O anúncio de Jesus Cristo na práxis eclesial em contexto latino-americano
The announcement of Jesus Christ in ecclesial praxis in the laltin american context

Elizeu da Conceição
Doutor em Teologia pela Università Pontificia Salesiana – UPS. Contato: p.elizeudaconceicao@gmail.com

Karolayne Maria Vieira Camargo de Moraes
Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: karolaynecamargo15@gmail.com


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Resumo: Em um cenário pós-moderno marcado, dentre outras características, pela pandemia da Covid-19, pelo descaso político e pela crise de fé dentro e fora das Igrejas, o anúncio de Jesus Cristo retorna como um desafio e uma necessidade urgente. Apesar do conteúdo da mensagem ter o mesmo fundamento, há mais de dois mil anos, o modo de comunicá-lo mostra-se como único em cada contexto. Trata-se de tornar compreensível uma mensagem performativa, sem que a mesma seja alterada pelos interesses de grupos ou movimentos. Nesse sentido, a proposta do presente artigo consiste em retornar às fontes da fé cristã e compreender a identidade específica que caracteriza o anúncio de Jesus Cristo, bem como as transformações que ocorreram nesta mensagem ao longo da história. Em seguida, nosso olhar se volta para a realidade atual da América-Latina, salientando a importância da experiência como o fundamento primeiro do anúncio, os principais interlocutores dessa mensagem e quais são os loci theologici contemporâneos. Por fim, buscar-se-á lançar luzes sobre o hoje da história, apresentando caminhos possíveis, a fim de se obter um anúncio cristológico efetivo e performativo. Objetiva-se, portanto, questionar e compreender qual a peculiaridade do anúncio de Jesus Cristo e como torná-lo verdadeiro e incidente ainda hoje

Palavras-chave: Anúncio; Conversão; Contexto; Pastoral.

Abstract: In a post-modern scenario marked, among other characteristics, by the Covid 19 pandemic, by political neglect and by the crisis of faith, inside and outside the Churches, the proclamation of Jesus Christ returns as a challenge and an urgent need. Although the content of the message has the same foundation, over two thousand years ago, the way of communicating it is unique in each context. It is about making a performative message understandable, without it being altered by the interests of groups or movements. In this sense, the purpose of this article is to return to the sources of the Christian faith and understand the specific identity that characterizes the proclamation of Jesus Christ, as well as the transformations that occurred in this message throughout history. Then, our gaze turns to the current reality of Latin America, emphasizing the importance of experience as the first foundation of the announcement, the main interlocutors of this message and what are the contemporary loci theologici. Finally, an attempt will be made to shed light on today's history, presenting possible paths in order to obtain an effective and performative Christological announcement. The objective is, therefore, to question and understand what the peculiarity of the proclamation of Jesus Christ is and how to make it true and incident even today.

Keywords: Announcement; Conversion; Context; Pastoral.

Introdução

O conceito “anúncio” ganhou novo significado recentemente, sobretudo quando faz alusão ao Primeiro Anúncio. Inicialmente, este termo era usado referindo-se à terra de missão, aos não crentes, aos quais se deveria anunciar a conversão a Jesus Cristo, através de uma vivência evangélica dentro da Igreja. Com o esfriamento religioso nos países de antiga tradição cristã e com o alvorecer do cristianismo nas nações, consideradas “países de missão”, mudou-se completamente o modo de viver e realizar o anúncio. 

Por causa do desenvolvimento cultural, o panorama religioso se tornou mais complexo e toda ação eclesial se viu obrigada a repensar o modo de agir, para continuar sendo significativa e eficiente. Com o passar dos anos, o cristianismo deixou de ser uma novidade nestes países de contexto latino-americano, fazendo com que, na atualidade, fosse revelada uma necessidade do anúncio ao interno mesmo da comunidade cristã. Ou seja, não mais um anúncio aos que nunca ouviram falar de Jesus, mas aos que se sentem cansados, desanimados ou enfraquecidos na fé. 

