Cibercultura e antropologia cristã: luzes e desafios para se pensar o humano

Cyberculture and Christian anthropology: lights and challenges for thinking about the human

Elias Fernandes Pinto
Mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Contato: efpelias@outlook.com

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Resumo: Este artigo pretende apresentar alguns elementos da cibercultura, a grande característica do mundo atual, e a partir de temas selecionados da antropologia cristã propor um diálogo para apontar algumas luzes e desafios para se pensar o humano. Apresentaremos algumas características da cibercultura no âmbito das novas relações e da chamada utopia cibercultural com características de pós-humanismo. Em seguida, os temas da antropologia cristã que elegemos para o diálogo, a saber, o conceito de pessoa relacional, do ser imagem e semelhança de Deus, a corporeidade e a vulnerabilidade nos permitirão apontar um lugar para se dizer o que é o ser humano em sua complexidade. Neste diálogo, acreditamos que a fé cristã se enrique no confronto com a cibercultura e, ao mesmo tempo, apresenta alguns parâmetros para a compreensão do que é o ser humano e seu agir.  

Palavras-chave: Cibercultura; Antropologia cristã; Pessoa humana; Corporeidade

Abstract: This article intends to present some elements of cyberculture, the great characteristic of today's world, and from selected themes of Christian anthropology, propose a dialogue to point out some lights and challenges to think about the human. We will present some characteristics of cyberculture in the context of new relationships and the so-called cybercultural utopia with post-humanist characteristics. Then, the themes of Christian anthropology that we chose for dialogue, namely, the concept of the relational person, of being the image and likeness of God, corporeity and vulnerability, will allow us to point out a place to say what the human being is. in its complexity. In this dialogue, we believe that the Christian faith is enriched in the confrontation with cyberculture and, at the same time, presents some parameters for understanding what human beings and their actions are.

Keywords: Cyberculture. Christian anthropology. Human person. corporeality

Introdução

 A presente pesquisa tem como objeto a relação entre os desafios e possibilidades emergentes da cibercultura e alguns tópicos da antropologia cristã. Nos perguntaremos sobre as contribuições da antropologia cristã para se dizer o humano em divergências e continuidades com a cibercultura. O tema se tornou uma das grandes questões para o mundo contemporâneo, posto que a transformação cibernética é a principal característica do nosso momento cultural. O aporte teórico da pesquisa será principalmente o artigo de J. M. Duque, Experiencias religiosas postmodernas y antropología Cristiana e temas seletos de antropologia cristã em A. G. Rubio e J. I. González Faus. O método de pesquisa será o bibliográfico. 

Iniciaremos apresentado os desafios e possibilidades emergentes na cibercultura. Destacaremos, em primeiro lugar, os novos espaços de relação na cultura atual com suas questões e oportunidades. Em seguida, apresentaremos a utopia cibercultural a partir da cibernética. Esta se apresenta como fruto da capacidade criadora do ser humano. Muito nos interessa a definição do humano nesta utopia centrada na atividade mental, isto é, do ponto de vista da tecnologia da comunicação, como um padrão de informação. 

Para dialogar com essas questões, elegemos alguns temas da antropologia cristã: o conceito de pessoa, o ser criatura e imagem e semelhança de Deus, vulnerabilidade e corporeidade, ainda nesta linha, e o conceito de alma como forma do corpo. Estes temas escolhidos darão elementos mais amplos para se pensar o humano. Nesta relação de temas, emerge a relacionalidade corporal nas suas diversas perspectivas como lugar de humanidade.  

1. Desafios emergentes na cibercultura 

A transformação cibernética na contemporaneidade é a definição mais englobante da cultura atual. Esta constatação nos permite qualificar a cultura contemporânea como cibercultura (DUQUE, 230-231). A palavra cibercultura deriva do conceito de ciberespaço, que foi popularizado pelo escritor William Gibson em seu romance Neuromante[1]. Com o processo de expansão das Tecnologias de Informação e Comunicação, TICS, no final da de 1980, a palavra cibercultura definiu as experiencias e produções que se desenvolviam nesta nova dimensão da cultura contemporânea que tinha como ponto de gravidade as mediações tecnológicas (SANGUINETTI, 2011). 

