Se há quem atribua ao orixá Iansã o acarajé, comida típica baiana, há quem o atribua a Jesus[12].

Não há no pentecostalismo, como indicou Viveiros de Castro para os Araweté, uma aceitação, ainda que parcial, de simetrização entre nós e o outro. No caso do pentecostalismo entre Deus e o diabo: “o que o cristianismo ensina sobre o universo é que existe apenas um Ser supremo, incomparável” (SHERMAN, 1990:83). No entanto, não há como negar que a teologia da batalha espiritual vem “fabricando”, pelo menos nas práticas sociais, uma alteridade entre nós e outros, traduzida, em termos de culto pelo par dicotômico “salvo versus não-salvo”, repercutindo nas relações sociais por meio de ações belicosas contra integrantes e práticas das religiões afro-brasileiras. Essa é com certeza um dos paradoxos dessa teologia.

Como diz Clastres “o efeito principal da guerra é criar o tempo todo o múltiplo” (2003:252), nesta perspectiva, na batalha espiritual teríamos dois registros. Primeiro, se dá no espaço teológico e, portanto, das ideias, onde Deus é único e não havendo possibilidade de comparação, esse seria um espaço de unicidade, de rejeição do múltiplo e da alteridade. Segundo, o das relações inter-religiosas, na qual percebemos a construção de uma identidade do eu, o que podemos chamar de uma “subjetividade pentecostal” construída a partir de práticas e narrativas contrastantes, ou seja, a partir da alteridade do nós-outros.

Um ótimo exemplo desse movimento é o da Igreja Universal do Reino de Deus, que vem a cada dia incorporando diversos elementos materiais e discursivo de outros sistemas religiosos, não só do Candomblé e da Umbanda, mas também do Catolicismo Romano e popular e até de religiões orientais ao seu sistema cúltico. Neste caso, quando falamos da prática cotidiana da batalha espiritual devemos registrá-la a partir do emprego de elementos utilizados, principalmente, pelas religiões afro-brasileiras como uma maneira de formação da subjetividade. É por meio da construção da alteridade que é possível haver uma efetiva consolidação da identidade coletiva, no caso, uma identidade eclesial, mas também uma identidade individual, uma identidade do ser-cristão.

A etnografia de Gonçalves sobre os Pirahã ajudará mais uma vez. Conforme o autor “hoje os inimigos existem apenas no imaginário Pirahã [...] são, na maioria das vezes, conflitos imaginários, resultantes de encontros não acontecidos” (2001:357,65). No caso dos Pirahã - como entre os pentecostais - não interessa se os inimigos são reais ou não, o que importa é que a narrativa sobre o inimigo, que ganha, conforme o contexto, diversas faces, possibilita um estado de alerta constante e a construção da alteridade. Se o inimigo não é real, a narrativa a seu respeito é real, passando a ganhar uma densidade social de confronto. É um estar em sociedade em conflito, na qual os grupos pentecostais, por serem mais numerosos e ocuparem aparelhos urbanos mais influentes, principalmente as mídias televisivas, oferecem um perigo maior aos grupos socialmente mais vulneráveis, nos casos as religiões afro-brasileiros.

Se entre os Pirahã essa alteridade não é feita a partir da incorporação do inimigo, consistindo em uma “construção particular da alteridade que não contrasta elementos e seres em um mundo que cria identidades polares, mas estabelece uma continuidade-diferencial entre os seres” (GONÇALVES, 2001:354). Não parece ser o caso de inimigo imaginário entre os pentecostais, mas de processos de ressignificação de eventos, narrativas e ações por meio da substância “demônio”, no qual as mais variadas situações são reordenadas a partir da ideia do inimigo, tais como: doenças, nervosismo, dor de cabeça, insônia, medo, desmaios constantes e desejo de suicídios (MACEDO, 2000). Nesse caso, a ideia de possessão demoníaca e mesmo a mais simples ideia de ser tentado pelos demônios pode se transformar ou explicar diversas situações que, fora do registro religioso, poderiam ter outras explicações.