Compreendemos que o método narrativo do anúncio encontra sua fonte na história da salvação: Sagrada Escritura, vida da Igreja, vida dos santos etc. Isso nos leva a fazer uma opção de reflexão baseada na dimensão antropológico-experiencial, sabedores da necessária reformulação dos critérios edu-comunicativos do anúncio de Cristo. Alberich prospetou esta nova configuração:

O significado da figura de Cristo para o homem é colhido no horizonte antropológico do momento histórico, a partir dos problemas, valores, expectativas e interrogativos dos homens e situações históricas de hoje. Somente neste preciso espaço cultural, que se torna critério hermenêutico fundamental, é possível fazer ressoar hoje o anúncio do Cristo como palavra chocante de Deus. (ALBERICH, 1975, p. 90, tradução nossa).

A partir desta base, objetivamos, com este artigo, precisar o lugar do anúncio ao interno do processo de evangelização da Igreja em contexto latino-americano. Levamos em consideração este tempo desafiador do terceiro milênio, agravado pela pandemia do Covid-19. Para isso, partiremos de um breve percurso de definição desta expressão, atravessaremos com um olhar fenomenológico algumas problemáticas atuais de nosso contexto e visamos chegar ao terceiro ponto, laçando luzes reflexivas sobre a realidade. 

No que se refere à bibliografia, procuramos manter um horizonte internacional. Mas, como não poderia ser diferente, prevalecerá a referência à cultura e à produção ocidental, marcadamente latino-americana e brasileira.

1. Olhar fenomenológico: problemática atual

Os elementos precedentes se tornam relevantes à medida que nos damos conta de que vivemos em uma realidade concreta, em um continente com mais de 420 milhões de pessoas. Enfrentamos dilemas sociais, institucionais e pessoais, dos quais não podemos negligenciar a existência para, a partir deles, falar de uma realidade evangelizadora. Com isso, referendamos a verdade de que o anúncio da Boa Nova não é “coisa abstrata”. Convivemos diariamente com “rostos sofredores que doem em nós” e é a partir desta realidade que a Boa Nova de Jesus ganha corpo concreto. Sabemos que a pandemia não é nosso único problema. O coronavírus foi um catalizador de graves problemas que já vivíamos e que pode continuar caso reine a indiferença no lugar do profetismo e da misericórdia.

1.1 O anúncio de Jesus parte da Experiência

Como afirma o Papa Emérito Bento XVI na Encíclica Deus Caritas Est (n. 1), no “início do ser cristão não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma pessoa que dá à vida um novo horizonte [...]” (DCE, n. 1). Nesse sentido, percebe-se que a base do primeiro ponto deste artigo nos leva a reafirmar a ideia de que na Sagrada Escritura, principalmente nos evangelhos, encontramos elementos que reforçam no cristão uma memória perigosa ou subversiva que deve conduzir os fiéis de hoje a experiências profundas e desconcertantes.

Diz-se isso porque, segundo Castillo, “existem duas classes de recordações: recordações tranquilizantes e recordações perigosas” (CASTILLO, 2015, p. 60). Essa distinção é importante para sabermos de que lado está o anúncio feito no contexto hodierno, marcado pela opressão política e, até mesmo, religiosa, semelhante ao contexto histórico de Jesus de Nazaré. 

Para Castillo, quando falamos de recordações tranquilizantes, trata-se de recordar o passado de maneira leve, como um tranquilo paraíso de paz que nos aparece com sentido nostálgico, isto é, “a recordação se transforma em ‘falsa consciência’ do passado, em ópio para o presente” (CASTILLO, 2015, p. 60-61). Isso posto e aplicado ao anúncio do Evangelho, incorre-se no grande perigo de fazer ver a vida de Jesus como ela não foi fazendo com que sejam reafirmadas posturas cristãs temerosas e satisfazendo a consciência daqueles homens e mulheres que não querem complicar suas vidas pela causa do Evangelho. 

Por outro lado, existe o outro tipo de recordação intitulado perigosa, desafiadora. Ela traz recordações que cintilam experiências passadas a partir das quais surgem novas e perigosas perspectivas para o presente. 

