O Autônomo No Pensamento De Santo Tomás De Aquino: Uma Resposta À Leitura De Francis Schaeffer.
The Autonomous In Saint Thomas Aquina’s Thought: A Response To Francis Schaeffer’s Reading

Carlos Eduardo 
Mestre em Filosofia Pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. (USP). Contato: thanatosbernardo@usp.br


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Se alguém vai passar uma longa temporada no exterior, é de se esperar que aprenda a língua do país a que se destina. Mais do que isso, entretanto, faz-se necessário ele poder realmente comunicar-se com aqueles no meio dos quais viverá. Impõe-se-lhe aprender ainda outra língua – a das formas de pensamento das pessoas com quem falará. É somente assim que conseguirá real comunicação com elas e a elas. 
(SCHAFFER,1974, p.5.).

Resumo: Neste breve escrito pretendemos refletir acerca de uma concepção atinente ao pensamento de Santo Tomás de Aquino, conforme exposta nas obras de Francis Schaeffer, mormente em seu livreto, A Morte da Razão.[1] Concepção essa que perpassa não apenas a trilogia à qual pertence esta obra, mas a todo o pensamento do autor em questão. Grosso modo, podemos dizer que Francis Schaeffer advoga encontrar na obra de Santo Tomás de Aquino a ideia de uma autonomia da razão, mas não apenas isso, e sim uma autonomia da razão frente ao problema soteriológico. Portanto, pretendemos averiguar se esta tese de Schaeffer se justifica ou não; para tanto, nos reportaremos não apenas à obra em questão, mas, sobretudo, aos escritos do próprio Santo Tomás de Aquino, que, com certeza, são abundantes na discussão sobre o status da razão, tanto no estado pré-queda, quanto no estado pós-queda, lembrando que este último é o mais relevante para a presente discussão. 

Palavras-chave. Razão; Intelecto; Autonomia; Salvação; Irracionalidade; Modernidade

Abstract: In this short writing, we intend to reflect about a conception related to the Saint Thomas thought, as exposed in Francis Schaeffer’s works, specially in his booklet, Escape From Reason. This conception permeats not only the trilogy to which this work belongs, but the entire thought of the author in question. Roughly, we can say that Francis Schaeffer claims to have found in the work of Saint Thomas Aquinas, the idea of autonomy of reason, but not only that, but the autonomy of reason in the face of soteriological problem. Therefore, we intend to examine out if this Schaeffer’ s thesis is or not justified; to do that we will refer not only to the work in question, but specially to the writtings of Saint Thomas Aquinas himself, which are certainly abundant in the discussion about the status of reason, both in the pre-fall state, as in the post-fall state, remembering in that the latter is the most relevant for the present discussion.

Keywords. Reason; Intellect; Autonomy; Salvation, Irracionality; Modernity

SOBRE O AUTOR

Francis Schaeffer (1912-1984), um dos mais importantes pensadores do Cristianismo, de vertente evangélica, no século XX. Crítico de arte, dramaturgo, filósofo, teólogo e ministro cristão. Pensou os problemas relativos à fé e à cultura, percebeu, como poucos, que o grito surdo e o desespero do homem moderno são resultantes de uma fuga para um mundo de irracionalidade que nega o único fundamento legítimo para todo conhecimento, Deus.

Schaeffer era dotado de enorme perspicácia intelectual e profundidade espiritual; junto a sua esposa Edith Schaeffer fundou em 1955 a Comunidade L’Abri (Suíça), local que se tornou importante centro espiritual de propagação do Evangelho, além de um polo de convergência intelectual, onde ele pode amadurecer ainda mais seu pensamento através dos diversos diálogos ali travados, fazendo com que sua abordagem fosse livre dos diversos academicismos, embora conservasse todo rigor necessário para a inquirição filosófica.[2]

O problema

Schaeffer considera a obra de Santo Tomás Aquino aquela que transformou de forma efetiva o mundo, e, segundo ele, foi realmente Santo Tomás quem nos introduziu na Renascença humanista. Além disto, foi Santo Tomás quem abriu-nos o caminho à discussão que é convencionalmente designada natureza e graça, sendo a graça o nível superior da realidade e a natureza o nível inferior. O autor representa isto com o seguinte diagrama:

GRAÇA, O NÍVEL SUPERIOR:

                        DEUS O CRIADOR; O CÉU E AS COISAS CELESTES; O INVISÍVEL E SUA INFLUÊNCIA NA TERRA; A ALMA HUMANA; A UNIDADE.



