Anderson Costa Pereira
Mestrando em Teologia pelo Programa de Estudos de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato: pereira-anderson1@hotmail.com
Ney de Souza
Doutor em História Eclesiástica pela Universidade Gregoriana de Roma (PUG). Docente do Programa de Estudos Pós-Graduação em Teologia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato: nsouza@pucsp.br
RESUMO: O papa Francisco, desde o início de seu pontificado, surpreende tanto com gestos simbólicos, quanto com expressões populares, tais como “Igreja em saída”, “pastor com cheiro das ovelhas”, “hospital de campanha”, “alzheimer espiritual” etc. A este conjunto de expressões, Francisco adicionou duas novas imagens para exemplificar nova sociedade e nova política, mas também as novas relações eclesiais que ele propõe: o poliedro e a pirâmide invertida. Enquanto o poliedro ressalta a diversidade, a pirâmide invertida coloca quem está no topo em posição de serviço e escuta do povo de Deus, procedendo, assim, uma “salutar descentralização” (EG, 16). Como assumir essa perspectiva depois de séculos em que a Igreja foi representada como uma pirâmide monárquica e hierárquica? Assim, este artigo objetiva aprofundar o sentido, significado e importância das imagens da pirâmide invertida e do poliedro na construção de uma Igreja ministerial. A relevância deste artigo consiste em apresentar a compreensão de uma Igreja toda ministerial a partir dos desdobramentos do Concílio Vaticano II, iluminando a partir das percepções do papa Francisco. Ademais, o debate sobre a questão da ministerialidade eclesial exige uma acurada reflexão teológica, pois o tema tem sido assumido como prioridade no pontificado do atual Pontífice.
Palavras-chave: Francisco. Ministérios. Poliedro. Igreja.
ABSTRACT: Pope Francis, since the beginning of his pontificate, surprises us both with symbolic gestures and with popular expressions, such as “Church which goes forth”, “pastor with smell of the sheep”, “campaign hospital”, “spiritual alzheimer's " etc. To this set of expressions, Francis added two new images to exemplify the new society and new politics, but also the new ecclesial relationships he proposes: the polyhedron and the inverted pyramid. While the polyhedron emphasizes diversity, the inverted pyramid places those at the top in a position of service and listening to the people of God, thus proceeding with a “sound decentralization” (EG, 16). How to assume this perspective after centuries in which the Church was represented as a monarchical and hierarchical pyramid? Thus, this article aims to deepen the sense, meaning and importance of the images of the inverted pyramid and the polyhedron in the construction of a ministerial Church. The relevance of this article is to present the understanding of an all-ministerial Church from the unfolding of the Second Vatican Council, illuminating from the perceptions of pope Francis. Furthermore, the debate on the question of ecclesial ministeriality requires an accurate theological reflection, as the theme has been assumed as a priority in the pontificate of the current Pontiff.
Keywords: Francis. Ministries. Polyhedron. Church.
Os ministérios eclesiais, particularmente os ministérios laicos, estão se desenvolvendo e se expandindo na Igreja Católica Romana. Grande parte da compreensão teológica dessa nova prática é baseada na reavaliação feita pelo Concílio Vaticano II sobre os ministérios como responsabilidade de todos os batizados. Sem dúvidas, este Concílio foi o catalisador para um realinhamento significativo da vida ministerial na Igreja Católica. Embora o Vaticano II não tenha desenvolvido sistematicamente uma teologia dos ministérios não ordenados, a ênfase dada na primazia do Batismo e na dimensão eclesial e comunitária de todos os ministérios alteraram profundamente sua compreensão.
O XXI Concílio da Igreja Católica reconsiderou o modelo eclesiológico piramidal vigente na Igreja por muito tempo e abriu as portas a uma nova forma de compreender e exercer o ministério eclesial, monopolizado durante séculos pelo ministério ordenado. Contudo, como assumir essa perspectiva depois de séculos em que a Igreja foi representada como uma pirâmide monárquica e hierarquicamente desigual? Desse modo, este artigo tem como objetivo desenvolver algumas reflexões sobre o pensamento do papa Francisco, a partir da sua concepção eclesiológica, tendo como pano de fundo o Concílio Vaticano II, direcionando a reflexão para a questão ministerial.
Procura-se explicitar os desenvolvimentos ocorridos na Eclesiologia à luz de sucessivos símbolos geométricos utilizados para descrever o mistério da Igreja (pirâmide, pirâmide invertida e poliedro). O ponto de partida é a Igreja vista como uma pirâmide, como vários teólogos caracterizaram a Eclesiologia antes do Vaticano II. Apresenta-se um resgate histórico no qual a Igreja era vista como uma pirâmide hierarquicamente organizada e disposta de cima para baixo. A concepção piramidal consiste em ver a Igreja principalmente a partir de sua hierarquia, ou seja, como um conjunto de ministérios organizados em ordem descendente começando pelo Romano Pontífice, no topo da pirâmide, até o povo, que está na base.
Em seguida, destaca-se a virada eclesiológica realizada pelo Vaticano II ao inverter-se a pirâmide de cabeça para baixo, a partir dos desdobramentos redacionais e teológicos da Constituição Dogmática Lumen Gentium. Outrossim, na comemoração do quinquagésimo aniversário do Sínodo dos Bispos, em 2015, o papa Francisco, em um discurso cuidadosamente elaborado, falando sobre sinodalidade, usou a imagem de uma “pirâmide invertida” para exemplificar novas relações eclesiais. Tal imagem foi bastante significativa para compreender a dinâmica dos ministérios na Igreja. Por fim, em um último momento, da imagem da pirâmide invertida passa-se à imagem do poliedro, como o papa Francisco vem usando frequentemente desde o início de seu ministério petrino. Esta imagem, presente em muitos discursos e principais documentos do atual Pontífice Romano, evidencia a sinergia de forças que deve haver entre os diferentes ministérios eclesiais, sem necessariamente sobrepor um ao outro.