Entre suas características primordiais encontramos a interatividade com as máquinas, a hipertextualidade e a conectividade, que facilita formas de comunicação e informação mediada pelos computadores. Claro, aquilo que começou como uma expressão para identificar certos grupos marginais de cientistas, tecnólogos, artistas, foi paulatinamente se estendendo à medida que a informatização da sociedade avançava. Hoje, a denominada cibercultura abarca a cultura mundial e se aprofunda em determinados grupos sociais e etários, em particular os jovens, dando origem às ciberculturas juvenis (SANGUINETTI, 2011).

Esta revolução cultural transforma profundamente a relação com o nosso entorno. Hoje, segundo Spadaro (2012, p. 15) somos marcados pela experiência da rede. A rede é um lugar onde frequentamos para estarmos com amigos, ler notícias, comprar, compartilhar interesses e ideias. É um espaço de experiência que está se tornando cada vez mais parte integrante da vida cotidiana de forma fluida e espontânea, isto é, a rede se apresenta, hoje, como um novo contexto existencial. 

Portanto, absolutamente não é um “instrumento” de comunicação que pode ser usado ou não; é um “ambiente” cultural, que determina um estilo de pensamento e cria novos territórios e novas formas de educação, contribuindo para definir também um novo modo de estimular as inteligências e de estreitar as relações, até mesmo um modo de habitar o mundo e de organizá-la. Portanto, não um ambiente separado, mas sim cada vez mais conectado com o da vida quotidiana. Não um “lugar” específico dentro do qual se pode entrar em alguns momentos para viver online, e do qual se pode sair para entrar novamente na vida offline (SPADARO, 2012, p. 15).

Corrobora com essa afirmação o pensamento de Bento: “O ambiente digital não é um mundo paralelo ou puramente virtual, mas faz parte da realidade quotidiana de muitas pessoas, especialmente dos mais jovens” (BENTO XVI, 47º dia mundial das comunicações sociais, 2013). Nos últimos anos, a Igreja tem se preocupado cada vez mais com a evangelização neste novo âmbito cultural em meio às novas tecnologias. Observa-se de forma clara essa tendencia no documento preparatório para o Sínodo sobre os jovens de 2018.

Hoje as jovens gerações são caracterizadas pela relação com as modernas tecnologias da comunicação e com aquilo que normalmente é chamado o ‘mundo virtual’, mas que também tem efeitos muito reais. Ele oferece possibilidades de acesso a uma série de oportunidades que as gerações precedentes não tinham, e ao mesmo tempo apresenta riscos. No entanto, é de grande importância que se preste atenção ao modo como a experiência de relações tecnologicamente mediadas estrutura o conceito do mundo, da realidade e das relações interpessoais (SÍNODO DOS BISPOS, Os jovens, a fé e o discernimento vocacional: Documento Preparatório, n. 2).

A verdadeira novidade do ambiente digital é sua natureza de social network. Ele permite que surjam relações entre o Eu e o Tu, mas as minhas relações e as tuas relações, ou seja:

Em rede, emergem não apenas as pessoas e os conteúdos, mas também as relações. Comunicar, portanto, não significa mais transmitir, mas compartilhar. A sociedade digital não é mais pensável e compreensível apenas através dos conteúdos. Acima de tudo, não há as coisas, mas as ‘pessoas’. Há principalmente as relações: a troca dos conteúdos que ocorre dentro das relações entre pessoas. A base relacional do conhecimento em rede é radical (SPADARO, 2017, p. 18).

No aspecto exposto, tratamos da cibercultura como o emergir de um novo espaço de relação. No entanto, a cibercultura é um fenômeno amplo e complexo. Duque (2018, p. 230) nos ajuda a pensar a utopia cibercultural a partir da tecnologia cibernética. Ele inicia a reflexão a partir de duas questões: a primeira, o desafio e a complexidade em aceitar que a tecnologia pode nos transformar em deuses. Esta ideia, Duque retira de Arlindo Oliveira (2017, não paginado), professor de ciência computacional e autor do livro Mentes digitais[2]A segunda questão, é a ideia também muito citada no livro Mentes digitais, que curiosamente, não há tecnologia suficientemente avançada que pode distinguir-se de magia (DUQUE, 2018, 230). 

A realidade significada por estes dois elementos, pretensão divina e magia, para Duque (2018, p. 231), pode ser denominada utopia cibercultural em sua formulação mais geral, pois, esse universo cultural é possível graças a tecnologia cibernética. Este universo pode ser situado como aberto à possibilidade infinitas, ser como deuses, e como mundo oculto, magia.

