A fisiologia da revelação: representação, causalidade e movimento na exegese bíblica hobbesiana
The physiology of revelation: representation, causality and movement in Hobbesian biblical exegesis

Luiz Felipe Sousa Santana
Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Contato: 
l.felipes.santana@gmail.com


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Resumo: A exegese hobbesiana não é um exercício dissimulado que procura mascarar sua filosofia política, mas é uma consequência de uma epistemologia que tem num corpo contíguo e em movimento a única causa de todas as representações. Não há representação que não dependa do percurso fisiológico das imagens na mente e da causalidade natural e mecanicamente determinada. Mesmo que sobrenaturalmente inspiradas as Escrituras não escapam dos elementos que conduzem sua Philosophia Prima. A hermenêutica bíblica de Thomas Hobbes é adestrada por seu corporalismo radical e estabelece os paradigmas de sua exegese sub ratione materiae

Palavras-chave: exegese; materialismo; causalidade; representação; imaginação

Abstract: Hobbes’s exegesis is not a dissimulated exercise reaching masks his political philosophy, but an epistemological consequence, having a contíguos and mouved body the only cause of all representantions. There is not representantion that does not depend on the fisiological course of images in mind, the natural causality and his mechanical determination. Even the supernatural inspiration of the Escriptures does not escapes from the elements that lead his Philosophia Prima. Hobbes’s biblical hermeneutics is trained by his radical corporalism and sets up the paradigmas of his sub ratione materiae exegesis.

Keywords: exegesis; materialism; causality; representation; imagination


1.           O relato bíblico descreve que, ao ascender aos céus, Cristo prometera aos seus discípulos que lhes enviaria o Espírito Santo para que pregassem a boa nova do Evangelho para todas as nações. Foi dotando-os sobrenaturalmente de uma virtude extraordinária que fez com que homens de distintas nações e línguas escutassem a mensagem do Cristo ressurreto, cada um em sua língua materna, como relata o livro de Atos dos Apóstolos (Atos 2, 1-11.). A manifestação do Espírito e a inspiração profética não é um episódio particular à missão apostólica, na verdade, a carta a Timóteo afirma que toda a Escritura é inspirada por Deus (2 Timóteo 3, 16) e apontava, como dito no evangelho de João, para o Cristo que viria testificando seu caráter profético (João 5, 39). Os apóstolos não viam na manifestação do Espírito nada mais que a confirmação da profecia do livro de Joel, que diz

depois, derramarei meu espírito sobre todos: vossos filhos e filhas profetizarão, vossos anciãos terão sonhos, vossos jovens verão visões. Também sobre servos e servas derramarei naquele dia o meu espírito (Joel 3, 1-2).[1]

Para Thomas Hobbes (1588-1679), como pretendemos discutir, não há problema algum na promessa ou na realização do “derramamento” do Espírito predito no livro de Joel. O alvo de sua hermenêutica bíblica é como Deus revela sua vontade a seus mensageiros e profetas, dotando-os de dons excepcionais, e por quais meios ele opera suas atribuições sobrenaturais. 

Antes de qualquer coisa, é necessário investigar o que é propriamente a palavra de Deus. Nas Escrituras Sagradas, a palavra de Deus é tomada de distintas maneiras, nunca como um elemento gramatical isolado, como um vocabulum sem significação, mas um sermo ou lógos, ou seja, um discurso ou fala “onde o orador afirma, nega, ordena, promete, ameaça, deseja ou interroga” (HOBBES, 2004, p. 305), de modo que, nas próprias Escrituras, a palavra é ora tida como as que Deus proferiu ora como o assunto ou tema tratado, ou seja, 

não aquela que é dita por Deus, mas a que é dita a respeito de Deus e de seu governo, quer dizer, a doutrina da religião. Assim, é a mesma coisa dizer logos theoú ou theologia, a doutrina a que precisamente chamamos teologia (HOBBES, idem, p. 305).

Mas se é essa a definição mais precisa e abundante nas Escrituras é um erro concebê-las como sendo propriamente a palavra de Deus? Isso não colocaria sob suspeita a autoria dos oráculos judaicos, pois só como doutrina da religião é que as Escrituras são a palavra de Deus (HOBBES, idem, p. 306)? O fato é que Hobbes parece colocar de imediato no seu Leviatã (1651) - obra de envergadura exegética mais abundante e valiosa que outras obras suas de natureza política - que nossa fé nas Escrituras é fé nos homens, atingindo o coração dos oráculos sagrados. Hobbes diz que 

quando acreditamos que as Escrituras são a palavra de Deus, sem ter recebido nenhuma revelação imediata do próprio Deus, o objeto de nossa crença, fé e confiança á a Igreja, cuja palavra aceitamos e à qual aquiescemos. E aqueles que acreditam naquilo que um profeta lhes diz em nome de Deus aceitam a palavra do profeta honram-no e nele confiam e crêem, aceitando a verdade do que ele diz, quer se trate de um verdadeiro ou de um falso profeta (HOBBES, idem, p. 69). 

