Religiosidade e cultura popular na américa latina: A ontologia dos povos originários como condição de reflexão

Religiosity and popular culture in latin america: The ontology of original peoples as a condition for reflection

Albio Fabian Melchioretto
Doutorado em Desenvolvimento Regional pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB). Contato: albio.melchioretto@gmail.com


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Resumo: A sociedade do tempo presente é composta por uma multiplicidade de acontecimentos e eventos. Este artigo tem por desafio refletir duas condições, a religiosidade e a cultura popular na América Latina. As duas condições apontadas passaram por diversos processos de desterritorializações e foram transformadas radicalmente. A atualidade é marcada, entre tantos processos, pela secularização e pelo neopentecostalismo. Diante deste conjunto, objetiva-se investigar como as teorias da libertação contribuem para uma leitura atual da religiosidade e da cultura popular na América Latina. O objetivo será desenvolvido por análise bibliográfica visando a apresentação de uma cartografia social deleuzo-guattariana a partir dos conceitos mobilizados. A mobilização apontou três contribuições das teorias da libertação para o tempo atual, a educação como potência da esperança; resistência às ideias individualizadas proposta pelo secularismo e pelo neopentecostalismo e a retomada da ideia da comunidade. A construção dar-se-á a partir da recuperação de ideais dos povos originários que vivenciaram e sentiram o cheiro dessa terra. 

Palavras-chave: Ontologia; Cartografia Social; Cultura; Religião; América Latina. 

Abstract: The society of the present time is composed of a multiplicity of happenings and events. The challenge of this article is to reflect two conditions, religiosity, and popular culture in Latin America. The two conditions mentioned went through several processes of deterritorialization and were radically transformed. Today is marked, among many processes, by secularization and neopentecostalism. Given this set, the objective is to investigate how liberation theories contribute to a current reading of religiosity and popular culture in Latin America. The objective will be developed by bibliographical analysis aiming at the presentation of a deleuzo-guattarian social cartography from the mobilized concepts. The mobilization pointed out three contributions of liberation theories for the current time, education as a power of hope; resistance to the individualized ideas proposed by secularism and neopentecostalism and the resumption of the idea of community. Construction will take place based on the recovery of the ideals of the original peoples who experienced and smelled this land.

Palavras-chave: Ontology; Social Cartography; Culture; Religion; Latin America. 

Introdução

O texto apresentará uma relação entre religiosidade e cultura popular na América Latina. A aproximação não é simples. Por um lado, há disparidades conceituais que se aproximam, e por outro, a desterritorialização, que poderia mascarar uma reflexão mais apurada. De antemão, apresenta-se aquilo que o aquilo que ele não é, um texto disciplinar, então, pretende-se uma caminhada multidisciplinar para pensar a religiosidade com auxílio das ciências humanas. Segue três reflexões iniciais. 

Em primeiro, apresentam-se algumas questões problematizadores que auxiliarão na reflexão e serão respondidas, ou direcionadas, ao longo do texto. Lembrando do método socrático, são as perguntas que movem o mundo (PLATÃO, 1996). E a primeira é, por que pensar a América Latina? A pergunta não é inédita, Enrique Dussel (1993) o fez de maneira magistral. O autor mexicano é conhecido por suas contribuições para pensar a latino-americana através das “teorias da “liberación”. Aqui se adotará 1492: o encobrimento do outro, as quais são conferências proferidas por Dussel em Frankfurt, Alemanha, no ano de 1973. 

A segunda questão é, qual o lugar da América Latina? O desenvolvimento do lugar é do pensamento geográfico. Lugar implica a constituição de um território. Para Deleuze e Guattari (2010), o território é o lugar onde a vida acontece, o campo das multiplicidades que atravessam, formam e deformam corpos e ideias. Mesmo que não se saiba exatamente qual é a condição ontológica do ser e estar latino-americano. Ao se conviver num lugar geográfico chamado América Latina, há um tipo de convivência, mesmo que não assumida como condição para tal convivência. Então, perguntar-se sobre o lugar da América Latina no currículo faz muito sentido.

