Uma leitura intertextual das narrativas exodais em Apocalipse 15

An intertextual reading of the exodial narratives in Revelation 15

Izabel Patuzzo
Mestra em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: Isabellapatuzzo@hotmail.com


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Resumo: O presente trabalho faz uma análise intertextual de uma das mais ricas temáticas do da tradição bíblica que perpassa as Sagradas Escrituras até o Apocalipse: As narrativas exodais. Embora a presença e o significado teológico das narrativas exodais no Apocalipse tem sido gradualmente reconhecida como ecos e alusões deliberadamente consciente referidas por João, uma cuidadosa e atenta análise de textos específicos é uma questão pertinente para se compreender a interconectividade entre Apocalipse e a tradição do êxodo. Este estudo tem como foco o mote do êxodo na visão das pragas das sete taças de Ap 15, a qual proporciona a mais significativa apresentação sistemática e teológica acerca da memória do êxodo no Livro do Apocalipse. 

Palavras-chave: narrativas exodais; cântico de Moisés; intertextualidade; Apocalipse

Abstract: This work seeks to analyse the intertextuality of the most frequent motes in the biblical Tradition up to Revelation: the exodus narraive. Although the presence and theological significance of the exodus narratives in Revelation has been gradually acepted as echoes and allusions concious and deliberated mencioned by John, a thorough and attentive analyse of specfic passages is a very relevant question im order to understant the interelation between the Book of Revelation and exodus Tradition. This research will focus on the exodus motif in the vision of seven bowls narrative in Rev 15, which provides the most systematic and theological significant presentation regarding to the exodus theme in the Book of Revelation. 

Keywords: Exodus narratives; song of Moses; intertextuality; Revelation

Introdução

Este artigo busca evidenciar o fundamento teológico das tradições exodais no capítulo 15 do Livro do Apocalipse em chave narrativa. Isto é amplamente aceito que o Apocalipse de João como um todo tece em uma linguagem apocalítica muitas referências do Antigo Testamento. Com uma criatividade excepcional o vidente de Patmos descreve suas visões tendo como pano de fundo tradições proféticas, Salmos e a tradição do êxodo. Embora seja muito raro citações explicitas, mas direta ou indiretamente o Livro do Apocalipse faz muitas alusões às Escrituras (VANNI, 2018, p. 34). 

De um modo geral, todas as referências retiradas do Antigo Testamento no livro do Apocalipse são reformuladas ou reelaboradas em uma nova linguagem e simbologia. João essencialmente usa imagens, ideias, conceitos e símbolos presentes nas Escrituras como sua primeira fonte para se comunicar com as comunidades cristãs da Ásia Menor (OLADOSU, ALU, 2016, p. 2). Uma das características dos escritos apocalípticos judaico-cristão é não citar literalmente suas fontes, mas transformá-las e moldá-las dentro do gênero apocalíptico. É sob essa perspectiva que serão analisadas as narrativas exodais presentes no Apocalipse de João.

O conceito de narrativas exodais neste estudo inclui elementos da memória histórica da libertação da longa e dura escravidão dos israelitas no Egito e sua experiência teologal da libertação do poder opressor de faraó, no sentido que este evento tão extraordinário moldou a fé de Israel, que a partir desta experiência se identificou como povo eleito que firmou uma aliança com Deus que perdura de geração em geração. Isto é, no decorrer de sua história, todo israelita imagina-se como alguém que saiu do Egito como escravo e se tornou liberto pela mão de Deus. Por essa razão os judeus muitos séculos mais tarde, em contextos tão diversos, continuaram a se identificar como povo escolhido (GALLUS, 2008, p. 22).

Os capítulos 15 e 16 do livro do Apocalipse são considerados uma unidade completa da visão das sete taças e o julgamento divino; dentro dessa macro narrativa, o capítulo 15 funciona como introdução do julgamento. O texto coloca em cena os personagens: João como narrador, os sete anjos, um dos quatro animais, e o grupo dos santos; o cenário apresenta a terra, descrita como um mar de vidro misturado com fogo e o céu, onde o vidente contempla o templo e o tabernáculo de Deus. Os acontecimentos se desenvolvem dentro de um tempo: o julgamento eminente. No espaço os eventos cósmicos que estão para acontecer, envolvem o céu e a terra (OSBORNE, 2017, p. 626). O autor se apropria da linguagem apocalíptica da época retomando a tradição do êxodo, a mais recorrente ao longo das Escrituras. 

