Walace Alexsander A. Cruz
Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Contato: professorwalacealexsander@yahoo.com
Resumo: O presente artigo se debruça sobre a temática da corporalidade, pensada à luz da tradição bíblica e da teologia luterana/protestante. Objetivamos a) apontar as influências do platonismo no pensamento cristão em relação a corporalidade; b) assinalar os danos causados à teologia cristã, em sua compreensão da corporalidade, em sua apropriação do platonismo; c) enumerar alguns aspectos bíblicos que dão base a uma legítima reflexão cristã sobre à corporalidade; d) analisar sob o viés da tradição protestante (Lutero, Melâncton e Bonhoeffer) como a sacralidade perpassa o horizonte da corporalidade. A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica, especificamente, a produção teológica protestante em sua abordagem sobre a corporalidade. Como produto da investigação, o artigo defende a sacralidade da corporalidade, portanto, um cuidado necessário consigo mesmo, assim como, com o outro; no mistério da Encarnação do λόγος, a corporificação de Deus sacraliza a corporeidade humana.
Palavras-chave: Jesus Cristo; Sacralidade; Corporalidade; Encarnação; Cuidado.
Abstract: The present article deals with the theme of corporality, thought in the light of the biblical tradition and Lutheran/Protestant theology. We aim at a) pointing out the influences of Platonism in Christian thought about corporality; b) pointing out the damages caused to Christian theology, in its understanding of corporality, by its appropriation of Platonism; c) enumerating some biblical aspects which give basis to a legitimate Christian reflection about corporality; d) analyzing from the point of view of the Protestant tradition (Luther, Melancton and Bonhoeffer) how sacredness pervades the horizon of corporality. The methodology used is bibliographic research, specifically, the Protestant theological production in its approach to corporality. As a product of the research, the article defends the sacredness of corporality, therefore, a necessary care with oneself, as well as, with the other; in the mystery of the Incarnation of the λόγος, the corporality of God sacralizes human corporeality.
Keywords: Jesus Christ; Sacrality; Corporality; Incarnation; Care.
Temos conhecimento de que nichos da filosofia grega influenciaram diretamente a elaboração do pensamento teológico cristão entre os séculos II-IV, desde os chamados “pais da Igreja”, de onde deriva a teologia patrística até a longa Idade Média que durou dos séculos IV até finais do XIV. Uma análise detida sobre a teologia patrística evidencia as contribuições da filosofia grega para a elaboração de uma sólida teologia cristã. São Basílio assinalava que assim como Moisés soube aproveitar de todo o arsenal de conhecimento oferecido pela cultura egípcia, ou como Daniel fez bom uso dos saberes proporcionados por Babilônia, ou ainda como Paulo bebera tanto da cultura do judaísmo quanto do helenismo, o cristão não apenas podia, mas deveria saber aproveitar-se daquilo que o mundo “pagão” tem a oferecer (SÃO BASÍLIO, 2012).
Os exemplos do que apontou São Basílio são as duas inteligências mais destacas do cristianismo na Idade Média, a saber, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. O primeiro, leitor de Platão, o segundo, de Aristóteles. Todavia, essa apropriação da filosofia grega pelo cristianismo acarretou sérios problemas para a teologia cristã e para a cosmovisão formada por ela. Neste trabalho, apontamos um deles, que nos ocorre como objeto de investigação, a saber, o modo de compreender a corporalidade.
Em linhas gerais, o platonismo tinha uma compreensão dicotômica do mundo, da realidade, do homem. No que tange à dimensão antropológica, Platão compreendia que o humano era alma e corpo. Sendo a alma a entidade real, supranatural, ideal, à procura da perfeição. Em contrapartida, o corpo era a entidade ilusória, pervertida, corrompida, maligna, desprovida de qualquer possibilidade de alcançar redenção. Grosso modo, para Platão o corpo se reduzia à prisão da alma, assim, redenção era a libertação da alma do claustro do corpo.