A terceira, e última questão problematizadora diz respeito, novamente, ao lugar, agora, dos povos originários.  A partir de Dussel (1993) torna-se impossível dissociar a invenção da América Latina com a vida dos povos originários.  A partir das questões mobilizadoras, este texto objetiva investigar como as teorias da libertação contribuem para uma leitura atual da religiosidade e da cultura popular na América Latina. Para o desenvolvimento do objetivo, adota-se a metodologia da cartografia social, dada a partir de Deleuze e Guattari (2010). É uma abordagem teórico-metodológica que mapeia os processos sociais, políticos, culturais e subjetivos que constituem as relações humanas em determinado contexto territorial. Essa abordagem se pauta na ideia de que os espaços sociais são produzidos por múltiplas forças e relações em constante transformação, e que a sua compreensão requer uma análise crítica e criativa das práticas e discursos que os constituem. 

Para o desenvolvimento do objetivo, o texto será dividido em outras quatro sessões. Na próxima, a segunda, apresentar-se-á o território conceitual de modo a localizar a base de discussão, os conceitos de religiosidade, cultura popular e América Latina. Na terceira seção, a partir da leitura de Dussel (1993), recupera-se a discussão em torno da América Latina como invenção. Na quarta seção observar-se-á o tempo presente, cartografando duas reterritorializações, a do fenômeno religioso, o qual são a secularização e o neopentecostalismo, e como este conjunto impacta na leitura do território. Por fim aquilo que se convencionou chamar considerações finais. 

1. O território conceitual

O território conceitual, se ocupará em cartografar os conceitos que mobilizarão o texto. Em síntese, os três são a religiosidade, a cultura e a América Latina. Entretanto, para territorializar cada um deles, há a necessidade de escavar algumas camadas, diante da multiplicidade que compõe cada um deles.

A religiosidade é uma dimensão fundamental da existência humana, se refere à busca inerente e inata do ser humano por uma conexão com o divino, e por uma resposta às questões fundamentais da vida. Para o teólogo Karl Rahner (1989), a religiosidade é a base da experiência religiosa e se manifesta numa variedade de formas, incluindo a participação em comunidades religiosas, práticas devocionais e espirituais e a busca de significado através da cultura e da arte.

A partir do teólogo alemão, entende-se que há uma diferença substancial entre religiosidade popular e religião institucionalizada. Rahner (1989) defende que a religiosidade não depende necessariamente da adesão doutrinal de uma instituição religiosa específica, mas sim, da relação pessoal e íntima com o transcendente. A religiosidade é uma dimensão universal e inerente à natureza humana, que não pode ser suprimida ou eliminada. Todas as pessoas, independentemente da sua formação religiosa ou cultural, podem, de certa forma, experimentar a presença do transcendente nas suas vidas.

 Por sua vez, a religião institucional é aquela que se baseia numa estrutura organizada, com regras, ritos e doutrinas estabelecidas por uma autoridade centralizada, e guiada por uma determina teológica ontológica. Rahner (1989) reconhece a importância da religião institucional como um meio de proporcionar caminho para a experiência religiosa, mas também, alerta para o risco de a institucionalização da religião acabar se sobrepondo à religiosidade popular e sufocando a experiência pessoal e autêntica da fé.

O debate proposto por Rahner (1989) auxilia no entendimento de alguns movimentos existentes na América Latina. Nos anos de 1970, a Igreja Católica Apostólica Romana deu início a uma discussão que representa um avanço histórico. Mobilizada pelo Vaticano II (1962-1965), há uma mudança de paradigma, de uma igreja exclusivamente hierárquica, para uma estrutura sinodal – ainda que tímida. Na América Latina, a partir do Documento de Puebla (1979), há um olhar para a religiosidade popular. Termos como, inculturação, tornam-se comuns em documentos institucionais católicos e atravessam os corpos em discursos. O movimento vem desde Medellin (1968), quando a Igreja Católica aponta a opção preferencial pelos pobres. 