O Bispo de Roma apresenta a figura do poliedro como símbolo da unidade na diversidade, assim como considera a figura da pirâmide invertida como nova imagem eclesial, a fim de colocar no topo o povo de Deus e a hierarquia embaixo, e o papa abaixo de todos. Porque, para o atual Pontífice, a força da Igreja é serviço e serviço é sempre um ato de abaixar-se, como fez Jesus ao lavar os pés de seus discípulos (cf. Jo 13, 1-15). O Sumo Pontífice propõe na imagem da pirâmide invertida uma inversão da maneira como a hierarquia papal e episcopal exercem seu poder e autoridade em relação ao povo de Deus e na imagem do poliedro o verdadeiro sentido do “caminhar juntos”, ou seja, da sinodalidade, em uma sinergia de forças, com respeito as diferenças de cada um.
A concepção eclesiológica vigente até o Concílio Vaticano II (1962-1965) é aquela que foi definida pelo teólogo Yves Congar (1904-1995) com a expressão “eclesiologia hierarcológica”, isto é, uma Eclesiologia que valorizava o aspecto institucional, visível, piramidal e hierárquico da Igreja (CONGAR, 1964, p. 81). Segundo o teólogo dominicano, “uma concepção inteiramente piramidal da Igreja como uma massa totalmente determinada por seu ápice [...]” (CONGAR, 1997, p. 282). Ainda segundo este autor, a Eclesiologia por séculos esteve estagnada, simplesmente para salvaguardar sua dimensão visível e hierárquica. Enquanto Instituição, seu elemento principal que a caracteriza é a hierarquia assimetricamente disposta de cima para baixo, conforme a figura a seguir:
As origens deste modelo remontam a época do imperador Constantino, em 313, quando o cristianismo obtém o reconhecimento público de religião lícita e com o imperador Teodósio, em 381, quando o cristianismo torna-se religião oficial do Estado e a Igreja ocupa lugar estrutural dentro do Império, sobretudo através de seus ministros ordenados. A partir do 4º século os ministérios adquirem uma espécie de “estrutura imperial”. Depois do triunfo da Igreja (com os editos de Milão e Tessalônica e a política religiosa desses imperadores) tem-se a supremacia do modelo piramidal. Com a queda do Império Romano ocidental, o título de pontífice máximo (pontifex maximus) da religião cristã, antes atribuído ao imperador, agora é concedido ao papa, que vai estendendo seu poder sobre toda a República cristã, ao ser colocado no topo da pirâmide eclesial (ALMEIDA, 1988, p. 314). Esse modelo vai se consolidando com o passar do tempo.
À medida que a cristandade diminui suas forças com o advento da modernidade, cujo processo se inicia já no século XVI, a Igreja reafirma-se cada vez mais como estrutura piramidal, centrada no papa, para não perder seu poder. As ideias de Martinho Lutero (1483-1546) sobre os ministérios eclesiais abalaram profundamente a Igreja: o sacerdócio existe não em virtude da Ordem recebida, mas da “função” exercida; esta função não vem de cima (da hierarquia), mas de baixo (da comunidade); além de que todos os batizados, em virtude do Batismo, estão habilitados para exercer esta função. A teologia luterana afirma que no exercício do ministério eclesial basta a vocação, enquanto a Igreja mantém a necessidade de uma Ordenação sacramental, que tornasse o varão batizado apto a exercer o ministério ordenado.
O Concílio de Trento (1545-1563) condenou as ideias luteranas e reafirmou a instituição divina da hierarquia e dos ministérios ordenados. “Após o Concílio Tridentino é possível constatar uma Igreja mais romanizada, mais disciplinada e mais clerical” (SOUZA, 2022, p. 242). Reafirmou-se a necessidade da Igreja ser estruturada hierarquicamente de modo piramidal, com o Supremo Pontífice em seu topo. Com as novas disposições dadas em Trento, pretendeu-se fortalecer a hierarquia da Igreja, mantendo, sobretudo, uma concepção eclesiológica centrada no modelo sociedade perfeita (SOUZA, 2022, p. 243), a exemplo de uma concepção estrutural baseada na sociedade humana, organizada internamente, estabelecendo um poder hierárquico, onde o papa atua dentro da soberania absoluta. Uma Igreja piramidal que apresenta o Bispo de Roma como a mais alta autoridade eclesial, situada no topo da pirâmide.
Neste sentido, o cardeal Roberto Bellarmino afirmara que a “Igreja é uma comunidade [hierárquica] dos homens tão visíveis e palpáveis quanto a comunidade do povo romano ou o Reino de França ou a República de Veneza” (LIBÂNIO, 2005, p. 16). Numa postura apologética, própria da Contrarreforma, prevalece, predominantemente, o ministério ordenado em detrimento da missão e ministério do laicato.
Antes do Concílio Vaticano II se pensava a Igreja como uma pirâmide, onde o Papa e os Bispos estivessem no topo da pirâmide, do qual não só a construção recebia coesão como, ao que parece, derivariam todas as estruturas e linhas de ação. Daí resultava uma ilusão ótica não só de que todo o ser da Igreja se concentraria na hierarquia, da qual o povo de Deus seria um simples apêndice, um objeto e nunca protagonista na ação eclesial. Nessa visão, todo o poder derivaria imediatamente do Papa, do qual os bispos pareceriam simplesmente funcionários delegados (SCHMIDT, 2021, s/p).