O mundo do pensamento judaico-cristão do primeiro século da era cristã utiliza elementos que vão além dos escritos canônicos da Bíblia hebraica. Muito da cosmologia do mundo antigo, influências da cultura persa, babilônica e macedônica também formam parte deste horizonte conceitual, incluindo o uso de simbolismo, fruto do entrelaçamento cultural e religioso do processo do helenismo. É neste horizonte que se pode compreender o uso das imagens das taças nos capítulos 15 e 15 do Apocalipse de João como uma reelaboração das pragas do Egito, narrado no livro do Êxodo.

1. Imagens e simbolismo das taças na literatura bíblica

O símbolo das sete taças descritas em Ap 15 e 16 designam uma série de pragas derramadas sobre a terra como sinal do julgamento divino. Essas imagens possuem um rico fundamento e profundo significado teológico que reforça a ênfase da tradição do Êxodo nas visões narradas nesses capítulos. O termo φιάλη (taça ou cálice) no Antigo Testamento (Is 51,17.23; Jr 25,15.19; Lm 4,21; Ez 23,31-33; Sl 116,12-19) é uma metáfora do julgamento de Deus que é derramado sobre a terra (COLLINS, 1998, p. 5). Dependendo do contexto pode ter um sentido positivo ou negativo. A taça da ira de Deus é geralmente entendida dentro da moldura teológica da Aliança como expressão da infidelidade do povo escolhido.

Embora o simbolismo da taça da ira divina não seja proeminente na literatura do segundo Templo, a temática da ira de Deus é muito frequente nesses escritos, mas nem sempre conectada com esse simbolismo. Neste período surgem novos desenvolvimentos conferindo novos significados para esta figuração, pois neste período o termo taça ou cálice havia se tornado um utensílio usado durante rituais e cultos sagrados. Isso pode indicar que João associa o conceito teológico da taça da ira de YHWH da tradição profética, o julgamento divino da tradição do Êxodo com a linguagem apocalíptica do segundo Templo (OSBORNE, 2017, p. 630).

O sentido em que o termo φιάλη é empregado no livro do Apocalipse relaciona-se com a temática do julgamento. No entanto, nos escritos neotestamentários este tema é muito raro. No novo Testamento o vocábulo comum para se referir ao cálice da salvação é ποτήριον; embora o termo seja mais frequente, porém tem outra conotação. Sobretudo no contexto da última ceia, o termo representa a morte e a ressureição de Jesus e recorda e Aliança do Sinai (Ex 24,8). Portanto, é símbolo da nova Aliança realizada por Jesus Cristo. Na teologia do Novo Testamento, o sacrifício de Jesus quando derrama seu sangue na cruz, se torna o selo da nova Aliança. É importante notar que na cena em que Jesus se angustia no Getsêmani (Mt 26,39) o vocábulo ποτήριον (cálice) tem o mesmo sentido simbólico de φιάλη no Apocalipse (SON, 2017, p. 8).

O termo φιάλη aparece doze vezes no Apocalipse de João (Ap 5,8; 15,7; 16,1-4.8.10.12.17; 17,1; 21,9). O substantivo taça junto ao incenso representa a oração dos santos (Ap 5,8), enquanto em Ap 15,7 fala das taças de ouro cheias da ira de Deus, uma expressão fortemente marcada pelo símbolo do Antigo Testamento para designar o julgamento de Deus (GALLUS, 2008, p.24). As duas passagens têm como pano de fundo um contexto liturgico, no qual os anjos como ministros de Deus, se encaregam de executar a ordem divina de julgar os maus, derramando as taças de sua ira.

2. Análise intertextual de Ex 15,1-18 e Ap 15,1-8  

Dentre os vários motes teológicos que são abordados pelo autor do Apocalipse e que estão presentes em outros livros do Antigo Testamento, o êxodo tem particular significância. As visões que o autor descreve em seu livro resulta de diversas fontes literárias advindas particularmente nas Escrituras judaicas. Considerando que as Escrituras eram importantes para o autor do livro do Apocalipse, isto seria esperado que eventos tão significativos do Antigo Testamento desenvolveria um papel central na sua mensagem. Um desses eventos centrais que perpassam todas as Escrituras são as narrativas exodais. A referência mais clara da experiência êxodo no livro doa Apocalipse se encontra no capítulo 15 por que faz uma referência direta às pragas do Egito (cf. Ap 15,1), Moisés (cf. Ap 15,3) e a tenda do Testemunho (cf. Ap 15,5).