Mesmo que sejam ações focadas apenas na Igreja Católica, a religião que transformou radicalmente a Pachamama, foi um movimento fundamental para entender duas condições. Primeiro, o olhar para o povo que vive na terra e entende a sua condição sociocultural, e por consequência a determinação de um itinerário institucionalizado. Não é apenas uma religião hierárquica que parte do céu para a terra, mas é a condição sinodal que a forma.  "Sinodal" é um termo que se refere a uma assembleia ou reunião de membros de uma igreja para discutir questões relacionadas à fé, disciplina, organização e missão da comunidade. A palavra vem do grego σύνοδος, que significa "caminhar juntos", indicando a ideia de que os membros trabalham em comunidade para alcançar os seus objetivos.

A segunda condição é o povo que ali-está, diante das práticas dos que ali-vivem. Evidente que a Igreja Católica latino-americana se diferencia das discussões da igreja Católica Europeia. Há uma condição geográfica que determina uma posição ontológica. Tema interessante, mas o foco será apenas a América Latina, e não discutir outros paradigmas. 

Antes de prosseguir na reflexão, um parêntese é oportuno. O texto se dá o direito de empregar o termo Pachamama para pensar a terra. Recupera-se o termo da etnia quíchua, da região andina. O termo é a junção de "pacha", que significa terra ou mundo, e "mama", "mãe". Assim, Pachamama pode ser traduzida como "Mãe Terra" ou "Mãe Mundo". Para Bittencourt (2021), Pachamama é uma força vital que permeia toda a natureza, onde é necessário cuidar e respeitar a terra para garantir a continuidade da vida, e entendê-la como um ente de direitos. A preocupação dos povos que habitaram, primeiro, aquilo que convencionou chamar América Latina não demonstraram preocupação em demarcar fronteiras. A ideia de continente não existia, e a relação com a Terra estava/está no campo dos afetos, logo Pachamama e não no campo dos espaços.

O segundo território conceitual que se ocupará é o de cultura. O termo foi originalmente relacionado com a antropologia. O pensador Clifford Geertz (1978) propõe refleti-la a partir da ideia de multiplicidade. A cultura, na antropologia novecentista foi tomada como ação descritiva que dava conta de explicar e entender hábitos, costumes e formas de vida, categorizando diversos grupos sociais. Na segunda metade do século XX, a partir da expansão da globalização comercial, entendeu-se cultura como uma proposta simbólica e menos descritiva. O conceito desmaterializou-se e possibilitou o entendimento simbólico daquilo que atravessa os territórios, pensando os fenômenos culturais por meio de uma acepção mais abstrata. Como, por exemplo, a partir da última década do Século XX, se discute a cibercultura (Lévy, 1999), como modo e experiência, e não como ação descritiva.

A cultura popular é uma forma de expressão simbólica compartilhada por um grupo social. Segundo Geertz (1978), a cultura popular pode ser entendida como um conjunto de práticas, rituais, tradições, crenças e valores que são criados e mantidos pelas pessoas comuns, de um determinado grupo social. Ela é uma forma de expressão coletiva encontrada em diversas manifestações, como danças, músicas, contos, lendas, festas populares, religiões e religiosidades, entre outras. Ela é fundamental na compreensão da sociedade e das suas relações sociais, uma vez que ela reflete as formas de vida e as experiências dos indivíduos em comunidade. Além disso, Geertz (1978) enfatiza que a cultura popular é dinâmica e está em constante transformação, sendo influenciada por diversos fatores, como macros mudanças sociais, políticas, econômicas e tecnológicas. E como ficaram os elementos históricos formativos? Então, quando Bittencourt (2021) recupera a reflexão da Pachamama e desenvolve o olhar para a Mãe Terra como um ente de direitos, ela apresenta a cultura popular como uma clara manifestação de um fenômeno. O olhar dos povos, que foram colonizados e vivenciaram uma transformação de costumes, da moralidade, das condições intelectuais que tinham um conjunto simbólico violentamente reterritorializado. Qual opção foi dada a esses povos? Tanto que o uso de Pachamama, reduziu-se há alguns territórios e o mundo ocidentalizado aceitou chamar América Latina.  

E por último, o território geográfico desta reflexão, a qual é a América Latina. E cabe a questão, o que é a América Latina? ela é uma condição existencial daqueles que sempre estiveram na terra ou, é uma reterritorialização daquilo que foi brutalmente ocupado por colonizadores? A partir da leitura de Dussel (1993) é possível afirmar que a América Latina é uma invenção eurocêntrica que apagou a diversidade existencial anterior a invasão. Os dois mapas, na sequência,  ajudam a entender.

