Ceb’s e comunidades eclesiais missionárias: continuidades e descontinuidades em modos de ser Igreja
Ceb’s and ecclesial missionary communities: continuities and discontinuities in ways of being Church

Elias Jordan Travassos de Sousa
Pós-graduado em Filosofia da Religião, pela Faculdade de Educação, Tecnologia e Administração de Caarapó (FETAC). Contato: eliasjordan0308@gmail.com


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Resumo: Assim como os primeiros cristãos, as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e as CEMs (Comunidades Eclesiais Missionárias) encontram a sua inspiração na pessoa de Jesus Cristo e no seu modo de viver; hoje, sob novas matizes. Com a primeira, os cristãos começam a se tornar protagonistas da missão, mesmo com as limitações de acesso à formação e informação, enquanto que com a segunda, eles se veem inseridos em novos areópagos do mundo moderno, com outras provocações. As continuidades e descontinuidades se dão, justamente, nas perspectivas e desafios desses dois modos de ser Igreja, que lhes são próprios, e que continuam a fortalecer a presença da Igreja de Cristo no mundo, diante os novos desafios e necessidades do Povo de Deus.

Palavras-chave: CEB; CEM; Igreja; Continuidade; Descontinuidade; 

Abstract: Like the first Christians, the CEBs (Ecclesiastical Base Communities) and the CEMs (Ecclesial Missionary Communities) find their inspiration in the person of Jesus Christ and his way of life; today, under new hues. With the first, Christians begin to become protagonists of the mission, even with the limitations of access to formation and information, while with the second, they find themselves inserted in new areopagus of the modern world, with other provocations. The continuities and discontinuities are precisely in the perspectives and challenges of these two ways of being Church, which are their own, and which continue to strengthen the presence of the Church of Christ in the world, in the face of the new challenges and needs of the People of God.

Keywords: CEB; CEM; Church; Continuity; Discontinuity

Introdução

A proposta das CEBs e das CEMs, com todos os elementos que elas abraçam, têm por objetivo uma experiência de continuação do cristianismo, cujo princípio é o modus vivendi de Jesus (Fl 2,5-11). Dessa perspectiva, em nossa caminhada nos depararemos com os novos areópagos da evangelização e as esperanças de um Igreja que caminha junto ao povo, na perspectiva de inserção, diálogo e crescimento mútuo: de sinodalidade.  

A presença e a ação divina na humanidade, antes, eram vistas sob um viés existencial, identificado pela angústia, dor, sofrimento. Mas sabendo que a teologia progride na história humana e se enriquece com todos os avanços, especialmente na América-latina, são descobertos novos “lugares teológicos” (LIBÂNIO; MURAD, 2014, p. 34), ou seja, outras possibilidades de teologizar. É na cultura de cada povo, em seu meio, que o Evangelho é anunciado. Nesse compasso, a evangelização acontece a partir da inserção na cultura humana, como uma forma de inserir o Evangelho na realidade concreta do homem (EN, n. 20), isto é, no hoje do mundo moderno. 

Segundo o teólogo e padre jesuíta, J. B. Libânio, o lugar teológico compreende aquele(s) lugar(es) de descoberta do agir de Deus e, consequentemente, da possibilidade de fazer teologia (LIBÂNIO; MURAD, 2014, p. 34). Desse ponto de vista é inegável que a teologia acontece onde existe um ser humano; onde se “decide a história, a vida, a aventura e o amor humano” (LIBÂNIO; MURAD, 2014, p. 34). Portanto, é impensável uma teologia que seja contrária à vida humana, contrária às suas aspirações e necessidades, distante da realidade em que se encontra um ‘filho de Deus’ (Jo 1,12; Rm 8,16). Agora, com as novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora (2019-2023), os grandes centros urbanos e a cultura que os permeiam, assumem um lugar de especial atenção, devido aos desafios que eles comportam para a Igreja e o mundo no séc. XXI. 

