David Bruno Narcizo
Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: dbrunonarcizo@gmail.com
Glaucio Alberto Faria de Souza
Doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e na Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI (FFTPVI). Contato: gafsteologo@gmail.com
Resumo: A sociedade neoliberal está pautada na busca da acumulação a partir do desnudamento e da alienação dos direitos fundamentais de milhares de seres humanos. Toda essa tecnologia social de morte é legitimada por mitos que produzem significado nas diversas ações de exploração e destruição de milhares de seres humanos. Envolvidos com um mito que cria a ideia de garantia do direito a partir da capacidade de consumo, milhares de pessoas têm suas vidas minimizadas para a acumulação de tão poucas pessoas num processo de adoração do deus do capital, deus da economia e do deus mercado sendo estes três deuses, um só. Em contrapartida, a partir da afirmação de que não podemos adorar a dois senhores e da narrativa da queda do homem descrita no mito sagrado judaico-cristão, este artigo tem por objetivo mostrar a dualidade dos mitos que engendram a sociedade neoliberal e a espiritualidade cristã e ao mesmo tempo, apresentar a necessidade de uma mística do desnudamento numa espiritualidade prática da nudez que busque a garantia do direito fundamental e do bem comum a todos os seres humanos.
Palavras-Chave: Mito; Espiritualidade; Mística; Nudez
Abstract: Neoliberalism is founded on the pursuit of capital accumulation, achieved through the deprivation and alienation of basic human rights from countless individuals. This socially destructive system is normalized through myths that give purpose to the acts of exploitation and destruction of so many lives. These myths are based on the notion of guaranteeing rights through purchasing power and in doing so, reducing the lives of many for the gain of a few. This process of idolizing capital, the economy and the market as three gods, one, is in stark contrast to the Judeo-Christian belief that one cannot worship two lords. This article, therefore, aims to highlight the duality of the myths that underpin neoliberal society and Christian spirituality, and to introduce a mystique of nakedness in a practical spirituality that seeks to guarantee fundamental rights and the collective wellbeing of all people.
Keywords: Myth; Spirituality; Mystic; Nudity
Fomos feitos por Deus numa nudez, mas estamos sempre cobertos por uma persona. Uma máscara nos cobre e nos permite ter nossas relações políticas, econômicas e sociais. Na Roma e Grécia antiga, os cidadãos, diferente dos escravos, tinham nomes, linhagem familiar e todos os detalhes necessários para uma vida plena no interior daquela sociedade. Os livres estavam vestidos de uma roupagem jurídica e política, mas os escravos estavam nus de proteção da vida e da dignidade enquanto pessoa humana. Sem antepassados, sem máscara, sem nome e tampouco considerado uma pessoa. (TOLENTINO, 2020, p. 21).
Não diferente da sociedade grega e romana, no mundo pós-moderno regido pela economia neoliberal, a ideia de direito fundamental é constantemente trocada pela mentalidade do mercado. Nesta lógica reducionista dos direitos humanos, somente quem possui poder de consumo, tem garantido os direitos básicos para a vida humana. Consequentemente, nos deparamos com situações em que poucos detém a maior parte da riqueza e centenas de milhares de pessoas tem que viver com tão pouco. Veem suas vidas se esvaírem por causa da fome, frio e violências. Além disso, na justificativa do mercado e do consumo, presenciamos a destruição da natureza para acumular cada vez mais.
Numa abordagem teológica a partir da narrativa da queda e do pecado apresentada no capítulo 3 do Gênesis, vemos nas relações humanas uma constante busca de cobertura da nudez e da vergonha, porém, são usadas vidas humanas para garantir este intento. Somos então provocados a uma espiritualidade da nudez onde, nos despimos de nós mesmos para cobrir as necessidades do próximo e somos cobertos com honra e glória do nosso próprio Deus.
Há nas atitudes humanas a busca de notoriedade, poder e aceitação social. Quando estes elementos não existem, somos entregues a vergonha por não sermos ou termos aquilo que gostaríamos de possuir. Somos reconhecidos pela máscara que adotamos, mas ao mesmo tempo, ela cobre quem de fato somos.
Ao fazemos as maiores maldades culpamos até mesmo os demônios e chegamos a afirmar que não possuímos uma plena autonomia para realizar os empreendimentos. Somos então colocados por nós mesmos como marionetes do destino. Isto também é reflexo de uma máscara que revela uma pessoa que de fato não somos.