Nota-se que esta perspectiva teve séria influência sobre a elaboração da teologia cristã, assim como, tornou-se lentes por meio das quais se lidava ou ainda hoje, se lida com o olhar sobre a corporalidade. Comumente é ensinado em círculos cristãos[1] de estudos, sermões dominicais de cunho escatológico, e até mesmo em seminários de matriz fundamentalista, que a soteriologia cristã se funda na promessa de que Jesus Cristo regressará para levar a alma para o céu. Portanto, tal compreensão dicotomiza o ser humano, consciente ou inconscientemente diaboliza a corporalidade e beatifica a alma. Infere-se que salvação é salvação do corpo, e não salvação no corpo. Neste sentido, anuncia-se platonismo transvestido de cristianismo.
Não é acaso que durante a longa Idade Média o corpo era secundarizado, ou como assinalamos, diabolizado. Associava-se a santidade à vida monástica, reclusa, austera, rígida, severa. O corpo deveria ser reprimido de todas as formas, não era incomum autoflagelações, além das diversas formas de privações. A figura arquetípica do santo (a), era o monge ou a freira, reclusos em um convento, dedicados exclusivamente às orações, penitências, estudos e distantes do mundo, das corporalidades. Em suma, importava o cuidado da alma, a custo do sacrifício do corpo, entendido como meramente sede da tentação e do pecado.
Ainda hoje, esta mentalidade medieval permanece em diversos nichos cristãos. Urge um retorno à reflexão sobre uma teologia da corporalidade. Afinal, o que as fontes judaico-cristãs têm a dizer sobre o corpo? Como Jesus Cristo e a literatura neotestamentária lidam com a temática? De modo mais delimitado, o que a tradição protestante reflete sobre a temática da corporalidade? Analisemos.
O corpo tem origem sagrada porque é criação divina. Esta é a primeira informação/afirmação com a qual lidamos ao abrirmos o livro do Gênesis. Segundo a narrativa criacional “o Senhor Deus modelou o homem da argila do solo; soprou alento de vida em seu nariz, e o homem se transformou em ser vivo” (Gn 2,7). O relato criacional intui a sacralidade da corporalidade. Ora, se Deus lidasse de modo antipático, reprovável ou ainda diabólico com o corpo, por que ele mesmo criaria o homem constituído de corporalidade? Ao narrar a criação aos Colossenses, Paulo fala de uma miríade de seres criados sem corpo, de substância espiritual, suprafísica (Cl 1,16). Mas o ser humano é singularizado pela sua corporalidade, tanto quanto sua racionalidade.
A protologia judaica aponta a relação da sacralidade amalgamada com a corporalidade. Assim, lidamos com uma perspectiva holística e não dicotômica do ser humano. Quer dizer, não significa que a antropologia-teológica judaica não faça distinção de alma e corpo, mas que esta distinção não implica em oposição. Isto se torna mais luminoso no conjunto das narrativas da Bíblia Hebraica.
Na literatura que forma a Torá, Deus evidencia seu cuidado com o corpo ao se autorrevelar como aquele que cura seu povo (Ex 15,26). Se numa mentalidade grega, o findar do corpo seria encarado como um caminhar em direção à libertação, na tradição judaica, a cura do corpo, sua reabilitação e preservação são entendidos como dádiva e manifestação da bondade do criador. Nos livros sapienciais o trato com o corpo define e distingue o sábio do tolo, o bondoso do impiedoso “o homem bondoso faz bem a si mesmo, o impiedoso destroça sua própria carne” (Pv 11,17).
O ponto áureo da teologia da corporalidade no judaísmo está em sua escatologia. Na redenção judaica o corpo não é ignorado, desprezado, suplantado ou destruído. Pelo contrário, a redenção está necessariamente vinculada à corporalidade. O que fundamenta esta afirmação é justamente a fé na ressureição. Nos profetas a convicção da ressurreição está desvelada, segundo Isaías “os teus mortos [Jerusalém] e o meu cadáver ressuscitarão; despertai e exultai” (Is 26, 19). Daniel profetizou que “muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para a vergonha e nojo eterno” (Dn 12,2).
A fé judaica na ressurreição traz em seu bojo, na esperança da redenção aguardada, a importância da corporalidade no horizonte de sua espiritualidade. Da teologia da protologia à teologia da escatologia, o judaísmo não ignora ou diaboliza o corpo, pelo contrário, lida de modo cuidadoso, respeitoso e sacro com a corporalidade. Porque na protologia o corpo é produto da criação divina, lugar onde a vida acontece, por onde Deus perpassa e se manifesta; é do corpo que Deus se apropria para falar ao homem, para anunciar sua mensagem, para entregar suas leis. É no corpo onde a ética exigida por YHWH pode e deve ser cumprida.
