O princípio conceitual de jogo na hermenêutica de Gadamer: abertura à experiência religiosa[1]
The conceptual principle of play in Gadamer's hermeneutics: openness to religious experience

Jungley de Oliveira Torres Neto
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato: 
jungleyjf@hotmail.com


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Resumo: O presente trabalho pretende, a partir da hermenêutica desenvolvida pelo filósofo Hans- Georg Gadamer, investigar o conceito de jogo e sua relação com a concepção de hermenêutica além do âmbito epistemológico, mais precisamente, em seu âmbito ontológico, isto é, através da noção de jogo, trabalhada por Gadamer, almejamos pensar não somente epistemologicamente, mas de modo ontológico, o que nos abri caminho para compreensão, onde toda problemática surge e se percute. Apontar, outrossim, que em Gadamer, a hermenêutica não se resume apenas no resultado de um procedimento técnico, mas se desvincula do método científico enquanto caminho único para se chegar à verdade, a qual se abre para o fenômeno da compreensão (Verstehen) através da experiência humana do mundo e religiosa. 

Palavras- chave: Gadamer; Hermenêutica; Jogo; Ontologia

Abstract: The present work intends, from the hermeneutics developed by the philosopher Hans-Georg Gadamer, to investigate the concept of play and its relationship with the conception of hermeneutics beyond the epistemological scope, more precisely, in its ontological scope, that is, through the notion of play, worked by Gadamer, we aim to think from the epistemology of interpretation to the ontology of understanding, where every problem arises and affects itself. Point out, moreover, that in Gadamer, hermeneutics is not just the result of a technical procedure but is detached from the scientific method as the only way to reach the truth, which opens to the phenomenon of understanding (Verstehen) through the human experience of the world and religious. 

Keywords: Gadamer; Hermeneutics; Play; Ontology

Introdução

É inegável que dentre nossas experiências há a que chamamos de religiosa, isto é, a experiência de vinculação com algo que se apresenta com sua excepcionalidade própria. Faz-se oportuno analisá-la, ou seja, efetivar uma investigação fenomenológica em sua chave hermenêutica. Em termo gerais, a fenomeno-logia convida-nos para reflexão sobre o fenômeno, sobre o que se manifesta a nós, para descrição e testemunho dessa experiência. Em sua chave hermenêutica convida-nos para compreensão sobre esses fenômenos que se manifestam em suas potências. 

Ao partir da elaboração de Johan Huizinga que considera o jogo como o fato mais antigo da cultura e está presente em tudo o que acontece no mundo, Gadamer concebe a ideia de jogo (Spiel) como uma presença não material. Na língua alemã o termo correlato de jogo é Spiel (Spielen, sendo o verbo correspondente) e seu uso é diferenciado do português. Em alemão, jogo (Spiel) aponta em sua significação tanto para jogar como brincar, tocar um instrumento ou representar uma peça de teatro (Schauspiel). Num sentido mais holístico, ele apresenta um aspecto essencial no jogar: o ir e vir de um movimento que não tem ponto de partida e nem de chegada. Nas palavras de Gadamer: “O movimento de vaivém é central para a definição essencial do jogo” (GADAMER, 1999, p. 177), esse movimento e dinamicidade é a própria legitimidade do jogo[2]

Para Gadamer essa discussão é essencial para a compreensão da natureza histórica da hermenêutica ontológica, o autor trata de alguns exemplos como: a encenação teatral, da festa, da música, apontando que tais exemplos sempre são reinterpretações e só existem nas respectivas tradições interpretativas, não como entidades a-históricas. E isso será abordado sob a discussão de "Spiel” /jogo/play, como será mostrado posteriormente.