Na sociedade contemporânea, a pessoa pode ser entendida pelos aspectos moral, psicológico e estético. Assim, “quando pensamos em nós, não pensamos imediatamente na nossa nudez, mas na nossa ‘máscara’, nas nossas representações”. (BINGEMER; VILLAS BOAS apud TOLENTINO, 2020, p. 22).
A narrativa do jardim a serpente oferece ao homem e a mulher o alimento que foi negado por Deus. Há um jogo narrativo que apresenta o termo nudez e astúcia que em hebraico são ambos da mesma raiz. Nudez é Arom e astúcia, Arum (BINGEMER; VILLAS BOAS apud TOLENTINO, 2020, p. 25). Primeiramente, ambos estavam nus e não havia incômodo porque estavam no local da presença de Deus e estavam preenchidos e cobertos pela graça, amor e poder divino. Cada um de nós, ao estarmos nus, ou seja, despidos, sem máscaras, sem posses, sem títulos, sem propriedade, sendo apenas nós mesmos, estamos totalmente imersos nas nossas próprias efemeridades e fraquezas. Nesta condição, estamos protegidos pela força, pelo amor, pelo poder e pela graça de Deus.
O sentido da afirmação de sermos semelhantes[1] a Deus É vivemos segundo a vontade, lei e amor. despidos, mas envoltos e cobertos por Deus. Quando os humanos deixam a orientação de Deus e seguem a Serpente, deixam de serem semelhantes a Ele e passam a serem semelhantes à serpente. Dentro da narrativa à serpente é atribuída a palavra arum, ou seja, astúcia. Assim, se dão conta que estão arom, palavras que vem da mesma raiz de arum, como afirmamos acima e, dentro da tradução em português resulta em estarem nús.
Podemos dizer que “a nudez é a nossa condição, a nossa gramática criatural” (BINGEMER; VILAS BOAS, 2020, p. 23-24) e exatamente por isso que até consumar o pecado, não tinham vergonha. O propósito divino foi criar seres humanos nus, mas ao pecar, distanciam de Deus e são acometidos pela vergonha e como uma medida apelativa, buscam com as próprias mãos, cobrir a nudes.
Estarem despidos não muda a natureza, mas a consciência de estarem despidos, apresenta uma mudança de estado, pois agora, não estão mais envoltos da glória e presença de Deus.
A pergunta: “E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer!” (Gn. 3,11). Já o capítulo 2 afirma que estavam nus, mas não tinham vergonha. A condição de nudez material não mudou, mas o que mudou foi a consciência de estarem nus, então, a partir do momento em que o ser humano se distancia de Deus, ele se despe do poder e da glória, tem a sensação de vergonha e busca nas criaturas de Deus, meios para se cobrir e se esconder.
Há uma semelhança com o excesso de acumulação. Quando acumulamos nos cobrindo com a criação de Deus como proposto em Gn. 3,7-8, mas não cobrimos da vergonha perante Deus.
Em contrapartida, à medida que o ser humano se desnuda perante Deus, se envolve com o Seu poder e a Sua graça e passa a proteger e a cuidar de toda a criação. Aquela que foi morta e destruída para cobrir a vergonha, no momento que o ser humano se desnuda na Presença de Deus, passa a ser vestida, cuidada e protegida. Isto acontece quando o ser humano se faz nu e se veste da graça, poder e Presença de Deus.
Há outros dois momentos que o desnudamento acontece dentro da narrativa bíblica. Cristo faz o desnudamento de Sua Glória Divina e da Glória Humana a ponto de desnudar até a sua própria carne na cruz para, ao desnudar do humano, revelar também a Nudez do próprio Deus.
Os guardas tomarem a roupa de Jesus e lançam sorte para cumprir o que está descrito “Repartiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sorte” (Sl 22,18; Mt 15,24) ou seja, o processo do desnudamento do Cristo, apresenta a graça no ato de lançar sorte e aquele que recebe a túnica, símbolo de honra, não foi por merecimento, mas em bondade imerecida.
Na hermenêutica cristã, a revelação é o ato de desnudar-se para a materialização do mistério de Deus. Ao desnudar-se, o Cristo decifra Deus e o revela e o interpreta a toda a humanidade. No encontro despido do Cristo, vemos a nudez Deus na fraqueza da pessoa humana.