Em alguns momentos iluminam, com luz crua e deslumbrante, a problematicidade de tantas coisas, com as quais a muito tempo estivemos conformados, e a trivialidade de nosso suposto “realismo”. Rompem o rol das plausibilidades vigentes e apresentam traços verdadeiramente subversivos. (CASTILLO, 2015, p. 62).

Quando se aplica essa categoria de recordação a respeito do Evangelho, temos, portanto, um anúncio que nos faz reconhecer responsáveis pelos sofrimentos de muitas vítimas de nossa história[1], bem como nos impulsiona a “sujar as mãos” para que outras tantas não tenham o mesmo fim. Afinal, como diz o Papa Francisco: é melhor “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG, n. 49).

A partir disso, podemos nos questionar se atualmente a práxis eclesial realiza, em contexto Latino-Americano, um anúncio tranquilizante ou um anúncio inquietante e subversivo. O grande risco é filtrarmos o anúncio bíblico para anestesiarmos a consciência coletiva do grande mal que sofremos com a exploração vergonhosa dos pobres que, segundo a lógica de mercado, não são úteis para o sistema e por isso devem ser descartados. Sem contar o agravamento social causado pela pandemia em que “a desastrosa política de combate à doença, o negacionismo quanto à sua gravidade e o consequente descaso quanto às medidas cientificamente recomendadas, colocam o país no epicentro da pandemia” (CNBB, 2021, p. 6) e aumentam ainda mais o número de pessoas abaixo da linha da pobreza. 

Essas categorias nos colocam na mesma linha e metodologia de Jesus, pois estamos em países vulneráveis, vulneráveis porque são pobres e são pobres devidos às injustiças. Mas os povos que aqui habitam insistem em não se abaterem apesar das atuais injustiças governamentais e das linguagens religiosas que continuam colocando a culpa no pecado pessoal e se preocupando demasiadamente com aspectos de pureza moral, aquém dos problemas sociais. Todavia, também encontramos tantos profetas que, como monsenhor Romero dizia a camponeses horrorizados, sobreviventes de um massacre: “Vocês são o divino traspassado” e, da mesma forma, Ignácio Ellacuría que viu a realidade salvadorenha com os horrores causados pela guerra e que o povo suportava tudo isso. “Chamou esse povo de ‘o povo crucificado’” (SOBRINO, 2007, p. 86).

1.2 A inserção dos excluídos

Toda ação eclesial deve estar sintonizada prioritariamente com o movimento originário profético que animou o cristianismo. “Não é por acaso que a linha ardorosa e mais viva que vai estruturando a história bíblica situe sempre Iahweh do lado dos pobres e dos deserdados como seu defensor e salvador” (QUEIRUGA, 1993, p. 64). Fugir desse dado é subverter um ponto fundamental da espiritualidade bíblica, pois “só havia uma coisa capaz de sublevar Jesus, de suscitar sua ira e fazê-lo passar para o ataque: a exclusão ou desvalorização de qualquer homem ou mulher” (QUEIRUGA, 1993, p. 64).

A Igreja pobre e dos pobres, para ser Igreja de todos, sonhada por João XXIII, encontrou maior incidência na América Latina a partir da conferência de Medellín. Os bispos optaram “não só pelos pobres, mas por assumirem também o seu lugar social” (BRIGHENTI, 2021, p. 116). Assumindo essa posição de modo concreto, os bispos afirmaram: 

desejamos que nossa habitação e estilo de vida sejam modestos; nossa indumentária, simples; nossas obras e instituições funcionais, sem aparato nem ostentação. Pedimos aos sacerdotes e fiéis que nos deem um tratamento que convenha à nossa missão de padres e pastores, pois desejamos renunciar a títulos honoríficos próprios de outras épocas. (CELAM, n. 14,9).