Gadamer afirma que sua análise no tocante ao termo jogo é pensada de forma fenomenológica (GADAMER, 1999, p.23). Assim, na primeira parte de sua obra Verdade e Método ele apresenta o conceito de jogo, como modelo estrutural para a explicação da compreensão. Nas palavras do teórico Luiz Rohden: “O jogo é modelo estrutural que explicita e possibilita, apropriadamente, a efetuação do princípio da experiência” (ROHDEN, 2003, p. 136).

Gadamer afirma que: “Precisa-se notoriamente de um retorno as experiências humanas mais fundamentais”. A questão que surge é: “Qual é a base antropológica de nossa experiência de arte?” E para tal análise o filósofo aponta que: Essa questão deve ser desenvolvida com base nos conceitos de jogo[3], símbolo e festa”. (GADAMER, 1985, p. 37). 

Nas palavras de Gadamer:

Quando é que se fala de jogo e o que está implícito nisso? Certamente de início o ir e vir de um movimento que se repete constantemente. Pensa-se em certos ditos como o jogo de luz ou o jogar das ondas em que há um constante ir e vir, ou seja, um movimento que não está ligado a uma finalidade última (GADAMER, 1985, p. 38).

1. O aspecto ontológico para compreensão 

Para Gadamer, fundamentalmente, o sentido de jogar pressupõe um movimento de participação, engajamento, de “feedback”, de retorno e resposta, “é preciso que ali sempre haja um outro elemento com o qual o jogador jogue e que, de si mesmo, responda com um contra lance ao lance do jogador” (GADAMER, 1999, p. 159). E esse retorno ou resposta diz respeito ao ato de compreender (movimento tanto de fora para dentro, quanto de dentro para fora) que pertence ao todo da experiência do homem no mundo enquanto “jogadores-intérpretes”. O jogar, diz Gadamer: “Só cumpre a finalidade que lhe é própria quando aquele que joga entra no jogo” (GADAMER, 1999, p. 155).

Gadamer diz:

O movimento é característica básica do que está vivo [...]. Tal já escreveu Aristóteles, formulando o pensamento de todos os gregos. O que é vivo tem o impulso do movimento em si mesmo, é auto movimento. O jogo aparece então como um automover-se que por seu movimento não pretende fins nem objetivos, mas o movimento como movimento (GADAMER, 1985, p. 38).

Ora, se as experiências mais elementares humanas auto implica uma relação com algo/ alguém, na religião não é diferente, conforme nos aponta van der Leeuw: “um fenômeno é algo que se mostra (was sich zeigt)”, este mostra-se, claro, é para alguém. Este mostra-se, no entanto, corresponde tanto aquilo que se mostra, quanto àquele a quem é mostrado, isto é, diz respeito à relação: um objeto relacionado a um sujeito e um sujeito relacionado a um objeto. Em outros termos, o fenômeno se mostra/ manifesta a alguém e quando este alguém fala sobre aquilo que se lhe mostra, então, “surge” a fenomenologia (VAN DER LEEW, 1956, p. 769).

Tal relação de algo e/com alguém está auto implicada no significado da palavra jogo, enquanto o vaivém de um movimento que não se atém ou se fixa em nenhum alvo pré-determinado onde se pretenda chegar ou alcançar. O que está em questão é o jogo que é jogado e não estritamente o jogador e suas pretensões.

Nas palavras de Gadamer:

O movimento de vaivém é obviamente tão central para a determinação da essência do jogo que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. O movimento do jogo como tal também é desprovido de substrato. É o jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo; não há um sujeito fixo que esteja jogando ali. O jogo é a realização do movimento como tal (GADAMER, 1999. p. 177).

Sobre os diversificados exemplos acerca desta questão, Gadamer fala do jogo das luzes, do jogo das ondas, do jogo da peça da máquina no rolamento, do jogo das forças, do jogo das cores e até mesmo do jogo das palavras. O movimento do jogo como tal é desprovido de substrato, é autônomo, pois ele vai como que por si mesmo. 