No livro dos Atos dos Apóstolos encontramos o lugar que compreende a meta para onde peregrina toda a humanidade: a Nova Jerusalém, a Cidade Santa (At 21,2-4). É curioso observar que a revelação nos diz que a plenitude da humanidade e da história se realiza em uma cidade. Diante disso, “(...) precisamos identificar a cidade a partir de um olhar contemplativo, ou seja, um olhar que descubra Deus que habita nas casas, ruas e praças” (CARVALHO, 2015, p. 9). 

Perfeito esse caminho, podemos inferir que tanto as CEBs quanto as CEMs remontam a um modelo de cristianismo primitivo – visualizado na caminhada dos primeiros discípulos –, cada qual ao seu modo, contemplando a experiência de anúncio e vivência do Evangelho. Isso posto, nos reportemos à experiência das CEBs e à emersão das CEMs, ou seja, o nosso ponto de intersecção está nas continuidades e descontinuidades desses dois modos de ser Igreja, dessas duas ‘propostas eclesiais’ para a Igreja no Brasil.

1. Gênese e caracterização das CEBs

As CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) surgiram entre os anos 1964 e 1968, com vistas a colocar em prática as exigências do Concílio Vaticano II e o espírito do aggiornamento (RUBENS, 2008, p. 74) que, na América Latina, não foi apenas o ponto de chegada, mas também o ponto de partida de uma nova consciência do ser Igreja (SOUZA, 2007, p. 84).

A carência de presbíteros que assistissem as comunidades foi elementar para o advento das CEBs. Elas marcaram, significativamente, não apenas a configuração eclesial no Brasil, mas, também, a Igreja latino-americana pós-conciliar. Elas contribuíram tanto na dimensão prática, conferindo incidência pública à fé, quanto na reflexão teológica. Desse ponto de vista, as pequenas comunidades dão um novo rosto à Igreja e a um povo que está em constante devir, que se torna protagonista na missão da Igreja (SOUZA, 2007, p. 77). 

Os leigos passaram a participar mais no intuito de oferecer seus dons à caminhada das comunidades paroquiais; seja a partir da catequese, da organização de movimentos paroquiais ou na preparação e distribuição de alguns sacramentos (MATOS, 1985, p. 32) [...] buscando sempre viver a essência da mensagem cristã – que é a universal paternidade de Deus –, pois as CEBs têm a mesma intenção que a Igreja universal: “levar todos os homens à plena comunhão de vida com o Pai (...) por meio da ação mediadora da Igreja” (BOFF, 2008, p. 43). 

Diante da presença e da ação laical cada vez mais assídua, as CEBs ganharam um destaque especial nas Diretrizes Gerais, dentro dos Planos de Pastoral promovidos pela CNBB – com significativa contribuição de Dom Hélder Câmara. Conservado isso, a ideia de comunidade de base vai ganhando destaque, ao ponto de as CEBs serem assumidas como prioridade na ação evangelizadora:

A ênfase dada às Comunidades Eclesiais de Base neste quadriênio manifesta claramente o interesse e o amor da Igreja no Brasil por esse ‘novo modo de ser Igreja’. Elas se constituem fermento de espírito e vida comunitária, modelos concretos de comunhão e participação, de serviço, desprendimento e solidariedade (CNBB, 1983, p. 33).

Abrindo um parêntese em nossa reflexão, gostaríamos de pontuar acerca da presença e impacto que a conferência de Medellín teve na caminhada das CEBs, com o seu projeto de libertação, a partir de renovadas estruturas eclesiais e da presença de pessoas que saibam ser livres e responsáveis à luz do Evangelho – além da recepção continental que ela dá ao Concílio Vaticano II, na América Latina. 

Portanto, as CEBs não querem ser uma Igreja a parte – ou um amontoado de pessoas que visam à anarquia, à baderna ou às brigas e disputas partidárias. Elas querem viver do Evangelho; elas querem ser sal da terra; elas querem ser luz, em meio as trevas. Desse ponto de vista, a proposta de uma CEB não é implantar uma nova Igreja, mas viver da fonte que emana a sua força vital: a Revelação. Contudo, ela só poderá ser vivida se estiver diante um povo, uma comunidade, que saiba ouvir, acolher e pôr em prática aquilo que foi pedido pelo Mestre, para que, ao fazê-lo, encontre sentido e felicidade (Jo 13,15.17; At 20,35). Passado isso em revista, nos reportemos às CEMs.