Ora, é ao profeta enquanto um porta voz (prolocutor) que Deus faz saber a sua vontade e comunica suas leis. Não é concebível que ele fale do mesmo modo que o gênero humano usando de órgãos corporais, “pode aquele que fez o olho não ver, e pode aquele que fez o ouvido não ouvir?” pergunta o salmista (Salmos 94, 9). Isso, porém, não é uma descrição da natureza de Deus, mas uma designação honorífica, pois a onisciência é um atributo honroso dada a sua onipotência, se passagens como essas fossem tomadas em sentido literal e próprio, dado ele ter feito todas as outras partes do corpo humano, estaríamos autorizados a dizer que ele faz o mesmo uso que nós (HOBBES, 2004, p. 309-310)? 

Deus, nas Escrituras, revela sua mensagem sempre por uma aparição, sonho ou visão. Esse foi o caso dos patriarcas (Gênesis 15, 1; 18, 2; 26, 24) e foi assim também que operou ao falar com o maior profeta da nação israelita, Moisés, a quem se revelou uma vez por uma sarça ardente, e depois pela mediação de um anjo ou anjos, apesar do testemunho bíblico afirmar que Deus se comunicava com Moisés “frente a frente, como um homem fala a um amigo” (Êxodo 33, 11). Isso, no entanto, não implica que Deus se revelou a ele de maneira diversa daquela de quando se fez ciente para os demais profetas, o privilégio de Moisés, segundo Hobbes, foi o de ele ter tido uma “visão mais clara do que a que foi dada a outros profetas”, quando a narrativa bíblica diz que um profeta fala pelo Espírito não está dizendo que ele teve uma revelação além de uma visão (HOBBES, 2004, p. 311). O que o exercício exegético de Hobbes parece estar sugerindo é que, por mais sobrenatural que seja, a inspiração não implica numa geração e num conteúdo diferente daqueles que são dados por causas naturais. Hobbes nos dá sérios elementos para sustentar que a revelação bíblica e profética depende dos mesmos mecanismos que regem a causalidade natural. 

Quando no livro de Números (11, 16-17) é dito que Deus tirou do Espírito que estava em Moisés e o distribuiu entre os setenta anciãos, o texto bíblico não procurou dizer que a inspiração fosse mais que a disposição ou a intenção da mente dos próprios anciãos inclinados ao auxílio da soberania divina (HOBBES, 2004, p.312). O mesmo quando é relatado que o Espírito deixou Saul e foi para Davi (1 Samuel 14, 43), se fosse de outro modo, ou seja, se inspiração implicasse numa infusão do Espírito substancial de Deus os profetas não seriam diferentes do próprio Cristo em quem Deus habita corporalmente (Colossenses 2, 9), logo, a inspiração é uma dádiva ou graça, de maneira que “pelo Espírito se entende uma inclinação para o serviço de Deus e não qualquer revelação sobrenatural” (HOBBES, 2004, p. 313). Essa é a interpretação possível para a profecia descrita em Joel, ela só pode ser entendida metaforicamente, se não fosse assim, se ela fosse entendida propriamente e literalmente 

não é mais que o insuflar num homem de um ar ou vento fino e sutil, tal como um homem enche uma bexiga com seu sopro, ou então, se os espíritos não são corpóreos  e têm sua existência apenas na imaginação, não é mais do que o insuflar de um fantasma, o que só pode ser dito de maneira imprópria e impossível, pois os fantasmas são nada, apenas parecem ser alguma coisa (Idem, p. 297).

Na segunda carta a Timóteo, quando o autor diz que toda a Escritura é inspirada, Hobbes afirma que nesse caso “trata-se de uma simples metáfora significando que Deus inclinou o espírito ou a mente desses autores” (Idem). Mas Hobbes não detém sua hermenêutica aí, mesmo em Cristo, onde já vimos as Escrituras afirmarem que nele Deus habita corporalmente, quando é descrito que ele estava cheio do Espírito Santo 

mesmo assim essa plenitude não deve ser entendida como infusão da substância de Deus, mas como acumulação de seus dons, como o dom da santidade da vida, ou o dom de línguas, e outros semelhantes, quer sejam conseguidos sobrenaturalmente ou pelo estudo e pelo trabalho, pois em todos os casos trata-se de dons de Deus (Idem).

É evidente que tal conclusão poderia por sobre Hobbes a alcunha de arianismo e socinianismo, já que Deus estaria em Cristo de modo metafórico ou figurado[2]. De fato, Hobbes possui uma teologia trinitária polêmica e bastante antagônica ao credo niceno e à ortodoxia de seu tempo (SPRINGBORG, 2012, p. 913)[3]. O que devemos ter em mente para o propósito de nossa discussão é que Hobbes não vê como a inspiração poderia ser tomada num sentido que não o metafórico. Se a promessa de Joel for tomada como uma literal infusão ou efusão do Espírito divino, as graças e dons de Deus seriam corpos e não virtudes, como se pudessem “ser despejados para dentro dos homens como se estes fossem barris” (HOBBES, 2004, p. 297). No entanto, temos o direito de perguntar se o Deus onipotente de Hobbes não teria poder para agir de tal modo que contradiga as leis de um universo que é fruto de sua absoluta potência. A verdade é que as Escrituras são dadas por revelação e não pela razão natural, ela se constitui pela intervenção especial de Deus, ela é um milagre por definição. 

