O humanismo do padre Antônio Vieira
The humanism of father Antônio Vieira

Alex da Silva Mendes
Mestrando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP): professoralex.educacao@gmail.com   


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Resumo: O profundo humanista e homem de ação que foi Vieira, não podia ficar indiferente à brutalidade com que os índios e os escravos negros eram tratados no Brasil. Uma prática, aliás, consentida por toda a Europa colonizadora. O missionário tudo viu e tudo denunciou na corte portuguesa. O que pedia era dignidade e tolerância para com os povos subjugados. Conhecedor da realidade, o humanista cristão atravessou praticamente todo o século XVII atento aos problemas políticos, econômicos, sociais e religiosos, com propostas reformistas avançadas para a mentalidade da época. Como a defesa dos direitos humanos dos índios ou o fim da discriminação que existia entre cristãos-novos e cristãos-velhos. Em sua obra profética a Clavis Prophetarum, Vieira expõe seus sonhos de reconciliação entre judeus e cristãos. De acordo com (COUTO, 2009, p. 99), três sermões da série de 30 são consagrados exclusivamente à escravidão negra: 14º, 20º, 27º. Esses três sermões foram pregados diretamente aos negros da Irmandade do Rosário dos Pretos. Vieira passou a maior parte do ano de 1653 em São Luís, onde defendia a liberdade dos índios no seu sermão da Primeira Dominga de Quaresma (ou das Tentações). 

Palavras-chave: Padre Antônio Vieira; Humanismo; Sermões; Ética pastoral

Abstract: The profound humanist and man of action that was Vieira, could not remain indifferent to the brutality with which the Indians and black slaves were treated in Brazil. A practice, moreover, consented to throughout the colonizing Europe. The missionary saw everything and denounced everything in the Portuguese court. What he asked for was dignity and tolerance for the subjugated peoples. Aware of reality, the Christian humanist went through practically the entire seventeenth century, attentive to political, economic, social and religious problems, with reformist proposals that were advanced for the mentality of the time. Such as the defense of the human rights of the Indians or the end of the discrimination that existed between New Christians and Old Christians. In his prophetic work to Clavis Prophetarum, Vieira exposes his dreams of reconciliation between Jews and Christians. According to (COUTO, 2009, p. 99), three sermons from the series of 30 are dedicated exclusively to black slavery: 14th, 20th, 27th. These three sermons were preached directly to the blacks of the Irmandade do Rosário dos Pretos. Vieira spent most of 1653 in São Luís, where he defended the freedom of the Indians in his sermon on the First Sunday of Lent (or on Tentações).

Keywords: Priest Antônio Vieira. Humanism. Sermons. Pastoral ethics.

Introdução

Estudar Antônio Vieira é abordar os mais complexos problemas da vida, e mergulhar fundo na existência e na essência do homem, uma vez que a análise crítica de seus sermões, nos põe em contato com fenômenos sociais e existenciais de todos os tempos, pois são de ontem, de hoje, e de sempre, tanto a justiça quanto a liberdade, a ética pastoral como a fraternidade, a paz assim como a igualdade perante a lei, a alma e o espírito, que devem ser o fim primeiro e último de todo o estudo, e de todo o estudante, quaisquer que sejam a sua especialização acadêmica, a sua ideologia política, ou a sua crença religiosa. 