Na escatologia judaica não identificamos nenhuma dicotomia, mas uma redenção que é integral, provavelmente, ao contrário da perspectiva platônica posterior, mais acentuada no corpo que na alma. A redenção alcança a totalidade da pessoa humana, sua integralidade, na manifestação da redenção, nada escapa-a, o inteiro do ser humano é abarcado. Assim, o corpo não é descartado, mas resgatado, restaurado e redimido.
A teologia neotestamentária vai além da teologia judaica em vários aspectos, inclusive em sua reflexão sobre a corporalidade. O ponto vernal é a fé no mistério da Encarnação. Para o judaísmo Deus criou o corpo, para o cristianismo, o Deus que criou o corpo, se fez corpo. Segundo o evangelho “o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e verdade” (Jo 1,14). A corporificação do Deus-Filho na história radicaliza a relação do cristão com a corporalidade. A Encarnação é fundamental para a redenção, ao tornar-se corpo, Deus se torna comum ao ser humano, e comunga com a humanidade; mas sua comunhão é salvífica na totalidade de tudo aquilo que abarca a integralidade da pessoa humana.
Há um paradoxo posto pelo cristianismo. A espiritualidade não está na superação da corporalidade, mas se dá na corporalidade. Contra o platonismo ortodoxo ou o gnosticismo situado no tempo do surgimento da comunidade de Jesus Cristo, a libertação não ocorre na transposição do corpo, mas exatamente no corpo. Contra a fuga do corpo, suposto caminho da redenção no platonismo, o cristianismo anuncia a entrada de Deus no corpo; portanto, a corporalidade humana foi território onde Deus esteve encarnado; o corpo então, é localização onde habita o divino, ponto de irrupção da redenção, porque Jesus Cristo foi ressuscitado, seu corpo foi glorificado. Todo diabolismo em relação ao corpo é, portanto, rechaçado.
Ora, se Deus tornou-se corpo, este não pode mais ser secundarizado ou ignorado. Com o advento da Encarnação o corpo torna-se lugar teológico relevante. No anúncio da corporificação do Deus-Filho, o evangelho cativa nossa atenção para a reflexão e a relação com a corporalidade humana. O múnus da fé cristã está no Deus encarnado. Logo, o eixo de sua relação com a corporalidade, para além do judaísmo herdado é inteiramente ressignificado. Para descobrirmos essa ressignificação precisamos refletir sobre o que as fontes alimentadoras da fé cristã nos dizem.
A importância do corpo está ressaltada no transcorrer de todo o evangelho, assim como, de toda a literatura neotestamentária. Segundo Lucas, Jesus disse que “a vida é mais importante que a comida, e o corpo, mais do que as roupas” (Lc 12,23). Tais dizeres nos aponta a valorização da corporalidade por Jesus Cristo. O corpo na antropologia jesuana é importante. Notamos ainda uma locução conjuncional correlativa, mais do que, o que acentua o valor do corpo. Sobretudo, no contexto de uma sociedade utilitarista e materialista, onde a coisificação do humano, da mercantilização do corpo é evidenciada, os dizeres do evangelho ganham ainda mais força. Aponta que o corpo tem valor que sobressalta ao das coisas. Se as coisas são utilizáveis, a objetificação do corpo é combatida, contestada; inaceitável. No ideário jesuano, o corpo é um território sagrado, portanto, deve ser cultivado.
O evento Jesus Cristo é soteriológico, mas também é ético. A salvação de origem transcendental, se imanou na história, para salvar a criatura perdida, mas também para ressignificar o mundo caído à luz do mundo escatológico redimido. Na ética de Jesus Cristo, o corpo precisa ser defendido contra toda violência. Para Jesus Cristo o corpo é território sagrado, assim, toda profanação é rechaçada. Caso notável é o da mulher flagrada em adultério. Contra aqueles que queriam apedrejá-la, Jesus Cristo fez frente, em defesa da mulher (Jo 8,1-11).