Esta concepção piramidal da Igreja será sustentada por todo o magistério eclesial posterior a Trento. “A época pós-tridentina é caracterizada por um novo reforço da autoridade do papa” (SESBOÜÉ, 2020, p. 262). O Syllabus (1865), documento pontifício anexado à Encíclica Quanta cura, do papa Pio IX, que inclui os principais erros desse tempo, reafirma uma Igreja como sociedade perfeita, uma Igreja piramidal, primacial, uma Igreja como comunidade de privilegiados. O Concílio Vaticano I (1869-1870) também reafirmou a imagem de uma Igreja hierárquica (piramidal), centralizando o poder no Pontífice Romano e colocando-o no topo da pirâmide como a mais alta autoridade, através da doutrina de sua infalibilidade (SESBOÜÉ, 2020, p. 270). O capítulo X do esquema Supremi Pastoris, distribuído no Vaticano I, assim afirmava:
Mas a Igreja de Cristo não é uma sociedade de membros iguais, como se todos os fiéis que dela fazem parte tivessem os mesmos direitos, mas é uma sociedade desigual (hierárquica), isto não só no sentido de que, entre os fiéis, alguns são clérigos, e outros, leigos, mas, sobretudo, porque há na Igreja um poder divinamente instituído que uns receberam para santificar, ensinar e governar, e outros não o têm (ALMEIDA, 1988, p. 312).
O Supremo Pontífice estava isolado no vértice da pirâmide hierárquica como único detentor do poder de jurisdição universal e todos os bispos eram vistos como “vigários dos romanos pontífices” (SESBOÜÉ, 2020, p. 260). As Encíclicas Vehementer Nos (1906) e Pascendi Dominici gregis (1907), de Pio X, e Mediator Dei (1947) e Humani generis (1950), de Pio XII, também ratificaram a imagem da Igreja como uma sociedade perfeita, piramidal e hierárquica.
A Igreja possuía o seu mundo próprio presidido pela hierarquia e singularmente pelo Papa cuja suprema potestade tinha sido afirmada rotundamente no Concílio Vaticano I. A Igreja concebia-se como uma sociedade piramidal por essência desigual, composta por duas categorias, a hierarquia e a multidão dos fiéis sujeitos à obediência dos pastores” (VILLAR, 2015, p. 144).
Nota-se que, em uma Igreja piramidal, o mais importante é sua estrutura hierárquica verticalista de cima para baixo, mais do que seus diversos ministérios, que tendem a serem sobrepostos pela hierarquia. Neste modelo, “a Igreja é centralizada no papa e na Cúria; os bispos são mais vigários do papa que pastores autóctones das Igrejas locais; os leigos são mais objetos passivos da iniciativa concentrada no vértice que sujeitos ativos da dinâmica eclesial” (ALMEIDA, 1988, p. 312).
A imagem da pirâmide tornou-se comum para descrever a Eclesiologia antes do Concílio Vaticano II. Boaventura Kloppenburg resumiu bem esta noção: “Estamos acostumados a imaginar a Igreja como uma pirâmide: papa, bispos, sacerdotes, que presidem, ensinam, santificam, governam, com autoridade e poder; na base está o povo cristão, passivo e receptivo, parecendo ocupar um lugar nitidamente inferior e secundário” (KLOPPENBURG, 1971, p. 239). Esta Eclesiologia anulou o sistema sinodal e comunal da Igreja neotestamentária, favorecendo uma estrutura hierárquica e piramidal que, na verdade, transformou a Igreja quase que em uma monarquia absolutista.
Somente com o Concílio Vaticano II surgirá uma concepção orgânica e teológica dos ministérios eclesiais, a partir de uma nova abordagem, não mais centrada na estrutura hierárquica e piramidal da Igreja, mas agora reconsiderando a Igreja como povo de Deus, onde todos os batizados, cada qual a seu modo, colaboram com a missão da Igreja a partir de seus diversos carismas e ministérios.
Como dito anteriormente, antes do Vaticano II era favorecido um modelo social de Eclesiologia que considerava a Igreja como uma societas perfecta, de forma piramidal, verticalizada e desigual (ALMEIDA, 1988, p. 311). O esquema do documento sobre a Igreja, redigido na Comissão Preparatória do Vaticano II, capturou muito desse modelo, como se nota na seguinte passagem do esquema De Ecclesia: “a Igreja é a formação de muitos membros, de modo algum iguais, uma vez que uns estão submetidos aos outros, e que clérigos e leigos constituem nela diversos estados, em relação a todos os quais o Cristo cabeça sobreleva-se quanto à posição, à perfeição e a virtude” (ALMEIDA, 1988, p. 312-313). Há resquícios desta eclesiologia jurídica presentes nas primeiras discussões do Concílio.
No entanto, quando, no final da primeira sessão, a Assembleia conciliar teve a oportunidade de revisar e comentar esse esquema preparatório, a grande maioria dos padres conciliares rapidamente deixou claro seu desejo de se afastar do tipo de Igreja piramidal que ele representava. Assim, grande parte dos bispos optou por um retorno às categorias bíblica e patrística de “povo de Deus”, depois de longos séculos de esquecimento na Eclesiologia.
Na Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG), identificam-se os pressupostos teológicos subjacentes a uma mudança eclesiológica. Seja nos debates conciliares ou no processo de redação do texto, verifica-se como uma nova concepção eclesiológica foi surgindo em relação à eclesiologia pré-conciliar e foi assumida pelo Vaticano II como a mais adequada para descrever a realidade da Igreja. A Igreja é apresentada como “mistério” (LG, 1) e “povo de Deus” (LG, 4) em contraposição a tradicional concepção piramidal e jurídica que privilegia a sobreposição da hierarquia sobre os fiéis (cf. LG 10, 32).