O ato de despir o Véu do Templo, local da Presença e do Encontro acontece quando o humano-deus é rasgado e neste é revelada a presença de Deus na humanidade.
Entre Deus e nós há o espaço vazio, entreaberto e nu, como o lado rasgado do corpo do crucificado, e nós movemo-nos nesse espaço. O essencial está além e só na pobreza da nudez, que é feita carne e de tempo de Deus, o podemos entrever. (BINGEMER e VILLAS BOAS apud TOLENTINO, 2020, p. 34)
Para lidarmos com essa afirmação onde a pobreza é o processo de desnudar-se, teremos que lançar mão de algumas colaborações.
Nas relações sociais os seres humanos buscam a qualquer custo sugar a vida e conquistas do outro para cobrir a própria vergonha.
Em Gênesis (2,18), Adão diz: “Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne” (Gn. 2,22|). Até então, o ser humano estava sozinho e como afirmado pelo próprio Deus, isto não era bom. Eva na frente de Adão, este vê nela, parte de si e se completam. A vida humana é olhar, ver e conviver com o diferente construindo unidade.
Jesus Cristo, nos evangelhos, propõe que o segundo mandamento é: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,39). Observando o Evangelho de João, o encontramos dizendo seu próprio mandamento: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12|), nisto há o comprometimento com o próximo e com o diferente que é base para toda a narrativa bíblica. A orientação é que a expressão de amor seja como Ele o fez: despindo-se de toda a Sua Glória e se tornando humano. Jesus despiu-se de tudo, das riquezas, de poder, da honra (Mt 4,1-11) e da sua própria vida para vestir-nos. Somos orientados a despir-nos de nós mesmos para vestir ao próximo. Nisto não somos mais escravos, mas filhos de Deus.
As possibilidades econômicas das moedas digitais e o acesso aos meios de comunicação produziram um enorme desnudamento. Os algoritmos controlam a internet e é possível fazer com que os próprios seres humanos sejam também, objeto de mercado. Até então, vendíamos horas específicas de vida. Hoje, a própria vida pública e privada do indivíduo passa a ser objeto de consumo dentro do mercado gerando dominação e do controle.
O que é vendido é a transparência como algo bom e que nos passa segurança, mas o que tem sido feito é o controle cibernético. Somos lidos e analisados pelas ferramentas digitais e nossos comportamentos, pelo simples fato de observarmos uma imagem digital, somos levados a um ato de desnudar a nossa vida privada para grandes empresas. Parece liberdade, mas somos dominados pelas amarras de controle proposto pelos poderosos capitalistas.
O Big Data torna possível prognósticos do comportamento humano. O futuro será, desse modo, previsível e manipulável. Esta ferramenta analítica se revela como um instrumento psico-político muito eficiente que permite controlar as pessoas. Podemos então dizer que o Big Data produz um saber de dominação fazendo delas como se faz com marionetes. (HAN, 2019, p. 44)
Atualmente, já existem diversas empresas que, como estratégia de marketing, trazem uma ideia de que, controlando o comportamento das pessoas, estão a fazer uma atitude sagrada e benfazeja, mas realizam de forma despudorada, um ato de desnudamento para aumentar a própria acumulação.
A sociedade está tão desnuda que “apenas a morte, é transparente. Isto acontece com total consentimento de todos, assim, liberdade e controle coincidem, tornando-se uma coisa só – como também o user transparente é igualmente vítima e algoz”. (HAN, 2021, p. 72) O desnudamento seguido de venda de produtos leva toneladas de pessoas humanas à morte. Morte de vida em vida ou, como acontece todos os dias, o desnudamento da própria vida que nos leva à morte.
Em épocas remotas, seres humanos despiam os outros para se cobrirem de posses, poder e honra. Hoje, nos despimos voluntariamente nossos dados e nossas vidas frente as redes sociais (facebook, youtube, instagram, tik toc, etc.) para nos vestir e nos cobrir, com a vida de outros. É uma dialética de cobrir vergonha comercializando nossa própria nudez.
Mas “queremos continuar à mercê do controle, vigilância e exploração total da pessoa humana, sacrificando com isso nossa liberdade? Está na hora de organizar mais uma vez uma resistência contra o totalitarismo digital iminente” (HAN, 2019, p. 50). Completamos esse questionamento: vale mesmo a pena todo esse empreendimento para cobrir a vergonha de alguns tirando a vida de tanta gente?!