Salta ao leitor dos evangelhos a relação de Jesus Cristo com os corpos. Segundo as narrativas, ele tocava leprosos, permitia ser tocado por mulheres consideradas imundas pela sociedade à época, sentava-se em comunhão à mesa com sujeitos tidos por pecadores (cf. Mt 8,2-3; 9,10, 20-22; 11,18ss). Na contramão de uma sociedade cuja religiosidade era legalista e excludente, Jesus Cristo se colocava como acolhedor e insurgente.
Os relatos de curas, realizados por Jesus Cristo nos corpos apontam para a redenção escatológica esperada pela bimilenar fé cristã; sinalizam para esta redenção cristã e não platônica que engloba a totalidade da pessoa humana, portanto, seu corpo. Em resposta aos seus interlocutores, segundo Lucas, Jesus Cristo disse “se eu expulso os demônios pelo dedo de Deus, certamente a vós é chegado o reino de Deus” (Lc 11,20). Os milagres foram sinais escatológicos que ilustraram a redenção esperada. Na cura daquelas corporalidades aludia-se à redenção em sua universalidade, de todos aqueles que cressem em Jesus Cristo.
Em chave existencial e escatológica, notamos que as enfermidades têm ligação com o demoníaco, enquanto a cura com o divino. Ao “expulsar demônios”, Jesus Cristo destronava o domínio das trevas, e instaurava o reinado de Deus que desdiaboliza a condição humana. Na dinâmica do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo, ocorre a humanização da pessoa, mas vislumbramos um salto mais ao longe, no impulso da fé: a sacralização do humano que perpassa toda a sua corporalidade. Assim, em Jesus Cristo, curar o corpo é restaurar um território reservado à ocupação do sagrado.
Paulo, apóstolo de Jesus Cristo prossegue na esteira do pensamento jesuano. Aos de Corinto, Paulo aponta o corpo como território demarcado por Deus, segundo Paulo é dever cristão glorificar “a Deus com o próprio corpo” (1Cor 6,20). Àqueles que lidavam de modo descuidado ou vergonhoso com o corpo, Paulo exorta-os a tratarem o corpo de maneira “santa e honrosa” (1Tess 4,4). Certamente a sacralidade do corpo ganha seu ápice quando Paulo postula o corpo como “templo do Espírito Santo” (1Cor 3,16). Na mentalidade cristã, o corpo não é enclaustro da alma, mas morada do Espírito Santo. Na tradição platônica a redenção estava no escapamento do corpo, para Paulo, a redenção está no mistério da Encarnação onde Deus entra para dentro do corpo.
É a partir desta compreensão que Paulo reprova todo tipo de promiscuidade e as formas de vida levianas efervescentes no mundo europeu de seu tempo, não diferentes do dos nossos tempos. A prostituição, por exemplo, é condenada porque “quem comete pecado sexual, peca contra seu próprio corpo” (1Cor 6,18). Tradicionalmente, o pecado estava situado na relação humano-Deus, quer dizer, entre a criatura e o criador. Todavia, à luz da ressignificação da corporalidade, no evento Jesus Cristo, a sacralidade do corpo é tão radicalizada, que é possível pecar contra seu próprio corpo, assim como, profanar o corpo do outro, que nos ocorre como sacralidade inviolável.
A teologia de Martinho Lutero está claramente atravessada pelas questões pulsantes em seu tempo. Seus escritos evidenciam uma preocupação seminal com a polêmica sobre a justificação; é raro encontrar um escrito de Lutero em que não se perceba a temática da justificação pela fé de modo explícito ou implícito. Seus embates teológicos com o catolicismo do século XVI, assim como, o árduo trabalho de elaborar os pontos cardinais da nova comunidade de fé emergente, tomam-no quase por inteiro. Seria forçoso dizer que Lutero se dedicou a uma teologia do corpo, mas é prudente afirmar que o corpo aparece, ainda que discretamente, na teologia de Lutero.
Em seu clássico Tratado sobre a liberdade cristã (1520), no contexto da defesa da justificação mediante a fé na obra expiatória de Jesus Cristo, Lutero toca na relação do cristão com o corpo, para ele “é cristão cuidar do corpo” (LUTERO, 2019, p.34). Lutero tem em seu horizonte a cristologia. Jesus Cristo é o Deus que se fez carne, corpo, matéria. No evento Jesus Cristo lidamos com a irrupção de Deus na história, mediada pela corporalidade. Assim, tendo em Jesus Cristo seu paradigma ético-existencial, cabe ao cristão o cuidado deste corpo que lhe constitui enquanto pessoa humana; corpo com o qual Deus realizou o plano eterno, revelado na história da salvação.