Muito antes que o conceito ou o termo intertextualidade fosse definido como categoria literária, muitos estudos exegéticos já haviam ressaltado o diálogo entre Antigo e Novo Testamento. As recorrências temáticas nas Escrituras, ecos, alusões, citações diretas que um autor sagrado tem como fonte para compor ou reelaborar um novo escrito. O livro do Apocalipse dialoga com várias tradições, como a apocalíptica, sapiencial, profética e exodal (EVANS, 2014, p. 440).

O capítulo 15 do livro do Apocalipse fornece uma significativa referência à tradição do Êxodo, colocando o cântico de Moisés (Ex 15,1-18; Dt 32,1-4; Sl 90) em uma oração de louvor ao Cordeiro. Os três versículos introdutórios (Ap 15,1-3) é um discurso narrativo, nos quais a voz do narrador coloca em cena os sete anjos portadores das sete pragas. Eles saíram vitoriosos da luta contra a Besta e entoam o Cântico de Moisés, servo de Deus e do Cordeiro.

A narrativa do cântico de Moisés e do Cordeiro se apresenta como uma releitura das dez pragas do Êxodo simbolizadas pelas sete taças do furor de Deus (cf. Ap 15,7). Percebe-se a intertextualidade com a narrativa exodal, porém o texto de Apocalipse se insere no contexto do helenismo do mundo judaico-cristão no primeiro século da era cristã; de imediato se destacam dois elementos significativos: a narrativa das pragas do Egito e o imaginário da tradição apocalíptica. O mote teológico do êxodo nesta visão pode ser observado como uma rede complexa de temáticas que incluem uma série de eventos: a libertação do Egito, precedida pelo julgamento de YHWH contra opressão do Faraó; a Aliança realizada no Sinai; a conquista da Terra prometida (GALLUS, 2008, p, 26).

O encadeamento das pragas das taças é uma das três séries septenárias do Apocalipse de João, e cada uma delas usa um simbolismo específico. A primeira sequência delas é marcada com a abertura dos sete selos (Ap 5,1-8,1). A segunda de sucessão é desencadeada por sete anjos, cada um tocam sua trombeta como anúncio da praga (Ap 8,2 - 11,19). A terceira série especificamente denominadas pragas, é narrada em Ap 15,1-8. A cada praga os anjos como emissários de Deus irão derramar as sete taças do furor sobre a terra (Ap 16,1) para eliminar o mal que oprime a comunidade dos fiéis. A segunda e a terceira séries são muito próximas entre si no sentido de partilhar uma grande quantidade de simbolismo em comum. Entre os vários paralelos das sequencias de pragas, os anjos desempenham um importante papel no encadeamento e na execução das pragas (SON, 2017, p.10).

 Portanto, a intertextualidade do Apocalipse com as narrativas exodais pode ser analisada como um complexo conjunto de eventos que apresentam vários eixos temáticos: libertação, julgamento, presença do Deus que liberta, vitória do povo oprimido, derrota dos poderes do mal e a conquista da herança divina pelo povo fiel. Embora, não seja possível neste estudo explorar toda a riqueza dessas temáticas, serão destacados alguns elementos relevantes para a compreensão do capítulo 15 do Apocalipse em paralelo com Ex 15 (MALINA, 1995, p. 137).

2.1 A libertação

O texto de Ap 15,2-4 descreve a cena da vitória dos santos que entoam o cântico de Moisés e do Cordeiro. A narrativa coloca-os como os personagens principais; eles são todos aqueles que venceram a Besta, sua imagem e o número do seu nome. Eles venceram a batalha e agora dão glória a Deus pela grandeza de suas obras, seus feitos e santidade. Depois de vencer a Besta eles louvam a Deus pela conquista de três coisas: vencer a besta, sua imagem e o número de seu nome. A besta descrita em Ap 15 se difere das bestas descritas em Ap 13. Enquanto o capítulo 13 descreve uma besta que surge vindo do mar (Ap 13,1-1) e outra da terra (Ap 13,11-18), em Ap 15 aparece apenas uma. Entre as duas bestas de Ap 13 e a besta de Ap 15 há um elemento em comum com a primeira besta que sai do mar: ela tem nome (Ap 13,1), um sinal e o número de seu nome (Ap 13,17). Essas semelhanças evidenciam que se trata da mesma besta (GALLUS, 2008, p, 30).