De acordo com a obra (SERMÕES ESCOLHIDOS, 2006, p. 13)[1], Vieira foi um homem eclético e polivalente, porquanto encarnou vários personagens ao longo de sua atribulada vida, ou melhor, protagonizou, na vida real, e com perfeição, as variadas e importantíssimas funções de pregador, escritor, missionário, professor, diplomata, filósofo, conselheiro real, e outras, no desempenho das quais sempre o brilho de sua inteligência, o vigor de sua palavra, o rigor de sua argumentação, a integridade de seu caráter, e a retidão de sua personalidade, augustos atributos que, de tão raros, o tornaram alvo dos baixos sentimentos de todos quantos por inveja, despeito, ou interesses feridos se sentiam ameaçados e ou humilhados pela excelência e grandeza de suas qualidades. Em boa verdade, no padre Antônio Vieira concorriam o intelectual e o homem de ação, o erudito e o professor, o orador e o místico, o humanista e o mítico, e a tal ponto, e com tanta profundidade o jesuíta assumia e desempenhava essas nobres tarefas que, em toda a sua longa existência, sempre se mostrou um homem de eleição, admirado e respeitado por nobres e plebeus, negros e índios, governadores e almirantes, reis e cardeais, pois, cada um à sua maneira, reverenciava, em Vieira, um ou mais dos muitos homens que nele se abrigavam. Em Vieira, havia o sonhador, o homem das utopias, o profeta, o político perspicaz, o humanista, pastor dos oprimidos e desamparados, o orador das multidões. A riquíssima e vasta obra do jesuíta padre Antônio Vieira de quem conhecemos cerca de duzentos e vinte sermões, mais ou menos seiscentas e cinquenta cartas, muitos discursos apologéticos, gratulatórios e panegiricos; além de exortações, exórdios, prédicas, homilias, e orações fúnebres, não esquecendo a sua defesa no processo que lhe foi movido pela Inquisição, e, principalmente, uma relativamente curta peroração, mas encantadora obra-prima que é Lágrimas do Heráclitos[2], defendidas em Roma pelo padre Antônio Vieira contra o riso de Demócrito[3] dizíamos, a obra de Vieira, constitui o mais rico, variado, e significativo conjunto de sermões e orações sacras em língua portuguesa, resultado do gênio e talento daquele que foi indiscutivelmente o maior e mais brilhante orador sacro do século dezessete e um dos pregadores mais talentosos e arrebatadores de sempre, ombreando com Santo Agostinho de Hipona e com Santo Antônio de Lisboa chamado de Pádua a par dos mais prestigiados, conhecidos e respeitados doutores da Igreja em todos os tempos e lugares.

1. A questão da escravatura nos sermões de Vieira

No Brasil colonial, a força de trabalho provinha dos escravos e dos índios: eram eles os pilares da economia e da sustentação da coroa portuguesa. O Brasil foi o maior importador de africanos. Vindos das diversas partes da África, logo eram submetidos a um regime de trabalho árduo, insano. Obrigados a se adaptar ao novo país e à “nova” forma de vida, tentaram manter entre si a sua religião. 

De acordo com (COUTO, 2009, p. 99)[4], o escravo, no Brasil, estava entre duas religiões: a Católica, que para ele era difícil de assimilar, em que um Deus único, mais temido do que amado, prometia o paraíso e a vida eterna, e a sua própria religião, onde vários deuses se representavam sob muitas faces e formas. Diversos eram os deuses africanos que povoavam o seu imaginário, mas a sua grande protetora era Nossa Senhora do Rosário[5], sob cuja invocação se reuniam em confraria. 

Os jesuítas, vindo ao Novo Mundo com o objetivo de levar a palavra de Deus através da Igreja Católica, convertendo e catequizando os “bárbaros”. A Igreja, portadora da palavra divina, adotava por parte de alguns religiosos, uma posição contraditória, pois, se pregava a 

liberdade e a igualdade de todos os homens perante Deus, como ensina o apóstolo Paulo em Colossenses 3, 11: [6]Aí não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, homem livre, mas Cristo: ele é tudo e está em todos”, também se adaptava ao regime escravocrata, beneficiando a classe social da qual uma parte do clero se originava e que fazia doações. Em um certo período de sua história, setores da Igreja Católica e Protestante também possuíam escravos que eram considerados parte do patrimônio divino. Em seu artigo: Visões protestantes sobre a escravidão, a professora Elizete da Silva, fala a respeito da posição protestante sobre a escravidão no período de 1860 a 1890, 