A incompletude que reverbera em diversos transtornos, inclusive o de obsessão compulsiva pode resultar em acumulação desenfreada.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5 apresenta que pessoas com transtornos obsessivos e compulsivos –TOC, “relatam uma angustiante sensação de ‘incompletude’...” (DSM-5, p. 239). Estes indivíduos podem desenvolver a busca compulsiva por acumulação.
Os sintomas do transtorno de acumulação focam exclusivamente na dificuldade persistente de descartar ou dispor dos pertences, no sofrimento acentuado associado ao descarte de itens e na acumulação excessiva de objetos. No entanto, se um indivíduo tem obsessões típicas de TOC (p.ex., preocupação acerca de incompletude ou danos), essas obsessões conduzem a comportamentos compulsivos de acumulação (p. ex., adquirindo todos os objetos de um conjunto para alcançar a sensação de completude ou não descartar jornais velhos porque eles podem conter informações que poderiam evitar danos), um diagnóstico de TOC deve ser dado. (DSM-5, p. 241)
O transtorno só é constatado quando o indivíduo tem dificuldade de ter uma vida íntegra em contato com a sociedade, mas os mitos neoliberais legitimam comportamentos de alienação de capital. Nos incomodamos quando uma pessoa acumula de forma excessiva jornais, roupas ou sapatos e não quando acumula todo o dinheiro de centenas de milhares de pessoas, chegamos até a louvá-los como seres extremamente dedicados e inteligentes.
A acumulação se tornou sinônimo de inteligência. Este mito, legítima a opressão de sociedades inteiras e até mesmo, a morte de milhares e milhares de vidas humanas que, mesmo dotadas de inteligências, dons e habilidades, são abandonadas nas sarjetas somente por não terem meios e oportunidades de acumulação e de garantir uma vida digna e humana.
A afirmação do DSM-5 quanto a incompletude dialoga com os mitos cristãos sobre a retirada do Espírito Santo de toda a humanidade (Gn. 6,1-3|B.J.) e podemos afirmar que o distanciamento do ser humano em relação à Deus, a sua dificuldade de relacionamento com o sagrado e de forma saudável com comunidades de fé, podem desencadear uma incompletude e consequentemente, mesmo que não cause especificamente um transtorno, provoca a busca constante de preenchimento. Uma busca da alienação do outro para completude de si e quanto mais busca fora de si, mais distante de si mesmo, de Deus e do próximo, este sujeito estará.
Na relação entre Deus e Mamon, podemos também afirmar que ao buscar se completar em objetos e no dinheiro, o indivíduo realiza uma espécie de idolatria visto que o mesmo vê nestas criaturas, as essências do próprio criador,
Há fronteiras entre o mito judaico-cristã e a psicologia. O mito propõe que é um afastamento de Deus, a psicologia propõe que é um distanciamento de si mesmo e em ambas há a constatação de algo que causa um mal a si mesmo e ao próximo.
Na narrativa do Jovem Rico onde, após o Mestre propor que o mesmo vendesse tudo e desse aos pobres, “O moço ouvindo esta palavra, saiu pesaroso, pois era possuidor de muitos bens” (Mt. 19,16-22), já em Lucas, a afirmação é literalmente que “ouvindo isto, ficou cheio de tristeza, pois era muito rico”. (Lc. 18,18-30). Tanto a literatura sagrada quanto o DSM-5, afirmam que o ato de abrir mão dos objetos causa tristeza. Já na acumulação de capital, quando o sujeito perde grandes somatórias de dinheiro, há uma enorme angústia e em muitos casos, chegam até ao suicídio e a destruição do lar.
Vemos então, uma grandiosa relação entre a psicologia e os mitos sagrados e, em ambos, o processo de desnudamento pode causar tristeza e incompletude.
O excesso de produção se assemelha ao fenômeno de uma destruição em massa. Este empreendimento de morte é tão extenso e intenso que vemos de forma acelerada, a humanidade destruir-se a si mesma. Há o antagonismo da sociedade que destrói sua própria natureza para uma busca incessante de produção e acumulação enquanto há pessoas nas ruas sem moradias, sem alimento, sem remédios, sem roupas e sem vida.