A própria estrutura redacional da Lumen Gentium revela teologicamente um novo modo de ver a Igreja em sua dimensão ad intra. O capítulo primeiro trata do mistério da Igreja que se origina na Trindade para fazer com que o Reino de Deus se faça presente na história. O segundo, considerado a alma da Lumen Gentium e desdobramento do primeiro capítulo, apresenta a Igreja como “povo de Deus”, os fundamentos dessa verdade e as suas consequências para a nossa vida cristã na sua dimensão eclesial; e os demais capítulos tratam, respectivamente, da constituição hierárquica da Igreja, do laicato, da vocação universal à santidade, dos religiosos, e os últimos dois capítulos sobre o que a Igreja diz acerca do destino último da humanidade junto de Deus e sobre Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja.
Ademais, esta estrutura e organização é fruto da divisão do antigo capítulo de populo Dei et speciatim de laicis (o povo de Deus e em especial os leigos) graças às intervenções de diversos padres conciliares, alterando a estrutura do esquema De Ecclesia com a inserção de um capítulo próprio sobre o povo de Deus em geral. Este capítulo, que fora dividido em dois, foi imediatamente situado depois do primeiro, de modo que hierarquia e laicato foram tratados depois do que é comum a todo o povo de Deus. Segundo o teólogo João Batista Libânio, tal organização “não se tratava de algo puramente redacional, mas teológico-simbólico. Primeiro o povo de Deus que se constitui pelo batismo, primeiro o sacerdócio comum dos fiéis, também ele fundado no batismo. A seu serviço está a hierarquia. Estava jogada a grande cartada eclesiológica” (LIBÂNIO, 2004, p. 8). Tem-se, portanto, uma inversão eclesiológica de uma Igreja-hierarquia para uma Igreja-povo de Deus (LIBÂNIO, 2005, p. 120).
A simples mudança dos temas que especificam o que é comum a todos os batizados antes da abordagem sobre a constituição hierárquica da Igreja teve um impacto de rompimento com a concepção piramidal da Igreja. Justamente se falou de uma “revolução copernicana” da eclesiologia: em primeiro lugar, de fato, não estão mais as diferentes funções, mas a mesma condição batismal. Em outras palavras, a criação deste capítulo destaca a igualdade radical de todos os membros da Igreja, antes de qualquer diferença de vocação, de função ministerial ou estado de vida (VITALI, 2009, p. 23-24).
A mudança de capítulos no esquema da Lumen Gentium trouxe o fim (ao menos teórico) do modelo de Igreja piramidal, estruturada nos séculos anteriores com base na categoria do primado petrino, que dividia a Igreja em dois níveis, no topo o clero – Ecclesia docens – e abaixo o laicato – Ecclesia discens. Com a reformulação dos capítulos, deu-se uma volta de cento e oitenta graus na Eclesiologia, simplesmente com a mudança de lugar de apenas alguns números do capítulo IV sobre o laicato, para o capítulo II sobre o povo de Deus, no qual se recolhe o ensinamento sobre o Batismo, o sacerdócio comum dos fiéis, o sensus fidelium, os carismas e a vida teologal, como primeira coisa na Igreja, antes de abordar sua constituição hierárquica.
A nova visão dos padres conciliares é de uma pirâmide invertida, onde o Papa e os bispos são servos e estão colocados na base da pirâmide. Por isso a Constituição sobre a Liturgia, antes mesmo que as discussões conciliares chamassem a atenção sobre o assunto, se colocara instintivamente no ângulo visual oposto. Somente nesta perspectiva é valorizada e compreendida a doutrina que afirma que a hierarquia e os seus poderes (entenda-se carismas), embora derivados de Deus e não do povo, estão todos a serviço do povo de Deus (plebs Dei), que é a do sacerdócio universal dos fiéis, cujas celebrações litúrgicas são de natureza comunitária, embora hierarquicamente estruturadas (SCHMIDT, 2021, s/p).
Essa reestruturação capitular significou uma mudança fundamental da Eclesiologia que poria fim à tradicional e milenar concepção piramidal da Igreja. Evidenciou-se que clero, leigos e religiosos fazem parte de todo o povo de Deus. Os dois primeiros capítulos da Lumen Gentium lançaram as bases para a ressignificação da membresia da Igreja, na qual todos os membros são iguais em razão de seu Batismo, antes de qualquer diferenciação pelas funções descritas nos próximos dois capítulos. Fundamental para esta mudança foi o fato do Vaticano II ter recuperado a Eclesiologia do povo de Deus, contribuindo para passar da tradicional apresentação primacial e apologética da Igreja a uma comunidade dotada de ministérios,
[...] pois o povo de Deus é um povo ministerial. Os leigos assumem diversos serviços para com a comunidade eclesial. E os presbíteros, que receberam o sacramento da Ordem, são vistos como possuidores do ministério de coordenação e de síntese dos carismas de todo o Povo e devem evitar a concentração deles em si mesmos (HACKMANN, 2005, p. 106).
Sem dúvidas, a chave decisiva da Eclesiologia da Lumen Gentium foi, além do seu conteúdo, a disposição final de seus capítulos, em que é decisivo o capítulo II sobre o povo de Deus anterior ao III, sobre a hierarquia. A simples mudança dos capítulos que especificam o que é comum a todos os batizados antes da discussão sobre a constituição hierárquica da Igreja teve um efeito revolucionário na concepção piramidal da Igreja.