Compulsando testamentos e inventários de anglicanos que morreram na Bahia na segunda metade do século XIX, também constatou-se a presença de proprietários de escravos, tais como os senhores Eduardo Jones que tinha 6 escravos domésticos; o Sr. George Mumford que possuía 11 escravos que trabalhavam na sua roça no Acupe e Sr. George Blandy, que possuía 4 escravos. Enquanto igreja estabelecida, a Igreja Anglicana foi conivente com o comércio de escravos em que a Inglaterra esteve envolvida desde o século XVI, e só mudaria oficialmente de posição na segunda metade do século XIX, após as gestões das sociedades abolicionistas. (SILVA, 2003, p. 7).[7]

Uma das formas pelas quais setores da Igreja justificava a sua aceitação da escravidão era baseada na possibilidade de salvar os escravos “do fogo do inferno”. O fundamentalismo de algumas denominações protestantes, se transformou em terreno fértil para justificativas da escravidão, que buscavam embasamento doutrinário para apaziguar a consciência dos escravocratas do sul. Citando a história de Noé, identificavam a maldição de Cam, por ter surpreendido o patriarca nu e embriagado, como a maldição dos negros. Scott Kenneth Latourette, diz o seguinte: “Os Teólogos racistas acrescentaram que os negros descendem de Cam e, portanto, estão condenados à servidão e à escravidão permanentes. Juan Bautista Casas, sacerdote espanhol alegava em 1869 que a raça negra sofre da maldição narrada no Pentateuco e que a sua inferioridade se perpetuava através de séculos” (LATOURETTE, 1977, p. 677)[8]. Era interesse da Igreja que os escravos se transformassem em cristãos o mais rápido possível, mas isso não lhes garantia, a eles, nenhuma benesse.

Vieira assumiu um posicionamento crítico diante da questão da escravatura negra. O Brasil colonial tinha uma sociedade rígida e totalmente subordinada à metrópole portuguesa. O objetivo principal dos colonizadores era o lucro, e a escravatura dava lucros altos: os escravos eram vistos como mercadoria, tendo valor de troca. A sociedade, da qual vivia Vieira, legitimava e justificava a escravidão. Os escravos eram vistos como mercadorias descartáveis, uma mão-de-obra gratuita e útil, submetida à crueldade e arrogância dos senhores de engenho. Esses, com sua casa grande e as suas senzalas, eram senhores absolutos de suas terras. Distantes séculos da Idade Média, retomavam os poderes dos senhores feudais: seus engenhos eram verdadeiros feudos, como aqueles, onde agiam como donos de propriedades e vidas. Vieira tinha consciência de que a extinção da escravidão era impossível. Sem os escravos, o Brasil colônia não existiria. O que ele pretendia era abrandar o procedimento dos colonos em relação a eles. Os seus argumentos foram usados no púlpito e em sermões escritos, mas nunca se posicionou tão favoravelmente à causa escravagista como os Padres Miguel Garcia, professor de Teologia, e Gonçalo Leite, de Filosofia, no Colégio da Bahia em 1583. Os dois negaram-se publicamente a ouvir em confissão e absolver quem possuísse escravos, mesmo que fossem jesuítas. Acabaram sendo expulsos do país. Embora não atingindo a posição desassombrada assumida por estes, Vieira teve uma atitude muito corajosa nos três sermões voltados para a defesa dos escravos inseridos num grupo de trinta, dirigidos a Nossa Senhora do Rosário, em pagamento de uma promessa. Em seu Sermão Décimo Quarto (do Rosário), Vieira compara o sofrimento dos escravos com o a crucificação de Cristo,

[...] Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: Imitatoribus Christi crucifixi - porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A Paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio. [9]

Na parte II do sermão 14º, Vieira introduz a presença dos escravos, os devotos do Rosário, e os põe como filhos privilegiados de Maria. Equiparando os escravos aos brancos, o que era uma grande ousadia naquele tempo. 