Entretanto, o filósofo nos aponta que para o jogo acontecer não é absolutamente indispensável que outro participe efetivamente do jogo, “mas é preciso que ali sempre haja outro elemento com o qual o jogador jogue e que, de si mesmo, responda com um contra lance ao lance do jogador” (GADAMER, 1999, p.159). O que nos faz pensar no jogo enquanto instância essencialmente relacional. Gadamer chama a atenção para o fato de que: “Tal definição do movimento do jogo significa, ao mesmo tempo, que o jogar exige sempre aquele que vai jogar junto. Mesmo o espectador que olha”[4] (GADAMER, 1985, p. 39).

Gadamer cita que: 

Seria como se o crítico de uma encenação teatral discutisse apenas o “como” da direção, a qualidade dos personagens e coisas tais. É bastante bom e certo de que ele faça isso – mas esse não é o modo como a obra e a significação que esteja ganhou na apresentação tonando-se visível para quem quer que seja (GADAMER, 1985, p. 47).

O termo e o modelo do jogo para a explicação do processo de compreensão proposto por Gadamer é essencial na medida em que o autor nos permite pensar que a compreensão é como um jogar, um movimento, uma estrutura aberta, não possui um delineamento estrito e determinativo. Compreender, segundo Gadamer, pertence ao todo da experiência do homem no mundo e como “jogadores-intérpretes” somos interpelados a todo o momento. Eis o dinamismo tal qual no movimento do jogo.

Neste desiderato, podemos inferir que a fenomenologia da religião pode vislumbrar no princípio conceitual de jogo à vivência (Erlebnis) compreensível da gradativa revelação (allmähliches Offenbarwerden), em seu sentido mais intenso e profundo, da experiência do transcendente e/ ou do Sagrado, mais precisamente, a fenomenologia da religião diz respeito à compreensão (Verstehen) e testemunho (Zeugen) da experiência humana com o Sagrado. Compreender e testemunhar seria, portanto, a tarefa genuína da fenomenologia. Fenômenos esses que se apresentam e relacionam-se com o homo religiosus. Neste sentido, a experiência e a compreensão são partes da atitude humana, do modo de existir e conhecer do ser humano diante do mundo.

2. A noção de jogo como símbolo 

Gadamer em seu trabalho textual: “A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa” expande a noção de jogo, problematiza e coloca em questão “o que significa símbolo?” O filósofo responde que símbolo “é antes de tudo uma palavra técnica da língua grega e significa pedaços de recordação [...]. É algo com que se reconhece em alguém um antigo conhecido” (GADAMER, 1985, p.50).

Gadamer reforça que:

O símbolo não apenas remete para significação, mas torna-a presente: ele representa significação [...]. A representação aí não significa que algo está substitutivamente ou impropriamente e de modo indireto, como se fosse um substituo ou sobressalente [...]. O representado está antes ele próprio aí e de modo como possa estar. O quadro que é pendurado no saguão da prefeitura ou no palácio episcopal ou onde quer que seja deve ser uma parte de sua presença (GADAMER, 1985, p. 55).

Tal movimento estrutural nos possibilita pensar o entrelaçamento símbolo- intérprete, jogo-compreensão, isto é, a estrutura da compreensão exige de certa forma “entregar-se à situação”, o sujeito do jogo é o próprio jogo. O conceito de jogo adquire, gradativamente, o modelo estrutural para explicação da compreensão e torna-se o fio condutor na explicação ontológica.

Comentando Gadamer, afirma Rui Sampaio da Silva:

O ser do jogo tem um caráter paradigmático para a hermenêutica, desde que tenhamos em consideração, como Gadamer tem o cuidado de sublinhar, que o sujeito do jogo (o subjectum, o substrato) não é o jogador, mas o próprio jogo. É certo que o jogo não é jogo sem os jogadores. (...) Jogo e jogador constituem uma unidade indissolúvel, mas o primado pertence ao jogo (RUI, 2000, p. 538).