NATUREZA, O NÍVEL INFERIOR:

                        A CRIAÇÃO; A TERRA E AS COISAS TERRENAS; O VISÍVEL E O QUE FAZEM A NATUREZA E O HOMEM NA TERRA; O CORPO HUMANO; A DIVERSIDADE.

(SCHAEFFER, 1974, p. 7).

Schaeffer argumenta que antes da introdução deste dualismo a representação do mundo seguia um esquema bizantino, ou seja, as realidades celestes capitalizam toda a importância e sua santidade impunha uma representação simbólica, em hipótese alguma eram representadas de forma realista. A natureza, em si mesma, não suscitava interesse no artista, a não ser enquanto símbolo das coisas celestes. O autor observa, acertadamente, que Santo Tomás mantinha um princípio de unidade que correlacionava os dois âmbitos (graça e natureza), e, que a partir de sua proposta, muitos se esforçaram para manter a unidade, numa esperança de racionalidade. Schaeffer conclui que, antecipando o pensamento renascentista Santo Tomás deu-nos a noção da necessidade de valorização da natureza, posto que, a valorização apropriada da natureza equivale à valorização apropriada do próprio Deus e vice-versa. 

Todavia, Schaeffer diz ainda que é a partir destas considerações introdutórias que é possível lançar um novo olhar sobre o diagrama natureza e graça

Ao mesmo tempo, estamos agora em condições de ver o significado do diagrama da natureza e graça numa perspectiva diferente. Embora bons resultados adviessem da posição de maior realce conferida à natureza, isso deu lugar a muita coisa de cunho destrutivo, como se verá. (SCHAEFFER, 1974, p. 9).

Schaeffer advoga que a valorização da natureza, de acordo com o esquema supra, deduzida do pensamento de Santo Tomás, carrega o germe do humanismo que caracterizará o período renascentista, e isso, em uma tendência sempre crescente até assumir as proporções que podemos contemplar nos tempos hodiernos. Esse germe é a afirmação da autonomia da razão.

Na concepção tomista a vontade humana estava decaída, mas não o intelecto. Dessa noção incompleta do conceito bíblico da Queda, defluíram todas as dificuldades subsequentes. O intelecto humano se tornou autônomo. Em um aspecto era o homem agora independente, autônomo. (SCHAEFFER, 1974, p. 9).

Segundo Schaeffer, um dos resultados do conceito de autonomia da razão é a capacidade humana em elaborar uma teologia natural, esta é uma teologia que pode ser formulada independentemente da Escritura. Schaeffer tenta fazer justiça a Santo Tomás lembrando-nos que este pressupunha uma unidade final entre esta teologia natural e aquela haurida da Escritura.

Como o autor, de forma perspicaz, salienta, as diversas disciplinas (ou saberes) são elaborações humanas e coisas de homens, estas “[...] não se podem conceber como linhas paralelas não relacionadas”. (Schaeffer,1974, p.10). Portanto, os efeitos nocivos desta autonomia logo se fizeram sentir em todos as áreas e inclusive na Filosofia.

Com base neste princípio de autonomia, também a filosofia se tornou livre e se separou da revelação. Portanto, a filosofia começou a criar asas, por assim dizer, voando por onde quer que lhe aprazia (sic), deixando à margem as Escrituras. Não quer dizer que essa tendência não se manifestara em tempos anteriores, apenas que de agora em diante se patenteia de maneira mais completa. Nem se limitou à teologia filosófica de Tomás de Aquino. Bem logo se fez sentir no mundo da arte. (SCHAEFFER,1974, p. 10).

Para Schaeffer, Santo Tomás abriu o caminho para um humanismo autônomo, para uma Filosofia autônoma, enfim para um movimento de autonomia que desaguou como um dilúvio e proporcionou à natureza, agora autônoma, o poder de devorar a graça, processo esse que se tornou efetivo na Renascença.