[...] Estes são, devotos do Rosário, os três motivos que nascem dos três nascimentos que vistes, os quais, se forem tão bem exercitados, como são bem-nascidos, nem podeis desejar maior honra nos vossos desprezos, nem maior alívio nos vossos trabalhos, nem maior dita e ventura na vossa fortuna. A mesma Mãe do Filho de Deus e de São João é Mãe vossa. E, pois, estes três filhos já nascidos lhe nasceram segunda vez ao pé da cruz, não falteis na vossa, posto que tão pesada, nem à imitação de tão honrados irmãos, nem às obrigações de tão soberana Mãe. Para que assim como a Senhora se gloria de ser Mãe de São João, assim tenha também muito de que se gloriar em ser Mãe de todos os pretos, tão particularmente seus devotos.[10]

2. O conflito sobre a escravidão dos índios 

A ética pastoral de Vieira, também está presente no Sermão da Primeira Dominga da Quaresma (ou das Tentações). Pregado em São Luís do Maranhão, no primeiro Domingo da Quaresma de 1653, o sermão das Tentações foi o resultado de um acordo, entre Vieira e o Capitão-Mór, na tentativa de encontrar uma saída para os protestos dos colonos, contra o recente Diplomata Real que mandava libertar todos os índios cativos. 

De acordo com (JAECKEL, 2009, p. 270)[11], para entender a situação na qual se encontrava o Estado do Maranhão e Grão Pará no momento da chegada de Vieira, devemos lembrar que num decreto real de 29 de maio de 1649, foi determinado que nenhum índio poderia ser obrigado a trabalhar sem salário e contra a sua vontade. Os escravos nas plantações de açúcar e tabaco deveriam ser libertados e qualquer colono branco que infringisse essa lei corria o risco de ser banido por quatro anos ou de ter que pagar uma multa no valor de quinhentos cruzados. No mês de dezembro do mesmo ano, chegaram à cidade de Belém os primeiros missionários jesuítas, João de Souto Maior e Gaspar Fragoso. Desde o início, lutavam contra a rejeição da população e os surtos da ira popular dirigidos à Companhia de Jesus, segundo relatam nas suas cartas. 

De acordo com (BOSI, 1992, p. 136)[12], Vieira tinha sido designado, antes de sua partida de Lisboa em novembro de 1652, superior da missão jesuítica no Estado de Maranhão e Grão-Pará. Ele passou a maior parte do ano de 1653 em São Luís, onde defendia a liberdade dos índios nos seus sermões; viajou para Belém em novembro de 1653 e apresentou para a Câmara Municipal o decreto de 21 de outubro de 1652, através do qual lhe foi concedido o direito de construir igrejas, fundar aldeias de missões em qualquer lugar que lhe parecesse adequado e efetuar descimentos de índios, o que significava fazer os índios mudarem do interior do estado para as capitais Belém e São Luís com a finalidade de facilitar a catequização dos mesmos.

Esse mesmo documento determinava que as autoridades do Estado tivessem o dever de dar suporte e apoio a esses empreendimentos, sempre quando necessário, através do fornecimento de intérpretes, guias com conhecimentos locais, canoas e índios. Quando os moradores tomaram conhecimento desse decreto, queriam expulsar os jesuítas da capitania e naquela data aconteceram tumultos violentos na cidade.

Os colonos que viviam dispersos nas ilhas e nas margens dos rios não queriam renunciar aos serviços dos índios como remadores e precisavam da sua mão-de-obra nas plantações de cana e de tabaco. Os índios serviam não só de escravos de trabalho como também de soldados para a defesa contra tribos selvagens e outros invasores.

De acordo com (SARAGOÇA, 2000, p. 126)[13], os jesuítas tinham que aceitar que não podiam cumprir com a sua missão, mesmo dedicando-se plenamente e esforçando-se nas suas pregações contra os vícios e ironia. Os missionários não conseguiam nada nessa questão da escravatura, uma vez que o clero secular e as outras ordens, enciumadas da posição privilegiada da Companhia de Jesus, faziam oposição às iniciativas e atividades dos inacianos.

No Sermão da Epifania, professado em Lisboa depois da deportação do Maranhão, Vieira (2001) atacou os críticos e invejosos dos jesuítas, lamentou a falta de respeito e a grande vergonha que os jesuítas tinham sofrido. 

