Sócrates, projeção intelectual para Bakhtin e Gadamer: Instrumentos para a intepretação bíblica

Socrates, intellectual projection for Bakhtin and Gadamer: Tools for biblical interpretation

Francisco Benedito Leite
Doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Grego Bíblico da Universidade Metodista de São Paulo. Contato: ethnosfran@hotmail.com

Jungley de Oliveira Torres Neto
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato: jungleyjf@hotmail.com


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Resumo: No presente artigo, apresentam-se dois retratos intelectuais do célebre filósofo ateniense Sócrates relacionados com pensadores do mundo contemporâneo. O primeiro, feito por Bakhtin, apresenta o filósofo como figura fundamental para o futuro desenvolvimento da história do romance, destacam-se suas características valorização do diálogo e da cultura cômica popular, a importância de seus diálogos para a evolução dos gêneros discursivos e, sobretudo, a representação prosaica de sua pessoa. O segundo retrato intelectual toma o método maiêutico de Sócrates para, a partir disso, descrever sua ironia, cuja valorização é reconhecida por Gadamer, que a compartilha como método dialógico de busca pela verdade. As duas partes do texto, em certo sentido, estão em conexão, porque partem de características vulgares de Sócrates para descrever a relevância intelectual de sua filosofia e porque são feitos apontamentos para a possibilidade de se realizar interpretação de textos bíblicos por meio das teorias propostas, por outro lado, as duas partes do artigo estão separadas porque enquanto a primeira relaciona Bakhtin com Sócrates, a segunda relaciona Gadamer com o mesmo filósofo. 

Palavras-chave: Sócrates, Bakhtin, Gadamer, prosaico, ironia

Abstract: In this article, two intellectual portraits of the famous Athenian philosopher Socrates are presented, related to thinkers of the contemporary world. The first, by Bakhtin, presents the philosopher as a fundamental figure for the future development of the history of the novel, highlighting his characteristics, valuing dialogue and popular comic culture, the importance of his dialogues for the evolution of discursive genres and, above all, , the prosaic representation of his person. The second intellectual portrait takes Socrates' maieutic method to, from there, describe his irony, whose appreciation is recognized by Gadamer, who shares it as a dialogic method of searching for truth. The two parts of the text, in a certain sense, are in connection, because they start from common characteristics of Socrates to describe the intellectual relevance of his philosophy and because notes are made for the possibility of interpreting biblical texts through the proposed theories, on the other hand, the two parts of the article are separated because while the first relates Bakhtin with Socrates, the second relates Gadamer with the same philosopher.

Keywords: Socrates, Bakhtin, Gadamer, prosaic, irony

Introdução

Sócrates é personagem de diálogos platônicos, de uma biografia de Xenofonte e de uma comédia de Aristófanes. Ao que indica a recorrência da menção de seu nome em diferentes textos do século IV a.C., essa personagem deve realmente ter existido e sido um filósofo notável que influenciou significativamente a história da filosofia ocidental com suas ideias – sobretudo as que se baseiam na valorização do diálogo –, e posteriormente, foi condenado à morte supostamente por perverter os jovens e desvalorizar os deuses da cidade.

Apesar de não ter deixado livro escrito, Sócrates notabilizou-se pelos diálogos escritos por seu discípulo Platão, nos quais o mestre era a personagem principal e destacava-se por estimular a reflexão de seus interlocutores, quem quer que fossem, pelo diálogo, para que assim chegassem à verdade por meio de seu próprio raciocínio que era desenvolvido pela comunhão de mentes, num procedimento que só era possível pelo diálogo. Diga-se de passagem, a verdade à qual se chega por meio desse exercício dialógico, nunca é a verdade final que, em suma, não existe para a filosofia socrática, mas é a verdade que, apesar de transitória, desvela-se e se dá a conhecer no momento em que é buscada.  

Se em seu mundo, Sócrates despertou tamanha admiração e entusiasmo aos intelectuais que passaram a segui-lo e depois transmitiram suas ideias à posteridade, ainda hoje, no mundo contemporâneo, os grandes filósofos projetam-se em seu legado intelectual e em sua trajetória histórica, quer direta, que indiretamente; quer consciente, quer inconscientemente.