Figura 1: Povos originários em 1400, mapa elaborado pelo autor.

Figura 2: Divisão política da América Latina, em 2023, mapa elaborado pelo autor.

O mapa da Figura 1 mostra os maiores povos que se teve notícias, antes da ocupação e da reterritorialização forçada pelos europeus. É possível notar que a construção sociocultural foi marcada por diferentes aspectos culturais (Dussel, 1993). Alguns destes povos mantinham relações de proximidade, enquanto outros, rivalidades históricas e conflitos. Uma característica que sobressai, são povos, de ancestralidades diferentes e costumes múltiplos e não há um povo uníssono que ocupa Pachamama, são processos e com focos diferentes de territorialidades. Em Pachamama cabem todos, inclusive o invasor.

O mapa da Figura 2 evidencia os países que compõe a América Latina atual. Países de origem hispânica ou portuguesa, na sua maioria. A grande diferença entre os mapas é que na Figura 1 há uma ideia de povos e de ocupação da terra, e na última figura, há uma noção de pertencimento radical à terra, ao ponto de organizar-se com linhas e muros imaginários, separando determinados povos, uns dos outros, e por que não, confinando-os. A noção de Pachamama, com a América Latina, é fragmentada, de acordo com interesses administrativos, formados a partir de uma lógica de “independência dos países”. Há teóricos que olharão para esta nova condição e entenderão que ela se manifesta em escala global. Então, ao afirmar que a América Latina é uma invenção do conjunto de transformações e de reterritorialzações que foram impostos a partir do momento que a lógica eurocêntrica do ocupante violentamente reprimiu aquele que aqui já estava. 

Ao perguntar-se o que é a América Latina? também se pergunta, que povo é este, e que cultura é que se vivencia na terra que se convencionou chamar América Latina? Diante da geografia do conhecimento, Dussel (1993) aponta que a Europa, viveu uma falácia do conhecimento único. “A história universal representa o desenvolvimento da consciência que o Espírito tem da sua liberdade e a evolução da realização que esta obtém por meio de tal consciência” (DUSSEL, 1993, p. 18). É um olhar linear da história, como se ela manifestasse a sua maior grandeza no modo ontológico europeu, desconsiderando, a constituição de outros saberes, para além daquele círculo, como se a Europa fosse um fim em si. Há outros elementos históricos além da linearidade e da razão eurocêntrica.

É esta constituição ontológica eurocêntrica que reterritorializou, de certo modo soberba, uma constituição cultural e religiosa produzida por diversos povos. Nas primeiras páginas de 1492: o encobrimento do outro, Dussel (1993) critica duramente o modo eurocêntrico, dado por George Wilhem F. Hegel, por apresentar a Europa como uma plena realização da razão. Se a plenitude é uma condição geográfica localizada, aquilo que está fora do espaço determinado é uma não-realização, ou ainda, a negação da completude. Quando a Igreja Católica, em Medellín (1968), e depois Puebla (1979), reconhece uma sinodalidade, ela mostra que há uma multiplicidade espiritual. É um avanço significativo diante das condições eurocêntricas que as religiões tradicionais assumiram historicamente. Ou ainda, é a periferia do euromundo saindo do estado de menoridade. 

Por ora, assume-se a premissa da América Latina como uma invenção eurocêntrica. Na seção, seguinte duas condições históricas auxiliarão na reflexão em torno deste movimento, o qual é a constituição dos povos originários e a imposição de uma lógica latino-americana dada a partir da ocupação da Pachamama pelos europeus. Esta constituição histórica ajudará a compreender como as teorias da libertação surgem e como elas podem representar uma perspectiva diferenciada, diante do contexto conservador das mudanças do Século XXI. Ou ainda, poderia ser, em certo grau, a resposta para a pergunta sartriana, “o que faremos com aquilo que fizeram de nós?”