O ser humano se assemelha a uma besta selvagem que não consegue proteger a sua própria espécie. Tem em si um impulso de morte, conceito proposto por Freud, e dentre todos os animais, são os únicos que conseguem aproveitar sua melhor agressividade. Este sistema de competição extrema e sem regras, provoca a morte de milhares de pessoas e da natureza.
Vemos objetos tomarem vida enquanto vidas inteiras são colocadas à beira da morte. Encontramos a automação de apartamentos, robôs, algoritmos nas redes e o chatgpt, mas ao mesmo tempo, seres humanos morrem todos os dias sem necessidades básicas.
Damos vida às mercadorias e os tratamos como tendo vida própria e ao mesmo tempo, arriscamos a vida de pessoas, fauna e flora. Tratamos as crianças como seres sem vida e mercadorias tem carinho e amor, como tendo vida própria.
Podemos dizer que o capitalismo falseia a vida nas mercadorias animadas somente por fetiche, mas, insistimos todos os dias em lutar contra a vida daqueles que de Deus, receberam a centelha de existir.
Adoram o deus de morte e lutam contra o Deus de Vida como na afirmação de que “[...] a história da humanidade é uma ‘luta eterna contra o divino’ que ‘necessariamente é aniquilado pelo humano’” (HAN, 2021, p. 8) e o impulso de morte atinge proporções catastróficas quando “colocado a serviço do crescimento”. (HAN apud MARIS, 2021, 14).
A guerra e o dinheiro são elementos antigos que ainda estão no interior das relações econômicas das sociedades atuais.
Para poder aumentar animais, alimento e escravos, investiam em um exército para invadirem terras e poderem pegar os despojos dessa forma, o enriquecimento era resultado direto da morte e da exploração de centenas e milhares de pessoas.
O dinheiro, na antiguidade, também esteve atrelado ao sacrifício. Vemos na orientação para a páscoa judaica onde, quando era muito longe o caminho, o sujeito vendia o que havia acumulado durante o ano e com o dinheiro, compra os elementos necessários para passar a festa (Dt 14). Mas este era um fenômeno de vida porque o pobre, a viúva, estrangeiro e o levita viviam a comunhão. Mas, o animal que ia para o sacrifício, era também comprado com este dinheiro então, mesmo que houvesse um bem maior neste momento de a morte também ocorria. Então, “lançar dinheiro, deixá-lo fluir e vê-lo fluir, produz um efeito semelhante ao do sangue que flui na batalha ou no altar sacrificial” (HAN, 2021, p. 17).
O capitalismo produz uma biopolítica com inúmeras necrópoles. As diversas cidades estão cada vez mais com relações econômicas automatizadas e os seres humanos são escravizados por equipamentos que parecem ter vida própria. Os próprios humanos estão despidos feitos robôs sem vida correndo atrás de um tempo tão acelerado que nem mesmo as máquinas conseguem suportar.
Essa correria ensandecida e incansável produz seres humanos doentes psicologicamente e fisicamente. Mesmo que respirem, apenas parecem viver.
Há um sacrifício vivo a céu aberto ao deus do capital. Formamos necrópoles onde entregamos vidas, histórias, sonhos e desejos de milhares de seres humanos como sacrifício, mas ao mesmo tempo, cada vez mais produzimos robôs com inteligência artificial para utilizar no atendimento em nossos mercados, restaurantes e padarias. Isto tudo resulta em vida sacrifica ao deus de morte e esquecemos de olhar as vidas criadas com o sopro e mãos de um Deus da vida.
o sacrifício não seria um acontecimento irreal, ilusório e irracional de “povos primitivos” em comparação à racionalidade instrumental moderna. Não se trataria da inventividade de seres divinos, fantásticos e demoníacos existentes em si, ou fora da relação estratégica com uma comunidade que demanda aquelas imaginações míticas como técnica de regulação das suas múltiplas formas de violências. Trata-se da imaginação de um mundo mítico que suporta transcendentalmente os modos concretos de organização social e as técnicas de controle da violência de determinada sociedade. Em Girard, o sacrifício é um dispositivo real de controle da violência. Ele teria uma função na regulação de uma economia da violência. (ANJOS, 2019, p. 159)
Mas para isso, surge-nos a questão: Como realizar essa libertação se estamos amarrados pelos mitos que norteiam e legitimam o deus do Capital?