Diferente da posição exegética de Spinoza (SPINOZA, 2014, p. 140) o autor do Leviatã não nega a ocorrência dos milagres, porém, as intervenções miraculosas de Deus só servem para assegurar que seus arautos não são guiados por ambições pessoais, ou seja, um milagre é uma obra “feita para tornar manifesta a seus eleitos a missão de um ministro extraordinário enviado para a sua salvação” (HOBBES, 2004, p. 320). O problema para Hobbes é aparentemente outro: como averiguar que um milagre ocorrera? O que tomamos por um milagre não seria na verdade o ordinário curso da natureza? Hobbes coloca a questão da seguinte maneira: 

dado que o espanto e a admiração são consequência do conhecimento e experiência de que os homens são dotados, e que uns o são mais e outros menos, segue-se que a mesma coisa pode ser milagre para um e não ser para outro. Acontece assim que homens ignorantes e supersticiosos consideram grandes maravilhas as mesmas obras que outros homens, sabendo que elas derivam da natureza (que não é obra extraordinária, mas obra normal de Deus), não admiram de modo algum (Idem, p. 318). 

Basta que pensemos no primeiro arco íris. O relato do livro de Gênesis afirma que ele foi pela primeira vez posto por Deus para assegurar que ele jamais voltaria a castigar o mundo com água. O que fez do arco íris um milagre é porque ele foi insólito, “Mas atualmente, como é frequente, não é um milagre nem para os que conhecem suas causas naturais, nem para os que não as conhecem” (Idem). É essa ignorância quanto às causas vulgares da natureza que dispõe a acreditar na atuação de agentes invisíveis e imateriais no lugar de causas segundas, e é dela que a religião floresce.

2.         Diferente das demais criaturas vivas, ao observar que todo efeito possui uma causa que o antecede, o gênero humano supõe causas mesmo quando ignora de que natureza elas sejam, confiando ora no que sugere sua própria fantasia, ora no que sugere a autoridade dos que confiam supondo-os mais sábios que eles (HOBBES, 2004, p. 97).  É verdade que os animais possuem um certo conhecimento causal em geral, mas nos é próprio um conhecimento que é antecipado pela operação da imaginação, o que faz do gênero humano, para Hobbes, a única criatura capaz de criação e artifício (FOISNEAU, 2000, p. 71), ou seja, a humanidade é capaz de reproduzir determinados efeitos observados para o seu próprio benefício e poder (HOBBES, 1839, p. 7).

Todos, dirá Hobbes, sem exceção buscam conhecer as causas de sua boa ou má sorte. Isso pode submeter aqueles que são mais prudentes a um medo perpétuo da morte, da fome e da pobreza. Essa ansiedade ou inquietude incessante, que é ilustrada por Hobbes pela figura de Prometeu, não pode deixar de ser acompanhada por um objeto que é, por suposição, a causa de um determinado evento. Logo, se não é algo que possamos ver, só pode ter sido produzido por agentes invisíveis. Seriam eles os responsáveis pelos eventos cujas causas ignoramos (HOBBES, 2004, p. 98). Naturalmente, a adoração a esses poderes ou agentes é carregada de antropomorfismos, ou seja, as mesmas honras que os homens prestam uns aos outros como “oferendas, petições, agradecimentos, submissão do corpo, súplicas respeitosas, comportamento sóbrio, palavras meditadas, juras,” fazem ao invocá-los (Idem, p. 99). Tudo foi divinizado, “De modo tal que havia entre os pagãos quase tanta variedade de deuses como de atividades” (Idem, p. 100-101). 

Ao considerar os prognósticos divinos e as profecias entre os gentios, Hobbes conclui que não passam de palavras de homens inebriados por substâncias tóxicas ou tomados por paixões violentas. O modo como Hobbes adestrar a sua hermenêutica bíblica à sua fisiologia é bem expressa na sua definição da loucura. No Leviatã ele a definiu como “uma paixão extraordinária e extravagante” derivada 

da má constituição dos órgãos do corpo, ou de um dano a eles causado, e outras vezes o dano e indisposição dos órgãos são causados pela veemência ou pelo extremo prolongamento da paixão. Mas em ambos os casos a loucura é de uma só e mesma natureza (Idem, p. 74-75).

É, mais uma vez, a ignorância quanto às causas das coisas que confunde a opinião comum, fazendo-a tomar tal condição fisiológica ora como inspiração sobrenatural ora como possessão demoníaca. Era assim tanto entre os gregos quanto entre os judeus, o povo eleito. Hobbes, claro, não deixa de destacar sua surpresa de ver uma opinião tão contrária à natureza das coisas entre aqueles a quem pertencia a verdadeira salvação (Idem p. 77)[4]. Muito mais espantoso porque as Escrituras jamais afirmam, segundo sua exegese, que Abraão ou Moisés profetizassem sob a posse de um espírito, mas, como já observamos, graças a uma voz, um sonho ou visão. Nenhum profeta, quer seja do Antigo ou do Novo Testamento, falavam tomados por alguma substância imaterial ou incorpórea. O fardo que carregavam não era algo dotado de peso ou dimensão como se pudessem ser enviadas de um lado para o outro, mas tão somente as ordens que lhes eram dadas (Idem). 