2. O território histórico

A terceira parte ocupar-se-á com dois territórios históricos, os povos originários, enquanto uma condição existencial, e a invenção da América Latina. Para refletir sobre este território parte-se de Dussel (1993). Segundo o pensador, a modernidade é marcada por uma visão eurocêntrica que nega a diversidade cultural e submete as culturas não-europeias a um processo de assimilação. Para o filósofo, a modernidade europeia se construiu sobre a base da colonização e da exploração das culturas não-europeias, e essa história de opressão continua a afetar as sociedades latino-americanas até hoje. Então, são condições subalternas. Pensar a religiosidade e a cultura popular na América é fazê-lo do olhar de submissão e de sujeição histórico.

De acordo com Dussel (1993), a cosmovisão dos povos originários oferece uma crítica radical à modernidade eurocêntrica, questionando os seus valores e práticas. Segundo o autor, essa crítica não se limita a uma mera negação da modernidade, mas aponta para uma nova forma de pensar e de agir no mundo. Dussel destaca que a visão de mundo dos povos originários se baseia na relação harmoniosa entre a natureza e a sociedade, em contraste com a visão ocidental, que separa e hierarquiza esses dois domínios. Para ele, a valorização da natureza e a busca por um equilíbrio entre os seres humanos e o meio ambiente são fundamentais para a construção de uma sociedade justa e inclusiva. Elemento mais importante que a delimitação de terras, como se viu na Figura 1.

A cultura dos povos originários destaca-se na capacidade de oferecer uma crítica a cosmovisão eurocêntrica e contribui para a construção de outro pensar e de agir no mundo, um ser ontológico com elementos próprios. Para Dussel (1993), a cultura dos povos originários é marcada pela diversidade, coletividade e pelo respeito à natureza, valores que contrastam com a homogeneização, o individualismo, e, a exploração da natureza que caracterizam a modernidade eurocêntrica. A Pachamama é pensada como um ente de direito, como recorda Bittencourt (2021). Voltando a Dussel, ele enfatiza que a valorização das culturas não-europeias é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva ao permitir uma crítica às estruturas sociais e políticas dominantes e uma abertura para a diversidade cultural. Então, poder-se-ia provocar que a discussão em torno de uma cultura popular e religiosidade da terra que nos cerca deveria considerar o que houve antes da América Latina. Não há o tempo presente na Pachamama.

Os povos nomeados na Figura 1 são alguns do que ocupavam estas terras, e não se reduzem a este número. A questão vai além, da perspectiva de nomear os povos. O primeiro passo estaria na ação de reconhecer a lógica de desterritorialização que os povos originários foram submetidos. Dussel (1993) argumenta que a teoria da libertação considera as perspectivas dos povos originários e de outras culturas não-europeias, de modo a evitar a reprodução dos modelos de opressão e de linearidade que caracterizam a modernidade eurocêntrica. Enfatiza que a teoria da libertação não pode ser uma simples transposição dos modelos teóricos europeus para a realidade latino-americana, mas deve ser construída a partir das lutas e das experiências concretas desses povos, apontando um modo de original de pensar. A teoria da libertação é uma teoria universal, que não se limita a uma única cultura ou a um único grupo social, mas com pauta na solidariedade e na justiça. 

O silenciamento posto caminha com a invenção de algo. O território destituído é revestido de possibilidades. Dussel (1993, p. 37) argumenta que a construção da ideia de América, como um continente distinto da Europa, esteve marcada por uma série de mitos e estereótipos que contribuíram para a justificação da colonização e da dominação dos povos indígenas e africanos. Segundo o autor, a ideia de América como um “outro” da Europa, foi construída a partir de um processo de negação e de exclusão da história e da cultura dos povos originários. Dussel enfatiza que essa invenção da América como um “outro” foi um processo de ocultamento da presença e da voz desses povos na história do continente.

A invenção da América como um "outro" da Europa esteve ligada à construção do mito da modernidade, que postula a superioridade da civilização europeia sobre as demais culturas do mundo. É a ideia de linearidade que Dussel (1993) crítica em Hegel. O mito da modernidade foi uma das principais justificativas para a colonização e a exploração dos povos colonizados, uma vez que ele permitia a legitimação da superioridade cultural, política e econômica dos europeus sobre esses povos, justificando um processo euro-civilizatório. Dussel argumenta que a crítica a esse mito da modernidade foi fundamental para a construção de uma história e de uma cultura verdadeiramente universais, que se baseiem na exclusão e na negação dos povos colonizados. Daí o genocídio dos povos originários e dos povos africanos em diáspora.