Para Lutero a vida de fé deveria ser alimentada pela Sagrada Escritura, mas concomitantemente, pela experimentação do que está comunicado nela, quer dizer, a fé não se caracteriza, de modo reducionista, à aceitação de dogmas históricos bem elaborados, mas na relação do cristão com Deus, mediado pelo Espírito Santo enviado por Jesus Cristo (Jo 16-18). Lutero defendia que não bastava saber dogmaticamente que Jesus era o Cristo, mas este deveria ser “o Cristo para mim e para ti” (LUTERO, 2019, p.24). Mas, onde ocorria essa experimentação da fé? Na corporalidade. Na corporificação do Verbo, toda corporalidade humana tornou-se lugar do contado com a revelação. Não é saindo de si que o humano encontra Deus, mas prescrutando as profundezas de sua própria corporalidade, adentrando em sua interioridade. A experimentação de Deus, segundo Lutero, que claramente segue Santo Agostinho, não necessitava de uma saída, mas de uma entrada no mistério de sua própria corporalidade.
Lutero fala de uma submissão do corpo ao Espírito (LUTERO, 2019, p.26), mas ao contrário do que poderia afirmar aqueles que insistem nessa dicotomia que inferioriza o corpo, Lutero explica que tal submissão é no sentido de “reprimir a lascívia e a concupiscência do corpo” (LUTERO, 2019, p.27). Vai além, aponta que tal submissão ao Espírito, tem um objetivo não apenas pessoal, mas, sobretudo, relacional “sujeita seu corpo, para assim poder servir a outros” (LUTERO, 2019, p.34). Naquele horizonte da justificação, Lutero observa que “não rejeitamos boas obras; ao contrário, as aceitamos e ensinamos ao máximo” (LUTERO, 2019, p.32). Isto significa que a justificação humana é, em absoluto, e de modo exclusivo, mediante a fé em Jesus Cristo, não por quaisquer obras realizadas pelo ser humano; entretanto, isto não anula a importância e o dever de realizar boas obras. A diferença seminal em Lutero é que as obras não têm caráter salvífico, mas ético. Logo, a salvação é um mistério de fé alocado exclusivamente na graça de Deus revelada em Jesus Cristo, enquanto, as obras insurgem-se como um dever ético posto ao ser humano salvo, regenerado.
A corporalidade, portanto, é um entrecruzamento. Nessa espacialidade ocorre a graça que nos conecta com Deus, assim como, essa graça nos interpela à condução ética da vida com os outros corpos com os quais lidamos. A redenção de raiz transcendental, ao imanar-se na mundaneidade, nos interpela a um compromisso ético com todas as corporalidades que cruzam nosso caminho. Em Lutero a pessoa de Jesus Cristo se interpõe como paradigma absoluto que nos traz implicações em relação à concretude da vida e às relações humanas.
Ainda secundarizado ou mesmo esquecido no mundo protestante, Filipe Melâncton tem um papel fundamental na elaboração da teologia originária do protestantismo histórico. Ainda se questiona até que ponto foi Lutero que influenciou Melâncton ou Melâncton que influenciou Lutero. Uma coisa é certa, do pensamento teológico de Melâncton emergiu muito do que historicamente se identifica como teologia protestante. Foi ele que elaborou a famosa Confissão de Augsburg (1530), onde estão sintetizadas as principais doutrinas protestantes, seus fundamentos e razões, documento, aliás, que rege (caso da IELB[2]) ou no mínimo ilumina (caso da IECLB[3]) as principais denominações luteranas no Brasil, assim como no mundo.
Melâncton está no bojo da contextualidade histórica de Lutero, assim, são comuns a ambos as mesmas preocupações e ocupações teológicas, em Melâncton tal como em Lutero seria exagerado dizer que encontramos uma teologia sistemática sobre o corpo. Mas, garimpando sua teologia lidamos com alguns aspectos que tocam na corporalidade, portanto, são contributivas à nossa investigação e reflexão.