Desembaraçando o emaranhado

Schaeffer é sem dúvida alguma um pensador de grandessíssimo respeito. A Morte da Razão, foi, dentre suas obras, a primeira na qual o presente problema fora elaborado, e, a despeito de seu pequeno porte deve ser considerada em sua extrema riqueza conceitual, sendo ainda provocativamente polêmica.

Não fosse por uma preocupação em se manter o rigor filosófico de nossas reflexões, talvez, jamais voltássemos às questões que ela nos suscitou. Todavia, posto que voltamos, propomo-nos em levar esta empresa até o fim. Naturalmente, não esgotaremos o problema, mas, com certeza, desembaraçaremos, ao menos um pouco, o complexo emaranhado em que parece ter sido envolvido o pensamento de Santo Tomás de Aquino, o Doctor Angelicus!

A abordagem dois-andares

Inicialmente devemos tecer algumas observações sobre o esquema graça e natureza, representado no diagrama proposto por Schaeffer, e, que segundo ele remete-nos a uma nova concepção da realidade, concepção essa inaugurada por Santo Tomás. 

Esta abordagem habitualmente é designada como conceito dois-andares, e desde o momento em que os cristãos se envolveram, realmente, com a Filosofia ela foi procurada e exercitada no decurso dos séculos, e isso, mesmo por contemporâneos de Santo Tomás.

Posto que esta abordagem está intimamente relacionada à possibilidade de se fazer dois tipos de teologia, poderíamos retroceder a inquirição sobre este recurso até períodos que antecedem o próprio advento do Cristianismo, apontando para que o pensar esta possibilidade de duas teologias é, sem dúvida alguma, muito mais antigo, e isso se tivermos em conta que uma teologia revelada,[3] de certo modo, já se encontra na base da religião dos hebreus (sempre vinculada à revelação bíblica) e uma teologia natural, remonta à Filosofia clássica de Platão (c 428-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), para não falar dos pré-socráticos, embora não possamos deduzir disto que qualquer relacionamento entre ambas já existisse na Antiguidade[4]. Porém, não enveredemos por essas sendas, pois elas nos conduziriam a caminhos mais longínquos do que aqueles que importam a presente reflexão.

O que realmente é necessário destacar é que a abordagem dois-andares já se fizera presente, ao menos, desde Agostinho (354-431) e Boécio (480-524). Porém, é notório que mesmo no período da Patrística, o problema de se estabelecer à exata relação entre a e a razão já se tornara central da reflexão cristã, e, isso de modo mais acentuado entre os Padres Gregos. Certo é que alguns tinham uma visão mais organicista da relação entre ambas, a exemplo de Clemente (c.150-217) e Orígenes (c.185-253); porém, tem sido sustentado que outros concebiam-nas como relativamente estanques, e que esta tendência foi a que se tornou mais comum no período medieval.[5] Todavia sempre houve entre ambas a convicção de que a fé e razão não são de natureza totalmente heterogêneas, posto que é possível correlacioná-las! 

A distinção das ciências

Em Santo Tomás vemos uma culminância possível do esforço em conjugar harmoniosamente a auctoritas e a ratio, esforço este que se desenrolara durante séculos, onde ora a pêndulo se inclinava mais para a ratio, a exemplo de Boécio, ora se inclinava mais para a auctoritas, Hilário (315-367). Sempre que se fazia necessário um modelo que mantinha o equilíbrio entre os dois princípios, era necessário retornar a Agostinho, o Mestre do Ocidente. Mas, novos problemas se apresentaram diante do Cristianismo, a redescoberta de Aristóteles requererá uma nova síntese que viesse a nutrir-se menos do neoplatonismo e que se conciliasse com as novas fontes de saber que impulsionavam as ciências.[6] Ao assumir essa ousada tarefa, Santo Tomás não confundiu as disciplinas e tampouco atribuiu à razão alguma qualidade que, de certo modo, ferisse a graça, antes ele estabeleceu solidamente a distinção entre a filosofia (entendida como a philosophia prima) e a teologia (entendida como doctrina sacradelimitando claramente os seus terrenos. Boehner observa:

Embora, pensadores cristãos de eras anteriores houvessem percebido claramente a distinção entre filosofia e teologia, contudo nem sempre procederam a uma delimitação exata entre as duas ordens, pelo menos no que concerne à exposição concreta de suas doutrinas. Com S. Tomás acentua-se a tendência para destacar as consequências práticas desta distinção, já teoreticamente reconhecida, entre os dois domínios. Todavia, a ideia de uma filosofia separada e totalmente autônoma lhe é tão alheia quanto aos outros grandes vultos da filosofia cristã. (BOEHENER, GILSON, 2008, p. 450).