Comparando os elementos da narrativa de Ap 15,1-8 com Ex 15,1-18, denominada como o cântico de Moisés, destacam-se alguns personagens em comum: Moisés e os israelitas, incluindo Miriam, irmã de Moisés. Os israelitas conseguiram fugir do Egito conduzidos por Deus. Encurralados pelo exército de faraó conseguem atravessar o Mar Vermelho por um feito divino. Assim, Moisés e os israelitas foram libertos do poder dos egípcios, pois esses se opuseram a Deus e ao seu povo. O povo de Deus vence a batalha contra o opressor e por isso entoam o canto da vitória em louvor ao Deus que liberta (SONG, DU RAND, 2009, p. 95).

Estabelecendo um paralelo entre o texto de Ex 15,1-18 com Ap 15,2-4, alguns aspectos comuns se sobressaem: Moisés e os israelitas são os personagens vitoriosos que predominam no Êxodo e no Apocalipse a multidão dos santos vencem a besta. Tanto a narrativa do cântico da vitória no Êxodo como do Apocalipse, os grupos mencionados sofreram porque seus opressores se colocaram contra Deus (MOYISE, 2004, p. 350). Aqueles que fazem a experiência da libertação divina, entoam o mesmo canto da vitória depois de sua redenção. Em ambas as situações os grupos de oprimidos libertos tomam seus instrumentos musicais e dirigem a Deus um canto de louvor em forma de oração reconhecendo seu ato salvífico como uma grande maravilha realizada em favor dos oprimidos (KOESTER, 2014, p. 653).

Em relação à configuração espacial, as cenas de vitória em ambos os textos, são descritas em proximidade com o mar. As águas paralisadas e amontoadas no Êxodo se transformam em águas cristalizadas como um vidro no Apocalipse. Porém, o autor do Apocalipse reelabora a tradição do Êxodo com um revés: o cântico de Moisés precede a vitória dos santos e a execução das pragas, enquanto no Êxodo o cântico sucede as dez pragas e a derrota do exército de faraó. Mas três elementos fundamentais aparecem nos dois textos: o mar, o cântico de Moisés e a vitória dos oprimidos (OSBORNE, 2017, p. 633).

O cenário de fundo da trama das duas cenas de vitória em torno do cântico de Moisés é de um grande conflito que foi gerado e desenvolvido pelas vantagens e privilégios do opressor em relação ao povo escravizado que sofre com a opressão. Eles usam do exercício de seu poder causando sofrimento ao povo de Deus sempre se colocando como oponentes do Senhor. A narrativa da libertação milagrosa no Êxodo tem um sentido teológico da eleição de YHWH que constitui seu povo, libertando-o da escravidão. A terra prometida será o grande fruto dessa vitória. Enquanto o relato de Ap 15,2, a multidão dos santos conquista três coisas: derrotam a besta, sua imagem e sinal e o número de seu nome.

2.2 O julgamento

Um dos elementos da tradição do Êxodo é o julgamento dos egípcios manifestado na sequência das dez pragas. Quanto mais o faraó se recusa a obedecer a ordem de YHWH, permitindo da saída dos israelitas, mais se intensificam as pragas culminando com a morte de todos os primogênitos do Egito (Ex 8 - 10). Desencadeadas em sequência, as pragas demonstram a impotência dos egípcios e seus deuses diante de YHWH. Elas expressam o julgamento de Deus sobre Faraó; O Senhor Deus derrota o inimigo e desmascara sua falsa alegação de ter poderes divinos, pois todos os acontecimentos descritos no Êxodo afirmam a soberania de YHWH.

A cena introdutória de Ap 15,1-5 descreve a preparação do derramamento das sete taças e introduz o sentido teológico fundamental do julgamento por meio de pragas que expressam a ira de Deus. As cenas das sete taças que trazem o furor de Deus são modeladas a partir das narrativas exodais das pragas do Egito (KOESTER, 2014, p. 655). A diferença nos números das pragas reflete a influência da literatura apocalítica do segundo Templo que tem uma preferência pelo número sete, que é adotado por João. Ela atualiza a tradição exodal a partir da linguagem e simbolismo da apocalíptica, pois provavelmente era familiar aos seus leitores.