Nas páginas abaixo, apresentaremos dois retratos de Sócrates, o primeiro que foi desenvolvido e utilizado por Bakhin para criar sua história idealizada do romance, e o segundo foi tomado para a utilização que Gadamer faz da ironia em seu projeto hermenêutico. Tanto um quanto outro dos dois intelectuais mencionados desenvolveram seus procedimentos teóricos a partir das características vulgares de Sócrates, isto é, da sua utilização da ironia e de outros recursos cômicos, que são recursos populares; e de sua representação ambivalente que se constitui sábio porque sabe que não sabe. Por fim, em seguida a cada um dos dois retratos de Sócrates que foram propostos, serão apresentadas possibilidades de se interpretar a Bíblia de acordo com as propostas de leitura que Bakhtin e Gadamer fizeram do pensador grego. 

1. O Sócrates de Bakhtin: o sério-cômico e o Novo Testamento

De acordo com o que afirmam Clark e Holquist, Sócrates é considerado por Bakhtin como “o primeiro romancista” (2004, p.295). Essa afirmação está mais relacionada com o domínio da Filosofia do que com o da Literatura, pois para Bakhtin a história do desenvolvimento da consciência humana é descrita por meio da narrativa do surgimento do romance ao invés de o ser pela história da filosofia (BRANDIST, 2012). Para destacar a alta estima que Bakhtin tem pelo romance, Morson e Emerson afirmam: “Para Bakhtin, o romance não era apenas uma forma de pensar complexa, era também a realização suprema do pensamento ocidental” (2008, p.325).

Nesse caso, a história do romance, sobre a qual Bakhtin se dedica a estudar entre as décadas de 1930 e 1950 (época em que foram produzidos: Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento e a Teoria do Romance em três volumes), na verdade, correspondia à história do pensamento ocidental – a história da filosofia, por assim dizer –, à qual ele prefere abordar pelo viés do desenvolvimento das formas romanescas ao invés da tradicional filosofia acadêmica, porque considerava ‘monológico’ o modelo de estudo universitário desse domínio do saber nos principais centros de estudo e de acordo com os principais intelectuais de seu mundo.

De qualquer forma, Sócrates aparece como personagem destacada na teleológica história do romance de Bakhtin, porque seu legado está relacionado com o desenvolvimento da autoconsciência humana, resumido pela célebre expressão: “conhece-te a ti mesmo”. Na história do desenvolvimento da consciência humana, sem dúvida, a atuação de Sócrates está entre os mais relevantes eventos ocorridos em todos os tempos, como é amplamente reconhecido, mas, no caso da compreensão de Bakhtin sobre o autor, destaca-se a importância dada pelo filósofo grego a elementos muito específicos que incluem tanto: “sua máscara popular de tolo que não compreende [...]” quanto “[...] seus traços de um tipo de sábio elevado” (BAKHTIN, 2019, p.91).

Nesse sentido, em seu artigo: O romance como gênero literário (2019), Bakhtin apresenta expressamente os diálogos socráticos como gênero englobado pelo conceito do sério-cômico e, como tais, eram legítimos predecessores do romance por incorporarem em si as características da séria investigação filosófica em sua busca das verdades mais sublimes (portanto: sério-) e a característica formal de uma linguagem baixa, vulgar e pretensamente cômica (portanto: cômica). Disso decorre o conceito sério-cômico. 

Ainda de acordo com Bakhtin (2019), esse gênero, o diálogo socrático, inaugura a prosa ática, que gradativamente disputará o espaço na cultura helenística com os gêneros poéticos que predominavam até aquela época. No entanto, doravante, surgia uma renovação substancial na linguagem que se afastaria dos padrões fixados por métricas e passaria a se basear na transcrição da linguagem falada, ainda que estilizada em diferentes níveis. 

Os recursos da linguagem baixa (comicidade, ironia, sarcasmo) era característica dos diálogos socráticos, apesar da tradição agelasta e monológica de intérpretes e tradutores ocidentais dos últimos séculos que ignoraram solenemente as características populares da literatura helenística clássica para caracterizá-la de acordo com o gosto da intelectualidade elitista unilateralmente séria que surgiu depois do período do Renascimento.  