Deste modo, era possível redescobrir o anúncio que superava as pregações e homilias, mas que requeria o testemunho de todos os pastores. Um testemunho que revelasse a ternura divina, mas uma ternura diferenciada:

ternura que corre como um rio para as terras baixas da pobreza, da dor e da marginalização; ternura que perdoa quando ninguém o espera e que salva onde todos condenam. Como não iria fazer Jesus sofrer o fato de Deus aparecer associado à opressão social, sacralizando o egoísmo humano? Como poderia tolerar que as vítimas da injustiça humana fossem convertidas, além do mais, em “pecadores”, isto é, em suposta vítimas da justiça divina? Isto significa a perversão mais horrível do rosto do Senhor, uma punhalada no próprio coração de sua bondade, uma negação demoníaca de sua santidade. (QUEIRUGA, 1993, p. 64).

Hoje, é mais do que necessário recordar essa opção pelos pobres que nós, enquanto Igreja, devemos testemunhar com a vida. Com a pandemia da Covid-19, realidades antigas, porém, “invisíveis”, vieram à tona e exigem uma postura da Igreja que prega o Evangelho do Reino. Trata-se de estar atentos aos “sinais dos tempos” hodiernos, aos novos loci theologici a partir dos quais se deve pensar o anúncio da Boa Nova de Cristo e, mais do que isso, colocá-lo em prática como nossa opção fundamental de vida, que é aquela da inclusão e jamais da exclusão, do descarte e da indiferença.

1.3 O locus theologicus em uma sociedade fragmentada

A reflexão elaborada a partir da presente proposta sobre o anúncio de Jesus Cristo, procura olhar o humano para além de sua realidade biológica, sociológica, jurídica, antropológica, cultural. Com todas essas dimensões soma-se uma outra, a realidade teológica (SEJ-CELAM, n. 3). Não é possível olhar o ser humano de forma reduzida, dando mais importância a uma área de sua consistência em detrimento de outra. Para entrar em contato com o “divino” no humano é necessário “entender sua psicologia, sua biologia, sua sociologia e sua antropologia com o olhar da ciência de Deus” (CNBB, 2007, n. 80). Esse olhar muda a relação de uma instituição religiosa com o ser humano, pois passa daquela necessidade de falar de um Deus que vem do alto ao reconhecimento de um Deus que é real dentro da pessoa, de seu modo de ser, “de um Deus alegre, dinâmico, criativo, ousado” (CNBB, 2007, n. 80).

Esse novo olhar provoca igualmente uma mudança no modelo de pensar e realizar a evangelização, pois compreende-se que não é somente o anúncio estático que transforma, mas o fazer revelar ou desvelar no humano sua sacralidade e, dessa maneira, se revelam um dinamismo e um compromisso que emanam de tal sacralidade. O dinamismo fundamental é olhar e perceber que se no horizonte está Deus, princípio e fim de tudo quanto existe, o horizonte da evangelização é o ser humano, à medida em que ele é um lugar teológico. 

Cada ser humano, em sua realidade individual, é nosso irmão e nele está “o prolongamento permanente da encarnação para cada um de nós” (EG, n. 179), afirma o Papa Francisco. Desse modo, apenas assumindo sua causa e servindo-o em suas necessidades, estaremos servindo o próprio Cristo. Daí o grande escândalo das inúmeras vidas que se perdem nos mares com as migrações todos os anos, dos países em guerra, da crise sanitária em nossa nação e em tantas outras situações ainda presentes em nossa sociedade nas quais o próprio Cristo continua sendo crucificado e muitos de nós a “lavarmos nossas mãos” em um individualismo doentio e mortífero. Por isso, todos, absolutamente todo ser humano é um lugar teológico em quem devemos aprender a reconhecer a manifestação divina.

2. Lançando luzes sobre a realidade

“A Igreja existe para evangelizar” (PAULO VI, 1975, n. 14), ou seja, para que o Reino de Deus se torne concreto neste mundo, contrapondo o reinado dos tiranos que ocupam o poder e oprimem o povo. O modo concreto da atuação eclesial é através da pastoral, “é em seu atuar que a Igreja plasma sua identidade e vai tecendo seu ser dinâmico, enquanto prolongamento da experiência pascal” (BRIGHENTI, 2021, p. 43).