Para Hobbes o motivo para a adesão de tais doutrinas, ou seja, de que os homens possam ser possuídos ou falar por espíritos, que aquilo que é tão comum quanto à vontade de conhecer as causas que dirigem o curso da fortuna, que é o seu contrário: a ausência desta curiosidade que nos faz ignorar a operação dos fenômenos naturais, que como já vimos, traria melhoria à vida humana. Assim, 

quem vê no espírito de um homem qualquer aptidão ou defeito invulgar ou estranho, a menos que se dê conta da causa de onde provavelmente derivou, dificilmente pode considerá-lo natural. Não sendo natural é inevitável que o considerem sobrenatural, e então que pode ele ser, se não a presença nele de Deus ou do Diabo? (Idem, p. 77). 

As Escrituras não nos conduzem a acreditar que os relatos do que aparentemente são endemoniados fossem realmente homens possuídos por demônios, mesmo o Diabo ou Satanás não passa de um título e não o nome próprio de uma natureza individual ou uma entidade espiritual, mas a designação de todo inimigo do governo terreno de Deus sobre os israelitas (Idem p. 331).[5] Muito da opinião referente aos possessos e à natureza e operação de agentes demoníacos é, no Leviatã, creditada à influência pagã nas comunidades judaicas promovida pelas colônias gregas e suas demonologias, ou seja, “suas fabulosas doutrinas referentes aos demônios, que nada mais são do que ídolos ou fantasmas do cérebro sem nenhuma natureza real própria distinta da fantasia humana”, de maneira que fomos levados a conceber o espírito humano como as figuras que concebemos quando sonhamos ou aquelas que percebemos numa superfície espelhada, como não sabemos que essas aparições não são substâncias reais e externas a chamamos de fantasmas, isto é, espíritos ou corpos tênues e aéreos (HOBBES, 2004, p. 426).

Desde Os Elementos da Lei Natural e Política Hobbes afirmava que era devida a uma falsa opinião a respeito da força da imaginação que a existência de substâncias espirituais incorpóreas era sugerida (HOBBES, 2010, p. 55). Já no Leviatã, Hobbes dirá que tal concepção é fruto da ignorância quanto à natureza da visão (HOBBES, 2004, p. 445).  Não há qualquer contradição entre as duas acusações, pois, segundo a teoria da representação de Hobbes, não há concepção que não seja a imaginação de algo que antes ocorrera nas sensações, sensações provocadas por objetos externos que pressionam, justamente, os órgãos dos sentidos. Assim, a exegese de Hobbes, que ocupa toda a terceira e quarta parte do Leviatã, não faz outra coisa que apontar para a epistemologia que o inaugura. 

3.         Logo no primeiro capítulo do Leviatã, Hobbes parece fornecer as armas exegéticas que irão adestrar a hermenêutica bíblica que domina a parte intitulada “Do Estado Cristão” e da quarta parte “Do Reino das Trevas”. Não há pensamento, será dito na obra de 1651, que não seja uma aparência ou representação de algum acidente de um objeto exterior, ou seja, é a sensação que é a origem de toda representação na mente. A causa da sensação, isto é, a causa de toda representação é uma pressão causada nos órgãos dos sentidos ou de forma imediata como no gosto ou no tato, ou de maneira mediata como na visão ou no ouvido, assim, toda aparência ou qualidade sensível pela qual percebemos um objeto é gerada pelos diversos movimentos produzidos fisiologicamente sobre o sensiente, ressoando pelos nervos até o coração e o cérebro por contrapressão, de modo que também em nós, que somos pressionados, nada mais são que movimento “pois movimento nada produz senão movimento” (Idem, p. 31-32). 

No Os Elementos da Lei Natural e Política, veremos Hobbes defender que é a própria sensação que deve corrigir o engano cometido por ela mesma, ou seja, o erro que   é tomar as qualidades sensíveis existindo no mundo como objetos reais e exteriores àqueles que as percebem (HOBBES, 2010, p. 9). Para tornar isso evidente é suficiente que causemos alguma concussão num órgão qualquer dos sentidos, como no olho responsável pela visão, para percebermos que os acidentes como a cor e a figura não estão nos objetos inerentemente, do mesmo modo que, diz ele no Leviatã,  

pressionar o ouvido produz um som, também os corpos que vemos e ouvimos produzem o mesmo efeito pela sua ação forte embora não observada. Porque se essas cores e sons estivessem nos corpos, ou objetos que os causam, não poderiam ser separados deles como nos espelhos e nos ecos por reflexão vemos que eles são, nos quais sabemos que a coisa que vemos está num lugar e a aparência em outro (HOBBES, 2004, p. 32).

