Petterson Brey
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor de "Hermenêuticas" e "Metodologia Científica" no Programa de Pós-Graduação em Teologia do LabTEM (Laboratório de Teologia Espiritualidade e Mística) filiado à Faculdade UNIDA. Contato: pettersonbrey@gmail.com
Resumo: O presente artigo se propõe a estabelecer um espelhamento dialogal entre alguns aspectos selecionados da teoria da estetização da política de Susan Buck-Morss e o panorama brasileiro contemporâneo acerca do evangelicalismo e a política. Abordar-se-á, especificamente, o texto de Buck-Morss intitulado “Estética e anestética”, todavia, em virtude do pouco espaço aqui reservado, focar-se-á no capítulo XII do referido texto, onde se vislumbra o fascismo como uma pós-imagem decorrente de um processo de manipulação das massas. Paralelisticamente, abordar-se-á alguns aspectos selecionados da teoria do Protestantismo da Reta Doutrina (PRD) de Rubem Alves, tal qual se encontra acessível em sua obra intitulada “Protestantismo e repressão”. Tal entrepresa, por conseguinte, prevê a possibilidade de identificação de certas feições produzidas pelo processo de estetização política, desenvolvida pelo fascismo europeu do século XX, no fenômeno do envolvimento do evangelicalismo na política do Brasil contemporâneo.
Palavras-chave: Evangelicalismo e política no Brasil; Estetização da política; Susan Buck-Morss; Bíblia e política; Rubem Alves.
Abstract: This article proposes to establish a dialogic mirroring between some selected aspects of Susan Buck-Morss's theory of the aestheticization of politics and the contemporary Brazilian panorama about evangelicalism and politics. It will specifically address the text by Buck-Morss entitled “Aesthetics and Anesthetics”, however, due to the little space reserved here, it will focus on chapter XII of the referred text, where fascism is seen as an afterimage resulting from a process of manipulation of the masses. At the same time, some selected aspects of the theory of Protestantism of the Right Doctrine (PRD) by Rubem Alves will be approached, as it is accessible in his work entitled “Protestantism and Repression”. Such enterprise, therefore, foresees the possibility of identifying certain features produced by the process of political aestheticization, developed by European fascism in the 20th century, in the phenomenon of the involvement of evangelicalism in the politics of contemporary Brazil.
Keywords: Evangelicalism and politics in Brazil; Aestheticization of politics; Susan Buck-Morss; Bible and politics; Rubem Alves.
O presente texto, na qualidade de um breve ensaio, propõe-se a apontar possíveis pontos de aderência entre a teoria da estetização da política de Susan Buck-Morss e o fenômeno político-religioso que se fez notável no Brasil nos últimos anos, tendo, em referência, o binômio evangelicalismo – bolsonarismo. Ressalta-se, de antemão, que não há nenhuma pretensão, aqui, de se propor alguma asserção conclusiva e/ou peremptória sobre o assunto. Destarte, o intuito desta abordagem é a tentativa de alinhamento de um dos tópicos do conteúdo do texto de Buck-Morss com um evento da realidade contemporânea brasileira.
Tal entrepresa, por conseguinte, requer que se faça uma breve exposição prévia acerca dos dois objetos a serem postos em referência mútua, com vistas a identificação dos possíveis pontos de aderência. Dessa forma, em primeiro lugar, abordar-se-á, brevemente, a teoria da estetização da política de Buck-Morss em si, buscando dar destaque aos seus paradigmas e enunciados, que potencialmente possam dar oportunidade de diálogo como a questão a ser posta em relação com ela. Posteriormente, então, aproximar-se-á, de maneira sintética, também, ao fenômeno político-religioso brasileiro contemporâneo, cujas feições podem ser observadas na índole midiática do evangelicalismo – bolsonarismo, buscando-se encontrar elementos de ligação com as ideias de Buck-Mors.
Obviamente que, no âmbito de uma breve abordagem da natureza deste texto, que não possui espaço para uma análise exaustiva, uma série de questões já devem surgir como pressupostas. No que se refere à teoria da estetização da política de Buck-Morss, por exemplo, não haverá possiblidade para uma ampla exposição de peculiaridades referentes à validade dos argumentos desenvolvidos por ela. Assim, também, em relação à equação evangelicalismo – bolsonarismo, não haverá tempo hábil para se demonstrar como esse processo histórico-político chegou a existir, nem mesmo possibilidade de se lidar com os argumentos que negam tal realidade.