Em um quadro de desgovernos – em âmbito federal, estadual e municipal –, de calamidade sanitária, de abusos de poder, de fome, violência e miséria é que somos convidados a propor “mais unidade e uma profunda e resistente união do coro dos lúcidos (...). O povo de Deus necessita de um compromisso e de mais comprometimentos”. (CNBB, 2021, p. 27). A pastoral é a forma concreta da ação em que se pode esperançar e organizar o povo a levantar sua voz no grito pela vida em abundância. É no movimento popular – e não populista – que a democracia se concretiza em todos os âmbitos de organização social.

2.1 A pastoral e o tríplice múnus gerador de esperança e utopia

A pastoral é o ser da Igreja neste mundo, é seu atuar, plasmadora de sua identidade terrena. Entendendo o agir eclesial, que vai além de ações com e para o povo, mas que se assenta sobre uma base concreta da qual emana força, mística e resistência é que teremos inspiração para ações de comunhão e não ações isoladas. Para isso, faz-se necessário recordar que o modo de a Igreja se revelar ao mundo é através do tríplice múnus pastoral:

O ser da Igreja, que se expressa em seu fazer na concretude da história, radica no tria munera Ecclesiae – o múnus da Palavra (pastoral profética), o múnus da Caridade (pastoral do serviço) e o múnus litúrgico (pastoral litúrgica) – em uma relação dialética de complementariedade, a partir do polo da caridade, a mãe das virtudes. Os três múnus são conferidos pelo Batismo a todo cristão que, por sua vez, se remete ao tríplex munus Christi – profeta, sacerdote e rei. (LG, n. 12). (BRIGHENTI, 2021, p. 43).

Nesse sentido, cada batizado, imerso no mistério de Cristo, é chamado a agir como Ele, a ter os mesmos sentimentos dele, as mesmas opções fundamentais. Isso implica em tornar a própria vida um anúncio que denuncia as injustiças, pois prega um reino de justiça; uma oferenda agradável a Deus, na oferta de si mesmo; e, por fim, em manifestar em sua vida a participação no reinado de Cristo, caracterizado pelo serviço e pela doação. Essa realidade só é possível através do alimento da Palavra e da Eucaristia, unido à vivência comunitária em que Cristo se faz presente. 

“A realização do tríplice múnus na vida pessoal e na comunidade cristã tem por finalidade tornar presente o Reino de Deus no mundo” (BRIGHENTI, 2021, p. 43-44). O Papa João Paulo II, na missa inaugural de seu pontificado, afirmou que “o II Concílio do Vaticano nos recordou o ministério de um tal poder e o fato de que a missão de Cristo – Sacerdote, Profeta, Mestre e Rei – continua na Igreja. Todos, todo o povo de Deus é partícipe deste tríplice missão”. (João Paulo II, 1987, p. 946). Com a participação de todos, a Igreja se mostra universal e se revela naquilo que é, ou seja, “é pela pastoral profética, pastoral do serviço e pastoral litúrgica, que a Igreja conforma o seu ser a seu fazer” (BRIGHENTI, 2021, p. 43-44).  Daí que acreditamos na atualidade do anúncio de Jesus Cristo, justamente nessa conformidade entre o ser o fazer da Igreja através de seus membros. 

Quem se deixa tocar por este múnus e dele faz parte anuncia com a própria vida. Sem cair no relativismo de que se evangeliza de qualquer forma, é na coerência, na autenticidade e no compromisso que se anuncia a Boa Nova de Jesus Cristo. O Papa Francisco afirma que “a alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus”(EG, n. 1). Esta alegria leva os cristãos a partilharem o Evangelho, mas, como Castillo, nos questionamos: “por que a utopia de Jesus se realiza só em casos determinados e em pessoas concretas, mas não chega a se tornar presente na sociedade como componente constitutivo de nossa cultura?” (CASTILLO, 2012, p. 197). 