Com a imagem do povo de Deus fez-se uma mudança profunda. O ponto de partida tornou-se a igualdade fundamental de todos os cristãos. Não se exclui, é claro, a hierarquia, tanto mais que ela faz parte do povo de Deus, mas não é ela a única responsável pela Igreja. Todos os batizados e todas as batizadas têm responsabilidade pelo crescimento e pela difusão da Igreja no mundo para que o Reino de Deus se torne uma realidade sempre mais vivida (LORSCHEIDER, 2001, p. 61).
Outro elemento inovador na Lumen Gentium é a recuperação da doutrina sobre o “sacerdócio comum dos fiéis” (LG, 10), como o centro de seu ensinamento sobre o povo de Deus, na qual o laicato é novamente entendido como central na vida da Igreja, algo rejeitado no modelo anterior. Em virtude do Batismo, todos os seus membros recebem a dignidade de filhos de Deus e sua participação ativa na missão da Igreja é necessária e indispensável. Com estas afirmações, o Vaticano II pôs fim ao costume secular que levava a uma distinção entre hierarquia docente e laicato discente. Isto coloca o laicato em posição central na Igreja. Em imagem tem-se o seguinte layout:
Após o Vaticano II multiplicam-se escritos que, com diferentes perspectivas, coincidem no fato de que o abandono de uma estrutura piramidal eclesiológica significou repensar a Eclesiologia na chave do mistério de comunhão, resgatando a dimensão pneumatológica do ministério eclesial como serviço. O papa Francisco não participou do Concílio Vaticano II; foi ordenado sacerdote quatro anos e cinco dias após a cerimônia de encerramento. Mas, embora não seja padre conciliar, o Vaticano II pode ser mostrado como pano de fundo para todo o seu magistério. De fato, somente um Concílio como o Vaticano II tornou possível a Igreja ter um Papa como Francisco.
Adotando a perspectiva eclesiológica do Vaticano II e seguindo o ensinamento da Lumen Gentium, o papa Francisco afirma que o caminho da sinodalidade “oferece-nos o quadro interpretativo mais apropriado para compreender o próprio ministério hierárquico” e delineia a imagem de uma Igreja que, como “numa pirâmide invertida”, em que “o vértice se encontra abaixo da base, harmoniza todos os que nela se incluem: o povo de Deus, o Colégio Episcopal, o Sucessor de Pedro” (FRANCISCO, 2015, sem paginação). O Concílio não chegou a uma formulação precisa sobre “sinodalidade”, entretanto o papa Francisco vem utilizando esta expressão para descrever como ele acredita que o Vaticano II apresenta a Igreja em sua relação ad intra e ad extra.
Digno de nota são as palavras de Victor Codina sobre a pirâmide invertida:
A imagem da pirâmide é mais conhecida, nem que seja pelas pirâmides do Egito: um polígono cujas faces são triângulos que se encontram no vértice da cúspide. Aqui a originalidade de Francisco consiste em afirmar que a Igreja deve ser uma pirâmide invertida, com o Povo de Deus no topo e os bispos e o Papa abaixo, a seu serviço, como Jesus que veio para servir e não para ser servido. É uma crítica ao centralismo patriarcal e hierárquico, ao clericalismo recalcitrante, e um convite à escuta e ao diálogo entre todos os membros da Igreja, pois todos caminhamos juntos rumo ao Reino de Deus (CODINA, 2018, sem paginação).
O papa Francisco afirma que, “nesta Igreja, como numa pirâmide invertida, o vértice encontra-se abaixo da base. Por isso, aqueles que exercem a autoridade chamam-se ‘ministros’, porque, segundo o significado original da palavra, são os menores no meio de todos” (FRANCISCO, 2015, sem paginação). O que significa concretamente esta imagem da pirâmide invertida? Significa que quem possui autoridade, deve se colocar a serviço: “Para os discípulos de Jesus, ontem, hoje e sempre, a única autoridade é a autoridade do serviço, o único poder é o poder da cruz” (FRANCISCO, 2015, sem paginação).
Francisco utiliza a imagem da pirâmide para falar da missão própria dos pastores, recordando que o Colégio apostólico está no vértice da Igreja. Mas se trata, como explica, de uma pirâmide invertida, pois a natureza da autoridade eclesial, segundo o evangelho, é diaconal e, por isso, os que exercem autoridade na Igreja são chamados ministros. “É servindo o povo de Deus que cada bispo se torna vicarius Christi para a grei a ele confiada”. Trata-se da autoridade como serviço e do poder da cruz (FERREIRA, 2018, p. 397).
O Pontífice Romano ousou ao apresentar explicitamente a Igreja como uma pirâmide invertida. Se antigamente se falava apenas de uma pirâmide, hoje ela está invertida. As autoridades eclesiásticas, antes no topo da pirâmide, agora estão embaixo, na escuta do povo de Deus. O povo de Deus tem algo a dizer e os recentes sínodos têm procurado ouvir todos os fiéis. Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, Francisco deu um novo impulso à doutrina do sensus fidei fidelium (EG, 119), afirmando que o caminho da sinodalidade representa um requisito indispensável para infundir na Igreja um renovado impulso missionário: “Em virtude do batismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário. Cada um dos batizados, independentemente da própria função da Igreja e do grau de instrução da sua fé é um sujeito ativo de evangelização” (EG, 120) e merece ser ouvido.