Dussel (1993) enfatiza a importância de uma crítica ao eurocentrismo e à invenção da América como um "outro" da Europa para a construção de uma teoria política e ética verdadeiramente universal. Segundo o autor, essa crítica implica o reconhecimento da diversidade cultural e da pluralidade de vozes e perspectivas que existem no mundo, subjugados ao longo da história da colonização, como fontes de inspiração e de resistência para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Para o autor, a superação do mito da modernidade e da invenção da América como "outro" da Europa é fundamental para a construção de uma teoria política e ética que considere a diversidade cultural e a pluralidade de vozes e perspectivas que existem no mundo.

O autor argumenta que essa invenção da América esteve ligada à exclusão e à negação da história e da cultura dos povos originários e à construção do mito da modernidade eurocêntrica. Dussel enfatiza a importância de uma crítica a esse mito e à invenção da América como um “outro” para a construção de uma teoria política e ética verdadeiramente universal e inclusiva, que considere a diversidade cultural e a pluralidade de vozes e perspectivas existentes no mundo.

3. O território do tempo presente

Um dos fenômenos do tempo presente é uma mudança de comportamento social diante do fenômeno religioso. Para pensar este conjunto de transformações do tempo presente, Mariano (2005) evidencia que há duas características fundamentais que olham para a religião institucional como um lugar de reterritorialização. Nos seus estudos, o autor dedicou-se em analisar o crescimento das igrejas neopentecostais e as suas implicações para a sociedade latina. Este movimento está associado ao secularismo, o qual é uma das tendências da contemporaneidade. O secularismo é marcado pelo enfraquecimento da influência da religião institucional nas esferas pública e privada. O secularismo tem sido impulsionado pelo processo de modernização e pela crescente pluralização religiosa nas sociedades ocidentais.

Esse processo é observado em diversos países nas últimas décadas, e tem sido apontado como um fator determinante para a queda do número de fiéis nas religiões institucionais. O fato tem maior impacto na Europa e América Anglo-saxônica, mas, à medida que os anos avançam, ele também, adentra nos demais cenários. Uma das condições do secularismo é a crescente autonomia do indivíduo em relação às instituições religiosas e ao Estado. Com o avanço da educação, do conhecimento científico e da tecnologia, as pessoas têm se tornado mais críticas e reflexivas em relação às verdades dogmáticas e às normas morais e éticas impostas pelas religiões. Isso leva muitos indivíduos a questionarem a sua filiação religiosa, ou, a se tornarem indiferentes ou ateus. 

Além disso, para Mariano (2005), o secularismo também foi impulsionado pelo aumento da diversidade religiosa e manifestações contraculturais nas sociedades modernas. Com a globalização e a migração de povos, as religiões tradicionais têm perdido a sua hegemonia e muitos indivíduos têm se identificado com outras formas de espiritualidade ou de visão de mundo. Isso leva a um enfraquecimento das religiões institucionais e a uma maior valorização da liberdade religiosa e da tolerância. Surge uma nova perspectiva cultural e de religiosidade, mas ela vem deslocada daquilo que já foi. 

Com a chegada dos europeus, muitas sociedades pré-colombianas foram subjugadas e dominadas por meio da força militar e da imposição de valores e costumes europeus. Além disso, as religiões e práticas espirituais dessas sociedades foram consideradas pagãs e, portanto, alvo de perseguição e repressão pelos colonizadores. Então, a formação cultura que se há, ou que floresce diante do secularismo é um fenômeno aquém das tradições e raízes que já compuseram a Pachamama. Dito isto, olhar-se-á para o neopentecostalismo

É uma vertente religiosa que surgiu no século XX e que tem se popularizado em todo o mundo, principalmente em países de maioria cristã. De acordo com Mariano (2005), o neopentecostalismo é uma forma de religiosidade que se destaca pela busca por bênçãos materiais e pelo uso de práticas rituais e tecnologias midiáticas para disseminar a fé. Preocupado mais com uma aparência, que uma teologia — no sentido estrito do termo. Essa ênfase na prosperidade material é um dos principais atrativos para os fiéis, que avistam na religião uma forma de superar dificuldades financeiras e alcançar o sucesso profissional, base da chamada teologia da prosperidade.