Em relação ao primeiro aspecto, pode-se dizer que se trata da capacidade criadora do ser humano a qual, ao longo da história, deu lugar a mais variadas utopias. Sobretudo na modernidade acentuou esta capacidade criadora do ser humano. Na pós-modernidade, este poder criador, em muitos casos, se transforma em poder pós-humano, pois se trata do poder de máquinas, incluindo máquinas inteligentes. Para fazer uma interface a com a teologia, Duque cita o teólogo Klaus Müller que afirma: 

As ciberfilosofias contemporâneas traduzem estes complexos motivos criacionais, na sua maioria de modo muito direto, em opções que se abrem com a dimensão da virtualidade. A ‘virtualidade’ significa, nesse contexto, algo semelhante a um ‘poder, quase divino, de construir o mundo’, que se alimenta da indiferenciação entre aparência e ser, entre realidade e ficção (MÜLLER, 2011, p. 113, apud DUQUE, 2018, p. 231)

Segundo Duque (2018, p. 232), a partir dos anos 80 e 90 do século XX, a crença no poder cibernético originou uma contracultura que tem defendido de forma clara a salvação pela tecnologia. Confirmando esta tese, o teólogo português cita Aupers e Houtman: “A sacralização da tecnologia digital […] perturba essa ‘divisão moderna’ cuidadosamente construída: tecnologia e religião não apenas se mostram compatíveis, mas a primeira até se torna um locus da própria salvação religiosa[3]” (AUPERS; HOUTMAN, 2010, p. 19, tradução nossa). 

Em relação ao segundo aspecto, a intuição de Duque vem da obra de Erik Davis, intitulada: TechGnosis: mito, magia y misticismo en la era de la información. Davis afirma que a inclinação da tecnologia avançada para a opacidade estava gerando o que se pode chamar de encantamento do mundo. A lógica da tecnologia se tornou oculta. Na tecnologia codificada, se a pessoa não tem o código ela se mistifica, e ninguém atualmente possui todos os códigos. 

As experiências religiosas cibernéticas se caracterizam pela virtualização da realidade. Mas, o que é “considerado como a verdadeira realidade é experimentado a partir da simulação digital da realidade analógica. A esta simulação acrescenta-se a dissimulação da simulação, o que leva à não distinção entre realidade digital e realidade analógica” (DUQUE, 2018, p. 233). Esta perspectiva nos permite pensar que a questão da salvação relacionada com a tecnologia possui uma visão de mundo que reedita as tradicionais ontologia e antropologia gnósticas. Alguns teóricos usam os termos Techgnosis, e Cybergnosis[4] para evidenciar estes aspectos. 

A ontologia gnóstica é fundamentalmente monista sob aparente dualismo. Nela, a realidade é única, embora sob aparência de diversidade. A individuação, inclusive a que acontece pela matéria, é igualmente aparente. No fundo, portanto, há somente uma realidade: a realidade ideal, virtual, oculta na aparente diversidade a qual precisa ser superada pelo processo de salvação, mediante a gnose e o conhecimento. Entendida desta forma, esta salvação nos retira diversidade material e nos conduz à unicidade do espírito. Esta unidade, os gregos denominaram pneuma tou kosmou, e os latinos traduziram por anima mundi (KENECHT, 1997, apud DUQUE, 2018, p. 233). A salvação coincide com o regresso progressivo da fragmentação do mundo ao uno e verdadeiro.

Este monismo de fundo faz com que o gnosticismo assuma uma aparente configuração dualista da superação radical entre espírito e matéria. Aparente porque a matéria, no caso do ser humano, o corpo, não faz parte do mundo verdadeiro. O monismo se traduz num dualismo prático que pretende abandonar as condições reais e históricas do ser humano, tornando-nos pretendidamente como Deuses. Toda essa reflexão resulta numa clara definição do humano centrada na mente, como puro processo de informação e conhecimento. Neste sentido, abre a possibilidade de um humano diferente, reduzido ou, se preferirmos, pós-humano. Abre-se, assim, as possibilidades até agora utópicas, posto que não há impossibilidades definidas. Portanto, temos aí no cenário pós-moderno a ideia das possibilidades infinitas para a humanidade (DUQUE, 2018, p. 234-235).