Deduzimos daí que o Evangelho de Jesus “é mensagem que não serve para ser aplicada e vivida no arranjo social e, menos ainda, para impregnar e determinar a cultura” (CASTILLO, 2012, p. 204). Ele não se realiza plenamente, porque não foram todos os discípulos e nem toda a multidão que aceitou plenamente o anúncio de Jesus. Desse modo, não foram todos que se comprometeram a construir juntos o Reino de Deus. Em uma afirmação do Papa João Paulo II, se vê a necessidade do comprometimento pessoal na obra de evangelização.

Sem dúvida, a ordem de Jesus: “Ide e pregai o Evangelho” conserva sempre a sua validade e está cheia de uma urgência que não passa. Todavia, a situação atual, não só do mundo, mas também de tantas partes da Igreja, exige absolutamente que à palavra de Cristo se preste uma obediência mais pronta e generosa. Todo o discípulo é chamado em primeira pessoa; nenhum discípulo pode eximir-se a dar a sua própria resposta: ‘Ai de mim se não evangelizar’ (1Cor 9,16). (CL, n. 33).

A responsabilidade perante a novidade do anúncio é de todos. Nele, cada pessoa se encontra, ou, no mínimo, se confronta. Através da pastoral, em que o tríplice múnus se realiza, todo cristão contribui em ações que abarcam a pessoa inteira e todas as pessoas, contribuindo para uma salvação integral (GS, n. 45). No Brasil, a CNBB projetou a ação pastoral a partir de seis dimensões: comunitária, catequética, litúrgica, sociotransformadora, ecumênica e missionária. Este é o quadro de referência das Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil. Tais dimensões são um desdobramento do denominado tria munera Ecclesiae

A fé de cada crente é força transformadora que implica em estilo de vida renovado, onde o crente aprende a ver-se a si mesmo a partir da fé que professa. A figura de Cristo é o espelho em que descobre realizada a sua própria imagem. E, dado que Cristo abraça em Si mesmo todos os crentes que formam o seu corpo, o cristão compreende-se a si mesmo neste corpo, em relação primordial com Cristo e os irmãos na fé. (LF, n. 22). 

Portanto, é necessário ressaltar que, a partir do que foi exposto, a ação pastoral supera o amadorismo de uma ação improvisada, mas requer uma ação pensada, planejada e avaliada. Para responder às exigências locais e inserir as pessoas no dinamismo da fé, cada agente de pastoral deve se perguntar pelos objetivos e critérios de ação. Sem essa consciência, a eficácia da fé estará comprometida e a ação pastoral se tornará irrelevante para a comunidade. 

2.2 Do viver ao bem viver

Do item precedente chegamos a uma questão mais prática, ou seja, à necessária passagem do “viver bem” ao “bem viver”. Se em outros tempos, em nossa cultura os valores éticos eram vistos como principais fundamentos do bem viver, agora a comodidade e os prazeres oferecidos pela técnica se apresentam como mais importantes e atraentes. Como tudo é abarcado com o fenômeno da globalização, as mudanças de paradigmas são evidentes:

Oferece-se aos jovens um mundo onde o que era vital perdeu o sentido; onde se vão dissipando a integralidade do ser humano e o que é solidário, justo, sonhador; onde há uma acentuada carência de Deus, de Jesus, porque este mundo não preenche as “expectativas”; não há utopias, e a “felicidade” que se experimenta é uma felicidade dissimulada, passageira, fictícia, opaca, lúdica e complexa, própria de eventos, acontecimentos e fantasias que não provocam nem reflexão, nem satisfação. (SEJ-CELAM, n. 52).

Por isso, o anúncio de Jesus Cristo realizado de maneira coerente e concreto provoca, necessariamente uma mudança de paradigma, de um desejo de “viver bem” para o compromisso com o “bem viver”. “Trata-se de viver em harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os seres humanos e com o Ser supremo”, em uma harmonia que é integradora, “dado que existe uma intercomunicação entre o cosmo inteiro, onde não há excludentes nem excluídos, e que entre todos nós podemos forjar um projeto de vida plena” (DF, n. 12).