2. O advento das CEMs

Para falarmos em CEMs (Comunidades Eclesiais Missionárias) precisamos, antes, falar em novos areópagos – e, consequentemente, dos novos desafios do mundo urbano – além dos vários elementos oriundos da cultura moderna – globalização, novas tecnologias, relativismo, liquidez, secularismo, niilismo, dentre outros – que estão, a cada dia mais, presentes na vida da Igreja. 

Adiante, as CEMs surgiram como proposta e reflexão daquilo que vinha sendo apresentado pelo, hoje, São João Paulo II, com a Nova Evangelização (Redemptoris Missio, 1999), e pelo Papa emérito, Bento XVI com a Carta Porta Fidei (2011). De mais a mais, encontramos a Conferência de Aparecida (2007) localizada no centro – entre a Redemptoris Missio e a Porta Fidei –, como o eixo fundante e articulador das Comunidades Eclesiais Missionárias. 

A quinta Conferência Latino-Americana identifica, em nível global, uma crise de existência, que gerou uma expressão bastante conhecida: “mudança de época” (DAp, n. 34). A situação que Aparecida apresenta é que a humanidade se perdeu em meio aos avanços da ciência e da tecnologia, e chegou ao ponto da perda de incidência da fé e das tradições, que já não se transmitem como em outras épocas (DAp, n. 39). Como proposta para superar esse cenário, a Conferência de Aparecida convida a Igreja latino-americana, a começar do zero, ou seja, a recomeçar a partir de Jesus (DAp, n. 12, 41 e 549); apresentá-Lo e reapresentá-Lo.

Diante disso, as novas DGAE (2019-2023) constatam que aquelas urgências, já mencionadas por Aparecida e pelas diretrizes anteriores (2011-2015 e 2015-2019), não desapareceram. E, dentre elas, há uma urgência principal que chama a atenção da Igreja, enquanto forte experiência de comunidade, de vida de irmãos: a comunidade de comunidades. 

Dessa perspectiva, o desafio maior está na evangelização do meio urbano, onde pertença e territorialidade são dois elementos distintos, embora, algumas vezes, facilmente confundidos. Enquanto a dimensão de pertença diz respeito às raízes existenciais da pessoa, a territorialidade compreende, digamos que, apenas, a dimensão geográfica de moradia. 

Assim sendo, quanto maiores são as cidades, menor é a influência das instituições religiosas e da Tradição sobre os indivíduos (DGAE, n. 29). Esse mundo urbano, hoje, não mais está reduzido à dimensão territorial, mas se apresentada como uma questão de “mentalidade” – em seus mais variados níveis (CNBB, 1983, p. 33). Evangelizar na “cultura do cansaço, do consumo, da angústia e da falta de sentido” é algo bastante desafiador, pois o anúncio do Evangelho, hoje, pede uma nova abordagem, uma nova dinâmica, uma nova forma de transmissão. Contudo, para que haja transmissão é preciso, antes, renovação. 

Nesse compasso, a Igreja católica é convocada a renovar/atualizar a sua ação missionária no intuito de atender às necessidades desta era. Desse ponto de vista, a linguagem, o pensamento e o mundo estão passando por significativas mudanças. E a Igreja, por sua vez, é convidada a acompanhar tais avanços. 

Porém, num primeiro momento, não é possível dizer que temos todas as ferramentas e respostas, mas, para isso, faz-se necessário que nos coloquemos num estado permanente de caminhada, diálogo e missão; abertos à renovação que deve começar, primeiramente, dentro da própria Igreja para que, num segundo momento, ela tenha condições de “proclamar o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15), buscando condições de dar respostas ao mundo de hoje. 

Dessa perspectiva, portanto, as CEMs compreendem uma nova proposta da Igreja no Brasil para atender, justamente, aos anseios de uma evangelização integral, onde a ação pastoral proposta por essas comunidades missionárias nos darão novas condições para a evangelização, especialmente no meio urbano, sempre desafiador e, muitas vezes, incrédulo. 