Ao mesmo tempo, a questão do status pessoal dos processadores inteligentes, as chamadas mentes digitais do futuro, está sendo formulada cada vez mais fortemente. Na verdade, ao definir o que é humano a partir de sua atividade mental – essa sim, entendida a partir do mecanismo – uma máquina inteligente não será radicalmente distinta de um ser humano. Mentes digitais e mentes biológicas só serão distinguidas pelo hardware, mas não essencialmente (DUQUE, 2018. p. 235-236).

Oliver Krueger (2005, p. 83) coloca a questão se na salvação pela tecnologia há alguma relação com o Deus cristão. Mas, o que vai acontecer com o corpo? Podemos falar, neste contexto de uma libertação gnóstica do corpo? É pertinente a definição de ser humano do pós-humanismo, na perspectiva do autor, que nos ajudam pensar estas questões: 

É bastante evidente que o pós-humanismo se baseia essencialmente nesse paradigma cibernético. Esse paradigma vê o ser humano do ponto de vista científico como uma máquina e do ponto de vista da tecnologia da comunicação como um padrão de informação [...]. De acordo com o paradigma cibernético, os seres humanos são máquinas de processamento de informações, das quais o programa imaterial com suas instruções específicas constitui a personalidade humana singular. A história das ideias nos permite compreender como os autores pós-humanistas perceberam a filosofia de Descartes. Enquanto o domínio da alma sobre o corpo vale apenas na prova de existência de Descartes, o pos-humanismo torna absoluto o princípio do pensamento – as funções de processamento de informação do cérebro humano: elas são a própria essência do ser humano (KRUEGER, 2005, p. 83)[5].

Apresentadas as questões que a cibercultura nos coloca, acreditamos, juntamente com Duque (2018, p. 236) que a antropologia cristã se apresenta como um lugar de diálogo e, ao mesmo tempo, de desafios e luzes para vivermos nesta nova cultura. A resposta a questão sobre o que é o ser humano, segundo a revelação cristã, sempre se renova, pois o ser humano vive sua capacidade criadora de mundo. Somente num debate antropológico sério encontraremos luzes para pensarmos possíveis caminhos para a Igreja em diálogo com a cibercultura. 

2. Antropologia cristã: luzes e desafios

Nesta secção, nos limitaremos a apresentar algumas luzes que a antropologia cristã nos oferece para o agir humano na cibercultura, bem como mostrar alguns desafios que a fé cristã precisa enfrentar cenário atual. Faremos um recorte de alguns temas fundamentais da antropologia cristã que nos ajudam a pensar as questões apresentadas: A pessoa humana, imagem e semelhança de Deus, como como ser de relações; a contradição humana de ser criatura e criador, e por fim, a partir de Duque, a importância fundamental da corporeidade para a fé cristã, por causa da encarnação, e o conceito de alma como forma do corpo. 

García Rubio (2014, p. 303-317) ao tratar do ser humano como imagem e semelhança de Deus, tema caro à antropologia cristã que expressa a singularidade do humano em relação à criação, afirma que no anúncio do conteúdo desse tema a tradição eclesial foi gestando o conceito de pessoa. Para o autor, o conceito de pessoa melhor exprime a compreensão cristã do ser humano e auxilia o diálogo-confronto com o mundo atual.

O conceito de pessoa não deve ser buscado na tradição grega a qual define o ser humano essencialmente como espírito. Nesta compreensão, o corpo que não faz parte da essência humana e tem somente a função de particularizar a universalidade do espírito. Pelo corpo, o ser humano se torna indivíduo, mas o corpo se torna uma limitação para o espírito e, por isso, o espírito precisa se libertar do corpo e reintegrar à universalidade que lhe é própria. Ao contrário, a visão do ser humano como pessoa é uma criação própria do cristianismo[6]. É o resultado da experiência dialógica na relação entre Deus e o ser humano. Trata-se da visão integral do ser humano, corpo, alma espírito, segundo a tríade paulina (1Ts 5,23). 

O conceito de pessoa exprime a ideia do ser humano como ser de relações. Jesus Cristo, o ser humano perfeito, é modelo de ser humano (GS, n. 22). Ele vive na abertura-disponibilidade ao Pai e no amor-serviço aos irmãos. “É a partir desta existência relacional de Jesus Cristo que as comunidades cristãs irão percebendo o que significa o valor e a dignidade de cada ser humano concreto” (RUBIO, 2014, p. 305). Portanto, na relação com Deus, com os irmãos e com a natureza, a criação, que o conceito de pessoa é gestado. 