Adoramos a Deus pelo que ele é ou pelo que Ele faz? A partir desta provocação, nos questionamos se gostamos do capitalismo pelo que ele é ou pelo que ele nos faz. Quem tem muitas posses afirma que o sistema capitalista é o melhor que existe no mundo. Mas, ao mesmo tempo, se esta pessoa ocupar o lugar dos que não tem seus direitos fundamentais garantidos e protegidos e as oportunidades necessárias para garantir seus sonhos, objetivos e necessidades básicas, a menos que seja uma pessoa totalmente alienada, não dirá que é bom.
Podemos dizer que gostamos do capitalismo não pelo que ele é (sistema de exclusão, de segregação e de morte), mas pelo que ele nos faz (dá sensação de onisciência, onipresença e onipotência a seres humanos efêmeros).
Neste ponto é importante apresentarmos a afirmação categórica de Deus em relação aos que sofrem: “Não sois para mim como os cuchitasó israelitas? – oráculo de Iahweh -, /Não fiz Israel subir da terra do Egito os filisteus de Cáftor e os arameus de Quir? Eis que os olhos do Senhor Iahweh estão sobre o reino pecador.” (Am 9, 7-8).
É evidente que não existe uma libertação exclusiva dada por Deus ao povo de Israel, mas toda opressão, desigualdade e falta de justiça para com os pobres e oprimidos, independe de qual povo seja, são recusadas por Deus. Deus salvou também os filisteus e os arameus dos povos que os oprimiam.
No ano de 2015 tínhamos 62 famílias mais ricas no mundo todo (SUNG, 2018, p 12) e esses possuíam o equivalente, ao que possuíam as 3,6 bilhões de pessoas dos mais pobres do mundo todo. Em 2016 este número baixou para 8 pessoas do mundo todo que possuíam esse mesmo montante. No Brasil as 6 pessoas mais ricas possuem o equivalente à soma da metade mais pobre que totalizam 100 milhões de pessoas” (SUNG, 2018, p. 13). Vemos assim um ato de astúcia (Arum) no processo de desnudamento do outro para cobrir atos, um tanto quanto vergonhosos, mas totalmente sem vergonha, da sociedade contemporânea.
Encontramos na Constituição dos Estados Unidos e na Proclamação dos Direitos Humanos que absolutamente todos os seres humanos possuem direitos naturais e fundamentais uma delas com um viés religioso e a outra totalmente cética, mas ambas partem do princípio de
Os defensores do Capitalismo de Mercado afirmam uma mitologia que legitima atos contra a dignidade da pessoa humana. Não aceitam que o Estado garanta direitos e, a partir da ação moderna de colocar a religião no espaço privado e o direito natural foi trocado pelos serviços (de saúde, de cidadania, de cultura, etc.). Assim, as leis que regem nossa sociedade já não são mais as divinas ou dos documentos universais, mas a Lei do Mercado.
Jesus Cristo ao dizer que os judeus não podiam amar a dois senhores, afirmou explicitamente que Mamom não era uma figura divina personificada, mas era o dinheiro em si. Adianta literalmente o que Walter Benjamin chegou bem próximo e ao que as pesquisas atuais já conseguem afirmar: que tornamos o dinheiro um deus.
Instituímos uma teocracia pautada no deus do Capital e, colocamos nossas religiões espaços para comercialização. Nossos deuses se tornaram serviçais do Deus do Capital. São mediadores para chegarmos no deus do capital.
No deus do capital vemos o Serafim[2] no Jardim que, trazendo uma nova teologia, fez cobrir a Nudez Vestida De Deus com a Astúcia das Vestes da Serpente.
Hoje almejam a eternidade com vergonha coberta pelo corpo transformado, mas na história, matam vidas para tentar cobrir a si mesmos. Descobrem sem pudores, as criaturas de Deus e com astúcia, cobrem o corpo que deveria ser despido a Deus. Ação que acontece de forma latente quando se busca o encontro do próximo, protegendo a sua nudez, sua necessidade e a sua vergonha. Porém, idolatramos as roupas do deus do capital, mesmo que saibamos que ele é um deus cruel e opressor.
Na bíblia, os profetas falam contra a opressão extrema realizada por lideranças políticas. Elias se compadece com a morte do agricultor nas mãos de Jezabel e Acabe os quais buscaram a todo custo ter a vinha, herança do pobre.