À exemplo de Lutero, Melâncton recusa o olhar dicotômico que inferioriza e demoniza o corpo. Assinala que a relação eu-Deus é diretamente atravessada pela relação eu-outro (LIVRO DE CONCÓRDIA, 2011, p. 188). Isto significa que em Melâncton é necessário o reconhecimento de si mesmo como um ser cuja dimensão engloba alma e corpo, daí exige-se alteridade, ou seja, o reconhecimento do outro como pessoa cuja sacralidade precisa ser respeitada.
A espiritualidade cristã, no entender de Melâncton, não é abstrata, imaginativa, hipotética. Ela ocorre na realidade concreta da vida. O Deus que por graça salva o ser humano pecador, na experiência da redenção “exige boas obras” (LIVRO DE CONCÓRDIA, 2021, p. 185). Mas, Deus salva o homem por graça, logo, as boas obras não têm uma exigência unicamente vertical, mas horizontal. Significa que é no outro que eu realizo meu dever ético. Não basta ao ser humano cristão ter fé, mas é imprescindível que este evidencie nas relações com outras corporalidades os “gestos e sinais da fé” (LIVRO DE CONCÓRDIA, 2021, p.179).
Melâncton nos abre a reflexão para o horizonte da práxis cristã, quer dizer, para pensarmos a aplicabilidade da fé sobre a qual refletimos. Para Melâncton amor é práxis (LIVRO DE CONCÓRDIA, 2021, p.190). A ideia romântica do amor na esfera da sentimentalidade é ultrapassada. Ainda que o amor abarque o sentimento, na tônica do evangelho, o amor não se reduz ao sentimentalismo. Para o cristão, à luz de Jesus Cristo, o amor é um compromisso absoluto de cuidado com o próximo, fundamentado na radicalidade do seguimento de Jesus Cristo, exigência que nos interpela ininterruptamente.
Nesse prisma, o amor não objetifica o outro. Mas tem no outro o objeto de seu radical comprometimento. A territorialidade que o outro é, pela lei do amor, não nos é permitido violar; só podemos adentrar a convite; convidados temos o compromisso de preservar como um novo Éden onde o cuidado é a regra fundamental. Assim, no pensamento protestante, em seu rosto melanctoniano, a graça que nos justifica também nos implica. A paixão da fé nos coloca simultaneamente as exigências da fé, dentre elas, ser-para-o-outro, como doação na imitação de Jesus Cristo que foi absoluta e plena doação.
Dietrich Bonhoeffer está entre os principais teólogos luteranos da contemporaneidade. Sua vida foi marcada pela defesa dos ideais evangélicos, no contexto de uma sociedade dilacerada pela monstruosidade do nazismo. Preferiu estar na Alemanha para morrer como mártir, do que ficar refugiado e seguro nos EUA. Àqueles que queriam poupá-lo, Bonhoeffer disse que se permanecesse na América sua vida seria a contradição de sua teologia (METAXAS, 2011).
É ainda cedo para dimensionar todo o alcance da teologia de Bonhoeffer. Ela já perpassa a teologia pública, política, eclesial, escatológica, ecológica, ecumênica e, certamente, a da corporalidade. Apesar de sua origem aristocrática e abastarda, Bonhoeffer se jogou ao mundo, viajou para diversos países da Europa, mas priorizava sempre estar com os pobres e marginalizados. Para Bonhoeffer “a relação eu-tu, é a relação cristã fundamental” (BONHOEFFER, 2021, p.37). Assim, para Bonhoeffer a comunhão com o ser humano, especialmente aqueles em condição de miserabilidade é inerente ao espírito cristão, deve ser comum para aquele que se põe no seguimento de Jesus Cristo.
Poucos teólogos lidaram tão concretamente com a dimensão da corporalidade como Bonhoeffer. Não no nível teórico e teológico abstrato, mas real e experimental. Conviveu com corpos que foram torturados, lidou com corpos posteriormente assassinados, e ele mesmo sofreu as torturas impostas pelo repugnante regime nazista, sendo por fim, enforcado, duas semanas antes da derrota dos nazistas e a libertação dos prisioneiros. Sua experiência redimensionou sua teologia. Cimentou-a. Enrijeceu-a.