Na particular e instigante descrição que faz do gênero, o filólogo russo menciona que se nota nos diálogos socráticos simultaneamente o nascimento da concepção científica e da imagem artístico-prosaica do romance. Trata-se de um gênero desenvolvido a partir do registro de conversas reais, baseado na memória pessoal. Sócrates, a personagem central desse gênero incorpora as ambivalências do já referido sério-cômico devido à sua sábia ignorância. 

Sócrates é apresentado em seus diálogos como uma pessoa desprovida de dinheiro, filho de uma parteira e casado com uma mulher de temperamento forte. Destaca-se por sua capacidade locutiva, pela capacidade de conduzir diálogos envolventes que levam seus interlocutores a conclusões inesperadas. Enfim, Sócrates é desprovido de força, de nobreza e de talentos sobrenaturais. Tudo isso rompe com a imagem do herói épico, caracterizado por nobreza, força e seriedade.

Esse é mais ou menos o retrato que Bakhtin desenvolve de Sócrates em seu artigo (2019): o filósofo do diálogo e do riso, responsável pelo desenvolvimento de uma escrita baseada na fala, valorizador do cômico e dos saberes populares e, na verdade, ele próprio era um sábio popular, porque mesmo tendo uma sabedoria “de tipo elevada” (2019, p.91), não deixava de ser pobre e prosaico.

Uma comparação entre esse retrato de Sócrates feito por Bakhtin e o próprio responsável pela elaboração do retrato mostrar-nos-ão que as semelhanças entre as duas personagens não podem, de modo algum, ser mera coincidência. O intelectual russo deve ter projetado muito de sua própria biografia intelectual enquanto descrevia seu Sócrates e sua atuação intelectual em seu mundo. 

Notemos que assim como afirma ser o caso do filósofo grego, Bakhtin também valorizou o diálogo como elemento principal do conhecimento humano, a ponto de substituir, em certo sentido, a própria razão, que não aparece nos textos bakhtinianos com sentido relevante. A valorização do riso e da linguagem falada perpassam suas obras escritas entre os anos 1930 e 1950 e, na verdade, a importância dos gêneros baixos chega até a segunda edição de Problemas da Poética de Dostoiévski (2010) publicada em 1963, além do diálogo, é o riso promovido pela cultura popular que permite o surgimento do romance polifônico.

No que diz respeito à vida prosaica, sabe-se que Bakhtin passou por uma vida de infelicidades, sobretudo, devido à acusação de cosmopolitismo que lhe causou exílios, perseguições políticas e a não aprovação de sua tese de doutorado no instituto Máximo Gorki de Literatura Mundial. Para sobreviver, Bakhtin deu aulas de contabilidade para cuidadores de porcos e lecionou literatura em centros desprestigiados da União Soviética. Além disso, viveu pobre e doente a maior parte de sua vida, até que foi ‘descoberto’ pelos intelectuais russos que lhe proporcionam reconhecimento e um fim de vida mais confortável que o restante.

Diante desse resumo da biografia intelectual de Bakhtin e de sua perspectiva sobre Sócrates como pensador fundamental na propulsão do desenvolvimento das formas pré-romanescas, ficamos a refletir sobre a literatura bíblica na projeção que o intelectual russo faz da história da literatura mundial, a qual só podemos descrever por conjectura, já que Bakhtin raramente a cita a Bíblia de forma direta, tendo em vista que a censura da monocultura soviética não o aprovaria a realizar tal feito.