Decorre daí, ser difícil ao pentecostalismo substantivar o inimigo, que ora pode ser o diabo como um ser supra-humano, ora podem ser as pessoas ou situações sociais que mais do que agentes do mal são pacientes da malignidade do diabo. A ideia de opor identidade pentecostal e alteridade diabólica é, portanto, uma forma de estruturar as relações inter-religiosas, o que, quase que naturalmente, impossibilita com que tais relações sejam efetivamente construídas.

Outra ideia presente em relação ao inimigo e que serve para manter a distinção entre um “nós” e os “outros”, é a de que o pertencimento á comunidade eclesial, pertencimento esse caracterizado pela frequência ao culto e a contribuição financeira, o famoso dízimo e oferta, pode se relacionar com a ideia, assim como entre os Kaxinawá, de que é possível, por meio de um processo de afastamento perder a identidade:

Uma pessoa que não reside mais na aldeia torna-se mais e mais distante e com o passar do tempo, torna-se um não-parente ou, até mesmo, um não-Kaxinawa [...] essa pessoa pode mesmo ser transformada em não-índio, nawa, ou até mesmo perder os atributos humanos (LAGROU, 2007:164).

Partindo desse argumento, o que garante a vitória contra o inimigo não é a adesão a fé cristã, mas a permanência na comunidade eclesial: “é por esta razão que o cristão que não é reconhecido em posição de autoridade na Igreja não deve enfrentar os príncipes das trevas” (MADURO, 2005:48).

Entre os Araweté o ideal indígena é o de uma sociedade de matadores, de homens que em função de seu estatuto de matador não podem ser canibalizados pelos deuses[13]. Quando o matador araweté mata seu inimigo, essa passa a integrar a subjetividade daquele, o que faz com que o matador necessite passar por um período de reclusão, ao final desse período o matador entoa um canto (ou vários cantos) que lhe foi revelado pela própria vítima. Todavia, “fica-se sem saber, diante dessa construção em abismo, quem fala em tal cantar? Quem é o morto, quem o inimigo?” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:177).

Macedo ao se referir as sessões de exorcismo da Igreja Universal do Reino de Deus afirma que “se alguém chegar à igreja no momento em que as pessoas estão sendo libertas, poderá até pensar que está em um centro de macumba, e parece mesmo” (2000:121). Essa confusão entre uma sessão de exorcismo cristão para libertar endemoninhados e as sessões de umbanda, que são cultos as entidades, parece marcar as igrejas pentecostais e suas sessões de exorcismos. Teríamos uma diferença: quem é possuído para ser libertado? Quem é possuído para ser cultuado? Seriam questões Araweté a serem feitas para essas sessões de exorcismo.

Se entre os Araweté a “morte da vítima é efetivamente a morte do matador” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:285), não é isso, entretanto, o que a teologia da batalha espiritual prega e não é o que temos visto nas relações inter-religiosas. Ou seja, com o fim do inimigo o “matador” pentecostal não morre, mas canta à vitória sobre a vítima. Porque contrários aos Araweté que “pressupõem a humanidade integral do inimigo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:289), os pentecostais não presumem nenhum estatuto de divinização ao inimigo e nem tão pouco alguma intenção outra que não seja a de manter o inimigo, nesse caso o demônio, como inimigo. O inimigo é sempre, portanto, essencial e absolutamente outro, o que, nos parece, é uma tentativa de desumanização completa.

Conclusão

A teologia da batalha espiritual marca, de certa forma, quase todas as igrejas da Reforma Protestante brasileiras, históricas, pentecostais e neopentecostais, a ideia de que há um inimigo a ser combatido e que necessitam de armas especificas para esse combate é ponto comum entre os cristãos reformados, se há grupos que afirmam uma ação demoníaca entre os cristãos e que há outros que recusam tal ação, não diferencia os comportamentos contra o mal, diferenciando, entretanto, esses grupos da narrativa indígena. Para os primeiros o inimigo deve ser combatido não servindo para a manutenção da coesão coletiva, pois o que é pregado é que no final dos tempos o inimigo será derrotado definitivamente e nesse momento os cristãos poderão ser um dom Deus; enquanto para os indígenas é a presença, fisica ou narrativa, do inimigo que possibilita a coesão grupal.