Doutrinas que supõem que as qualidades das coisas são exteriores e reais não podem deixar de tê-las ou como species que migram ou enviam seu ser visto ou seu ser audível, ou mesmo seu ser inteligível ao entendimento, acusação que Hobbes faz à escolástica. Contra a interpretação abusiva das doutrinas que Hobbes via associadas as considerações de Aristóteles, ele defenderá que a percepção sensível não é um processo que atualiza potencialidades inerentes à alma humana e nem a apreensão de qualidades realmente existentes na natureza (LEIJENHORST, 2007, p. 84). Procurando aliar o filósofo grego ao seu mecanicismo em seu De Corpore (1655), Hobbes dirá que quando é dito que um acidente está em seu sujeito não significa que um acidente é uma parte de um todo. Se fosse desse modo um acidente seria uma substância. Ele dirá que “um acidente está em seu sujeito, não como uma parte dele, mas de modo que sendo o acidente removido, o sujeito não é removido com ele” (HOBBES, 1839, p. 104). Um acidente é como um corpo é concebido, isso quer dizer que, quando um corpo preenche algum espaço essa coextensão não é um corpo extenso, da mesma maneira que, quando um corpo é removido de seu lugar essa remoção também não é o corpo mesmo, mas um acidente  dele, ou seja, “um acidente é a faculdade de qualquer corpo por meio do qual ele produz em nós uma concepção de si mesmo”, outra vez, são apenas movimentos que fazem um corpo ter determinada aparência para nós em vez de qualquer outra, como ter uma tal figura ou ocupar tal espaço ou mesmo ser removido dele. (Idem, p. 103). Essa concepção de si mesmo é produzida por puro deslocamento, pois “movimento é um contínuo abandono de um lugar e a aquisição de outro” (Idem, p. 109). 

O modo como Hobbes elabora sua epistemologia jamais se divorcia de seu mecanicismo. Ele estava convencido, desde muito cedo, que a percepção dos objetos era fruto de um movimento local sobre nossos corpos, isto é, a percepção sensível reduzida à matéria em movimento é a chave, como bem demonstra Leijenhorst, para o modo como Hobbes compreende todo fenômeno natural (LEIJENHORST, 2002, p. 57-58). Esse mecanicismo, como expressa de imediato o capítulo II Da imaginação do Leviatã, procura explicar a origem das imagens na mente, origem que é unívoco à natureza do movimento sobre qualquer corpo inanimado. Um corpo em movimento, como expresso no princípio de inércia, só será interrompido por outro corpo, e mesmo assim, apenas gradualmente e com o tempo deixará de se mover. Um bom exemplo disso, Hobbes dirá, são as ondulações causadas pelo choque de um objeto sobre uma superfície aquática, do mesmo modo

acontece naquele movimento que se observa nas partes internas do homem, quando ele vê, sonha, etc., pois após a desaparição do objeto, ou quando os olhos estão fechados, conservamos ainda a imagem da coisa vista, embora mais obscura do que quando a vemos [...] A imaginação nada mais é, portanto, que uma sensação diminuída, e encontra-se nos homens tal como em muitos seres vivos, quer estejam adormecidos, quer estejam despertos (HOBBES, 2004, p. 35-34).

Tanto as imagens que temos quando acordados quanto as que temos quando sonhamos é de uma e mesma natureza, isto é, um corpo contíguo e em movimento, única causa possível de qualquer outro movimento (HOBBES, 1839, p. 124). Ele se recusa a aceitar que exista qualquer causa formal na natureza. Aquilo que concebemos como a essência de alguma coisa como racionalidade, brancura ou extensão são essenciais das coisas desde que elas são geradas, só então que são “formas”, de modo que “um corpo, com respeito a qualquer acidente é denominado o sujeito, e em relação a forma é denominado a matéria” (Idem, p. 117), essa é a origem dos Fantasmas (phantasma). Em Os Elementos da Lei Natural e Política Hobbes ainda fazia distinção entre os fantasmas produzidos pela sensação e aqueles dos sonhos. Fantasmas, defende Hobbes no texto não autorizado de 1640, são uma imaginação longa e duradoura mais própria da visão, ilusões que podem gerar terror em homens demasiadamente supersticiosos (HOBBES, 2010, p. 12). Mas essa distinção será eliminada no seu De Corpore. A sensação é definida aqui como “um fantasma produzido pela reação e pelo esforço (conatu) para fora do órgão da sensação, causados por um esforço para dentro a partir do objeto, fantasma esse que perdura por certo tempo”, assim, pensar é comparar fantasmas, comparar o que distingue a aparência de um objeto da aparência de outro (HOBBES, 1839, p. 391 e 399). Até mesmo o espaço e o tempo são fantasmas, o primeiro é o fantasma de um ente como que existindo fora da mente, enquanto o segundo é o fantasma do próprio movimento, definição que Hobbes diz encontrar na sua tentativa de corrigir a metafísica aristotélica (HOBBES, idem, p. 94-95). 