O desenlace das pragas mencionadas antes do cântico de Moisés e do Cordeiro narradas em Ap 15 e 16 estabelecem uma semelhança aos eventos que aconteceram no Egito; chagas malignas, o sangue que faz as criaturas morrer, escuridão, espíritos imundos em forma de rãs, raios, relâmpagos, trovões e terremotos. Enfim, o julgamento de Apocalipse 15 e 16 tem como pano de fundo as dez pragas narradas no Êxodo (SON, 2017, p. 12).

Apocalipse  

 Pragas

Êxodo

 

16,1

16,3-4

16,10

16,13

16,17-21


Chagas malignas

Sangue que provoca morte nas criaturas

Escuridão 

Os três espíritos do mal com aparência de rãs 

Raios, relâmpagos, trovões e terremotos

 

9, 8-12

7, 17-19

10, 21-23

8, 1-15

9,23

2.3 A presença de Deus que liberta

Um ponto central da narrativa do Êxodo, é a decisão permanente de YHWH habitar no meio de seu povo escolhido, numa tenda especialmente construída para Ele (Ex 25,8). A tenda de YHWH é também designada como tenda do encontro (Ex 29,42), tabernáculo (Ex 25,9). Santuário ou tabernáculo do testemunho (Nm 17,23). A presença do tabernáculo do Senhor no meio de seu povo escolhido tem por base a libertação da escravidão do Egito, celebrada com a aliança do Sinai. A tenda sagrada ou a tenda do encontro é sinal da soberania de YHWH e a relação que Ele estabelece com seu povo escolhido é por natureza, sagrada. Sua presença amorosa no tabernáculo revela que YHWH é um Deus que toma a iniciativa de escolher, libertar porque tem afeição pelos israelitas. Por isso, Israel presta culto a Deus em seu santuário (GALLUS, 2008, p. 32).

A imagem da tenda celeste descrita em Ap 15,5 se aproxima do tabernáculo de testemunho da tradição do Êxodo. A expressão ὁ ναὸς τῆς σκηνῆς τοῦ μαρτυρίου ἐν τῷ οὐρανῷ (o templo do tabernáculo) é uma clara alusão do tabernáculo do Êxodo que guardava as tábuas da Lei. O tabernáculo no interior do Templo é o lugar que abriga, que guarda, que preserva a Lei recebida na teofania do Sinai. Desse modo, aqui o autor do Apocalipse recorda também que a Aliança é inseparável da Lei recebida no deserto. Implicitamente o autor do Apocalipse procura preservar na memória das comunidades cristãs da Ásia Menor, que a relação de Deus para com seu povo é pactual e que a Aliança constituída no passado é eterna (MOYISE, 2004, p. 354).

O cenário de teofania em Ap 15,8 com a fumaça que toma conta do Templo recorda a entrega do tabernáculo no Sinai (Ex 40,34-35) e com alguns textos relacionados com visões proféticas (Is 6,1; Ez 10,3-4; 43,5) (SONG. DU RAND, 2009, p. 97). Enquanto no Antigo Testamento as nuvens, as fumaças são imagens que se associam ao lugar da morada de Deus, em Apocalipse 15 designa a presença divina que está para executar o julgamento, por meio dos anjos, seus servos ou ministros. As pragas que estão para serem executadas, no final também evocam a presença divina que intervém para libertar as comunidades fiéis ao Cordeiro que estão sofrendo pelo mal infligido pela Besta.

2.4 O Cântico de Moisés

O cântico de Moisés mencionado em Ap 15,3-4, insere o aposto “servo de Deus”, ao descrever Moisés. Sua designação como servo de Deus é frequentemente encontrada no Antigo Testamento, mas sua denominação como servo de Deus e a narrativa do cântico juntos, só aparece em Êxodo 14 - 15 e Ap 15,3 (SON, 2017, p.11). Mesmo que do ponto de vista linguístico Ap 15 e Ex 15 não apresentam um paralelo explicito, no que se refere às temáticas é evidente a intertextualidade dos textos; ambos cantam e louvam a Deus por suas grandes obras, seu poder, sua santidade, seus caminhos são justos e verdadeiros e só ele é digno de toda glória (SON, 2017, p. 14).

Ap

Ex

Tema

“...cantando o cântico de Moisés, o servo de Deus, e o cântico do Cordeiro: Grandes e maravilhosas são as tuas obras, ó Senhor Deus Todo-poderoso; teus caminhos são justos e verdadeiros, ò Rei das nações” (Ap 15,3).