De um lado a atitude dos reis de despir a vida dos pobres e de outro, os profetas lutando contra as injustiças (Ez 34,1-10). Nas relações econômicas e sociais atuais acontecem opressão e necessitamos de atitudes proféticas de desnudamento que expressem humanidade e garantia de direitos.
É fundamental vivermos um desnudamento e uma espiritualidade que revele o mistério de Deus no encontro do próximo levando graça e amor.
Esta atitude é profética visto que propõe um retorno à Aliança e também, expressa os atos de Elias, Amós, Oséias, Isaías, Miquéias, entre outros, que se desnudam de suas próprias vidas para cobrir a nudez do pobre.
“Nabi” em hebraico e “Prophetes”, em grego, são termos usados para descrever pessoas que foram separadas para falarem em nome de Deus como "arautos, os porta-vozes de Deus” (FONSATTI, 2022, p. 14). A missão do profeta é orientar o povo a Deus, à aliança e a Lei proposta por Moisés. E a partir do momento em que o povo começava a se desviar, o profeta age como arauto orientando novamente a retornarem.
O mundo contemporâneo tem se distanciado da proposta da aliança e da Lei de Deus e a Igreja tem a responsabilidade de ser um arauto nesse mundo e propor um retorno.
As propostas de Cristo contidas nos Evangelhos orientavam os povos daquela época. Estes tinham posturas que muito se assemelham às atitudes dos povos de nosso tempo.
Ao observarmos a narrativa dos evangelhos, com a emblemática proposta explícita no capítulo 23 do Evangelho de Mateus, encontramos logo no versículo 5:
Praticam todas as suas ações com o fim de serem vistos pelos homens. Com efeito, usam largos filactérios e longas franjas. Gostam do lugar de honra nos banquetes, dos primeiros assentos nas sinagogas, de receber as saudações nas praças públicas e de que os homens lhe chamem ‘Rabi’.
Neste texto, vemos a atitude de uma classe social do judaísmo do primeiro século. O ato de vestir-se com elementos da Lei, no uso dos filactérios e franjas, que marcavam a santidade e devoção, porém, impediam as outras pessoas, principalmente as mais simples, de se achegarem a Deus. Vestiam elementos da lei e em contrapartida despiam as pessoas simples.
A proposta do Cristo foi categórica ao propor um desnudamento quando sugere no versículo 8 que:
Quanto a vós, não permitais que vos chamem ‘Rabi’, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. A ninguém na terra chameis ‘Pai’, pois só tendes o Pai Celeste. Nem permitais que vos chamem ‘Guias’, pois um só é vosso guia, Cristo. Antes, o maior entre vós será aquele que vos serve. Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado.
A prerrogativa básica do Cristo é totalmente contrária à proposta do neoliberal. Uma propõe que sejamos servos e o mundo neoliberal propõe que sejamos servidos em função do dinheiro que acumulamos dentro das relações de exploração extrema. É contrária também porque enquanto Cristo propõe nos desnudarmos para vestir o nosso próximo, o neoliberal propõe que acumulemos tudo que pudermos mesmo que tenhamos que tirar o pouco que o nosso próximo possui.
Neste mundo somos convidados a revelar o Deus que se desnuda de si para cobrir a vergonha de toda a humanidade. Convida-nos a sermos contraponto à Serpente Astuta, representada agora pelo Deus do Capital/Mamon que na prática cotidiana, desnuda até a vida do pobre, fazendo que vidas de seres humanos sejam todos os dias sacrificadas ao Deus do Capital. Isto lembra-nos o texto de Eclesiastes capítulo 3. Nisto busca cobrir a si mesmo. Com a Vida do Outro, cobre a própria vergonha e expõe a fraqueza do próximo. Cobre a Própria Efemeridade, o Próprio Sopro, ou seja, A Própria Vaidade com o sopro de vida que o outro ainda carrega. Mas Cristo propõe que vivamos a espiritualidade da nudez levando um pouco de nós mesmos para que, repletos de amor e graça, cubramos a nudez do nosso próximo vivendo as primícias do Reino em que todos possam dizer “de nada tenho falta [...]” (Sl 23,1).