É por isso que não podemos representar uma coisa que não possa ser sujeita à sensação, que não ocupe um determinado espaço, que possua uma determinada magnitude, ou mesmo que não possa ser dividida em partes. Desse modo, tudo o que concebemos é finito. Infinito não é uma concepção, mas um modo de designar ou significar algo que não possui limites ou fronteiras, ou seja, está além de qualquer imagem ou representação possível, infinito é uma palavra que expressa essa incapacidade e não a natureza de uma coisa qualquer (HOBBES, 2004, p. 42). É verdade que isso não impede, no entanto, que a observação dos fenômenos sugira uma causa primeira de toda causalidade posterior à ela. É essa causa que os homens nomeiam de Deus

de modo que é impossível proceder a qualquer investigação profunda das causas naturais, sem com isso nos inclinarmos para acreditar que existe um Deus eterno, embora não possamos ter em nosso espírito uma ideia dele que corresponda a sua natureza (Idem, p. 95). 

Para Luc Foisneau, Hobbes não está nos dando uma prova da existência de Deus, sua consideração é uma suposição (suppositio Dei) e é a consequência de sua antropologia, não de alguma metafísica (FOISNEAU, 2000, p. 94-95). Já em seu De Corpore veremos Hobbes excluir a teologia dos assuntos da filosofia, do mesmo modo que “qualquer conhecimento adquirido por inspiração divina ou por revelação, na medida em que isso não obtemos pela razão” (HOBBES, 2010, p. 197). Mas se nos voltássemos para o Leviatã veríamos um tom muito mais conciliador, porque é à razão natural que cabe distinguir as verdadeiras das falsas profecias, ela é uma regra dada por ninguém menos que o próprio Deus. E também é ela que garante que um evento é ou não miraculoso (HOBBES, 2004, p. 315). De um modo ou de outro Hobbes procurou dominar o texto bíblico colocando as rédeas de seu universo sub ratione materiae sobre toda criatura, Criador e sua ação no mundo (SPRINGBORG, 2012, p. 924). 

4.         O que procuramos mostrar aqui, é que a exegese de Hobbes é atravessada por sua teoria da representação que depende, exclusivamente, da ação de corpos em movimento como as únicas causas de qualquer mudança no mundo, é essa operação que constitui a ponte entre os fantasmas, ou acidentes das coisas, e este universo radicalmente corporal (LEIJENHORST, 2005, p. 90-91). Com isso, procuramos mostrar que sua hermenêutica é devedora de uma univocatio entis, isto é, de uma redução de toda substância a corpo que determina, na sua philosophia prima[6], as regras do concebível e do inconcebível (WEBER, 2005, p. 56). Essas são as balizas de sua exegese orientada e assegurada pelas Escrituras. Hobbes diz que 

Dado, portanto, que toda profecia supõe uma visão ou um sonho (sendo estas duas coisas o mesmo, quando são naturais), ou algum dom especial de Deus, coisa tão raramente verificada entre os homens que é para ser admirada quando se verifica; dado também que esses dons, com os mais extraordinários sonhos e visões, podem provir de Deus não apenas através de uma intervenção sobrenatural e imediata, mas também através de uma intervenção natural e da mediação de causas segundas, é necessário o uso da razão e do julgamento para distinguir entre os dons naturais e sobrenaturais, entre visões ou sonhos naturais (HOBBES, 2004, p. 314). 

 A suspeita é mobilizada graças ao que sabemos sobre as causas dos sonhos e da visão, além da estima ambiciosa de si dos que pretendem estar inspirados ou que acreditam ter recebido uma revelação divina. Deus jamais obriga a acreditar que falou a este ou aquele indivíduo, evitando que nos entreguemos ao cativeiro do engano e da mentira dos que supõe para si mesmos tal eleição (HOBBES, Idem, p. 276-277). O que de fato não podemos ignorar, e que radicaliza o ceticismo de Hobbes, é que a inspiração, o que é o mesmo que sonhos ou visões provocados por Deus, está constrangida e domesticada por sua epistemologia que tem como causa de toda representação a operação mecânica e fisiologicamente determinada dos corpos sobre os órgãos dos sentidos. Assim, podemos com segurança desconfiar que a exegese de Hobbes, como defende Leo Strauss, empreendeu esforços para fragilizar e minar a confiança na própria revelação bíblica já que a revelação está circunscrita àquele que recebe a mensagem divina (STRAUSS, 2005, p. 90-91). E de fato Hobbes afirma no Leviatã que 

é evidentemente impossível alguém ter a garantia da revelação feita a outrem sem receber uma revelação feita particularmente a si próprio. Mesmo que alguém seja levado a acreditar em tal revelação, devido aos milagres que vê o outro fazer, ou devido a extraordinária santidade de sua vida, ou por ver a extraordinária sabedoria ou o extraordinário sucesso de suas ações, essas não são provas garantidas de uma revelação especial. Os milagres são feitos maravilhosos, mas o que é maravilhoso para um pode não sê-lo para outro. A santidade pode ser fingida, e os sucessos visíveis deste mundo são as mais das vezes obra de Deus através de suas causas naturais e vulgares. Portanto, ninguém pode infalivelmente saber pela razão natural que alguém recebeu uma revelação sobrenatural da vontade de Deus, pode apenas ter uma crença e, conforme seus sinais pareçam maiores ou menores, uma crença mais firme ou uma crença mais frágil (HOBBES, 2004, p. 219-220).