O mal existe e deve ser combatido, essa é a premissa cristã da batalha espiritual, mas também das pregações nos diferentes púlpitos pelo Brasil.

Se a sociedades chamadas primitivas tem se direcionadas para uma complexidade de sua organização, cosmologia e relações extra grupais ou se as sociedades ocidentais complexas têm descobertos “primitivismos” em sua organização (LATOUR, 1994) não vem ao caso, o que sabemos ao estudarmos as sociedades indígenas é que o conceito de guerra e inimigo são fundantes da coesão grupal, o que, nos grupos pentecostais, não é tão linear.

Para finalizar parafraseamos Clastres: nenhuma teoria geral sobre o campo religioso brasileiro pode deixar de levar em conta a guerra (CLASTRES, 2004:236).

Referências

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Notas

[1] As igrejas que chegaram ao Brasil no século XIX foram divididas entre igrejas de missão: Presbiteriana, Metodista e Batista e igrejas de migração: Luterana e Anglicana. Enquanto as primeiras faziam campanhas evangelísticas e adaptaram, de alguma maneira, seus cultos, língua e doutrinas a realidade nacional; as segundas mantiveram-se fiéis as tradições de origem: alemãs e inglesas, mantendo, inclusive, as línguas originárias no espaço cúltico.

[2] A Igreja Metodista é conhecida, de uma maneira geral, como uma igreja comprometida com a participação política e a inserção social.

[3] Conforme a Teologia a Bíblia diz que todos os cristãos, por meio de Cristo, são sacerdotes, profetas e reis, porque Cristo foi sacerdote, profeta e rei.

[4] “Vindo eu do Canadá, país predominantemente Evangélico, ouvi falar das artes da magia negra e considerei ser aquilo algo dos tempos medievais ou das selvas africanas [...] chegando ao Brasil, tomei conhecimento da crença, popularmente chamada ‘macumba’ [...] aos poucos fui-me convencendo de que essas coisas não eram apenas imaginárias [...] hoje eu reconheço no Candomblé e na Umbanda a maior ameaça espiritual jamais enfrentada por um povo” (MCALISTER, 1968:11,12).

[5] Esse é o título do livro do Bispo Edir Macedo, fundador e principal líder da Igreja Universal do Reino de Deus.

[6] Há uma fala popular que diz: ir à missas pela manhã e aos trabalhos de Umbanda à noite.

[7] Manutenção aqui se relaciona com os aspectos econômicos, políticos, afetivos e cosmológicos.

[8] “Satanás e seus espíritos associados estão por detrás das amargas divisões que atingem a Igreja” (RIBEIRO, s/d:17).

[9] Fundador da Igreja Nova Vida.

[10] 1. Vá a uma igreja Evangélica onde se prega o Evangelho de Cristo e aceite a Jesus como o seu Salvador pessoal, 2. Não volte nunca mais ao centro ou ao terreiro, 3. Faça amizade com o povo de Deus, 4. Adquira uma Bíblia e leia-a, 5. Fale com Deus, diariamente em oração, 6. Testemunhe aos outros sobre a mudança em sua vida (MCALISTER, 1968:91,92).

[11] “Poderíamos citar dezenas de denominações evangélicas cujos membros apareceram em nossas reuniões endemoninhados” (MACEDO, 2000:116).

[12] Houve um incidente na Bahia com as baianas do acarajé, pois algumas mulheres evangélicas começaram a vender acarajé e em suas barracas colocavam: acarajé de Jesus, o que foi amplamente apoiado pelos pastores pentecostais soteropolitanos.

[13] Os Araweté acreditam que após a morte as pessoas são canibalizadas pelos deuses para poderem renascer, enquanto o matador, que já é de certa forma um canibal, tendo em vista que canibalizou o inimigo, não passa por esse processo de renascimento. O matador renasceu ainda em vida.