Considere-se que Santo Tomás adota a distinção aristotélica das três ciências, a saber: as teóricas ou especulativas; as práticas e as produtivas. Sendo que entre as ciências teóricas, temos a Teologia, a Matemática e a Física. 

No Comentário ao Sexto Livro da Metafísica de Aristóteles, Santo Tomás distingue as três partes da filosofia teórica, sendo a primeira uma aitiologia (aquela que trata das causas), livro V I, Lição 1ª. 1164; a segunda uma ontologia (aquela que trata o ente enquanto ente), Livro V I, Lição 1ª. 1165 e por fim, a terceira uma teologia (aquela que trata das inteligências separadas / Deus e os anjos). 

Porém, Santo Tomás distingue esta Teologia ou Metafísica, daquela que ele chamará de Teologia das Escrituras ou a Sagrada Doutrina.

Era necessário existir para a salvação do homem, além das disciplinas filosóficas, que são pesquisadas pela razão humana, uma doutrina fundada na revelação divina.[...] Portanto, além das disciplinas filosóficas, que são pesquisadas pela razão, era necessária uma doutrina sagrada, tida por revelação.[...] Nada impede que os mesmos objetos de que as disciplinas filosóficas tratam, enquanto são conhecíveis à luz da razão natural, sejam tratados por outra ciência, como conhecidos à luz da revelação divina. A teologia, portanto, que pertence à doutrina sagrada difere em gênero daquela que é considerada parte da filosofia. (Suma de Teologia, 1ª, q.1 a. solução e resposta ao 2º. Artigo.)

Por meio desta distinção podemos entender que se Santo Tomás concede à razão uma importância elevada no processo de inquirição sobre Deus e de questões correlatas no âmbito da natureza (andar inferior), ele não o faz em detrimento da fé e da revelação (andar superior), mas, concedendo que:

A sabedoria filosófica tem como sujeito o ente como tal e só conhece Deus como sua causa eficiente e final última. Embora esse conhecimento seja a aspiração mais profunda das criaturas intelectuais, só é atingível pela sabedoria filosófica de modo precário e longínquo. A teologia das Escrituras tem o próprio Deus como sujeito, tal como ele se revela, comunicando algo de seu próprio conhecimento. (NASCIMENTO, s/d. p. 126)

Logo, o sujeito-gênero das inquirições são diferentes, embora coincidentes, em uma nota da Suma de Teologia, 1ª, q.1 solução, o comentarista observa que a teologia natural é uma parte da metafísica que considera Deus como o princípio de seu sujeito-gênero: o ser enquanto ser; logo, o princípio de todos os seres. Até este ponto é possível chegar através exercício racional, pois Deus mesmo nos deu indícios no plano da natureza pelos quais podemos estabelecer esta inquirição (Rm 1:20); todavia, é necessário ir mais além se pensamos no conhecimento soteriológico[7] sobre Deus, e, para isso se faz necessário uma teologia das Escrituras, que se pauta na revelação de Deus, ou seja, no conhecimento que Ele nos dá de si mesmo. Pois, da primeira forma, teremos que nos reportar a ele “[…] como o olho da coruja para com a luz do Sol, como diz no livro II da Metafísica, não podemos chegar a ele, pela luz da razão natural, senão na medida em que somos conduzidos a ele pelos efeitos”. (Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio. 5, a. 4, trad. p, 132).

 A abordagem dois-andares, segundo consta na obra de Santo Tomás, pauta-se em uma clara distinção, solidamente estabelecida, entre os campos atinentes à razão e à fé, portanto acreditamos que, após as breves considerações supra, fica claro que a relação entre ambas, bem como entre teologia natural e a teologia das Escrituras, implica em liberdade condicionada[8] da razão que não fere o domínio da Graça!

 Todavia, encerraremos este tópico com uma citação de Gilson, que corrobora com essa conclusão.