Conquanto, a seguir, discorra-se acerca de algumas ideias de Buck-Morss mais amplamente abordadas em seus livros – mais recentes – intitulados Mundo de sonho e catástrofe (BUCK-MORSS, 2018a) e O presente do passado (2018b), o foco de concentração da presente abordagem é o texto, por ela publicado sob o título Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin (BUCK-MORSS, 2012, pp. 173-222), publicado no Brasil como capítulo do livro intitulado Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Como os próprios títulos das referidas publicações já anunciam, o background do texto de Buck-Morss, aqui escolhido, é a sua análise do texto de Walter Benjamin intitulado A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 2021). Razão pela qual, há de se fazer, previamente, uma breve menção à referida publicação, todavia, objetivamente, abordar-se-á Walter Benjamin já pela perspectiva de Buck-Morss.
De acordo com Benjamin – que viveu na Europa, entre 1892 e 1940, período em que houve grandes avanços na técnica de reprodução de imagens –, a reprodução mecânica de obras de arte tem um impacto negativo na percepção dessas obras. No entendimento dele, a reprodução mecânica oblitera a aura e o valor original da obra de arte, tornando-a meramente uma imagem. Esse processo, portanto, na ótica de Benjamin, constitui-se como sintoma de uma tendência mais ampla de estetização da própria sociedade, cujo resultado desencadearia a banalização da arte.
A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica é um ensaio escrito por Walter Benjamin, publicado em 1936, no qual, ele discute como a tecnologia mecânica de reprodução, como a fotografia e o cinema, estavam mudando a natureza da arte e sua relação com a sociedade. Segundo Benjamin, a mecanização da produção artística leva à perda da índole extraordinária da obra de arte, que é sua unicidade e singularidade. Porquanto, anteriormente, as obras de arte eram únicas e estavam vinculadas a um local ou contexto específico, no entanto, agora podem ser facilmente reproduzidas em massa, de forma que, então, a obra de arte não é mais um objeto sagrado, visto que se tornara uma mercadoria que pode ser vendida e comercializada.
Ademais, conforme assevera Benjamin, a mecanização da produção artística altera a relação entre o artista, a obra de arte e o público. Pois, a partir da produção mecânica de obras de arte, elas não são mais uma expressão direta do artista, mas se trata de uma produção similar a dos objetos industriais. Isso resulta em uma perda da autenticidade e da criatividade da arte, bem como transforma o artista em um trabalhador industrial.
Abstendo-se de se tratar, aqui, acerca das peculiaridades relativas aos limites e convergências do pensamento de Buck-Morss a respeito das ideias de Benjamin, pode-se dizer que ela expande a teorização, por ele articulada, para incluir a política. De acordo com o argumento de Buck-Morss, a política moderna, também, é estetizada, porquanto se apresenta como um espetáculo. Ela assevera que essa estetização da política resulta em uma espécie de anestesia da população, tornando-a menos crítica e menos capaz de exigir mudanças políticas significativas.
Destarte, Susan Buck-Morss e Walter Benjamin, de um modo geral, comungam de uma visão crítica acerca da sociedade moderna, no que tange ao processo de estetização que abarca tanto a esfera da arte quanto a política. Tais horizontes, afetam a sociedade como um todo. Assim, de acordo com a perspectiva desenvolvida por Buck-Morss, a estetização da sociedade obscurece questões políticas importantes e impede o verdadeiro progresso social.
De acordo com Buck-Morss, a estetização da política é uma tendência que se desenvolveu ao longo do século XX, à medida em que a política se tornou cada vez mais espetacular e orientada para a mídia. Ela argumenta que essa tendência é problemática porque desvia a atenção do público dos verdadeiros problemas políticos e sociais, e substitui a efetiva participação política por formas superficiais de expressão sensacionalista, convertidas em campanhas publicitárias e atos simbólicos. Outrossim, conforme argumenta Buck-Morss, a estetização da política tem sido usada como uma estratégia para anestesiar a população e desviar a atenção de questões sociais, como, por exemplo, a desigualdade econômica e a falta de democracia real.