Quem havia de crer, que em uma Colônia chamada de Portugueses se visse a Igreja sem obediência, as Censuras sem temor, o Sacerdócio sem respeito, e as pessoas e lugares sagrados sem imunidade? Quem havia de crer que houvessem de arrancar violentamente de seus claustros aos Religiosos, e levá-los presos entre Beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas, e tê-los aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem? Quem havia de crer que com a mesma violência e afronta lançassem de suas Cristandades aos Pregadores do Evangelho, com escândalo nunca imaginado dos antigos Cristãos, sem pejo dos novamente convertidos, e à vista dos gentios, atônitos e pasmados? (p. 600).[14]

Segundo (THIELEMANN, 2001, p. 26), [15]Viera fez uma avaliação da obra missionária dos Jesuítas no Estado do Maranhão e Grão-Pará num sermão muito revelador no que se refere ao seu pensamento e seu raciocínio na questão indígena na Amazônia. Vieira tinha uma posição definida, em prol da liberdade dos índios. 

3. Vieira em defesa dos judeus: os cristãos-novos de Portugal

Após o estabelecimento do Santo Ofício da Inquisição, em 1536, desenvolveu-se em Portugal uma tradição de clandestinidade, que acabou se incorporando profundamente à vida nacional. A insegurança que a Inquisição produziu em todos os portugueses através da fiscalização, das denúncias anônimas, da censura escrita e falada, condicionou atitudes e comportamentos dúbios. Sem saber de que ângulo provinha o perigo, os portugueses criaram um verdadeiro talento para dissimular e os descendentes de judeus foram naturalmente o máximo expoente dessa dissimulação. Os próprios cristãos-novos confessavam esse fingimento, pois seguiam os mandamentos da Igreja apenas “por cumprimento do mundo”. Impossível conhecer e analisar a cultura portuguesa na época moderna, sem o conhecimento desse clima e dessa vivência clandestina dos portugueses.

A defesa dos cristãos-novos pela qual se empenhou durante toda a sua vida extrapola, de longe, a questão imediata e social que Portugal enfrentava. Sua íntima convivência com os judeus na Holanda e na França, e também com os cristãos-novos em Portugal e no Brasil, marcaram de maneira profunda suas ideias sobre os judeus e seu destino, os quais emergem nas entrelinhas de vários de seus escritos. Vieira, como tantos portugueses, nunca se integrou no estreito universo político e religioso português. Sua larga e universal concepção do mundo, sua ideia de justiça, sua crítica da corrupção de alguns da Igreja chocavam-se com o fanático mundo lusitano. Apesar de algumas vezes ter caído em desgraça, conseguiu equilibrar-se, porque soube usar destreza e talento os seus discursos. Procurou ajudar a resolver o conflituoso dilema que a sociedade portuguesa enfrentava sobre a questão judaica, valorizando ao extremo os judeus, tanto do ponto de vista econômico como religioso. Numa sociedade como a portuguesa, onde o critério para a valorização do homem era sua origem e seu sangue, Vieira se eleva acima de seu tempo”.

Vieira, em sua obra prima, a Clavis Prophetarum, manifesta seus sonhos de reconciliação entre judeus e cristãos. Vieira concluí pelas Escrituras Sagradas, que o Reino será consumado e perfeito entre todos os homens, inclusive judeus. No Reino de Cristo consumado na terra, haverá “um só rebanho e um só pastor”. Em sua obra Clavis prophetarum, no livro I e capítulo VII, Vieira diz o seguinte:

“Examina se Cristo, Senhor nosso, foi legítimo e próprio Rei dos Judeus. Parece, pois, que não, pela razão de que a Virgem Santíssima não gozou de direito algum de rainha, e, portanto, Cristo, Senhor nosso, em quanto seu Filho, não teve direito algum para ser Rei dos Judeus. Ao que responde com suma agudeza que, tendo Deus prometido a David e a sua Família não só o reino de Israel, como que o Messias nasceria da sua família, segue-se que, descendendo a Virgem Santíssima da família de David, e nascendo dela o mesmo Messias, o reino de Israel pertencia a Cristo, Senhor nosso, tanto pela natural descendência de David, como pela eleição divina, que prometera ao Messias o reino de Israel”.[16]