Nesse ínterim, pensar a relação entre evangelização e cultura urbana torna-se algo imprescindível à missão da Igreja nos dias atuais (DGAE, n. 28). Nesse compasso, convém-nos ainda lembrar que a evangelização no meio urbano não tem a ver com a evangelização de espaços populosos, das massas, mas com o impacto que o Evangelho tem na modificação dos critérios de julgar, pensar e cuidar da vida; que muitas vezes se apresenta em “contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação” (EN, n. 19). É diante tal cenário que a Igreja chama os cristãos a escutar, observar e compreender a mentalidade da cultura urbana, com todos os seus anseios e desafios (EG, n. 71-75). 

Dando continuidade, no tocante ao espaço geográfico de surgimento das CEMs, podemos dizer que não há um local específico, pois elas podem se desenvolver tanto nas ruas, como também nos condomínios, edifícios, etc., sempre em comunhão com a Igreja local, tendo como característica fundante a busca pela vivência cristã numa sociedade de contrastes (DGAE, n. 84).

Diante disso, as CEMs colocam em evidência uma proposta de pequenas comunidades, podendo ser, inclusive, dentro das próprias CEBs, contanto que estejam articuladas, inseridas e diversificadas, no tocante ao seu campo de atuação: os grandes centros urbanos. 

De mais a mais, reforçamos a importância das CEMs que oferecem caminhos de evangelização e, consequentemente, de renovação da sociedade (DGAE, n. 33). Falar às novas culturas e permitir ser ouvido por elas é o desafio atual para o Evangelho, porque Ele precisa falar aos corações de tal modo que promova a conversão pessoal e comunitária, em âmbito universal. 

 Se o Evangelho for assumido e vivido pelo mundo que cresce em meio às novas culturas, especialmente nos grandes centros urbanos, Ele poderá mais uma vez ‘dar sentido e sabor’ à vida (EG, n. 266). Portanto, as Comunidades Eclesiais Missionárias, hoje, compreendem uma urgência para a Igreja no Brasil. E seus pilares (Palavra, Pão, caridade e ação missionária) são os instrumentos necessários para a sua constituição e manutenção. 

3. A transversalidade entre CEBs e CEMs

Tentando articular a proposta das CEBs – já vivida no Brasil – com aquela apresentada pelas CEMs, nas Novas Diretrizes, podemos captar a essência, tanto das Comunidades Eclesiais de Base, quanto das Comunidades Eclesiais Missionárias, que estão no seu ‘modo de vida’, semelhante àquele dos primeiros cristãos: que viviam do contato com a Palavra, da celebração do Pão e do gesto concreto (caridade e ação missionária). 

Adiante, queremos discorrer sobre os pontos de intersecção entre as CEBs e as CEMs, objetivando a aproximá-las e colocá-las no centro dos desafios para a Igreja no Brasil, hoje, a partir de elementos comuns a esses dois ‘modos de vida’ eclesiais.  

“(...) Não estava ardendo o nosso coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos abria as Escrituras?” (Lc 24,32). No relato dos discípulos de Emaús encontramos a primeira experiência de círculo bíblico, dos discípulos com o Mestre. E essa experiência nos mostra que Jesus levou os discípulos a falar sobre o que estavam sentindo, à partilha de vida (MESTERS, 1993, p. 29). Assim, também, nas primeiras comunidades e, especialmente, hoje, os cristãos são convidados à experiência ‘da’ e ‘com a’ Palavra, a partir de uma leitura da própria vida, da própria caminhada (2Tm 3,16).  

As semelhanças e diferenças, as continuidades e descontinuidades na vida das CEBs e das CEMs, dizem respeito, por exemplo, às formas de acesso, leitura e interpretação da Sagrada Escritura. Tal diferença se dá a partir de uma mudança de época, que pode ser percebida, por exemplo, no tocante à Palavra, quando, hoje, na chamada ‘era digital’, as pessoas têm acesso aos livros e tecnologias – como, por exemplo, o QR Code no folheto da missa –, enquanto na experiência das CEBs boa parte das pessoas não sabiam ler, nem tinham acesso aos livros. 

Proveniente disso, gostaríamos de apontar à tão necessária presença das pequenas comunidades, CEBs e CEMs, com vistas à urgência de atualizar e apresentar a fé com reflexo nas comunidades do Cristianismo primitivo que, ao redor da Palavra, buscavam viver a fé na prática (At 2,42-47). 