Todo domínio da filosofia pertence exclusivamente à razão; isso significa que a filosofia deve admitir apenas o que é acessível à luz natural e demonstrável apenas por seus recursos. A teologia baseia-se, ao contrário, na revelação, isto é, afinal de contas, na autoridade de Deus. […] Assim, delimitados os dois domínios, deve-se constatar, porém, que ocupam em comum certo número de posições. Em primeiro lugar, o acordo de direito entre suas conclusões últimas é coisa certa, muito embora esse acordo não apareça de fato. Nem a razão, quando fazemos uso correto dela, nem a revelação, pois ela tem Deus por origem, seriam capazes de nos enganar. Ora, o acordo da verdade com a verdade é necessário. É certo, pois, que a verdade da filosofia se uniria à verdade da revelação por uma cadeia ininterrupta de relações verdadeiras e inteligíveis, se nosso espírito pudesse compreender os dados da fé […] a impossibilidade em que temos de tratar filosofia e teologia por um método único não nos proíbe considerá-las como constituindo, idealmente, uma só verdade total. (GILSON, 2007, p. 655-656).

Mesmo considerando que as verdades da fé não se alcançam através razão, depois de concedidas por meio da revelação são passíveis de articulação, aprofundamento e defesa racional.

A queda, a razão e a autonomia

Diante do já exposto, afirmar que Santo Tomás tinha uma noção incompleta da Queda, nos parece um tanto temerário. A arquitetônica de sua teologia demonstra que Santo Tomás tinha uma noção completa da Queda, todavia, em face da noção da Queda proposta e adotada pela Reforma, quase três séculos depois, admite-se que sua concepção é radicalmente diferente.

Este problema é tratado pelo Aquinate na I Seção da II Parte da Suma de Teologia, Questão 85. Tentemos sintetizar sua posição. Ao responder à questão: “O pecado diminui o bem da natureza?”; Santo Tomás, inicialmente, distingue os três possíveis significados de “bem da natureza”.

1º. Os princípios que constituem a natureza, com as propriedades deles decorrentes (como as potências da alma).

2º. A inclinação natural para a virtude, como um bem específico da natureza.

3º. O dom da justiça original que foi dado a toda humanidade no primeiro homem.[9]

Quanto à ação do pecado ele nos diz que no primeiro aspecto não houve perda nem diminuição, quanto ao terceiro foi totalmente tirado após a Queda, já o segundo (a inclinação natural para a virtude) foi diminuído.[10] Santo Tomás nos diz.

Como foi dito, o bem da natureza que diminui pelo pecado é a inclinação natural à virtude. Esta inclinação convém ao homem pelo fato de ser ele racional. É isso que lhe permite agir segundo a razão, e isso é agir segundo a virtude. Ora, o pecado não pode tirar completamente do homem que seja racional, porque já não seria capaz de pecado. Por conseguinte, não é possível que o predito bem da natureza seja tirado totalmente. (Suma de teologia. Ia. IIa, q. 85, a.2, solução)

Santo Tomás defende que esta inclinação tem sua raiz na natureza racional, e, que “tende ao bem da virtude como a um termo, a um fim” (Idem.), explica-nos que a diminuição poderia ocorrer de duas formas, no lado da raiz ou no lado do termo, porém, ele não pode diminuir no lado da raiz, pois isso diminuiria a própria natureza, o que já se estabelecera (diminuir na raiz colocaria o risco de desaparecimento a própria natureza racional); conclui Santo Tomás, que a diminuição se dá do lado do termo, na colocação de impedimento para que tal inclinação não se chegue a ele. Eis como conclui esse momento de sua argumentação.

Mas, porque há diminuição pelo impedimento posto para não chegar ao termo, é claro que isso pode ir ao infinito, uma vez que o homem pode acrescentar ao infinito pecado sobre pecado. Entretanto, a inclinação não desaparece totalmente, pois fica a raiz. Tem-se um exemplo disso no corpo diáfano que tem, por ser diáfano, uma inclinação para receber a luz. Esta inclinação ou aptidão é diminuída pelas nuvens que sobrevêm, se bem que ela subsista sempre na raiz da natureza. (Suma de teologia. Ia. IIa, q. 85, a.2, solução).