A ênfase na prosperidade material é uma característica marcante do neopentecostalismo, um dos principais atrativos para os fiéis. A teologia da prosperidade ensina que Deus deseja que os seus seguidores sejam prósperos e bem-sucedidos financeiramente, e que a fé pode ser usada como uma ferramenta para alcançar o sucesso financeiro. Isso significa que, para muitos fiéis, a religião não é apenas uma questão de salvação espiritual, mas também de realização material. Uma aproximação da lógica do capital para a vivência da religião. 

O crescimento do neopentecostalismo também se deve à sua capacidade de se adaptar às mudanças culturais e sociais. Segundo Mariano (2005), o neopentecostalismo é uma religião que valoriza a experiência pessoal do fiel e se utiliza de elementos culturais locais para se estabelecer em novos territórios. A secularização da fé. 

Outro aspecto que marca o neopentecostalismo é o papel dos líderes religiosos, que desempenham um papel central na organização e difusão da religião. Para Mariano (2005), esses líderes são vistos como porta-vozes de Deus com grande influência sobre os fiéis, tanto na esfera religiosa quanto na política e na sociedade em geral. Essa liderança carismática e hierárquica é uma das características que diferenciam o neopentecostalismo de outras vertentes religiosas. Em vez da sinodalidade, a fé representada pelo líder local. 

A teologia da prosperidade, presente no neopentecostalismo, pode ser correlacionada com o capitalismo, por enfatizar a busca por bênçãos materiais e o sucesso financeiro como sinais de bênção divina. Segundo Mariano (2005), essa teologia “liga a prosperidade material à fé religiosa” (p. 120), e propõe que a busca por riqueza seja uma forma de demonstrar fé e obter a aprovação divina. Essa ideia está em sintonia com a lógica capitalista de acumulação de riqueza como um sinal de sucesso e prestígio na sociedade. Fenômeno criticado por Dussel (1993) e denunciado nos Documentos de Medellín (1968) e Puebla (1979).

Além disso, o neopentecostalismo utiliza práticas empresariais e tecnologias midiáticas para promover a religião, o que também está relacionado à lógica capitalista de marketing e propaganda. De acordo com Mariano (2005), as igrejas neopentecostais utilizam “recursos de propaganda e publicidade, com profissionalismo e métodos empresariais” (p. 122) para atrair novos fiéis e consolidar a sua posição no mercado religioso. Essa relação entre neopentecostalismo e capitalismo pode ser problemática, pois a busca por bênçãos materiais pode levar à exclusão dos mais pobres e marginalizados, que não têm as mesmas oportunidades e recursos para alcançar a prosperidade desejada. Além disso, a transformação da religião num negócio pode levar a uma mercantilização da fé, no qual a busca por lucro e poder substitui a busca por uma espiritualidade autêntica e comprometida com a transformação social.

Considerações provisórias e recomendações

O objetivo do texto foi investigar como as teorias da libertação contribuem para uma leitura atual da religiosidade e da cultura popular na América Latina. As contribuições teóricas mobilizam outras questões diante do movimento reflexivo. Para tal, apontam-se três recomendações.

Primeira recomendação, a educação como potência da esperança. A América Latina, como está hoje, possui uma dívida histórica, primeiro com os povos originários, como já se anunciou nas entrelinhas deste texto, povos múltiplos e diversos, com concepções ontológicas bem definidas, que foram exterminados num genocídio imposto e orquestrado pela ocupação exploratória eurocêntrica. O texto omite-se dos povos múltiplos e diversos em diáspora africana, que além do genocídio, sofreram com mais de três séculos de escravidão. Foram sequestrados e desterritorializados radicalmente. A escola, enquanto lugar de educação, não é responsável pela dívida histórica, mas é potência de esperança e campo de transformação social.