Essa imagem apresentada pelo papa Francisco certamente provocou muita resistência e desconforto por parte daqueles que aspiram, mesmo que não digam claramente, uma “carreira” nas mais altas posições eclesiásticas. O caminho da sinodalidade, apresentado pelo Bispo de Roma como “o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” (FRANCISCO, 2015), é, sem dúvidas, um novo jeito eclesial de se proceder. O papa Francisco, ao propor o tema da sinodalidade, indica um processo de conversão pastoral que reconsidera a dinâmica e o exercício do poder nas estruturas eclesiais. Isto significa colocar em funcionamento um novo modelo eclesial de procedimento, valorizando a contribuição do laicato ao “sensus fidei fidelium”.
O limite que se observa na imagem da pirâmide invertida é o risco de ser entendida apenas como uma inversão eclesiológica da tradicional estrutura piramidal onde a base (laicato) ocupa o lugar que no modelo pós-constantiniano era ocupado pelo clero. Essa radicalização da inversão piramidal recairia sobre o que justamente tem sido criticado em relação a pirâmide tradicional: uma Igreja de desiguais, com classes de cristãos e supremacia de uns sobre os outros. Seria uma eterna “luta de classes”, no sentido marxiano do termo. Além do fato de que, uma exacerbação dessa imagem, poderia se pensar num pífio processo de “democratização da Igreja”, o que não é a finalidade desta inversão.
O papa Francisco tem outra imagem significativa para exemplificar sua teologia: o poliedro. Um poliedro – como sugere o prefixo e o sufixo gregos (poli significa “muitos” e hedron, que significa “face”) – é uma figura sólida e tridimensional com múltiplas faces planas. Ora, “este modelo busca unir todas as partes sem perder o particular e original de cada membro” (MARTÍNEZ, 2021, sem paginação). O Sumo Pontífice, com a Evangelii Gaudium (2013), em que traça as linhas de fundo do que viria a ser o seu programa, recorre à imagem do poliedro no contexto do binômio “o todo é superior à parte” (EG, 235)[1]. A figura geométrica do poliedro ilustra um verdadeiro trabalho em equipe, um colaborando com outro. Desta forma, afirma o papa na Exortação Christus vivit, “aprendendo uns com os outros, poderemos ser reflexos melhores desse poliedro maravilhoso que deve ser a Igreja de Jesus Cristo” (CV, 207).
Ler os documentos Pontifícios da lavra de Francisco, escutar suas homilias ou contemplar assuas postura se atitudes são exercícios correlatos que colaboram na compreensão da identidade teológica de Francisco. Ele, numa imagem que lhe é cara, é um verdadeiro poliedro que deve ser visto de maneira plural, com várias facetas (SOUZA; FERREIRA, 2018, p. 192).
O Pontífice Romano tem usado este símbolo constantemente; na Evangelii Gaudium encontra-se a primeira ocorrência dele (cf. EG, 236). O papa Francisco usa a imagem do poliedro em outros dois documentos: Querida Amazônia (29-32) e Fratelli Tutti (144-145, 190, 215). O poliedro, enquanto figura geométrica, não é uma clássica esfera, onde cada ponto é equidistante do centro e não há diferenças entre eles, mas uma figura tridimensional, na qual todas as parcialidades, que preservam sua própria originalidade, se reúnem, de modo que a identidade peculiar é cordialmente integrada à comunidade e a enriquece, sem ser isolada ou esterilizada (CODINA, 2018, sem paginação). Observe-se a figura:
Ao escrever sua primeira Exortação Apostólica, o papa Francisco reitera muitas lições fundamentais da doutrina social católica. Mas, para resumir seu ensinamento, Francisco se volta para uma imagem sugestiva: a de um poliedro. Francisco começou a falar sobre o poliedro no contexto da globalização. Enquanto uma esfera parece oferecer perfeita equidistância do centro, o que se tem, na verdade, como consequência é globalização de todas as diferenças culturais. Um poliedro, em contraste, oferece a imagem de algo mais rico por meio da participação em culturas locais que não perderam suas singularidades.
Entretanto, em discurso dirigido aos membros da Renovação no Espírito Santo (3 de julho de 2015), Francisco recupera o que foi afirmado na Evangelii Gaudium a respeito do poliedro, não mais em referência à esfera sociopolítica, mas à eclesiológica, e em particular à dimensão carismática da Igreja:
Não é suficiente falar de unidade, não é uma unidade qualquer. Não é uniformidade. Dito deste modo pode ser compreendida como a unidade de uma esfera na qual cada ponto é equidistante do centro e não há diferenças entre um ponto e outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade e estes são os carismas, na unidade mantendo a própria diversidade. Unidade na diversidade. A distinção é importante porque estamos a falar da obra do Espírito Santo, não da nossa. Unidade na diversidade de expressão de realidades, tantas quantas o Espírito Santo quis suscitar. É necessário recordar também que o todo, ou seja, esta unidade, é maior do que a parte, e a parte não pode pretender ser o todo (FRANCISCO, 2015, s/p).
Portanto, a imagem não diz respeito somente a política global. Tem tudo a ver com a Igreja — uma Igreja onde as diferenças dos fiéis são preservadas na mais perfeita comunhão. Francisco propõe a mesma figura geométrica para captar uma unidade que, por um lado, não é homologação ou eliminação da alteridade, por outro, é geradora de uma pluralidade cada vez mais ampla de expressões: de fato, no poliedro, quanto mais os rostos que a compõem aumentam, mais a figura se torna complexa (mas permanecendo sempre uma).