Podemos dizer sem muita dificuldade de comprovação que o Novo Testamento é, por excelência, o modelo de obra literária que de gênero sério-cômico. A seriedade dessa literatura é evidente, uma vez que descreve a trajetória terrena de Jesus Cristo, filho de Deus, e depois de seus discípulos na expansão do evangelho (a boa notícia) pelo mundo Greco-Romano. Enquanto que o cômico fica por conta da vulgaridade da língua grega em que os textos bíblicos foram escritos, assim como pela baixeza de seu estilo e ausência de estrutura poética, que são características que Bakhtin tinha usado para descrever os gêneros pré-romanescos, mas se aplicam perfeitamente à literatura cristã primitiva. Essas características vulgares da literatura bíblica neotestamentária já tinham sido reconhecida por outro filólogo, Erich Auerbach (2010), e a leitura do artigo supracitado dá entender que esses atributos literários do Novo Testamento também eram presumidos por Bakhtin e isso é reiterado pelo relato de que ele afirmou já em idade avançada: “E os evangelhos são carnavais também” (2003, p.58).

Mais do que uma inferência imposta ao pensamento bakhtiniano, a possibilidade de se ler o Novo Testamento pelo viés do sério-cômico tem sido apontada por estudiosos de diferentes áreas do saber, como Peter Berger em O Riso Redentor (2017) e Terry Eagleton em Humor (2020). Tem-se procedido assim porque essa perspectiva permite uma leitura bíblica renova em vista das prisões dogmáticas que a religião impôs ao conteúdo que em sua origem era essencialmente subversivo, tendo em vista que remetia a uma seita revolucionária que se opunha à religião judaica tradicional. 

2. A ironia socrática e a hermenêutica gadameriana: contribuições à interpretação bíblica 

Para realizar uma descrição filosófica da atividade de Sócrates que esteja relacionado com o conteúdo descrito acima, podemos começar por dizer que ele fez uso da miaiêutica [greg. μαιευτική; transl. maieutiké], cuja tradução literal a partir da língua helênica é “obstetrícia”. Essa palavra é usada de modo simbólico para representar o filósofo como “parteiro de ideias”. De acordo com isso, seu método maiêutico faz uso de ironia e aporia, relacionados simbolicamente com o “dar à luz”, “parir” o conhecimento, isto é, a “arte de partejar”. Encontramos no filósofo grego uma “ironia produtiva”, capaz de trazer à luz algo. Sócrates fazia isso de forma a levar o interlocutor a duvidar de seu próprio saber sobre determinado assunto, revelando as contradições presentes em sua atual forma de pensar, o que estimularia o pensamento reflexivo sobre a “verdade” em questão. 

Constata-se o direcionamento da ironia de Sócrates, que consiste em afastar as opiniões que não sofreram a prova da reflexão racional e que não se abriram ao diálogo enquanto caminho da reflexão e construção do “filosofar” e/ou do saber. A ironia socrática reconduz as aparentes certezas às refletidas e dialogadas proposições, consiste em simular ignorância, despertar o interesse pelo assunto em questão, fazendo perguntas e “fingindo”, a fim de conduzir as respostas do interlocutor (oponente), até que este chegasse a uma contradição e percebesse assim os erros do próprio raciocínio. 

Sobre o método socrático, Platão na figura de Sócrates aponta: 

[...] Não ouviste, pois dizer que sou filho de uma parteira muito hábil e séria, Fenareta? – Sim, já ouvir dizer isso. – E ouviste também que me ocupo igualmente a mesma arte? –Isso não. – Pois bem, deves saber que é verdade... – Ora bem, toda a minha arte de obstetra é semelhante a essa, mas difere enquanto se aplica aos homens e não às mulheres, e relaciona-se com a suas almas parturientes e não com os corpos (PLATÃO, 2007, p. 148).

O método maiêutico de Sócrates, de ironia e aporia, nos proporciona grandes influências para se pensar na interpretação bíblica, pois não diz respeito a sistemas fechados ou algo aplicável para se obter determinado resultado, mas o filósofo se propunha, através da palavra viva e do diálogo, encontrar juntamente com o interlocutor a “verdade” em questão. Esse aspecto da ironia socrática, de não se colocar como a verdade enquanto instância última, mas, sim, como o caminho, será assumido por Lutero e reconhecida por Gadamer: 

O princípio afirmado por Lutero segundo o qual todo o crente deve voltar-se à Escritura, que é por si mesma clara e compreensível, e não à hierarquia eclesial: somente na Escritura da Bíblia e não na Igreja estão depositadas as verdades de fé (FERRARIS, 2000, p. 39). 