 

Israel viu a proeza realizada pelo Senhor Deus contra os egípcios. E o povo temeu ao Senhor Deus, e creram no Senhor Deus e em Moisés seu servo. Então, Moisés e os israelitas entoaram esse canto ao Senhor Deus: Cantarei ao Senhor Deus, porque se vestiu de glória; Ele lançou ao mar o cavalo e ao cavaleiro” (Ex 14,31-15,1).

 

- O Senhor Deus é  

    Grande;

 

 -Suas obras são

   Maravilhosas;

 

Quem não temeria, ó Senhor, e não glorificaria o teu nome? Sim! Só tu és santo! Todas as nações virão prostrar-se diante de ti, pois tuas justas decisões se tornaram manifestas” (Ap 15,4).

“Quem é igual a ti, ó Senhor Deus, entre os deuses? Quem é igual a ti, tão ilustre em santidade? Terrível nas façanhas, hábil em Maravilhas?

(Ex15,11).

“Os povos ouviram falar e começaram a tremer; dores se espalharam no meio dos filisteus, e ficaram com medo os habitantes de Edom. Os chefes de Moab, o terror os dominou” (Ex 15,14-15).

- A glória de Deus;

 

- Só o Senhor Deus é 

   santo;

 

 

 - o ser humano teme

    o Senhor Deus

 



Em síntese, o cântico de Ex 15 e Ap 15 louvam a Deus pela sua ação salvífica, porque seus feitos são grandes e maravilhosos, pelo temor e o respeito do ser humano em seu favor, pela singularidade de sua santidade e glória. Nesses aspectos os dois cânticos entoam as mesmas proclamações ao Senhor Deus, mesmo que expressas em diferentes palavras. Em Apocalipse as expressões são mais breves, enquanto no Êxodo são mais detalhadas, mas em termos de conteúdo as proclamações a Deus são semelhantes. Todo o contexto do Apocalipse demonstra uma citação indireta do Êxodo, indicando que João reelabora suas fontes em uma linguagem apocalíptica própria de seu tempo. Na Narrativa do Êxodo, Moisés e os israelitas entoam o cântico de vitória depois de atravessar o Mar Vermelho, e no Apocalipse os Santos entoam o cântico de Moisés e do Cordeiro diante do mar de vidro como prelúdio da derrota do poder da Besta pela mão de Deus e do Cordeiro (EVANS, 2014, p. 442).

2.5 Entoar o cântico da vitória

A narrativa do cântico de Moisés e do Cordeiro diante do mar de vidro, por um lado evoca a memória do Êxodo, por outro, ajuda a compreender o impacto que o autor do Apocalipse queria causar em seus interlocutores. O contexto é de vitória para suscitar esperança e perseverar na fé em Jesus Cristo, mesmo diante das adversidades. João deixa entrever que suas fontes literárias estão profundamente enraizadas nas tradições do Antigo Testamento e que Deus permanece fiel ao seu povo. A comunidade dos santos canta um cântico novo (CASALEGNO, 2017, p. 143) com a certeza de que Deus vence o mal. Eles são aqueles que venceram a Besta: “νικῶντας ἐκ τοῦ θηρίου καὶ ἐκ τῆς εἰκόνος αὐτοῦ καὶ ἐκ τοῦ ἀριθμοῦ τοῦ ὀνόματος αὐτοῦ ἑστῶτας ἐπὶ τὴν θάλασσαν τὴν ὑαλίνην ἔχοντας κιθάρας τοῦ θεοῦ (Ap 15,2). Eles venceram a Besta, sua imagem, seu número e o seu nome. Porém, a ideia da vitória, pressupõe que existe um conflito entre o grupos de vitoriosos e seus adversários. 

A cena descrita em Ap 15,1 está relacionada com os capítulos precedentes (Ap 12 - 14) que situam a natureza do conflito. O tema da vitória faz um paralelo entre a derrota do exército do Faraó no Mar Vermelho com a derrota da Besta no mar de vidro. Em ambas as narrativas, entoar o cântico da vitória é a razão primordial para celebrar, louvar e dar glórias ao Senhor Deus. Contudo, há um aspecto contrastante entre o grupo dos israelitas no Êxodo e os νικῶντας (vitoriosos) em Ap 15,2: a participação dos dois grupos nas batalhas contra seus inimigos. Nota-se que alguns detalhes se diferem: enquanto os israelitas não se envolveram diretamente na batalha porque o Senhor Deus lutou por eles, os santos no Apoclipse são participantes ativos da batalha contra a Besta (SON. 2017, p. 20).