Do jogo pode-se decorrer a experiência hermenêutica ao possibilitar o insight que nos permite pensar: “eu nunca tinha visto por este viés antes”. O primado do jogo diante dos jogadores que o executam acaba sendo experimentado pelos próprios jogadores, e essa experiência dinâmica ocorrida no movimento do jogo apresenta situações sem que os jogadores as tivessem previsto, o que implica em assumir o “desconhecido vir a ser”[5].

De maneira decisiva Gadamer diz:

Assim, confluem a exposição sobre o caráter simbólico da arte e nossas reflexões iniciais sobre o jogo. Já ali, a expectativa de nosso questionamento desenvolvia-se a partir do fato de que o jogo sempre foi uma espécie de autorrepresentação. Isso encontrou expressão na arte, no caráter específico do acréscimo de ser, da representatio, do ganho em ser, que um ente vivencia representeando-se (GADAMER, 1985, p. 58).

Nesse sentido, Gadamer afirma em seu trabalho textual, “A Razão na Época da Ciência”, que: “Compreender é uma aventura e é, como toda aventura, perigoso” (GADAMER, 1983 p. 75). Aceitar esse desconhecido é assumir ao mesmo tempo o “caráter aventureiro” da compreensão, o que amplia as experiências humanas, isto é, nosso autoconhecimento e nosso horizonte do mundo. O autor e comentarista Chris Lawn nos aponta que “o jogo pode, muitas vezes, começar como uma simples diversão e, repentinamente, se transformar num caso muito sério.” (LAWN, 2007, p.123).

Gadamer em “A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa” ao estender o seu raciocínio na abordagem de jogo e símbolo irá abarcar o conceito de “festa”, o autor começa por afirma que: “Festa é coletividade e é a representação da própria coletividade. Uma festa é sempre para todos. É assim que dizem: “fulano se excluiu” quando alguém não participa de uma festa” (GADAMER, 1985, p. 61). Tal como no jogo não se joga sozinho, no fenômeno da festa acontece o encontro, onde o “eu” se transforma em “nós”.

O autor continua afirmando que: “Celebrando-se uma festa, a festa sempre está lá o tempo todo. Este é o caráter temporal da festa: que ela é celebrada e não recai na duração de momentos que se revezam” (GADAMER, 1985, p. 63). Ela não é a-histórica, contém sentidos dos quais o levam as mais diversas interpretações, celebrações e isso periodicamente e dinamicamente. Gadamer aponta de forma fundamental que, “cada obra de arte tem, portanto, um tempo próprio que ela nos impõe” (GADAMER, 1985, p. 69).

Nas palavras de Gadamer:

É o tempo próprio da peça musical, é tom próprio de um texto poético que se tem que encontrar. E isso só pode acontecer no ouvido interior. Cada reprodução, cada declamação ou leitura em voz alta de um poema, cada encenação teatral em que entrem mesmos os maiores mestres da arte mimica de dizer ou de cantar, só transmitem uma real experiência artística da própria obra, quando nós, com nosso ouvido interior, ouvimos algo completamente diverso do que se passa realmente diante de nossos sentidos (GADAMER, 1985, p.67).

Através da noção de jogo, abordada por Gadamer, amplia-se a ideia de círculo hermenêutico abordada anteriormente, o que nos faz pensar na passagem do método à hermenêutica ontológica, na passagem de jogo à símbolo e à festa. Nesse sentido, o conceito de jogo nos faz pensar na ontologia da obra de arte – a reflexão sobre o modo de ser da arte. Por um lado, essa noção gadameriana se afasta da concepção subjetiva que havia adquirido em Kant, por outro lado, aproxima-se das investigações antropológicas de pensadores como Huizinga, que afirma ser o jogo uma “função elementar da vida humana” (GADAMER, 1985, p 38).