A paz que Jesus manifesta a seus apóstolos depois da ressurreição – cujas raízes dessa palavra já se fazem presentes no AT – é um convite a viver em harmonia e de modo confiante Nele. Shalon significa especificamente estar bem, buscar o bem de alguém. Isso quer dizer que o ser humano apenas vive a paz quando vive em harmonia na busca pelo bem, quando sabe o seu lugar na criação e reconhece igualmente o lugar do outro, enquanto seu semelhante e diferente, e o lugar de toda as demais criaturas, pois seu olhar para a realidade tem como base a própria relação com Deus, que o chama para cuidar e cultivar a terra (Gn 2,15), onde possa bem viver. 

Se o viver bem implica um pensar em si mesmo tirando proveitos e se aproveitando de privilégios, o bem viver vai por outra linha. Ele é caracterizado pelos ideais e pelos sonhos que se realizam em ações “em vista de”. Paul Ricoeur propõe “a ideia de uma finalidade superior que não deixaria de ser interior no agir humano” (RICOEUR, 1991, p. 210). É uma vida “com” e “para” o outro. Isso entra na perspectiva da saída ou de doação sinalizada pelo Papa Francisco.

Considerações finais

O que o anúncio de Jesus Cristo na práxis eclesial em contexto Latino-americano tem de novidade ou o que nos revela neste contexto marcado pelos desafios sócio eclesiais?

Em primeiro lugar, à guisa de conclusão, percebemos a necessidade de revisitar os aspectos históricos e bíblicos do anúncio, não para voltar a realizar um anúncio nas mesmas condições e metodologias daquele tempo. O “retorno às fontes” nos revela pérolas preciosas de conhecimento que se cristalizaram pela prática e pela reflexão. Tais pérolas nos ajudam a ler os tempos atuais, atualizando o conteúdo e a metodologia do anúncio de Jesus Cristo. Somente assim a ação eclesial vivenciará, testemunhará e edificará o Reino de Deus no mundo. 

Em segundo lugar, o anúncio kerigmático na ação pastoral exige uma organização pensada e respaldada pelos conteúdos da fé, sem se esquecer da realidade em que se está atuando. A abertura à novidade do Espírito Santo não coaduna com ações isoladas e improvisadas. Sente-se que, atualmente, a priorização da catequese bíblica como caminho de amadurecimento na fé, em vez da sacramentalização responderá melhor aos desafios concretos do contexto da comunidade eclesial, inserida na sociedade de seu tempo. 

Em terceiro lugar, deixemos as palavras do Papa Francisco como catalizadoras da necessidade do contínuo anúncio:

Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! (...) Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6,37). 

Nosso objetivo, portanto, foi o de realçar as interpelações eclesiais que se manifestam com a urgente tarefa de repensar constantemente a fonte, a metodologia, o conteúdo e os protagonistas do anúncio de Jesus Cristo ontem e hoje. O que exigiu observar as nuances características de cada uma dessas realidades ao longo da história, e, sobretudo, estarmos atentos ao hoje, para bem respondermos às suas interpelações com uma fidelidade criativa às Sagradas Escrituras e à Tradição, como nos impele o Espírito. 

Referências

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SÍNODO DOS BISPOS. (DF) Documento final. Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral, 2019. Disponível em: <http://www.synod.va/content/sinodoamazonico/pt/documentos/documento-final-do-sinodo-para-a-amazonia.html>. Acesso em: 23 jun. 2021.

SOBRINO, J. Onde está Deus? São Leopoldo: Sinodal, 2007. 

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Notas 

[1] Exemplo disso é o tráfico de pessoas, que segundo Francisco diz respeito a cada um de nós, se trata de uma tarefa urgente que os cristãos devem se esforçar por combater. FRANCISCO, Mensagem em vídeo do Santo Padre para o 8º Dia Mundial de oração e reflexão contra o tráfico de pessoas. Memória de Santa Bakhita 08 de fevereiro de 2022.