Isso pode soar como algo cômico, pois destitui toda autoridade institucional e revela o caráter de diálogo contínuo da ironia socrática. A verdade vem à luz de forma renovadora, dinâmica e contínua. É nessa perspectiva que Gadamer se assemelha a Sócrates, pois o filósofo alemão, numa perspectiva dialógica, aplica essa ironia em sua hermenêutica. 

Denominaremos a posição gadameriana em relação ao método apresentado na modernidade de ‘hermenêutica da ironia’ em sua modalidade de veicular e/ou transmitir de mensagens para além de algo categórico ou estático, mas, sim, dinâmico e indeterminável pelo método das ciências naturais. Mais precisamente, a verdade tematizada pela hermenêutica filosófica de Gadamer vai além da verificação ou da proposição de enunciados correspondentes. Nas palavras do próprio filósofo “verdade é desocultação” (GADAMER, 2002, p.54). O que acaba por implicar em tornar a exegese, gradativamente hermenêutica, uma “disciplina” independente, isto é, na destituição de toda autoridade eclesial como meio único capaz de interpretar a Bíblia e em deslocar para a autonomia do sujeito a capacidade de interpretá-la.

Neste sentido, a ironia dialógica socrática e a hermenêutica de Gadamer consistem em ser propostas de desconstrução para as categorias estabelecidas como verdades últimas ou únicas e se colocar diante da Palavra de Deus (ou leia-se Escrituras Sagradas) como quem se coloca num contínuo diálogo. Essa postura irônica torna-se o médium da própria mensagem filosófica e religiosa. A problemática que surge é que através dessa postura irônica e dialógica é possível alcançar alguma verdade extra metódica e/ou divina? Questão essa que é epistemológica, pois se trata de conhecimento, da reflexão geral em torno da natureza, das etapas e limites do conhecimento humano. Questão essa que é também ontológica, pois se trata do “eu” existente, o “eu” que não é somente “um eu”, mas se estende universalmente, um particular-universal. 

A postura de Gadamer é socrática e crítica à adequação dos domínios do saber, de padrões metódicos matematizados e lógicos, do saber técnico, interpretativo, descritivo e abre caminho a postura compreensiva, em outras palavras, o movimento do que denominamos de “hermenêutica da ironia” não se limita a ser procedimental (de aplicabilidade) e sim de deslocamento, pois o movimento de deslocamento se dá de ‘dentro para fora’, do intérprete em relação ao objeto interpretado – Escrituras Sagradas – e de ‘fora para dentro’, do objeto que se apresenta ao intérprete que apreende este objeto. Isso de modo relacional e numa perspectiva de fusão de horizontes, onde existe o deslocamento de quem compreende aquilo que se pretende compreender. 

Neste percurso o filósofo afirma: “O ponto de vista de Lutero é mais ou menos o seguinte: a Sagrada Escritura é sui ipsius interpres (intérprete de si mesma). Não se tem necessidade da tradição para lograr uma compreensão adequada dela, nem tampouco de uma técnica interpretativa” (GADAMER, 1999, p. 275).

O autor através de postura socrática vislumbra no movimento do diálogo [Gespräch] o processo de compreensão. O diálogo se torna o princípio pedagógico na leitura bíblica e caminha, via ironia socrática, a ironia: do perguntar sobre uma coisa em discussão, de delimitar um conceito e, contradizendo-o, refutá-lo, isto é, “desocultar” a verdade através da reflexão por meio do diálogo, outrossim, através do modelo estrutural do diálogo Gadamer destrona a absolutização seja do sujeito seja do objeto e os situa de modo relacional. 

Neste sentido, a interpretação bíblica se perfaz pelo movimento dialógico, nas palavras de Gadamer: “A arte de olhar juntos na unidade de uma perspectiva”. O diálogo possibilita a experiência de sermos uns com os outros, na medida em que olhamos juntos para uma perspectiva que não seja somente minha e que não seja somente do “outro”, mas que seja abertura de diálogo constante entre as partes envolvidas (GADAMER, 1999, p. 542).