A expressão “jogo” enquanto “jogo da arte” envolve tanto aquilo que a obra apresenta como também aquele que a interpreta, isto é, o intérprete em sua consciência, finitude, história, acervos de conhecimentos e cultura, e, a partir disso, podemos trazer à fala o que nos apresenta a obra de arte. Compreender, fundamentalmente, se perfaz na relação entre obra e intérprete e não na separação sujeito-objeto e essa participação do espectador pertence ao modo de ser da obra de arte como jogo. Nas palavras de Gadamer: “Através de sua apresentação o jogo jogado interpela o espectador e de tal modo que este passa a ser parte integrante do objeto, apesar de todo o distanciamento do estar de frente para o espetáculo” (GADAMER, 1999, p. 172).

Gadamer diz:

Mesmo o espetáculo continua sendo jogo, isto é, tem a estrutura do jogo, estrutura de ser um mundo fechado em si mesmo. Mas o espetáculo cúltico ou profano, por mais que seja um mundo fechado em si, que o representa, é como que aberto para o lado do espectador. Somente nele é que ganha o seu inteiro significado. Como em todo jogo, os atores representam seus papéis, e assim o jogo torna-se representação, mas o próprio jogo é o conjunto de atores (Spielern) e espectadores. De fato, experimenta de modo mais próprio, aquele, e representasse do modo como é "intencionado", àquele que não participa no jogo, mas assiste. Neles, o jogo (representação) é alçado igualmente à sua idealidade (GADAMER, 1999, p. 186).

O jogo da arte é, então, a relação entre aquilo que se apresenta e aquele que compreende; tal como na exposição que Gadamer faz sobre o teatro, o fato de que a interpretação não depende só dos atores, mas também da interação com a plateia (o que ele chama de "a quarta parede"), o espectador participa, fundamentalmente, do jogo enquanto jogador- intérprete, pois “o espectador consuma o que a representação (Spiel) é como tal” (GADAMER, 1999, p.185).

Temos que jogar o jogo a fim de compreendê-lo. Jogar é compreender. Trazer à fala o que nos apresenta a experiência. O teórico Maurizio Ferraris aponta que: “Viver é interpretar o próprio mundo interior e suas objetivações codificadas, ou seja, dar sentido às expressões do espírito” (FERRARIS, 2000, p. 154). Tal movimento de interpretar, dar sentido e compreender caracteriza-se no “jogo”. E isso fica bem claro quando Gadamer aponta que: “Todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no médium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete” (GADAMER, 1999, p. 566).

A obra não está pronta em seu significado ao qual basta comprovarmos, como também não se reduz ao subjetivismo contemplativo de quem a interpreta, mas se dá, fundamentalmente, na relação dela com quem a interpreta (eis o aspecto relacional no qual Gadamer trabalha a noção de jogo, símbolo e festa). Por ser uma relação, uma obra se multiplica em interpretações, “diferentes sensibilidades, diferentes percepções, diferentes aberturas fazem com que a configuração única, própria, una e mesma se manifeste numa multiplicidade inesgotável de respostas” (GADAMER, 2002, p. 14).

A hermenêutica filosófica desenvolvida por Gadamer sob a noção do jogo tem a finalidade de elucidar a estrutura da compreensão. O movimento do jogo implica a abertura do homem ao mundo no movimento de “jogadores e intérpretes”.

A noção de jogo, trabalhada por Gadamer, abre a experiência de verdade diversa daquela obtida por meio da racionalidade apodítica das ciências e essa experiência de jogo suprime a distância entre o objeto da compreensão e o compreender. O jogo é configuração (estrutura), como também a configuração (estrutura) é jogo na medida em que somente alcança sua plenitude a cada vez que é representada de forma dinâmica, autêntica e aberta.