O específico da pessoa aparece destacado quando se articulam adequadamente dois aspectos constitutivos do ser pessoal: a interioridade ou imanência e a abertura ou transcendência[7]. O conceito de pessoa diz que cada ser humano é único, irrepetível e insubstituível, mas simultaneamente relacionado com outros seres pessoais. Portanto, a pessoa é única, assim como relacional. Em sua constituição, o ser humano é chamado a construir sua própria vida de forma responsável e livre na relação, e de forma mais profunda, na relação com Deus. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que é na relação que o ser humano descobre sua identidade e forma sua personalidade. Assim, o ser humano, único, possui uma dimensão comunitária superando toda afirmação individualista.

Acreditamos que esta visão cristã do ser humano como ser de relações nos ajuda a perceber a grade oportunidade que cibercultura nos oferece para vivermos estas relações fundamentais. Ao mesmo tempo, nos coloca a responsabilidade da formação da nossa própria identidade nas relações virtuais-reis e a responsabilidade com a alteridade: os outros seres humanos, a criação, natureza e Deus. 

Para nos ajudar a pensar a questão da capacidade criadora do ser humano, o ser como deuses, vamos recorrer ao teólogo J. I. González Faus que aponta alguns limites para essa afirmação, pois o ser humano é criador, mas também criatura. Esta é a contradição humana que o teólogo catalão reflete na obra Proyecto de hermano: visión creyente del hombre. Nos limitaremos a abordagem teológica González Faus em relação ao tema de o ser humano ser, ao mesmo tempo, criatura e imagem Deus, isto é, uma criatura criadora. Pelo caráter breve deste artigo, não abordaremos os aspectos bíblicos e sistemáticos-históricos do tema[8].

Focaremos na novidade de González Faus para se pensar o conteúdo material do que a Bíblia chama de ser imagem de Deus. O ponto de partida é a criação como particularização, pois Deus não poderia criar o ser mesmo. Daí resulta que o ser humano é uma criatura particular com desejo de universalidade. “O ser humano é uma particularidade universal” (GOZÁLEZ FUAS, 1991, p. 98). Esta pretensão do ser humano, pode ser o seu pecado, pode ser sem sentido, isto é, paixão inútil sem se concretizar, ou pode ser base ou possibilidade débil, visto que é a marca de algum dom. E ainda, talvez algo de tudo isto ao mesmo tempo (FERNANDES PINTO, 2020, p. 32).

O ser humano é criatura, logo, um ser finito, inserido no tempo e no espaço. No entanto, está destinado à Plenitude incriada, infinita, superior a ele. Este destino que marca o ser humano, chamamos de Imagem de Deus, a qual não é mero embelezamento, enriquecimento ou possessão pacífica, mas pode implicar em mal-estar que assusta ou uma inquietude. No pensamento de Agostinho, uma inquietude perdurável (AGOSTINHO, Confissões, I,1). 

Esta ideia da antropologia cristã nos ajuda a perceber que a capacidade criadora do ser humano está inserida no tempo e no espaço, portanto, tem seus limites e precisa estar em sintonia com a criação de forma integral. A capacidade criadora precisa implicar na sustentabilidade da vida no planeta, pois o ser humano é essencialmente criatura, isto é, é vulnerável, mortal e pertence a este mundo como as demais criaturas. Tudo está interligado no mundo (LS, n. 16). Ainda, nos mostra que esse desejo de universalidade é concretizado não pelo ser humano mesmo, mas Deus, em Jesus Cristo, que o salva da morte eterna. 

Por fim, Duque (2018, p. 236-241), apresenta dois temas fundamentais para se pensar a relação da antropologia cristã com a cibercultura: a corporeidade e a tradição que afirma a alma como forma do corpo. Em relação ao primeiro tema, duque se inspira muito nas intuições E. Levinas, um judeu que, inevitavelmente, apresenta alguns fundamentos para antropologia cristã.