Com estes dois elementos históricos pergunta-se sobre a importância de ensinar na terra que aqui está. Terra, que por sua vez, não pode se reduzir a um seguimento de diretrizes e normativas de ensinar e aprender que desconsidera a herança histórica sistêmica. Urge sentir o cheiro da terra, com sentido, perceber as grandes questões e as cicatrizes apresentadas no tempo presente. Sarar um passado doente para construir uma leitura presente/futuro de mundo sadia. Carregar a esperança, e não reproduzir a violência, o armamentismo ou experimentos neoliberais. Senão, o que se chama de cultura ou religiosidade popular é qualquer coisa, menos algo próprio da terra. 

Segunda recomendação, resistência às ideias individualizadas proposta pelo secularismo e pelo neopentecostalismo. As teorias da libertação surgem na América Latina como um grito diante da opressão. Primeiro pelo sequestro das democracias e depois pelo olhar da comunidade como possibilidade. Essa teoria visa lutar contra a opressão e a injustiça social, especialmente em relação aos mais pobres e marginalizados da sociedade. Ela surge como uma resposta à opressão de um tempo. Para retorná-las ao debate urge considerar que as condições do tempo presente são outras. Mas, a massa de desiguais produzido pelo neoliberalismo continua.

Busca-se uma transformação social profunda e a reconstrução de uma sociedade mais justa e igualitária. O secularismo é decorrência explícita de um modelo econômico que gera desigualdades sociais e por consequência uma margem de alijados de direitos. O neopentecostalismo reforça uma religião da individualidade e da prosperidade de si. A perspectiva de comunidade, sustentada pelas teorias da libertação, pautam-se na construção de um projeto coletivo de transformação social, que envolva a participação ativa de todos os setores da sociedade. Uma volta ontológica a Pachamama.

O que se recomenda não é uma retomada de décadas passadas, mas a recuperação de elementos que permitam repensar a história do tempo presente. Uma sociedade que pensa a participação ativa e a construção coletiva consegue reconhecer os elementos culturais que lhes são próprios. Enquanto as condições do secularismo e do neopentecostalismo empurram o território para vivenciais globais e da ordem do negócio. Qual manifestação cultural estas duas condições reproduzem, senão a manutenção linear da razão eurocêntrica, e agora também, estadunidense? Pensar a história não é partir da data do conquistador e ignorar tudo aquilo que houve antes dele. Não se faz Brasil, ou América Latina, sem os quíchuas, tupis, mapuches, tupinambás, incas, guaranis e tantos outros que poder-se-ia nomear. 

Terceira recomendação, a retomada da ideia da comunidade. Ampliar a noção de cultura popular: muitas vezes a ideia de cultura popular, e por consequência religiosidade é uma reprodução de forças de poder dominantes da grande massa. Como saída, recuperar a cosmovisão dos povos originários. A ideia de cultura popular e religiosidade como reprodução de forças de poder dominantes é uma perspectiva crítica que tem sido discutida por diversos estudiosos da cultura e das religiões. Essa abordagem aponta para que muitas vezes as manifestações culturais e religiosas populares são influenciadas e moldadas pelas forças dominantes da sociedade, como a mídia, a publicidade, a política e a economia. Onde está a comunidade?

Nesse sentido, as expressões culturais e religiosas populares podem servir como mecanismos de controle social, que reforçam ideologias e valores das classes dominantes, muitas vezes inconscientemente para a própria população. Além disso, é importante destacar que essas manifestações podem ser instrumentalizadas pelas elites para manter o seu poder e reprimir movimentos sociais e políticos que questionem as estruturas de poder estabelecidas.

No entanto, é importante ressaltar que essa não é uma visão unânime que existem diferentes perspectivas sobre a cultura popular e a religiosidade. Existem manifestações que podem ser formas de resistência e subversão, e que, permitem que as classes populares expressem a sua identidade e cultura de forma criativa e autêntica, mesmo em condições adversas. Uma negação da ideia de cultura universal.

Referências

BITTENCOURT, Vivian. Contribuições para repensar o desenvolvimento a partir dos direitos da natureza: um olhar sob a perspectiva da América Latina. 301 f. Tese – Universidade Regional de Blumenau, FURB, Blumenau, 2021. Disponível em: https://bu.furb.br/docs/TE/2021/368171_1_1.pdf. Acesso em: 12 abr. 2023.

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