Não obstante, podemos pensar também no jogo da linguagem[6] enquanto algo dinâmico, algo que vem ao entendimento e relacional. Este algo de que se fala aqui não é um algo-objetal, mas um sentido, e, portanto, está na esfera do diálogo, ou seja, a linguagem pressupõe dialogicidade, à capacidade de abrir-se ao vaivém característico do movimento do diálogo (o tema será tratado no subcapítulo 2.6), pois sempre se fala para alguém. Tal como não se jogo sozinho, não se participa de uma festa sozinho, a linguagem não se dá de forma unitária, pois ela é o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do acordo sempre maior, que é imprescindível para a vida. Tal como disse Aristóteles, “o homem é o ser dotado de linguagem”. Tudo que é humano passa pela linguagem (GADAMER, 2002, p.152).

O jogo se apresenta enquanto modelo ontológico e, para Gadamer, nos possibilita explicitar a estrutura ontológica da compreensão. Mais importante que o sistema de regras e as prescrições do jogo é o acontecer do jogo, o entrar no espetáculo e dele participar. O que decorre dessa participação, segundo Luiz Rohden, é o alargamento de nossa consciência e de nossa ação em relação ao mundo, aos outros, a nós mesmos e ao acontecer do ser-na-verdade[7] (ROHDEN, 2003, p. 136).

A abertura e o movimento dinâmico de vaivém, característico da noção de jogo, constata o fato de que Gadamer considera mau hermeneuta aquele que está certo de que pode ou deve ficar com a última palavra, no jogo das palavras, por exemplo, existe um constante diálogo que sempre pode ser retomado, não existindo a última palavra. 

Tal abordagem, que parte do princípio conceitual de jogo na hermenêutica de Gadamer, nos possibilita a condição de possibilidade fenomenológica em chave hermenêutica: permitir à abordagem compreensiva dos fatos e/ ou experiências religiosas, de modo dinâmico e ascendente. Entendo por experiência um modo “particular de conhecimento que brota do encontro vivo e direto com alguém ou alguma coisa”, o que nos remete à experiência enquanto relação, “prescindido do pape mais ou menos ativo do sujeito ou da maior ou menor intensidade do seu envolvimento” (GRECO, 1992, p.47). Quando nos remetemos a experiência religiosa, estamos nos remetendo, fundamentalmente, à relação sujeito e objeto e/ ou sua referência, seja de oração, culto, sacrifício, devoção, afeição ou qualquer ato de fé. A experiência religiosa é um ato relacional, isto é, que indica uma relação, seja de uma consciência que se dirige a algo, de alguém que se projeto para algo/ alguém, ela estabelece uma relação entre duas ou mais coisas. 

Nas Palavras de Carlo Greco: 

Sob o perfil estritamente fenomenológico, a diversificação das formas da experiência obedece a três modos fundamentais da presença do real na consciência: a presença das coisas (experiência do objeto), do outro (exponencia interpessoal), de nós a nós mesmos (experiência do eu). Estes três Âmbitos (as coisas, o outro e o eu) da experiência e a linguagem estão relacionados e comunicam-se entre si, definindo espaço do intencional no homem. Portanto, se a experiência religiosa é possível parece dever constituir-se fenomenologicamente dentro de tal espaço, ou seja, entre os polos daquilo que aparece (fenômeno) e o eu para qual tem lugar a parição (GRECO, 1992, p. 50).

Uma vez que, experiência religiosa é, intrinsecamente, uma vivência relacional, envolvendo os âmbitos objetivos, subjetivos e por isso ela aponta-nos para intersubjetividade. O ser humano está sempre diante de alguma relação ou às margens de algo e/ou alguém, mesmo que esse alguém seja diante de si mesmo, em outras palavras, o ser humano está sempre diante de alguma relação, seja com os demais seres humanos, com o mundo ou consigo, e, por conseguinte, a experiência religiosa é constituída em sua plenitude na relação humana com o sagrado ou com o transcendente. Entendo aqui algo sagrado ou transcendente como algo superior, sublime, uma abertura de possibilidade para uma experiência excepcional.