Em verdade, hoje a melhor imagem para descrever uma Igreja toda ministerial é a imagem do poliedro, mais do que a pirâmide invertida. O poliedro representa uma Igreja onde os diferentes ministérios coexistem, complementando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, mesmo em meio as diferenças de funções de cada um. A realidade ministerial da Igreja é complexa: em vez de simples binômio hierarquia-laicato, de cima para baixo ou de baixo para cima, há que considerar as diferenças de dons, carismas e ministérios, daí surge o poliedro, sem preocupar-se com a posição de cada um. Ao citar a metáfora do poliedro Francisco considera que a Igreja cresce mediante a riqueza de suas diferenças, entretanto todos os ministérios possuem igual importância, mesmo não sendo de igual natureza.
A imagem do poliedro não visa criar uma Igreja circular ou esférica, em oposição a uma Igreja piramidal: não se propõe uma eclesiologia de oposição. Metodologicamente, pode-se aceitar esse confronto como o primeiro momento dialético, mas não pode ser o último, nem o definitivo. A referência do poliedro é a sinergia de forças e não necessariamente a referência quase circular. Em suma, segundo o papa Francisco, “o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes e, nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um ponto e o outro”. Em vez disso, “o modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a ação pastoral como a ação política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um” (EG, 236). Na imagem da esfera corre-se o perigo de conceber a Igreja como um processo de padronização uniformizado e meramente igualitário.
O papa Francisco tem outro entendimento na construção da unidade ministerial: não como uma pirâmide de cima para baixo, mas como uma pirâmide de baixo para cima e, mais ainda, como um poliedro, em uma sinergia de forças. Nas palavras de Francisco:
É um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes, porque “o todo é superior à parte”. O poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo (FT, 215).
A figura do poliedro que o papa utiliza ilustra bem a diversidade e riqueza ministerial. Na Igreja todos os ministérios são importantes, ordenados ou não. Não há “topo”, nem superioridade ou inferioridade, mas todos os ministérios estão em relação e são de igual importância, mesmo não sendo de igual natureza. Todos são importantes! Esta é a lógica do poliedro. Ademais, “esta figura não é uma utopia, senão, uma realidade que pode ser edificada a longo prazo e com o esforço de todas as partes” (MARTÍNEZ, 2021, sem paginação). A própria Lumen Gentium atesta que a edificação da Igreja se dá pela sinergia da pregação evangélica, da ação sacramental, do ministério ordenado, dos ministérios-carismas de todo o povo sacerdotal (LG, 4).
De fato, partindo da Eclesiologia oriunda do Concílio Vaticano II, deve-se considerar os ministérios não de forma hierárquica, mas complementar. Frente ao esquema triangular e piramidal que considera o episcopado como plenitude e o presbiterado e o diaconato como diferentes formas de participar dessa plenitude, deve-se entender que em cada ministério eclesial é possível uma sinergia de forças, na qual todos cooperam para a edificação do Corpo de Cristo (FUENTE, 2004, p. 202-203).
O papa Francisco propõe a imagem do poliedro como caminho de comunhão nas diferenças. A sinodalidade, na qual ele tanto insiste, é o caminho para que isto aconteça. A realidade é poliédrica e a convivência é repleta de conflitos, entretanto “a unidade prevalece sobre o conflito” (EG, 226-230). No poliedro eclesial é possível reunir o melhor de cada um, nos mais diversos carismas, dons e ministérios. O poliedro é uma unidade, mas com todas as partes diferentes; cada um tem sua peculiaridade.
Unidade na diversidade. A uniformidade não é católica, não é cristã. A unidade na diversidade. A unidade católica é diversificada, mas é uma só. É curioso! O que faz a diversidade é igual àquilo que depois faz a unidade: o Espírito Santo. Ele realiza ambas: a unidade na diversidade! A unidade não é uniformidade, não consiste em fazer obrigatoriamente tudo juntos, nem pensar do mesmo modo e nem sequer perder a própria identidade. Unidade na diversidade é precisamente o contrário, é reconhecer e aceitar com alegria os diversificados dons que o Espírito Santo concede a cada um e colocá-los ao serviço de todos na Igreja (FRANCISCO, 2014, s/p).
Ora, pensar os ministérios na estrutura de um poliedro não se trata de estabelecer uma espécie de “parlamentarismo laico” na Igreja, diminuindo o poder dos ministros ordenados, pois a autoridade do colégio episcopal não depende da delegação dos fiéis por processo eleitoral; mas aparece antes como um carisma particular com o qual o Espírito dotou o corpo eclesial de autoridade. Pensar uma sinergia ministerial significa fazer pleno uso dos recursos e estruturas que a Igreja já possui, concedendo espaço ao laicato nessas estruturas eclesiais.
O papa Francisco, atento ao princípio Ecclesia semper reformanda, ou seja, a Igreja sempre buscando se adaptar aos tempos sem perder a sua essência, a sua doutrina fundamental, vem realizando na Igreja Católica um processo de renovação eclesial. Sem dúvidas, o Romano Pontífice está renovando a Igreja como um corpo corresponsável e cooperativo de fiéis através de novos ministérios laicais. Alguns tradicionalistas o acusam que está “democratizando a Igreja”, ao inserir o laicato em novos ministérios ou em espaços de decisão como cargos de governo de alto escalão da Cúria Romana. É um equívoco pensar assim, porque não existe proposta de destruir nenhuma hierarquia. Ora, o próprio Concílio Vaticano II esboçou uma imagem da Igreja não estratificada, mas orgânica (cf. LG, 11), isto é, em que todos os cristãos têm a mesma dignidade e a mesma vocação para o serviço à construção do Corpo de Cristo.