3.1 Continuidades e descontinuidades

Sabemos que as CEBs emergem na América-latina graças, primeiramente, ao aggiornamento apresentado pelo Vaticano II, que trouxe consigo mais do que atualizações: trouxe rejuvenescimento à Igreja

Sempre que ela [a Igreja] procura ‘voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual’ (EG, n. 11).

Por volta dos anos 90, após se perceber uma certa ‘independência’ das CEBs em relação à hierarquia da Igreja, além do advento da influência pentecostalista nas Igrejas da América-latina, muitos questionamentos acabaram por enfraquecer o movimento, dando abertura (não substituição!) a um novo movimento chamado ‘Renovação Carismática’ (FOLHA DE SÃO PAULO, 1997) – que é outro modo de viver da Igreja. Mas teriam as CEBs desaparecido? Segundo nossa pesquisa isso não pode ser afirmado em absoluto. 

Outrossim, as CEBs não se transformaram numa pastoral ou movimento, nem foram substituídas pelas CEMs. Podemos até nos questionar: houve uma substituição do termo “base”, presente nas CEBs, pelo termo “missionária”, adotado pelas CEMs? Não. Não há substituição alguma. As CEBs continuam existindo, enquanto que as CEMs – sob inspiração de Aparecida – surgem com as novas DGAE (2019-2023), como outra forma de viver a experiência de comunidades, para a qual Aparecida já chamava a atenção (DAp, n. 276, 365, 368), diante outras perspectivas e desafios. Portanto, as CEMs compreendem um outro ‘modo de ser’ da Igreja, hoje.

Dito de outra maneira, as CEMs partem da mesma inspiração das CEBs, porém, atuando noutros espaços, onde a Igreja não atinge, como é o caso dos grandes edifícios e condomínios, nas cidades grandes. O seu objetivo não é formar capela, mas chegar noutros espaços que ainda estão se formando. E isso é algo novo que, apenas no contato do dia a dia, é que poderemos perceber como irá se firmar, qual corpo/forma ganhará:

A questão que se coloca aqui é a de que, como diz o Documento de Aparecida, para a maioria das pessoas, o contato com a Igreja se dá através das paróquias. O problema é que a experiência de paróquia que acaba predominando é a da prestação de serviços, seja na forma tradicional, ligada aos serviços sacramentais, seja na forma mais atual, ligada aos serviços de curas e prodígios. Nos dois casos, o que temos são prestações de serviços. Ora, entre o prestador e o consumidor de serviços, o que importa é exatamente o serviço, não tanto a relação de fraternidade que pode vir a surgir entre ambos. Esta é a razão pela qual Aparecida nos convoca a recomeçar a partir de Jesus Cristo. Precisamos também recomeçar a partir da eclesiologia das pequenas comunidades, onde o vínculo de vida seja forte o suficiente para interpelar as lógicas urbanas naquilo que tenham de não evangélicas, explicitar o que existe de evangélico nas mesmas lógicas e, nesse processo, inculturar o Evangelho no mundo urbano (BRUSTOLIN; FONTANA, 2018, p. 192).

Portanto, não é que as CEBs deixaram de existir nas cidades; mas elas não atingem todos os espaços geográficos – visto que, inclusive, o termo ‘base’, por se reportar à Teologia da Libertação, para muitos leigos é clérigos, torna-se um termo indigesto.  

Em sua proposta de evangelização, as CEBs ajudam a formar cristãos comprometidos com sua fé, discípulos missionários, com o seu “compromisso social em nome do Evangelho” (DPb, n. 629) e o seu “esforço em corresponder aos desafios dos tempos atuais” (DAp, n. 179). Portanto, as CEBs já trazem consigo os primeiros passos das CEMs que, “em meio à situação cultural que nos afeta, secularizada e hostil à Igreja, se fazem mais necessárias” (DAp, n. 308).