Nesse sentido, por mais que não se possa indicar com precisão ou determinar o que é o Ser, o Sagrado ou a Verdade, se pode experenciar as suas manifestações, abrindo-se para compreensão, no sentido do termo grego alétheia/ ἀλήθεια, algo que se mostra e mantém-se velado – dinamicidade de movimento (a verdade vem à tona quanto se desvela). Não se pode dizer o que o Sagrado é, no sentido de que o Sagrado se manifesta no ente quando transcende aquilo que simplesmente é. Neste sentido, o ente se caracteriza enquanto aquilo que é; o Sagrado se caracteriza enquanto possibilidade/ abertura para uma outra dimensão e torna possível aquilo que é (aquela determinada experiência). O Sagrado não é algo fixo, determinável ou definido estaticamente, mas se configura em movimento, projeto, possibilidade, ascendência, abertura e dinamicidade, tal como no conceito de jogo desenvolvido por Gadamer, uma que ele se torna modelo estrutural que explicita e possibilita, apropriadamente, a efetuação do princípio da experiência. 

Considerações finais

O ente se caracteriza enquanto aquilo que é; a percepção daquilo que é mais imediato, porém, a experiência humana em sua excepcionalidade, como, por exemplo, a experiência com o Sagrado, se caracteriza enquanto possibilidade, mais precisamente, enquanto abertura para uma outra dimensão. Podemos pensar que a ideia de jogo (Spiel) concebe a passagem de uma compreensão da dimensão epistemológica à dimensão ontológica, pois o aspecto ontológico da noção de jogo, trabalhado por Gadamer, proporciona a explicação da compreensão, pois possibilita a efetuação do princípio da experiência. 

A experiência característica da noção de jogo (Spiel) aponta em sua significação para o aspecto relacional. Esta relação não é fixa, determinável ou definida estaticamente, mas se configura em movimento, projeto, possibilidade, ascendência, abertura e dinamicidade. Para que o jogo se dê, em sua dinamicidade, é necessário que sempre haja outro elemento com o qual o jogador jogue. 

Neste desiderato, pode-se lançar luz, através do princípio conceitual de jogo, à vivência (Erlebnis) compreensível da gradativa revelação (allmähliches Offenbarwerden), em seu sentido mais intenso e profundo. Neste sentido, o princípio conceitual de jogo aponta para o fato de que a experiência e a compreensão são partes da atitude humana, do modo de existir e conhecer do ser humano diante do mundo e tudo que o envolve. 

Referências 

GADAMER, H-G. A Atualidade do Belo: A Arte como Jogo, Símbolo e Festa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.

GADAMER, H-G. A Razão na época da ciência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

GADAMER, H-G. El inicio de la filosofía ocidental. Barcelona: Paidós, 1995.

GADAMER, H-G Hermenêutica em retrospectiva I: Heidegger em retrospectiva. Petrópolis: Vozes, 2007a.

GADAMER, H-G. Hermenêutica em Retrospectiva II: A virada hermenêuticaPetrópolis: Vozes2007b.

GADAMER, H-G. Hermenêutica em retrospectiva III: Hermenêutica e filosofia prática.  Petrópolis: Vozes, 2007c.

GADAMER, H-G. Hermenêutica em Retrospectiva IV: A posição da Filosofia na Sociedade. Petrópolis: Vozes, 2007d.

GADAMER, H-G. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

GADAMER, H-G Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1999.

GRECO, C. A Experiência religiosa: Essência, valor, verdade: um roteiro de filosofia da religião. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2009.

HUIZINGA, J. Homo ludens. Trad. de J.P. Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2004.

LEEUW, Gerardus Van der. Phänomenologie der Religion, Tübingen: Mohr, 1956.

ROHDEN, L. Filosofando com Gadamer e Platão: movimentos, momentos e método(s) da dialética. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

ROHDEN, L.  Hermenêutica filosófica. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2003.