Vieira prevê que “no fim dos tempos”, Portugal e Israel serão o Império do Mundo. Para Vieira os judeus representam uma inata tenacidade em seguir a Lei. Ele ainda argumenta, que o principal sacramento dos judeus era a circuncisão, que será também permitido aos cristãos. Para Vieira, todos os homens podem salvar-se, mesmo fora da Igreja. Por causa de suas ideias, em 21 de junho de 1662, Vieira foi intimado a depor no Tribunal da Inquisição. O religioso português respondeu a um processo por “delito de heresia”. 

De acordo com (HISTORY CHANNEL BRASIL, 2019, p. 1)[17], para se defender da acusação, ele escreveu a “Resposta aos 25 Capítulos”.  A Inquisição acusava Vieira de defender os judeus e de acreditar em crenças sebastianistas (que profetizavam a volta do de D. Sebastião, rei português desaparecido em batalha em 1578). Após o depoimento, seus argumentos foram ignorados e Vieira primeiramente foi proibido de voltar ao Brasil, onde havia se destacado como missionário. Além disso, foi impedido de pregar. 

Sua condenação definitiva foi proferida em 1664, após um longo processo. Como resultado, o religioso ficou recluso em um colégio dos jesuítas, em Coimbra, entre 1º de outubro de 1665 e 23 de dezembro de 1667, quando sua prisão foi transferida para a Casa do Noviciado dos jesuítas, em Lisboa. Em 30 de junho de 1668, o Padre Antônio Vieira recebeu o perdão das penas.  

Depois de sua soltura, o padre elaborou um relatório de duzentas páginas sobre os abusos de poder da Inquisição em Portugal. O material fez com que o Papa Inocêncio XI decidisse pela suspensão dos tribunais entre os anos de 1674 e 1681.

De acordo com o padre Humberto Porto (PORTO, 1984, p. 13), [18]no Concílio Vaticano II, foi promulgado o documento Nostra Aetate de grande importância para todos, porque tem como objetivo uma maior aproximação entre católicos e judeus. Com este documento, começa, oficialmente, o desejado diálogo religioso da Igreja Católica com o Judaísmo. Em outubro de 1960, o Papa João XXIII entregou ao Cardeal Bea, seu principal auxiliar na gigantesca tarefa de renovação da Igreja, o dossiê do Professor Jules Isaac. As 18 famosas sugestões para eliminar do ensino cristão as fórmulas suscetíveis de favorecer o antissemitismo tornavam-se a base dos estudos preparatórios para a elaboração do documento conciliar que, por vontade expressa de João XXIII, devia realicerçar no amor e na paz o relacionamento da Igreja com o Judaísmo.

A iniciativa específica de uma revisão católica do problema judaico condizia perfeitamente com a própria ideia inspiradora do Concílio. Já no seu primeiro anúncio, que tomou de surpresa inclusive os meios eclesiásticos, a 25 de janeiro de 1959, por ocasião da visita à Patriarcal Basílica Ostiense, estenderam o Papa o olhar sobre o mundo inteiro e constatou com tristeza o abuso e o comprometimento da liberdade, a luta contra a verdade e o bem e o debilitamento das energias do espírito.