No artigo 3º. Santo Tomás trata especificamente das sequelas do pecado, (e isso também em relação aos efeitos da Queda) sobre as potências inferiores e a própria razão. Na alma há quatro potências que podem ser sujeitos de virtudes: a razão; a vontade; o irascível e concupiscível. Segundo o Doutor Angélico, quando estas quatro potências são demovidas da sua ordem (dos seus respectivos fins) temos que quanto à razão, há ignorância, quanto à vontade, há malícia, quanto ao irascível, há fraqueza e quanto ao concupiscível, há concupiscência.[11] E assim, conclui:

Portanto, são quatro feridas infligidas a toda a natureza humana pelo pecado do primeiro pai. Ora, como a inclinação ao bem da virtude é diminuída em cada um pelo pecado atual, como fica claro pelo que foi dito, estas são quatro feridas consequências dos outros pecados, a saber, a razão encontra-se embotada, sobretudo em matéria de ação; a vontade endurecida em relação ao bem, e aumenta uma maior dificuldade de agir bem e a concupiscência inflama-se mais. (Suma de teologia. Ia. IIa, q. 85, a.3, solução).

Portanto, no que tange ao conceito cristão de Queda, Santo Tomás, tem uma teoria completa e coerente, óbvio que diverge da concepção pessimista latina em que o homem era considerado despojado dos dons gratuitos e ferido em sua natureza, concepção essa que, em certo sentido, será retomada pela Reforma. A origem da teoria do Doutor Angélico pode ser localizada na concepção do Pseudo-Dionísio, que ao tratar dos anjos que pecaram, observa que eles conservaram em integridade o que pertence à natureza.[12] Santo Tomás seguirá esta perspectiva para elaboração de sua teoria, que tende a evitar extremos perigosos.

Já no contexto do pensamento evangélico contemporâneo, sobre esse tópico, Schaeffer defende a noção da Reforma, porém, ao fazê-lo, não considera de modo pleno a apreciação de Santo Tomás. Sustenta que somente a noção reformada pode ser considerada bíblica e que, de modo “contrário a Santo Tomás”, somente a Reforma preserva a autonomia como atributo exclusivo de Deus.

A Reforma aceitou a noção bíblica de uma Queda total, absoluta. O homem em sua totalidade era obra de Deus; agora, porém é decaído em sua natureza, inclusive o intelecto e a vontade. Em contraste com a posição tomista, admitia que somente Deus é autônomo. (SCHAEFFER, 1974, p. 18-19).

Aqui parece-nos se estabelecer dois problemas em relação a atitude reformada, um deles é a crescente tendência a absolutização de sua hermenêutica[13] da Queda, e, o outro é a não consideração de certas nuanças do pensamento de Santo Tomás, exatamente aquelas que acima tentamos ressaltar. Quanto ao falar de uma “autonomia da razão” em Santo Tomás; primeiro, as explicitações supra, não deixam qualquer dúvida de o quanto é impróprio atribuir-lhe tal conceito. 

Mas, acrescente-se a isso, que nos parece deveras anacrônica essa atribuição, uma vez que, não se pode dizer, com certeza, que a conjuntura histórico-social e as condições culturais e espirituais da época em que Santo Tomás viveu exalavam a atmosfera propícia à eclosão deste conceito; sobretudo, porque que o conceito de autonomia da razão, conforme uso corrente, é sem dúvida alguma, fruto das reflexões do IluminismoCuvillier (1976) resumiu o conceito de autonomia razão, da seguinte forma: “Estado da vontade racional que não obedece senão a regra imanente de si mesma”. (CUVILLIER, 1976, p. 15). A origem conceitual do autônomo remonta até os escritos de Kant (1724-1804), que considera todo “ser dotado da faculdade de razão como potencial fundador de uma legislação universal”.[14] Podemos afirmar que se esta concepção fosse apresentada a Santo Tomás, ele oporia a ela a noção de que: “[…] a razão encontra-se embotada, sobretudo em matéria de ação; a vontade endurecida em relação ao bem, e aumenta uma maior dificuldade de agir bem e a concupiscência inflama-se mais”.[15] 

Conclusão

Deste breve percurso podemos concluir que a abordagem dois-andares já era familiar ao Cristianismo (com suas devidas variações) e que Santo Tomás faz uso dela dentro de um conjunto arquitetônico, por ele construído, de forma a harmonizar coerentemente o exercício teológico natural com o exercício teológico da Doutrina Sagrada. Na elaboração de sua teologia (ulteriormente chamada aristotélico-tomista) valoriza-se demasiadamente a razão, posto que, leva em conta a sua capacidade em alcançar certas modalidades de verdade;[16] todavia, também considera que ela necessita da fé, pois sozinha não pode alcançar o conhecimento do mistério essencial de Deus.  