Isso posto, podemos concluir que as CEBs encontram, hoje, um novo paradigma de atuação: como futuros laboratórios de eclesiogênese, com novas maneiras de ser e viver a fé nos próximos séculos e milênio, exercendo um papel decisivo para os próximos anos, juntamente com as CEMs, dando uma nova roupagem e recriando os espaços de anúncio, contribuindo, assim, para a propagação da fé e à transformação da sociedade BRUSTOLIN; FONTANA, 2018, p. 193). 

Destarte, as CEBs e as CEMs representam modelos do cristianismo primitivo, em pequenos grupos nas casas, onde o povo se reúne para cantar, rezar, ler a Palavra de Deus e propor objetivos comuns. Portanto, CEBs e CEMs compartilham a mesma esperança de um cristianismo mais personalizado e menos dependente dos mecanismos de massa para sua sustentação e capacidade de atrair outras pessoas pela simples força do Evangelho. 

3.2 Uma ação transformadora  

Sabemos que a cada mudança de século, há uma mudança de mentalidade, onde a humanidade adquiri novos desafios e perspectivas. E novas problemáticas vão surgindo de acordo com as necessidades vigentes. Diante disso, lembremos de que as CEBs nasceram ligadas às lutas dos setores populares dos anos 60 e 70 e à resistência contra o regime autoritário e concentrador de riqueza. Na medida em que novos horizontes se vislumbram ao nível do real e da consciência possível – gênero, subjetividade, raça, corpo, prazer, ecologia –, as CEBs vão ampliando sua visão, às vezes com dificuldade, mas sempre no marco de suas opções irrenunciáveis diante do conflito social (SOUZA, 2018). 

Desse ponto de vista, a Igreja procura estar profundamente envolvida com o seu entorno social, cultural e, especialmente, hoje, urbano: “(...) nós habitantes e moradores somos a alma das cidades, com nossa presença e nosso legado ao longo das gerações. Formamos comunidades, bairros, distritos, com ‘almas’ distintas e interligadas” (SOUZA, 2018).  

Em suma, podemos encontrar continuidades entre CEBs e CEMs ao olharmos para os elementos fundantes de sua caminhada – Palavra, pão e ação – e ao resgate que elas fazem do cristianismo primitivo, colocando em evidência a importância de tais alicerces para o processo de iniciação à vida cristã e ao discipulado – claro! com diferentes formas, como hoje se conhece. No auge das CEBs pudermos ver que poucas pessoas sabiam ler e/ou tinham acesso aos livros, enquanto, hoje, as CEMs encontram-se na era digital, onde o acesso à informação se dá mais rapidamente. 

Encontramos, também, as descontinuidades, que estão nas novas aplicações/métodos escolhidos pela Igreja, diante a mudança de época – quando nos anos 70, 80 e 90, os padres e leigos saíam mais às ruas em manifestações de apoio a movimentos sociais, enquanto, hoje, eles se encontram mais voltados à oração e à disciplina hierárquica (OLIVEIRA, 2021) – e às novas urgências da evangelização, apontadas pelas novas DGAE (2019-2023). 

Contudo, não podemos esquecer da importância de uma “renovada pastoral rural que fortaleça os habitantes do campo e o seu desenvolvimento econômico e social” (DAp, n. 519), porque, embora os novos desafios se deem em maior proporção nos grandes centros urbanos, não quer dizer que o trabalho deverá ser esquecido ou suprimido nas pequenas cidades e áreas rurais.

A questão chave que a Igreja apresenta, hoje, é que precisamos passar “de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária” (DAp, n. 548). E o Papa Francisco nos lembra esse horizonte missionário, de saída, aonde a Igreja vai até os outros, como “povo que penetra os outros povos, para ajudá-los a irmanar-se e a crescer” (DPb, n.233). 

Para essa empreitada, precisamos aplicar os princípios e experiências cristãs aos problemas do nosso tempo (Cf. AA, n. 6). É por isso que a Igreja não excluiu as CEBs, nem as substituiu pelas CEMs, porque ambas, cada qual ao seu modo, abraça um itinerário, uma perspectiva, um modo de agir da Igreja que, em todas as esferas sociais, busca e, muitas vezes, encontra respaldo. 