Na teoria da estetização da política de Susan Buck-Morss, o processo de anestesia é alcançado por meio de uma série de táticas, conforme pode se observar abaixo:
Quanto à síntese, acima apresentada, seja, ainda, trazido, de maneira mais concreta, um exemplo direto do texto de Buck-Morss. No capítulo XII do ensaio (BUCK-MORSS, 2012, pp. 208-212), aqui referenciado, ela esquadrinha uma das mais ousadas facetas estratégicas do processo de estetização desenvolvido pelo fascismo. Refere-se ao poder do fascismo de produzir e/ou reproduzir fascistas.
Para começar tal análise, Buck-Morss transcreve um trecho de uma carta de Joseph Goebbels de 1933, onde, segundo ela, tem-se a primeira autoidentificação do fascismo. Observe-se, abaixo:
Nós, que moldamos a moderna política alemã, sentimo-nos pessoas de talento artístico, às quais foi confiada a grande responsabilidade de formar, a partir da matéria-prima das massas, uma estrutura sólida e bem trabalhada de um Volk [povo] (STOLLMAN, 1978, p. 47 Apud. BUCK-MORSS, 2012, p. 208).
A respeito destas palavras, Buck-Morss assevera que “essa é a versão tecnologizada do mito da autogeração, com sua divisão entre o agente (no caso, os líderes fascistas) e as massas (a hylé indiferenciada sobre a qual se exerce a ação)” (BUCK-MORSS, 2012, p. 208). Acerca disso, ela recorda a perspectiva do terceiro ponto de vista, o observador. Entretanto, destaca Buck-Morss:
Estamos lembrados de que essa divisão é tripartite. Há também o observador, que "sabe" por observação. A genialidade da propaganda fascista foi dar às massas um papel duplo, de observadoras e de massa inerte que era formada e moldada. No entanto, em função de um deslocamento do lugar da dor, graças a um consequente des(re)conhecimento, as massas como plateias mantêm-se, de algum modo, imperturbáveis diante do espetáculo de sua própria manipulação (BUCK-MORSS, 2012, p. 208).
Para exemplificar esse aspecto de sua análise, Buck-Morss cita um filme de Leni Riefenstahl (1935) intitulado O triunfo da vontade, cuja cena destacada por ela descreve, em suas próprias palavras:
As massas mobilizadas ocupam o terreno do estádio de Nuremberg da tela de cinema, de modo que os padrões superficiais proporcionam uma concepção agradável do conjunto, fazendo o espectador esquecer a finalidade daquela exibição, a militarização da sociedade para a teleologia de fazer a guerra. A estética permite uma anestesia da recepção, uma visão da "cena" com um prazer desinteressado, ainda que essa cena seja a preparação de toda uma sociedade, por meio de um ritual, para o sacrifício sem questionamento e, em última instância, a destruição, o assassinato e a morte (BUCK-MORSS, 2012, p. 209).
Buck-Morss ressalta, ainda, no âmbito dessa cena do filme, o grito de Rudolf Hess diante daquela multidão: “A Alemanha é Hitler e Hitler é a Alemanha!” (BUCK-MORSS, 2012, p. 209). Essa é, de acordo com ela, a segunda autodefinição do fascismo. Conforme ela mesma explica: “O significado intencional é que Hitler encarna todo o poder da nação alemã” (BUCK-MORSS, 2012, p. 209).
Entretanto, na sequência de sua investigação acerca da máquina de reprodução do fascismo, Buck-Morss traz à luz um aspecto deveras paradoxal. Trata-se de uma sutil ferramenta de manipulação das massas. Para explicar, ela continua a utilizar a mesma ferramenta ilustrativa do filme, porquanto, como um plano-sequência da cena anterior, ela desfia:
Mas, se virarmos a câmera para Hitler de maneira não aurática, isto é, se usarmos esse aparato tecnológico como um auxiliar da compreensão sensorial do mundo externo, não como uma fuga fantasmagórica ou narcísica dele, veremos algo muito diferente (BUCK-MORSS, 2012, p. 209).