Confrontando a teologia filosófica de Santo Tomás, relativa à razão e às potências inerentes ao homem, com aquela que foi desenvolvida pela Reforma; vemos o quanto realmente o homem é valorizado, e isso, de modo a constituir o que Pedro Dale Nogare chamou de um verdadeiro humanismo cristão.[17] Dados os princípios adotados na consecução de seu intento, extraídos principalmente do Corpus Aristotelicum, disponível em sua época, o conjunto arquitetônico de sua obra não poderia ter outro caráter. E se expressa algo que é compreendido como uma visão otimista do homem é porque também extrai das Escrituras a afirmação da grandeza do homem, enquanto ser criado a imagem de Deus, imagem essa, que em algum sentido, manteve-se mesmo após a Queda, como se pode deduzir das palavras do Apóstolo Santo Tiago (Tg 3: 9), a lógica seguida por Santo Tomás pode ser definida como uma “lógica de participação”.

Ao contrário, Schaeffer, adotando a perspectiva reformada sobre o homem e principalmente sobre a Queda, não poderia construir, de modo coerente, um conjunto arquitetônico de caráter diferente do que construíra, a sobrevalorização da vontade em contraposição à razão, traço característico da mentalidade semita, conforme expresso nas Escrituras, princípio sempre tão caro à Reforma, confere à sua antropologia bíblica uma tonalidade sombria que logo se destaca ao ser contrastada com a concepção tomista, os reformados esforçam-se por manter a fé e razão postas em campos absolutamente estanques, de certo modo, a lógica reformada, neste ponto é uma “lógica da universidade” (herdada de certa face do nominalismo).

Podemos depreender disto que uma dentre as duas concepções é melhor ou pior que outra, enquanto representação dos arcanos de Deus expressos nas Escrituras? De maneira alguma! Antes, são diferentes, devido os diversos motivos, já apontados neste escrito, mas ambas se nutrem da mesma fonte espiritual originária. Ambas pretendem, atribuir a Deus toda glória e toda soberania, porém enquanto a Reforma escolheu para isso a via negativa, ou seja, tirar tudo do homem para engrandecer a Deus, Santo Tomás preferiu uma via positiva, preservar a integridade de algo no homem, para que em todas as coisas, inclusive nessa característica, Deus seja engrandecido! 

Referências

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Volume I, Trad. Equipe Edições Loyola, São Paulo, Edições Loyola, 2005. 

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Volume II, Trad. Equipe Edições Loyola, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Volume IV, Trad. Equipe Edições Loyola, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Volume V, Trad. Equipe Edições Loyola, São Paulo, Edições Loyola, 2005.

AQUINO, Tomás de. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio: Questões 5 e 6. (tradução e introdução de Carlos A. R. do Nascimento), São Paulo, Fundação Editora UNESP, s/d.

BOEHENER, P., GILSON, É. História da Filosofia Cristã, Petrópolis, RJ. Vozes, 2008.

BROWN, C. Filosofia e Fé Cristã, Trad. Gordon Chown, Edições Vida Nova, São Paulo, 1983.

CUVILLIER, A. Pequeno Vocabulário Filosófico, In: Coleção Atualidades Pedagógicas. Volume 82. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976.

GILSON, É. A Filosofia na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 2007.

NASCIMENTO, C. A. R. do. “Tomás de Aquino, a metafísica e a teologia”, In: Frutos de Gratidão – Homenagem a Francisco Catão em seus oitenta anos. São Paulo, Paulinas – Unisal, s/d.

SCHAEFFER, F. A Morte da Razão, Aliança Bíblica Universitária (ABU) - Fiel, São Paulo, 1974.