É válido ressaltar que, diante da postura irônica, Sócrates não pretende ter triunfo na argumentação, não se trata de uma disputa pessoal e nem de poder. Nos diálogos apiréticos, Sócrates não escapa da aporia final, ele entra enredado nas problemáticas assim como seus interlocutores. Em outros termos, a ironia e a aporia não representa um triunfo socrático na discussão nem tampouco na relativização da verdade, mas sim como ponto a partir do qual a investigação será retomada em um processo dinâmico. 

Neste percurso, parece bem ‘humorístico’ pressupor uma questionabilidade diante de uma verdade única, ou, de pressupor uma dinâmica àquilo que é imutável. Porém, a postura socrática da ironia assumida por Gadamer coloca essa referida verdade como algo a se “desvelar”, no campo do diálogo centrado na questão que pressupõe que não se tenha uma resposta fixa, uma categoria prévia que enquadraria a resposta e assim a tornasse estática. A questionabilidade do que se pergunta deve permanecer em aberto, o que gera espanto, característica intrínseca do humos e essa abertura consiste nessa capacidade de colocar em suspensão as ideias e permite o movimento dinâmico contínuo da compreensão. Nessa perspectiva, há sempre algo que não pode “ser descoberto pela representação ou pela antecipação do pensamento” (GADAMER, 1999, p. 64).

Gadamer diz:

Se tentamos considerar o fenômeno hermenêutico, segundo o modelo da conversação que tem lugar entre duas pessoas, o caráter de unidade e o de orientação entre essas duas situações aparentemente tão diversas, como são a compreensão de um texto e o chegar a um acordo numa conversação consiste sobretudo no fato de que toda compreensão e todo acordo têm presente alguma coisa que está postada diante de nós [...] Esta compreensão da coisa ocorre necessariamente em forma linguística (GADAMER, 1999, p. 556).

O diálogo, então, “nos põe à prova”, provoca (ironiza) a exposição de nossas dúvidas diante daquilo que se coloca e sempre proporciona o movimento. E, nesse movimento, revela-se a verdade e/ou o divino. O que rompe com os enclausuramentos das respostas e não as torna fixas e fechadas nelas mesmas, mas o ponto de chegada de uma resposta é sempre a abertura para o novo ponto de saída e uma nova projeção. E por isso nas palavras de Gadamer o diálogo “requer não abafar o outro com argumentos, mas, pelo contrário, sopesar realmente o peso objetivo da opinião contrária. Por isso, é uma arte do ir experimentando” (GADAMER, 1999, p. 541).

Na dinâmica irônica, no desvelamento do diálogo, acontece a relação, intermediação e experiência de verdade/divino. Desse modo, o método dialógico, de ironia e aporia, reivindica uma posição mediadora, de desvelamento, descoberta e de condições de possibilidade. Possibilidade nesse contexto quer dizer abertura para que algo aconteça, mais precisamente, para o acontecer da compreensão do leitor diante da Escritura Sagrada. Gadamer diz: “A hermenêutica deve partir do fato de que compreender é estar em relação para que a “coisa” possa falar” (GADAMER, 1983, p. 67).

Podemos perceber que o diálogo, em Sócrates e também em Gadamer, constitui-se o fio condutor para paradoxal idade da ironia: questionar o que é colocado como verdade e ao mesmo tempo abrir-se à sua possibilidade de experiência. A ironia dialógica dá início e fim à possibilidade de entendimento, ou, em termos gadamerianos, ao fenômeno da compreensão. A via dialógica torna-se a possibilidade de fundamentação da hermenêutica e condição do fenômeno da compreensão. 

O sentido de ironia via dialógica contido em Sócrates e assumido por Gadamer tem implicações práticas, essa práxis assume a consciência da história efeitual, ela faz com que algo venha à fala; pensando no campo religioso: com que o divino se revele. Nesse sentido, Gadamer diz: “A consciência hermenêutica tem sua consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na pronta disposição do homem experimentado ao que está preso dogmaticamente”, e o autor complementa: “É isto que caracteriza a consciência da história efeitual” (GADAMER, 1999, p. 533). A hermenêutica, seja ela bíblica, é em si mesma uma práxis no sentido genuíno, não busca critérios teoréticos, princípios racionais a priori e a-históricos, e isso não significa que essa práxis ocorra sem o âmbito da reflexão, essa práxis diz respeito ao modo como o existente humano ‘apreende’ o mundo.