O papa Francisco tem procurado renovar a Igreja Católica, incluindo a renovação dos ministérios eclesiais. Ele tem defendido uma Igreja mais pobre e próxima ao povo, com um papel mais ativo do laicato na vida da Igreja. O Papa também tem feito esforços para aumentar a participação das mulheres nos ministérios eclesiais e ampliar o papel da diaconia na vida da Igreja. A renovação dos ministérios eclesiais é vista por ele como uma forma de tornar a Igreja mais coerente com o seu propósito de ser um canal de graça e de amor para o mundo.
Vale recordar que este debate sobre a presença do laicato nos ministérios eclesiais não é genuinamente do pontificado de Francisco. Impulsionado pelo movimento laico (Yves Congar falava de uma Laicologia) e pelo Concílio Vaticano II, ganhou força no Sínodo dos Bispos sobre a “Vocação e Missão dos Leigos na Igreja e no Mundo”, em 1987, mas, sem dúvidas, esse tema tem recebido grande destaque em seu pontificado, em um esforço de buscar caminhos para que a efetiva participação do laicato nos ministérios eclesiais aconteça de forma adequada e possa corresponder às suas necessidades e do mundo hoje.
O papa Francisco soube com criatividade relacionar os ministérios eclesiais às imagens da pirâmide invertida e do poliedro. Ademais, sua posição sobre ministérios eclesiais é baseada na Tradição da Igreja Católica e na importância da colaboração e da comunhão entre todos os membros da Igreja na missão de anúncio do Evangelho. O atual Pontífice enriqueceu seu magistério com conceitos que se tornaram a sua marca. Francisco, para explicar certos fenômenos complexos, como a Igreja e alguns processos sociológicos, recuperou várias figuras geométricas como exemplos. Para evitar atribuir falsos sentidos é preciso compreender os diferentes contextos em que foram utilizadas as referidas metáforas.
A imagem da pirâmide foi usada por séculos para descrever o layout básico da Igreja e como ela é controlada ou governada, sobretudo como o poder está distribuído. Embaixo está o laicato, maioria na Igreja, com o mínimo de poder e suportando o peso da hierarquia, que se encontra em posição superior. É um sistema desigual e clericalista. O Concílio Vaticano II, e, mais claramente o papa Francisco, tem nos apresentado uma pirâmide invertida como novo estilo de governo.
Em vista de desenvolver uma comunhão nas diferenças, o papa Francisco propôs a imagem do poliedro. É um símbolo e imagem melhor para descrever a Igreja do que a pirâmide, mesmo invertida. A Igreja toda ministerial é uma realidade poliédrica, porque na comunidade os variados dons e carismas surgem e devem ser harmonizados. Acredita-se que o problema na concepção eclesiológica piramidal não é a posição de quem está acima ou abaixo, mas é a forma, isto é, a pirâmide. Para alguns, basta inverter a pirâmide, entretanto observou-se que inverter não é o suficiente, nem o foco principal. É preciso entender que participar dos ministérios eclesiais não significa focar em estar no topo da pirâmide, mas simplesmente estar inserido nela. Antes de se preocupar em estar ou não no topo da pirâmide, deve-se entender que o importante é estar inserido no poliedro.
A Igreja não se explica apenas como uma pirâmide, tampouco como um campo dividido entre laicato e hierarquia, mas como povo sacerdotal que, em virtude do Batismo, pelo qual o sacerdócio comum é recebido, todos nela gozam de uma dignidade comum e de uma igualdade radical. Passar de uma Igreja piramidal a uma Igreja ministerial não é algo que se consiga apenas em sessenta anos pós-Vaticano II, simplesmente apagando quase vinte séculos de estruturação clero-laicato em clara oposição, assimetria e mesmo, em alguns casos, desconfiança e discriminação. O reconhecimento da igual dignidade de todos os batizados provocou aquela revolução copernicana da eclesiologia conciliar que marcou – pelo menos teoricamente – o fim da concepção piramidal da Igreja, fundada na distinção entre Ecclesia docens e Ecclesia discens.
O poliedro indica que cada sujeito eclesial ocupa seu lugar único na Igreja, sob a direção dinâmica do Espírito Santo. Tal sistema precisa de um processo contínuo de sinergia; as decisões não podem ser impostas de cima para baixo, como na pirâmide tradicional, nem cada qual decidindo a seu modo, como se todas as distâncias fossem iguais em relação ao centro, como no modelo esférico. No poliedro todos estão conectados a Deus em sua singularidade e todos estão conectados a muitos outros irmãos e irmãs. Nesse sentido, a sinodalidade é um convite para construir a Igreja (um grande poliedro) que tem muitas outras Igrejas locais (novamente poliedros), onde cada um desenvolve seu ministério. Aqui a sinodalidade não é uma ferramenta, mas algo muito fundamental para a Igreja.
A Igreja de hoje sente mais do que nunca a fortíssima necessidade de ser uma Igreja toda ministerial, totalmente dotada de diversos carismas e ministérios, totalmente organizada e mobilizada com a multiplicidade dos seus membros a serviço da missão. Somente uma Igreja poliédrica e ministerial pode ser capaz de um sério e frutífero empenho na evangelização e na promoção humana. Em resumo, como poliedro a Igreja é concebida como uma comunidade de diferentes ministérios, na qual, quem possui o poder que advém do ministério ordenado deve concebê-lo como serviço aos membros da comunidade, e não como uma forma de poder ou dominação e como sendo usado para o bem da comunidade e do Reino de Deus.
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[1] Na Fratelli Tutti o Papa Francisco escreveu: “Já várias vezes convidei a fazer crescer uma cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro. É um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes, porque ‘o todo é superior à parte’. O poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo. Isto implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspetos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes” (FT, 215).