SCHAEFFER, F. O Deus que se Revela, Editora Cultura Cristã, São Paulo, 2002. 

SCHOLEM, G. As Grandes Correntes da Mística Judaica, Trad. Dora Ruhman, Fany Kon, Jeanete Meiches e Renato Mezan, Editora Perspectiva, São Paulo, 1972.

TILLICH, P. J. Teologia Sistemática, Trad. Getúlio Bertelli, 2ª Edição, São Leopoldo, Sinodal, 1987.

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Notas

[1]Escape From Reason (1968). Referir-se a esta obra como livreto não deve ser entendido como um tom depreciativo, reporta-se apenas às suas pequenas proporções. Ainda assim, ela se reveste de importância fundamental para o pensamento cristão evangélico contemporâneo, junto ao livro O Deus que Intervém e ao título O Deus que se Revela (o primeiro e o último, respectivamente) compõe a trilogia que reflete, seriamente, em como nos âmbitos da literatura, da filosofia, da arte, da música, do teatro, do cinema e da televisão perdemos o rumo do conhecimento da verdade e mergulhamos em um abismo de irracionalidade e loucura que causou tanto a morte de Deus, quanto à morte do homem, em suma a morte da razão. 

[2]Corroborando com esta apreciação temos o testemunho de sua esposa, vide: SCHAFFER, Edith, L’Abri, In: SCHAFFER, Francis, 2002, p.7-8.                 

[3] Evita-se nesse contexto introduzir ao problema relativo à constituição ou não de uma teologia judaica antiga. G. Scholem coloca esse problema em discussão no contexto da Idade Média, contrastando a atitude do judaísmo “rabínico” com a atitude cabalista (SCHOLEM,1972, capítulo 1, 9 – Vide Referência Bibliográfica). 

[4]Essa dedução era comum no raciocínio dos primeiros grandes pensadores cristãos, ou seja, entre os Padres da Igreja, inclusive numa afirmação de que a teologia natural dos gregos era, na realidade, uma cópia (ou plágio) da teologia revelada dos hebreus, isso traduzido no espírito helênico. 

[5]Esta última é a perspectiva adotada por Colin Brown, que arrola São Tomás nesta corrente. (BROWN, 1983, capítulo 1, 3-5 – Vide Referência Bibliográfica).

[6]Lembrando que essa seria uma empreitada ousada, posto que as autoridades eclesiásticas já haviam se manifestado em oposição, inclusive em condenação, ao uso das obras de Aristóteles com finalidade didática. Cf. NASCIMENTO, A recepção de Aristóteles pela Igreja Cristã Latina Medieval.

[7]Note que a resposta à questão 1ª da Suma, conforme a citação supra, enfatiza logo em de início o caráter soteriológico da Doutrina Sagrada, “Era necessário existir para a salvação do homem, […]”.

[8]Liberdade condicionada da razão. Pois sua condição fundamental ao lidar com os princípios ao máximo inteligíveis é que se reporte a eles, que são naturezas completas e independentes, enquanto princípios gerais dos seres.

[9]Cf. Suma de teologia. Ia. IIa, q. 85, a.1, solução.

[10]Cf. Suma de teologia. Ia. IIa, q. 85, a.1, solução.

[11]Cf. Suma de teologia. Ia. IIa, q. 85, a.3, solução.

[12]Devemos essa observação ao comentarista desta seção Albert Plé. Cf. Suma de teologia. Ia. IIa, q. 85, apresentação dos artigos, tradução p. 457. 

[13]O teólogo protestante (luterano) Paul Tillich na Introdução de sua volumosa Teologia Sistemática, não deixa passar despercebida esta tendência e lhe dirige uma séria crítica. Cf. na tradução Editora Sinodal /IEPG, pp. 13-64. 

[14]Pensamos muito especificamente na forma como Kant delineia este conceito em “O que é o Iluminismo?”; e em sua “Crítica da Razão Prática, I, parágrafo 8º’”.

[15]Conforme podemos ver em Suma de teologia. Ia. IIa, q. 85, a.3, solução.

[16]Cf. Suma Contra os Gentios, Capítulo III – A possibilidade de descobrir a verdade divina.

[17]Cf. Humanismos e Anti-Humanismos. Editora Vozes.