No cristianismo, devido à encarnação, a corporeidade se torna chave para compreendermos o que somos em relação à Deus. O corpo, como organismo carnal, incluindo a materialidade, faz parte do que somos na nossa individualidade. Para Duque (2018, p. 237), em certa forma divergente do pensamento de Garcia Rubio exposto acima, o ponto de partida corpóreo da noção de pessoa como sujeito único está em continuidade com a proposta aristotélica da individuação pela matéria e tem efeitos sobre a definição posterior da pessoa como substância individual. Esta tradição foi recuperada por São Tomás. Sem esta definição, o ser humano poderia ser pensado como pura circulação espiritual ou energética, uma espécie de humanidade global.

Exatamente a história pessoal do corpo próprio que permite que cada um seja uma pessoa única. A história do corpo próprio é inevitavelmente a história de suas relações de tal forma que a experiência do corpo próprio, base da experiência pessoal, só é possível pela mediação do corpo do outro. Este outro entendido como o mundo exterior ao sujeito e do outro humano como experiência especial na constituição do eu pessoal. Cada pessoa é o que é à medida em que está permanentemente exposta à alteridade, sobretudo a outro humano, como um corpo a corpo. 

A corporeidade se revela de modo muito especial na vulnerabilidade. As utopias humanas consistem exatamente no desejo de superar essa mesma vulnerabilidade. E, o corpo do outro diante de mim é exigência, à medida que se me expõe em sua vulnerabilidade. Nesta exposição mútua de vulnerabilidades onde se realiza o ser pessoal dos humanos. Portanto, “a antropologia cristã baseia-se, na exposição interpessoal dos corpos e não nos ideais desencarnados de uma humanidade utópica, global e abstrata, como uma espécie de essência eterna” (DUQUE, 2018, p. 239).

Neste sentido, a ideia de liberdade, fundamental na antropologia cristã se apresenta não como puramente espiritual, mas como corpo interpessoal, na exposição dos corpos, especialmente quando essa exposição se articula como responsabilidade. O ser humano é responsável pelo outro, na exposição concreta, entre corpos pessoais, concretos e particulares. Esta vocação à responsabilidade vem de Deus e está na origem da liberdade. Esta ideia está na emblemática e incômoda pergunta bíblica: “onde está o teu irmão” (Gn 4,9). Na exposição inter-humana se revela a vocação à liberdade, que é dom de Deus, que exige uma resposta. Inclusive, abre-se a possibilidade de uma não-resposta, isto é, a negatividade.

O segundo aspecto importante nesta leitura antropológica de Duque vem do tradicional conceito de alma como forma do corpo (SÃO TOMÁS, Suma Theológica, I, q. 75s). Destaca-se que São Tomás está se opondo ao conceito de Averróis, que afirmava haver uma só alma universal da qual participavam todas as almas particulares. Portanto, para Tomás não se pode pensar a alma como separada do corpo. Na realidade, a alma seria uma interpretação de outro modo do corpo. 

Na interpretação proposta por Duque que define o corpo humano – o corpo pessoal – como um corpo em resposta ao outro, em liberdade responsável, é justamente a “forma corporis”, que o permite falar da alma. “A alma seria, então, a dimensão pessoal - relacional, em responsabilidade livre – do corpo” (DUQUE, 2018, p. 240). Corrobora com essa afirmação o que diz a Congregação para a Doutrina da Fé: “a alma como o ‘eu’ humano (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Carta sobre algumas questões respeitantes à escatologia, 1979). Isso nos permite dizer que não há uma alma sem que seja corpo de exposição interpessoal. Precisamente nesta exposição interpessoal implica que cada pessoa seja única. Portanto, não há uma alma universal, mas almas em particular. Nesse sentido, a afirmação de que cada alma foi criada única por Deus significa:

Em sua singularidade, cada pessoa recebe seu ser pessoal no acontecimento da interpelação de Deus ‘onde está seu irmão?’ Esse seria justamente o acontecimento permanente da ‘criação’ de cada alma - ou seja, de cada pessoa, como corpo de resposta pessoal” (DUQUE, 2018, p. 240). 

Portanto, o corpo humano entendido desta forma nunca pode ser compreendido como uma máquina, pois a máquina embora possua processos de grandes semelhanças com alguns processos humanos jamais responderia na liberdade o chamado à responsabilidade do outro que se apresenta diante de mim, na carne de sua vulnerabilidade histórica. Portanto, ela não se identifica com um ser pessoal. 