Conclusão

Do percurso realizado até aqui, o nosso trabalho chegou à conclusão de que tanto as CEBs quanto as CEMs, cada qual ao seu modo, compreendem propostas da Igreja à evangelização, advindas em momentos próprios da caminhada cristã e, especialmente, eclesial. Enquanto as CEBs se fortalecem com os movimentos sociais, as CEMs se organizam sob a perspectiva de evangelização dos grandes centros urbanos. 

Vimos que as CEBs se inspiram nas comunidades cristãs do primeiro século, pois é inegável dizer que elas recuperam a Tradição do primeiro milênio, presente na comunidade dos apóstolos (MATOS, 1985, p. 61), a partir de elementos bastante caros ao Mestre e a seus discípulos: Palavra, Pão e Caridade (DV, n. 8). Nesse compasso, o espírito de comunidade precisou e precisa ser alimentado, vivido e impulsionado, pois a Igreja não é uma realidade acabada de uma vez por todas, mas ela se constrói, passa por reformas; sempre num processo de caminhada eclesial e sinodal – o que nos leva às CEMs.

O seu surgimento se deu diante as novas urgências da evangelização num mundo cada vez mais globalizado, massificado e incrédulo. Diante esse cenário, a Igreja no Brasil aposta nas CEMs, porque vê nelas melhores condições de dialogar com o mundo cada vez mais moderno e incrédulo, especialmente nos grandes centros urbanos. 

Desse ponto de vista, não podemos dizer que CEBs e CEMs são a mesma coisa, ou que uma cede lugar a outra, mas que cada uma surgiu num dado momento, sob necessidades e condições específicas da Igreja, e que comungam de um projeto de evangelização, oriundas de momentos diferentes. O que também não é reduzir às CEBs à evangelização em território rural, enquanto as CEMs cuidariam da esfera urbana, mas é, justamente, a comunhão entre elas, identificando as novas propostas e metodologias da Igreja, que nos permitirá ir mais longe na experiência de discipulado e missão, hoje. Portanto, há espaço para as duas, enquanto modos próprios e semelhantes de ser Igreja.  

Desse modo, as pequenas comunidades, sejam elas CEBs ou CEMs, são de significativa presença e importância à Igreja – e por que não dizer à sociedade? – no século XXI. A partir delas, por exemplo, temos a oportunidade de atualizar nossa fé a exemplo do Cristianismo primitivo, que nos convidou a um movimento em torno da Palavra, para vivenciar a fé de forma prática no mundo. Ademais, vimos nessa caminhada que os dois modos de ser Igreja trazem consigo princípios e experiências dos primeiros discípulos e que hoje se colocam como inspiradoras à evangelização (CORDEIRO, 2021). 

Destarte, a Igreja no Brasil aposta nas pequenas comunidades, porque vê a necessidade de tornar-se mais próxima das pessoas e menos massificada. As grandes paróquias e comunidades não facilitam a aproximação da pessoa concreta com o Evangelho, porque elas, muitas vezes, optam por eventos de massa, onde há poucos laços de proximidade e conhecimento do outro. Portanto, as pequenas comunidades contribuem na geração da fidelidade dos fiéis, devido ao menor número de membros, facilitando a integração daqueles que se conhecem, gerando assim uma espiritualidade de comunhão. 

Nesse ínterim, cabe-nos ainda pontuar a dimensão da sinodalidade, da cultura do encontro, da Igreja em saída; de tantas propostas apontadas pelo Papa Francisco que evidenciam a presença da Igreja, hoje, numa perspectiva de futuro, tendo sempre em vista a superação daquilo que agride a vida e faz sofrer, dos desafios que se põem à evangelização, e do cuidado com o planeta, nossa casa comum, presentes da dinâmica das Comunidades Eclesiais Missionárias. 

Perfeito esse caminho de reflexão, gostaríamos de findar este trabalho – não conclusivo! – com votos de que o caminho iniciado pelas CEBs e pelas CEMs continuem a fortalecer a presença da Igreja de Cristo, no mundo, diante os novos desafios e necessidades do Povo de Deus, peregrino e esperançoso, que se coloca a caminho, como discípulo missionário, com fidelidade e amor, cada qual ao seu modo de ser Igreja.  

 

Referências

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