ROHDEN, L.  Hermenêutica filosófica: entre Heidegger e GadamerDisponível em:  http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302012000200002 acessado em: 25 set. 2022.

SAMPAIO DA SILVA, Rui. Gadamer e a Herança Heideggeriana, Revista Portuguesa    de filosofia. A Idade Hermenêutica da Filosofia: Hans-Georg Gadamer. Faculdade de Filosofia de Braga, 2000, p.538.

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Notas

1. O presente artigo é um recorte e adaptação feito a partir da minha dissertação de mestrado A hermenêutica filosófica de Gadamer: a virada hermenêutica em direção à ontologia. Mais informações podem ser acessadas através do endereço eletrônico no repositório da Universidade Federal de Juiz de Fora- MG: https://repositorio.ufjf.br/jspui/browse?type=author&value=Torres+Neto%2C+Jungley+de+Oliveira.

2. A expressão “jogo” possui além de interesse filosófico uma importante dedicação temática contemporânea. Podemos citar, por exemplo, a publicação do livro “Homo ludens” de Johann Huizinga (1938), tal elaboração se deve a influência fenomenológica do jogo realizada pelo psicólogo holandês F. J. J. Buytendijk (1935). O que assinala a importância temática do termo “jogo” e sua relação com a fenomenologia. Na língua de origem de Gadamer, a palavra “jogo” (Spiel) tem significação mais ampla do que na nossa língua Português/ Brasil, nomeando não apenas práticas esportivas ou brincadeiras, mas pode ser expressa de muitos modos: nas artes reprodutivas, por exemplo, encenação teatral (Rolle spielen); o tocar de um instrumento, como tocar um piano, seria jogar (Klavier spielen); a poesia, a dança ou atividade lúdica (Spielmann). O fenômeno do jogo, para Gadamer, nos abre uma experiência de verdade e se torna, gradativamente, o modelo estrutural para explicação da compreensão e de uma hermenêutica ontológica possível.  

3. Gadamer afirma, de maneira fundamental que, “a primeira evidencia que precisamos levar em conta é que o jogo é uma função elementar da vida do homem” (GADAMER, 1985, p. 38).  

4. Gadamer reitera que, “o espectador é notavelmente mais que um mero observador que vê o que se passa diante de si, ele é como alguém que “participa” do jogo, uma parte dele” (GADAMER, 1985, p. 40).  

5. Como nos jogos de futebol, uma partida em constante movimento, ninguém tem a certeza de como o jogo irá terminar. Em seu caráter fascinante, o atrativo do jogo sobre o jogador reside exatamente nos riscos.  

6. A introdução da concepção de jogos de linguagem foi fundamental para explicar e compreender a reviravolta ocorrida na filosofia a partir do pensamento do “2º Wittgenstein”, denominada virada epistemológico-pragmática. Embora não se tenha relato de Gadamer à leitura de Wittgenstein antes ou durante a composição da obra Verdade e método, existe uma relação quanto aos jogos de linguagem, pois o Wittgenstein das Investigações filosóficas renuncia ao conhecimento objetificado da filosofia e critica o uso da matemática e da lógica enquanto modelos e métodos exclusivos da concepção filosófica, o filósofo enfatizou a pragmaticidade, a necessidade de uso da linguagem em seus diferentes aspectos, em seus diferentes jogos. E Gadamer busca exprimir no jogo um acontecer do ser-na-verdade.  

7. Ser-na-verdade aqui designa a apreensão do sentido das coisas, seja um texto, uma obra de arte ou da tradição. O desvelar e o sentido do ente se distingue da simples aparência do ente, mais precisamente, trata-se de uma experiência ontológica e não somente ôntica, o que possibilita o acontecimento da “coisa mesma”. Nesse sentido, o jogo é abertura e se torna o modelo estrutural para a explicação da compreensão nas trilhas de uma hermenêutica filosófica/ ontológica possível.