Como é corrente na tradição luterana, toda teologia parte da cristologia. Segundo Bonhoeffer a Igreja é Cristo existindo em comunidade eclesial (BONHOEFFER, 2017). Jesus Cristo permanece na comunidade, por conseguinte, é plausível dizer, mantém-se na corporalidade. Para Bonhoeffer o Verbo que se encarnou num corpo singular, existencialmente continua encarnado na Igreja, seu corpo plural.
Eric Metaxas aponta que na teologia de Bonhoeffer notamos “a defesa do aspecto terreno da Encarnação, da fé cristã contra a ideia dualista da inferioridade do corpo em relação à alma ou espírito” (METAXAS, 2011, p.94). Bonhoeffer nega a dicotomia corpo-alma. Rechaça a ideia da inferioridade do corpo. Para ele, a despeito da distinção havia comunhão; o humano é uma totalidade indivisível, sua perspectiva é holística, logo, a redenção é integral. A corporalidade está no projeto da redenção escatológica.
Na antropologia teológica bonhoefferiana fica claro que “o conceito cristão afirma como eticamente relevante a pessoa concreta como um todo, com seu corpo e sua alma” (BONHOEFFER, 2021, p.37). Portanto, para Bonhoeffer o humano é uma integralidade que contém a comunhão de corpo e alma. A valorização do corpo tem destacado relevo para Bonhoeffer, segundo Eric Metaxas, nosso autor contestava as “heresias do dualismo gnóstico, da negação do corpo” (METAXAS, 2011, p.67).
Para João, o apóstolo, a negação da Encarnação, da corporificação do Verbo era sinal de que tal pessoa estava atravessada pelo “espírito do anticristo” (1Jo 4,3). O espírito do anticristo eclode a negação da pessoa de Jesus Cristo; de seu querigma, de seu programa ético para a existencialidade humana. Assim, negar a corporificação de Jesus Cristo é da natureza anticristã. No encalço desta mentalidade, para Bonhoeffer, negar a sacralidade da corporeidade humana, é inerente ao espírito do anticristo.
A apropriação que o cristianismo fez da filosofia grega de cunho platônico serviu-lhe para a elaboração e a solidificação de argumentos que o defendessem intelectualmente, no contexto de um mundo que exigia respostas da fé. Intelectuais da envergadura de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino são exemplos do êxito resultado do encontro entre cristianismo e platonismo. De outro lado, a infiltração da filosofia grega no cristianismo alterou sorrateiramente aspectos importantes da cosmovisão cristã, é o caso da compreensão sobre a corporalidade.
A ideia que remonta às escolas de mistérios, a Pitágoras e mais popularmente a Platão, de que o corpo seria a prisão da alma adentrou no arcabouço teológico do cristianismo. Assim, a corporalidade tornou-se inferiorizada, secundarizada, e até mesmo demonizada. Entretanto, uma investigação nas fontes judaico-cristãs, a saber, os dois testamentos bíblicos, acusam o equívoco histórico desta perspectiva. Na literatura da Bíblia Hebraica lidamos com a afirmação/informação de que o corpo é criação divina. Nos livros da Lei, nos escritos e nos profetas a sacralidade do corpo é revelada no cuidado que YHWH tem e exige com o corpo. Sobretudo, no anúncio da escatologia judaica se enfatiza a ressurreição, o que coloca em definitivo o corpo como objeto direto da redenção esperada.
Em Jesus Cristo, a corporalidade, na esteira do judaísmo profético, é entendida como realidade a ser cultivada, preservada, cuidada. A forma como Jesus Cristo protege os corpos marginalizados, como o da mulher surpreendida em adultério, ou o dos leprosos segregados pela sociedade etc., deixa evidenciado sua concepção sobre a corporalidade. Na literatura neotestamentária, Jesus Cristo é posto como paradigma ético-existencial absoluto. Logo, suas palavras, gestos e atos são programáticos, quer dizer, fincam os fundamentos e se interpõem como fontes geradoras que balizam e alimentam o dever ético daqueles que estão no seguimento de Jesus Cristo.