Eis por que devem os padres se acautelar de dizer algo na instrução catequética e na pregação que possa engendrar o ódio ou o desprezo dos judeus no coração dos ouvintes. Além disso, assim como a Igreja reprova severamente as injustiças cometidas contra os homens em toda parte, assim também ela deplora maternalmente e condena mais ainda os ódios e as perseguições contra os judeus, perpetrados outrora em nosso tempo. Sendo tão grande o patrimônio comum da Igreja e da Sinagoga, esta santa assembleia se esforça de todas as maneiras para encorajar e recomendar um conhecimento e uma estima mútua, de parte a parte, através de estudos teológicos e conversações fraternas. (PORTO, 1984, p. 29).[19]

Pode-se observar que os redatores tiveram a preocupação de distribuir o assunto em seis tópicos bem distintos:

1. A Igreja reconhece que as origens de sua fé remontam à linhagem de Abraão.

2. O cristianismo como religião nasceu do judaísmo.

3. A Igreja nutre esperanças escatológicas.

4. A Igreja responsabiliza a humanidade pecadora pela morte de Cristo.

5. A Igreja não só deplora, como, mais ainda, condena as perseguições antissemitas.

6. A Igreja se propõe a caminhar para o reencontro.

Considerações finais

As ideias que defendeu e as causas que combateu fazem de Vieira uma espécie de revolucionário português do século XVII. Numa época marcada pelo absolutismo, o pregador jesuíta mais famoso de sempre não hesitou em defender os oprimidos, em denunciar injustiças e atacar poderes dominantes. Nem mesmo o Santo Ofício escapou às suas críticas.

No que pregou e no que escreveu, Vieira estava à frente do seu tempo, no entanto, ao contrário do que se possa pensar, a liberdade na ação e no pensamento era não só fruto da sua “prodigiosa inteligência” como da formação nos colégios dos jesuítas onde aprendera a obediência mas também a cultivar um espírito inventivo, um “instinto de luta” e a “eficiência da palavra”, Viera é um pensador que viveu num século dominado pela estética barroca, o que desafiava esse grande artista a expressar-se livremente, sem regras. O único modelo que convinha a este homem universal.

Os ideais humanistas que permearam a vida e a obra de Vieira, no Brasil Colônia, nos remetem a uma profunda ética pastoral. Vieira vai criticar as incoerências da Metrópole em sua ação colonizadora. Daí, segue-se sua defesa no combate aos invasores holandeses, e sua ação junto aos judeus e cristãos-novos que aqui vieram viver. Vieira também faz uma defesa aos índios e escravos. A inspiração profética de Vieira a respeito das questões políticas e religiosas, sociais teológicas, nos desafia a sermos uma igreja em saída. 

Referências 

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

HOMEM, Edson de Castro. Nossos santos de cada dia/ Dom Edson de Castro Homem – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012, p. 398. 

HISTORY CHANNEL BRASIL, Padre Antônio Vieira é intimado a depor no tribunal da inquisição. 19 de junho de 2019. Disponível em: https://history.uol.com.br/hoje-na-historia/padre-antonio-vieira-e-intimado-depor-no-tribunal-da-inquisicao. Consulta realizada em: 18 de novembro de 2021. 

LATOURETTE, Kenneth Scott. História del Cristianismo. s/l Casa Bautista de Publicaciones.1977.

Padre Antônio Vieira: 400 anos depois/ Organização Lélia Parreira Duarte, Maria Theresa Abelha Alves. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2009. 

PORTO, Padre Humberto. Os protocolos do Concílio Vaticano II: sobre os judeus. Edições Diálogo. Av. Higienópolis, 983. São Paulo, 1983. 

SILVA, da Silva. Visões protestantes sobre a escravidão. Revista de Estudos de Religião, Nº 1/ 2003/ pp. 1-26, ISSN 1677-1222. Disponível em: https://www.pucsp.br/rever/rv1_2003/p_silva.pdf. Consulta realizada em: 12 de novembro de 2021. 

TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1996. 

THIELEMANN, Wagner. Von der göttlichen Sendung Portugals: Vieira wider die Vertreibung der Jeuiten aus Maranhão. Lusorama, Frankfurt, outubro 2001. 

VIEIRA, Padre Antônio. O Sermão da Epifania foi proferido no dia 6 de janeiro de 1662, na Capela Real de Lisboa.

VIEIRA, Padre Antônio. Clavis Prophetarum. Obras Escolhidas, Livraria Sá da Costa, Lisboa,1953. Edição eletrônica: Richard Zenker. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=6266. Consulta realizada em: 18 de novembro de 2021. 