O cântico de Moisés e do Cordeiro apresenta e justifica o poder de Deus através da história. Emoldurado em linguagem apocalíptica, o texto de Ap 15,1-8 serve para recolocar os fiéis e as comunidades da Ásia Menor em contato com a experiência do passado, quando pertencer ao povo escolhido por YHWH significou ser liberto do poder do mal. Assim, João estabelece um paralelo com a tradição do êxodo de modo tão vívido e criativo ao descrever o julgamento escatológico; ele recorre a um tema tão recorrente na literatura do segundo Templo que certamente lhe era tão familiar. O vidente de Patmos não poderia ter encontrado uma narrativa mais forte para explicar a ideia do julgamento e derrota do mal. A comunidade que permanece fiel ao Cordeiro triunfará sobre a violência e a dominação infligida pela Besta (SHÜSSLER FIORENZA, 1997, p. 37).

2.6 A comunidade vitoriosa

Como figura coletiva, a comunidade dos santos reunida diante do mar vítreo em Ap 15 é a protagonista do relato que celebra a vitória. O seu autor convida o leitor a se identificar com ela. São pessoas que se encontram diante desse mar transparente como um vidro. Eles não são os portadores das taças da ira de Deus; eles apenas trazem em suas mãos as cítaras, isto é, os instrumentos musicais para cantar o hino de louvor, o cântico de Moisés e do Cordeiro. O discurso dos vencedores é apresentado em forma de (wv|dh) canto (AP 15,3-4) em contraste com o lamento dos inimigos. A música é também uma proclamação a intervenção divina, fundamentada em três motivos (usando a cláusula explicativa o[ti): Porque só Deus é Santo; porque todas as nações virão prostrar-se diante Dele; porque suas justas decisões são manifestas. Colocado estrategicamente antes do julgamento descrito em Ap 16, o cântico antecipa o significado das pragas que virão, apresentando desta maneira, que a celebração é o júbilo (efeito), seguida pelo juízo divino (causa).

Conclusão

Os ecos das narrativas exodais presente em Ap 15 evidencia que além de reelaborar a tradição do êxodo, o autor do livro do Apocalipse também mostra, até certo ponto, respeito pela sequência cronológica dos eventos do Êxodo; em continuidade Ap 16 apresenta a sequência das pragas. O imaginário descrito em Ap 15 e 16 recordam a teofania do Sinai, o tema da aliança e a presença de Deus. Assim, as principais temáticas das narrativas exodais, desde as pragas até a saída Egito, a travessia no Mar Vermelho e a libertação da escravidão, são retrabalhadas em linguagem apocalítica no cântico de Moisés e do C visão das sete taças.

As narrativas exodais compreendem vários motes teológicos como: libertação, julgamento, aliança, presença do Deus libertador, conquista e herança. O autor do Livro do Apocalipse tece os diversos componentes da tradição do êxodo dentro de narrativas de visões, dentre elas, a visão das sete taças. O capítulo 15 marca o início do julgamento e libertação; a narrativa ressalta alguns aspectos teológicos da tradição do êxodo que se encaixam dentro de seu propósito. A vitória dos santos é colocada sob a perspectiva escatológica do fim dos tempos de sofrimento. A multidão dos santos canta a vitória do Cordeiro Imolado sobre o mal. Ao revelar a teofania de Deus manifesta na vitória do Cordeiro, assim como no Sinai, é o prelúdio da construção do novo céu e a nova terra.

Em suma, analisando o cenário de fundo do cântico de Ap 16 e Ex 15, são evidentes as semelhanças dos protagonistas principais: Moisés, os israelitas; o Cordeiro e a multidão dos santos; a configuração espacial de ambos é à beira do mar e a trama culmina com a ação salvífica de Deus e a vitória de seus escolhidos. Dessa forma, entrelaçando os temas centrais do Êxodo, especialmente o cântico de louvor após a travessia do Mar Vermelho, João com sua visão escatológica, oferece aos seus leitores o vislumbre da vitória final eminente sobre o poder opressor da Besta. A memória do Êxodo suscita no coração dos discípulos de Jesus Cristo perseverar na esperança, porque ao longo da história Deus sempre triunfou sobre o mal e garante a vida do povo fiel.

Referências

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