O múnus do querigma cristão está no mistério da Encarnação de Jesus Cristo. Ao afirmar a corporificação de Deus, quer dizer, que Deus-Filho se fez carne, o cristianismo ressignifica o valor da corporalidade. Deus-Filho se fez alma e corpo para salvar, redimir e servir o ser humano. Ser cristão é viver a imitação de Jesus Cristo. Logo, o seguimento de Jesus Cristo exige o compromisso ético com a integralidade do ser humano, a saber, alma e corpo. Não é espírito cristão comungar com quaisquer tipos de desrespeitos, abandonos e violências com os corpos. No Cristo crucificado estava representado todos os corpos crucificados da sociedade. Crer em Jesus Cristo crucificado coloca o cristão ao lado dos crucificados, não daqueles que crucificam.
A corporalidade ganha novos contornos na teologia de Paulo. Para ele, o corpo vive a tensão do paradoxo, é o lugar onde estão enraizadas as tentações e pecaminosidades, mas é também, território sagrado, templo onde habita o Espírito Santo. Desrespeitar o ser humano, sua alma, tanto quanto seu corpo, é profanar o sagrado. Paulo enfatiza o cuidado de si mesmo, a preservação do corpo como casa de Deus, assim como, acentua o cuidado do outro, de todos, especialmente dos corpos abandonados, maltratados, marginalizados.
A tradição protestante que remonta ao século XVI nega todo dualismo na leitura da pessoa humana. Para Lutero alma e corpo estão em condição de igualdade e dignidade. Portanto, é dever do cristão cuidar da integralidade de sua pessoalidade. À luz da cristologia, que acentua a Encarnação, a carne é revalorizada em Lutero; deve sim ser submetida ao Espírito, mas para fins disciplinares. Sobretudo, para ser adestrada para servir aos outros. Melâncton aponta a exigência ética posta ao cristão, enfatizando o amor como lei fundamental colocado por Jesus Cristo. O amor ao próximo, praticado na mediação da corporalidade, não é sentimentalismo, mas compromisso absoluto com o cuidado do outro.
Dietrich Bonhoeffer, por fim, constrói sua teologia alimentado muito mais pelas suas experiências na realidade bruta da vida, que primariamente dos seus anos de estudos em Berlim e Barcelona. No contexto abjeto do regime nazista lida com o nível mais brutal a que o ser humano pode chegar, da objetificação e do descarte das corporalidades. Nota o espírito do anticristo perambulando na história. O espírito do anticristo que nega a corporificação do Verbo na história. Portanto, toda negação das corporalidades é inerente ao espírito anticristão. No cuidado do próximo se manifesta o cuidado com a própria corporalidade assumida por Deus, que quer ser amado no amor ao próximo.
Por fim, consideramos que a teologia judaico-cristã nos dois testamentos põe em relevo a realidade da corporalidade. A tradição protestante corrobora e colabora para esta teologia bíblica historicamente abandonada. O seguimento de Jesus Cristo não significa apenas confessionalidade. É práxis, fé que crê, pensa, e se realiza na prática. O discipulado nos implica, nos interpela, nos exige. Ser cristão em suma, é comprometer-se com Jesus Cristo e com todo o ideário dele. Neste horizonte está a corporalidade. Deus-Filho se fez corpo para a redenção da integralidade da pessoa humana, alma e corpo. Jesus Cristo fez de sua Encarnação um ser-para-o-outro. Não é cristão quem ainda vive egoisticamente somente para-si-mesmo.
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LUTERO, Martinho. Escritos Seletos. Petrópolis. Editora Vozes, 2019.
LUTERO, Martinho.Uma coletânea de escritos. São Paulo. Vida Nova, 2017.
METAXAS, Eric. Bonhoeffer: pastor, mártir, profeta, espião. São Paulo. Mundo Cristão, 2011.
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[1] Aqui, nosso recorte está especificamente em círculos protestantes/evangélicos, onde está situado o horizonte de nossa reflexão neste artigo.
[2] Igreja Evangélica Luterana do Brasil, fundada em 1904, se assume como herdeira direta da Reforma Protestante do século XVI. Segundo seu site institucional www.ielb.org.br, em 2023, ano da publicação deste artigo, conta-se cerca de 250 mil membros e mais de 2 mil locais de culto.
[3] Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. De acordo com seu site institucional www.portalluteranos.com.br, a instituição remete ao século XVI, tendo sua chegado no Brasil no começo do século XIX. No ano vigente, conta-se cerca de 700 mil membros.