Conclusão

Não há dúvidas de que a transformação cibernética é a grande característica do mundo contemporâneo. Por isso, pensar o humano neste novo entorno se apresenta como tarefa urgente e desafiadora para todas as ciências, e não poderia ficar de fora a teologia cristã. Os desafios emergentes da cibercultura se impõem. Evidenciamos o mundo digital, as redes, como novos ambientes de relação o qual não é mais um instrumento, mas um lugar de existência que modifica a própria experiência do que somos.

Em seguida mostramos, a partir da capacidade criadora do ser humano as utopias da cibercultura com características pós-humanistas que apresenta uma ideia de ser humano centrada na atividade mental eliminando a sua diferença radical com as máquinas. Nesta perspectiva, o corpo humano não pertence à sua essência, pois as mentes digitais e mentes biológicas só se distinguem pelo hardware, mas não essencialmente. A partir destes desafios emergentes, selecionamos tópicos da antropologia cristã que nos permitiram uma linguagem aproximativa para dizer o humano.

A partir de Garcia Rubio apresentamos o conceito de pessoa humana, específico da tradição cristã, numa dimensão relacional. González Faus nos ajudou a perceber que o ser humano é criador de mundos, mas ao mesmo tempo possui seus limites, pois o ser humano é um criador que também é criatura. Duque nos ajudou a perceber que a corporeidade é uma dimensão fundamental do ser humano. Ela nos insere no mundo de relações a partir da experiência da vulnerabilidade do outro chegando à nós mesmos. Nos constituímos como pessoa na relação de responsabilidade com o outro. O conceito de alma como forma do corpo nos ajudou a ver que não existe uma alma universal desencarnada, mas almas únicas e particularizadas.

Portanto, estes tópicos de antropologia cristã nos mostraram que o humano não pode ser resumido à sua atividade mental e ser identificado com as máquinas, pois embora possua processos semelhantes à elas somos chamados na liberdade à responsabilidade pelo outro que se apresenta na vulnerabilidade da vida histórica. O contato pessoal com os corpos, sobretudo os marginalizados e sofridos, são verdadeiros espaços de humanização. Por fim, fica como objeto de novos estudos a afirmação fundamental da profissão de fé cristã, a ressurreição da carne, que acredito que possa lançar novas luzes para esta temática.

Referências 

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Notas

[1] GIBSON, William. Neuromante. Lisboa: Meribérica, 1989.

[2] OLIVEIRA, Arlindo. Mentes digitais: A ciência redefinindo a humanidade. Lisboa: IST Press, 2017.

[3] “The sacralization of digital technology […] disturbs this carefully constructed ‘modern divide’: technology and religion do not merely prove in compatible, but the former even becomes a locus of religious salvation itself” (AUPERS e HOUTMAN, 2010, p. 19).

[4] Duque (2018, p. 233) cita: S. AUPERS – D. HOUTMAN, «A realidade suga. Sobre alienação e cibergnose»: Concilium 309 (2005) 83-94 (refiérase el proyecto de investigación, en el que los autores han colaborado [de 2004 a 2007], «Cyberspacesalvations. Computer Technology, Simulation, and Modern Gnosis», llevado a cabo por la Netherlands Organization of Scientific Research y orientado por Peter Pels) (DUQUE, 2018, nota 14, p. 233).

[5] It is quite evident that posthumanism is essentially based on this cybernetic paradigm. This paradigm sees a human being from a scientific perspective as a machine and from the perspective of communication technology as a pattern of information […]. According to the cybernetic paradigm, human beings are information processing machines of which the immaterial program with its specific instructions constitutes the singular human personality The history of ideas enables us to understand how posthumanist authors perceived Descartes’ philosophy. While the dominance of the soul over the body is valid only in Descartes’ proof of existence, posthumanism makes the thinking principle – the information processing functions of the human brain – absolute: they are the very essence of the human being (KRUEGER, 2005, p. 83).

[6] Para uma abordagem completa do autor, vide: 1.1 Conceito de pessoa: origem cristã (RUBIO, 2014, p. 304-307)

[7] No aspecto da interioridade, Rubio destaca a autoposseção, liberdade e responsabilidade e a perseidade. No aspecto da transcendência, o autor evidencia a abertura ao mundo, ao outro, e a Deus (RUBIO, 2014, 307-312).

[8] Para uma leitura completa, vide: GONZÁLEZ FAUS, 1991, p. 16-157.