VIEIRA, Padre Antônio. Sermão Décimo Quarto em 1633 (do Rosário), (Trechos). Para o orador dia de São João Evangelista, dia de Nossa Senhora do Rosário e dia dos escravos. Disponível em: https://historiaafrosuzano.files.wordpress.com/2016/10/sermc3a3o-decimo-quarto.pdf. Consulta realizada em: 20 de novembro de 2021. 

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Notas 

[1]  SERMÕES ESCOLHIDOS. Padre Antônio Vieira – Texto integral. Organização e coordenação: José Verdasca. Editora Martin Claret Ltda. São Paulo – SP, 2006. 

[2]  Filósofo grego (século VI a.C.); autor da obra Sobre o universo.

[3]  Filósofo grego (século V a.C.); autor da teoria do átomo. 

[4]  Padre Antônio Vieira: 400 anos depois/ Organização Lélia Parreira Duarte, Maria Thereza Abelha Alves. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2009. 

[5]  O Papa Pio V instituiu essa festa para comemorar a vitória dos cristãos contra os turcos, em Lepanto, em 1571, atribuída à proteção da Virgem Maria pela recitação do Rosário. 

[6]  TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1996. 

[7]  SILVA, da Silva. Visões protestantes sobre a escravidão. Revista de Estudos de Religião, Nº 1/ 2003/ pp. 1-26, ISSN 1677-1222. Disponível em: https://www.pucsp.br/rever/rv1_2003/p_silva.pdf. Consulta realizada em: 12 de novembro de 2021. 

[8]  LATOURETTE, Kenneth Scott. História del Cristianismo. s/l Casa Bautista de Publicaciones.1977.

[9]  Padre Antônio Vieira. Sermão Décimo Quarto em 1633 (do Rosário), (Trechos). Para o orador dia de São João Evangelista, dia de Nossa Senhora do Rosário e dia dos escravos. Disponível em: https://historiaafrosuzano.files.wordpress.com/2016/10/sermc3a3o-decimo-quarto.pdf. Consulta realizada em: 20 de novembro de 2021.

[10]  Padre Antônio Vieira. Sermão Décimo Quarto em 1633 (do Rosário), (Trechos). Para o orador dia de São João Evangelista, dia de Nossa Senhora do Rosário e dia dos escravos. Disponível em: https://historiaafrosuzano.files.wordpress.com/2016/10/sermc3a3o-decimo-quarto.pdf. Consulta realizada em: 20 de novembro de 2021. 

[11]  Ibid., 270.

[12]  BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 

[13]  SARAGOÇA, Lucinda. Da Feliz Lusitânia aos confins da Amazônia (1615-62). Lisboa, Santarém: Editora Cosmos, 2000. 

[14]  Padre Antônio Vieira. O Sermão da Epifania foi proferido no dia 6 de janeiro de 1662, na Capela Real de Lisboa. 

[15]  THIELEMANN, Wagner. Von der göttlichen Sendung Portugals: Vieira wider die Vertreibung der Jeuiten aus Maranhão. Lusorama, Frankfurt, outubro 2001. 

[16] VIEIRA, Padre Antônio. Clavis Prophetarum. Obras Escolhidas, Livraria Sá da Costa, Lisboa,1953. Edição eletrônica: Richard Zenker. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=6266. Consulta realizada em: 18 de novembro de 2021. 

[17] HISTORY CHANNEL BRASIL, Padre Antônio Vieira é intimado a depor no tribunal da inquisição. 19 de junho de 2019. Disponível em: https://history.uol.com.br/hoje-na-historia/padre-antonio-vieira-e-intimado-depor-no-tribunal-da-inquisicao. Consulta realizada em: 18 de novembro de 2021. 

[18] PORTO, Padre Humberto. Os protocolos do Concílio Vaticano II: sobre os judeus. Edições Diálogo. Av. Higienópolis, 983. São Paulo, 1983. 

[19] Ibid., p. 29.