Não podemos ignorar que, muito cedo no Leviatã, Hobbes parece isentar de culpa a falta de fé nas Escrituras, já que acreditar que elas sejam a palavra de Deus sem ter recebido uma revelação particular como garantia de sua origem sobrenatural pode sujeitar o gênero humano à superstição ou à ambição de seus semelhantes. O objeto da fé ou da crença é a Igreja ou a autoridade dos homens, e não aquilo que pode ser tirado dos princípios da razão natural ou da própria coisa, de modo que, sem uma revelação particular, aquele que crê que as Escrituras são a palavra propriamente dita de Deus acreditam na palavra que o profeta fala a respeito de Deus, aceitando não a palavra de Deus, mas a palavra do profeta, quer se trate de um falso profeta ou não, como já observamos.[7] Assim, é natural pensar a exegese bíblica de Hobbes como uma máscara usada para dissimular uma estratégia política (HAHN e WIKER, p. 439, MORROW, 2016, p. 86). Como desconfia Christopher Hill, Hobbes pode muito bem ser acusado de excluir a Bíblia do vocabulário político do parlamento Inglês (HILL, 2003, p. 565-566 & Idem, 1987, p. 183). Por outro lado, estamos em certa medida autorizados a pensá-la como o “glorioso fracasso” de uma tentativa sincera, de um cristão ardoroso e ortodoxo, em conciliar as Escrituras com o mecanicismo que triunfava (MARTINICH, 1992, p. 244). 

É inegável que as Escrituras tenham, no plano do Leviatã, um caráter não metafísico ou teológico, mas político. Hobbes nos dá de antemão isso na sua dedicação a Francis Godolphin, onde é dito que as Escrituras “são as fortificações avançadas do inimigo, de onde este ameaça o poder civil”, e é isso que faz de sua exegese uma necessidade para sua ciência dos corpos artificiais ou políticos (HOBBES, 2004, p. 26). A Bíblia e sua natureza soteriológica de fato, para Hobbes, ocupava o centro do palco onde se desenrolava os horrores da guerra civil inglesa. As Escrituras foram os grandes arsenais mobilizados tanto pela ortodoxia presbiteriana e anglicana quanto pelo radicalismo puritano (HOBBES, 2001, p. 32-33). O lugar que a soberania ocupa, por sua vez, em sua filosofia, de modo muito delicado, aponta para uma soteriologia que perde espaço para a política, já que ela ameaça a sua doutrina da obediência (FARNETI, 2007, p. 299).   Edwin Curley, por sua vez, vê Hobbes subverter o texto bíblico, minando a autoridade dessa devido ao método histórico-crítico afiado aplicado sobre a autoria dos textos sagrados no capítulo XXXIII do Leviatã, para Curley há uma verdadeira “sugestão por negação” (CURLEY, 2007, p. 318). É verdade que a contribuição de Hobbes para a constituição da exegese moderna é imensa (BARTON, 1998, p. 12), e, apesar de termos todas as armas para acreditar que Hobbes estaria usando sua exegética para abalar a religião cristã e a autoridade bíblica amarrando-as ao seu conceito de soberania, não podemos reduzir essas armas à uma estratégia política deslocada do terreno científico que Hobbes propõe para sua filosofia civil, de modo que, muito pelo contrário do que afirma Hahn e Wiker (HAHN & WIKER, 2018, p. 439), a exegese de Hobbes é sim orientada por axiomas que independem da política e que lhes são anteriores, ou seja, toda epistemologia hobbesiana está constrangida por seu universo corpuscular, tanto é que o literalismo protestanste, tão severo de seu método histórico crítico, dá lugar ao alegorismo quando passagens bíblicas tomadas literalmente ferem sua redução de toda substância a corpo e sua concepção mecanicista do movimento e da mudança. Assim, podemos muito bem afirmar que é o materialismo de Hobbes que orienta seu literalismo, e não o contrário como afirma Martinich (MARTINICH, 2007, p. 379). Hobbes, na verdade, curva o sentido literal da própria revelação ou inspiração bíblica, e mesmo de sua cristologia, quando ela é uma ameaça à sua equalização entre substância e corpo. É correto afirmar que a hermenêutica hobbesiana é antagônica à exegese de tipo origenista, que determinou inegavelmente toda a exegese bíblica posterior. Se Orígenes procurou com todas as forças mobilizar as Escrituras para assegurar a incorporeidade divina[8], contra a tradição origenista e alexandrina Hobbes evoca o latino Tertuliano, filósofo e cristão, para quem “nihil est incorporale nisi quod est” (TERTULIANO, 1956, p.42).[9] Natural ou não, toda causalidade está condenada a esse princípio. 

Referências

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Notas

[1] Ver Atos 2: 16-18. Na A Bíblia Sagrada, sob a tradução de João Ferreira de Almeida de 1999, o capítulo 2 de Joel compreende o capítulo 3, diferentemente da tradução da Bíblia do peregrino de Luís Alonso Schökel que utilizamos neste trabalho e a Bíblia de Jerusalém de 2002Foram consultadas também a King James Version de 1611 e a Nova Vulgata disponível em http://www.vatican.va/archive/bible/nova_vulgata/documents/nova-vulgata_index_lt.html.