A ironia socrática, então, consiste em trazer à tona uma interrogação daquilo que é concebido como uma verdade absoluta (ou leia-se, verdade divina), e essa ironia juntamente com a maiêutica proporciona perguntar e questionar a verdade absoluta e eterna: eis o humor hermenêutico, que abre espaço à dinâmica dialética de perguntas e respostas sucedidas de mais perguntas.  Abrindo-se, igualmente, a experiência de verdade além daquelas estabelecidas pelas “autoridades” eclesiais em determinados assuntos, que julgavam saber algo que, na verdade, não sabiam completamente. Outrossim, Gadamer, através de sua hermenêutica, com dose de humor e postura socrática, coloca em questão uma única verdade, abrindo-se a verdades e destrona a absolutização seja do sujeito seja do objeto e os situa de modo relacional.

Conclusão

Ao longo desse texto, apresentamos Sócrates, em sua descrição histórico-literária e intelectual, como aquele em quem se projetaram tanto Bakhtin quanto Gadamer, cada um dos quais desenvolveu sua própria teoria a partir de uma espécie de procedimento que tanto reflete quanto refrata o filósofo grego. Isto é, ao mesmo tempo que os intelectuais modernos desenvolveram suas teorias a partir do que conheceram dos procedimentos de Sócrates também descreveram o filósofo grego a partir suas próprias realidades e concepções intelectuais.

De qualquer maneira, avaliamos a importância que Sócrates tem na diferenciada história do romance criada por Bakhtin, a qual, como vimos, na verdade, é uma história do desenvolvimento da consciência humana ou uma história da filosofia, que está velada por uma história do romance que não corresponde à canônica história da criação e do desenvolvimento da literatura mundial em seus gêneros literários tradicionais. Assim como Sócrates era axial no desenvolvimento da história do romance de Bakhtin, podemos conjecturar, conscientemente ou não, Bakhtin se via na mesma posição para o desenvolvimento da filosofia contemporânea.  

Gadamer, por sua vez, foi apresentado como alguém que assumidamente valoriza o procedimento da ironia, que supostamente foi desenvolvido e amplamente utilizado por Sócrates. O filósofo alemão valorizou o procedimento a ponto de inclui-lo como fundamental em seu projeto hermenêutico abrangente.

Tanto a leitura que Bakhtin faz de Sócrates quanto a de Gadamer proporcionam instrumentos de acesso às Escrituras, como foi indicado, respectivamente, por meio da história do romance e da hermenêutica. Em ambas as propostas apresentadas, os recursos relacionados com a comicidade são fundamentais para a realização dos procedimentos.  

Assim proporciona-se uma renovação da leitura bíblica por meio de intelectuais de áreas distintas, um filólogo e um filósofo, mas ambos ligados pela interpretação que dão ao pensamento do filósofo grego e pela aplicabilidade de suas teorias ao conteúdo da Bíblia.

Referencias

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BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da Poética de Dostoievski. 5 ed. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 b.

BERGER, Peter. O Riso Redentor: A dimensão cômica da experiência humana. Petrópolis: Vozes, 2017.

BRANDIST, Craig. Repensando o Círculo de Bakhtin. Tradução Helenice Gouvea. São Paulo: Editora Contexto, 2012.

CLARK, Katarina; HOLQUIST, Michel. Bakhtin. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

EAGLETON, Terry. Humor: O papel fundamental do riso na cultura. Rio de Janeiro: Editora Record, 2020.

GADAMER, Hans-Georg. A Razão na época da ciência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer: Petrópolis: Vozes, 1999.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Trad. Enio Paulo Giachini: Petrópolis: Vozes, 2002.

MORSON, Gary Saul; EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin: Criação de uma prosaística. São Paulo: Edusp, 2008.

PLATÃO. Diálogos: Teeteto, Sofista, Protágoras. São Paulo: Edipro, 2007.