Pensar a mística e espiritualidade da nudez ainda hoje, é algo fundamental para pensar e buscarmos entender o ser humano (TOLENTINO, 2020, p. 23), assim, como também o livro sagrado inicia nessa provocação, nós também somos a todo momento convidados a despir-nos de nós mesmos diante de Deus que na sua onisciência, sempre vê a roupa entregamos no encontro do próximo.
É um desnudamento samaritano onde, ao avistar a nudez do sujeito no caminho se desnuda de sua posse e de toda possibilidade de rancor e orgulho levando-o à estrebaria, para ser cuidado, tratado, vestido e protegido, e poder, em liberdade, seguir vivo a sua vida. (Lc 10,29-37)
“E por isso, uma das mais belas orações que conheço em língua portuguesa é também um dos mais belos versos: ‘Creio na nudez da minha vida’” afirma Tolentino (BINGEMER; BOAS; apud Tolentino, 2020, p. 34). A nossa espiritualidade é um desnudamento da nossa própria vida para Revelar e Interpretar o Deus da Vida a toda a Criatura de Nosso Deus nesse extenso Mundão.
Conclui-se que os mitos têm um papel fundamental para legitimar as ações sociais e humanas dentro de uma sociedade. Durante muitos anos, os mitos que nos nortearam foram as constituições federais, a Carta Universal dos Direitos Humanos, os princípios fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade propostos pela revolução francesa, princípios cristãos e as propostas filosóficas de pensadores liberais e marxistas. Estes documentos têm como princípios básicos a ideia de que todos os seres humanos, pelo fato de serem humanos, tem direitos fundamentais.
No mundo contemporâneo, essas premissas caem por terra e surge o neoliberalismo pautado pelo mito de que todos os seres humanos são livres para comercializarem e viverem de forma igual dentro do mercado. O neoliberal afirma que não existe nada que legitime os direitos fundamentais, mas todos têm a liberdade de produzir, distribuir e consumir. Além disso, mesmo que haja desigualdade social, o crescimento econômico garante a distribuição num sistema de gotejamento, assim, quanto mais os ricos enriquecem, mais os pobres irão também enriquecer. Então, um pobre dos dias de hoje viverá muito melhor que um rei africano ou um líder indígena.
Afirmações como estas são mitos que simplesmente legitimam uma atitude de exploração ao extremo da vida humana.
Encontramos então, um conflito de dois deuses onde, enquanto o capitalismo e os princípios neoliberais legitimem a aceitação e a naturalização da morte de milhares de pessoas como num sacrifício a céu aberto de vidas humanas ao deus do capital, temos em contraponto um Deus proposto pela fé cristã que afirma ser um Deus de Vida e que garante a dignidade para todos os seres humanos independente de raça, sexo, etnia, etc.
Nesta realidade, olhando para os mitos sagrados cristãos, encontramos uma proposta mística e uma espiritualidade do desnudamento, ou seja, no momento em que o ser humano se desnuda e procura garantir o bem comum e a dignidade da pessoa humana do próximo, estará cada vez mais perto de seu Deus e consequentemente, estará vestido de Sua glória e veste.
Esta pesquisa nos mostra que, para o mundo de hoje, precisamos questionar os mitos que legitimam opressões e alienação das vidas humanas e consequentemente, sociedades inteiras desnudas de sua dignidade, de seus nomes, de roupas, de alimento e, fatalmente, de suas vidas. Mas, em contrapartida, os mitos judaico-cristãos inspiram atitudes de entrega e garantia da vida do próximo e legitimam a espiritualidade da nudez que caminha garantindo a dignidade de toda família humana em amor e fraternidade.
Observando essas propostas, concluímos que o mundo necessita de inspiração libertadora e ela só virá com a materialização do mistério do Cristo em atitudes de garantia da proteção e de vestes a quem precisa, mas para isso, necessitamos nos alegrar com o processo do nosso próprio desnudamento na presença de Deus para assim, em relacionamento com Ele, nos vestirmos com Sua Graça e de Seu Amor.
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[1] “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom’”. (Gn 1,26-27|Bíblia de Jerusalém)
[2] Teólogos como Oswaldo Luiz Ribeiro associam a Serpente do Jardim a um Serafim, assim, ao invés de a mulher ter sido enganada por uma simples serpente, na verdade ela foi enganada por uma Serpente com Asas, Serpente Flamejante ou melhor, uma Serpente Alada.