[2] O arianismo foi a doutrina de Ário (c. 260-336), diácono líbio excomungado, que suscitou diversos sínodos - como o de Niceia I (325) - graças à sua doutrina trinitária que reservava a Deus a divindade, defendia que o Cristo era posterior à vontade e a ação criadora do Pai, e via no Espírito uma metáfora. O Socianismo foi uma corrente doutrinária protestante ensinada por Lelio Sozzini (1525-1562) e seu sobrinho Fausto Socino (1539-1604), que recusava a dupla natureza de Jesus e que foi amplamente difundida e aceita na Europa dos séculos xvi e xvii. Passou a ser acusação comum entre os contemporâneos de Hobbes para designar a heresia antitrinitária. Ver LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia; tradução Paulo Meneses… [et al.]. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola: Paulinas, 2014, p. 180-181, 1804-1805.

[3] Na sua tentativa de se filiar ao credo niceno e sua confissão trinitária, Hobbes ainda assim só pode conceber a trindade - designação ausente das Escrituras como ele sublinha - como possuindo somente uma natureza representativa. Assim, Deus fora representado primeiro por Moisés, em seguida por Cristo, e por fim no apostolado de seus doze discípulos. Essa é a consequência da concepção de Pessoa expressa no capítulo xvi do Leviatã, e que também remonta ao uso de Personna para significar a natureza trinitária de Deus pelo patrístico latino Tertuliano (c. 160-200) (MORESCHINI, 2013, p. 211), que é para Hobbes, como veremos, uma fonte mais que oportuna.

[4] Ver, João 4, 22, Schökel sugere a leitura também de Deuteronômio 13, 7 e Oséias 8, 2

[5] A Septuaginta traduziu a palavra hebraica שטן (Sa-tan), que quer dizer oponente ou adversário, por diabolos e a Vulgata por diabolus. Alguns nomes que poderiam designar criaturas não necessariamente são nomes próprios, Azazel (Lv 16, 8.26), Lilith (Is 34, 14), Rahab (Sl 89, 11: Is 51, 9) e Leviatã (Is 27, 1) podem não corresponder à natureza espirituais e demoníacas, sendo tomadas como tal apenas pela literatura pós exílica. Ver Clines, J. A. David. The Dictionary of Classical  Hebrew. Vol VIII. Sheffield Phoenix Press, 2011, p. 61 e LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia. Edições Loyola: Paulinas, 2014, p. 518.

[6] Para Yves-Charles Zarka a philosophia prima de Hobbes se constitui na operação proporcionada pela linguagem. O corporalismo de Hobbes não seria um materialismo de natureza ontológica mas epistemológica e nominal. Assim, a redução de toda substância a corpo é posterior a instituição dos nomes dos quais depende toda ciência, tanto a dos corpos artificiais quanto a ciência dos corpos naturais. Ver ZARKA, Yves-Charles. La décision métaphysique de Hobbes. Paris: J Vrin, 1999. Ver Também LIMONGI, Maria Isabel. A semântica do materialismo de Hobbes. Analytica - revista de filosofia, Vol 5, número 1-2, 2000. 

[7] Página 2.

[8] Orígenes (c. 185-253). Filósofo alexandrino que exerceu forte influência sobre toda a patrística grega. Sua contribuição para a exegese bíblica é incalculável. Para o Filósofo há três níveis hermenêuticos hierarquicamente constituídos e que reverberam na vida espiritual do crente e sua relação com a palavra revelada de Deus. Sua exegese alegorista é a chave para o texto bíblico já que muitas passagens - principalmente do Antigo Testamento - se tomadas em um sentido literal, ou seja, em um sentido “corporal”, recorrem em verdadeiras incoerências. Mesmo que Orígenes reconheça que não há nas Escrituras a palavra “incorporal”, é essa exegese, de forte influência grega e medioplatônica, que permite conceber Deus como tal. Ver ORÍGENES. Tratado sobre os Princípios. São Paulo: Paulus, 2012, p. 54, 55 e 304. Para entender a influência do alegorismo grego sobre Orígenes ver MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. São Paulo: Edições Loyola, 2013. 

[9] TERTULIANO. Tertullian´s treatise on the Incarnation. London: S. P. C. K, 1956, p. 42. Tertuliano (c. 160- c. 220), ao contrário de Orígenes, defendia que tudo o que existe é corpus sui generis. Foi fortemente influenciado pelo estoicismo, concebendo Deus como um Espírito corpóreo e material (MORESCHINI, 2013, p. 1999). Appendix da edição latina do Leviatã, capítulo III, §6, p. 541 [560/562].  Para Gorham a influência da teologia estóica e sua concepção de espírito (pneuma) sobre Hobbes é marcante. Ver GEOFFREY, Gorham. Mixing Bodily Fluids: Hobbes´s Stoic God. Sophia: international Journal of Philosophy and Traditions. Volume 53, number 1. Springer Science+Business Media Dordrecht, 2013. Hobbes procura filiar-se a Tertuliano justamente quando  quer demonstrar que seu Deus corpóreo não é uma heresia ou contrário à ortodoxia cristã primitiva. Ver Appendix da edição latina do Leviatã, capítulo III, §6, p. 541 [560/562].