Logo em seguida, ela mesma esclarece ao que está se referindo com “veremos algo muito diferente”:
Sabemos que, em 1932 (sob a orientação do cantor de ópera Paul Devrient), Hitler treinou suas expressões faciais diante de um espelho,[1] a fim de surtir o que julgava ser o efeito apropriado. Há a razão para crer que esse efeito não era expressivo, mas reflexivo, devolvendo ao homem da multidão sua própria imagem – a imagem narcísica do eu intacto, construída em oposição ao medo do corpo despedaçado (BUCK-MORSS, 2012, p. 208).
Para explicar melhor o seu argumento, Buck-Morss faz referência ao livro de Charles Darwin publicado em 1872, sob o título A expressão das emoções no homem e nos animais. Esse é o ponto mais surpreendente desta análise! Observe-se nas palavras da própria autora:
O livro de Darwin foi o primeiro de sua classe a recorrer a fotografias em vez de desenhos, o que permitiu maior precisão na análise das expressões faciais das emoções humanas. Se compararmos as fotografias das expressões faciais de Hitler, exercitando-se diante de um espelho, com as fotos do livro de Darwin, talvez esperemos constatar que suas expressões denotam emoções agressivas – raiva e ódio. Ou então seria possível supor que Hitler tentasse projetar o rosto impermeável e "blindado" que Jünger descrevera, e que era tão típico da arte nazista. Mas, na verdade, as duas emoções descritas por Darwin que combinam com as fotografias de Hitler são bem diferentes dessas (BUCK-MORSS, 2012, pp. 208-209).
Para surpresa de quem estivesse esperando feições de bravura e poder, de acordo com o diagnóstico de Buck-Morss, com referência em Darwin, as duas emoções esboçadas por Hitler são, respectivamente: medo e choro. No intuito de ser mais precisa em sua explicação, ela transcreve as palavras de Darwin. Acerca do medo, Darwin descreve:
À medida que o medo cresce, numa agonia de pavor [...], as asas das narinas ficam extremamente dilatadas [...] há um arquejo e um movimento convulsivo dos lábios, um tremor na cavidade da bochecha [...] os globos oculares fixam-se no objeto de pavor [...] os músculos do corpo podem enrijecer-se [...] as mãos ficam alternadamente cerradas e abertas [...] [o]s braços podem projetar-se, como que para evitar um perigo assustador, ou ser violentamente jogados para cima da cabeça (DARWIN, 1965, p. 291).
A segunda emoção – o choro –, que Buck-Morss equaciona entre as feições de Hitler diante do espelho com as explicações de Darwin, transmite, nas palavras dela, a ideia de “sofrimento do corpo e da alma” (BUCK-MORSS, 2012, p. 210). Tal asserção se baseia na seguinte descrição de Darwin:
A elevação do lábio superior repuxa para cima a carne das partes superiores das faces e produz uma dobra fortemente acentuada em cada bochecha – a dobra nasolabial –, que desce das imediações das asas das narinas até os cantos da boca e abaixo deles. Essa dobra ou sulco, que pode ser vista em todas as fotografias, é muito característica da expressão da criança chorando (DARWIN, 1965, p. 149).
Valendo-se, portanto, da justaposição das imagens de Hitler, diante do espelho, e de crianças, tais quais analisadas por Darwin, Buck-Morss articula, aludindo Walter Benjamin, a seguinte conclusão:
A câmera pode nos ajudar no conhecimento do fascismo, pois proporciona uma vivência "estética" que é não aurática, criticamente "testadora", e capta com sua "óptica inconsciente" precisamente a dinâmica do narcisismo de que depende a dinâmica do fascismo, mas que é escondida por sua estética aurática. Esse conhecimento não é historicista. [...] A justaposição cria uma experiência sintética que tem ressonância em nossa própria época, fornecendo-nos hoje um duplo reconhecimento – primeiro, de nossa infância, na qual, para muitos de nós, o rosto de Hitler parecia a encarnação do mal, o bicho-papão dos nossos temores infantis. Segundo, ela nos traz num choque a consciência de que o narcisismo que desenvolvemos quando adultos, que funciona como uma tática anestesiante contra o choque da experiência moderna – e à qual se apela diariamente através da fantasmagoria de imagens da cultura de massas –, é o terreno do qual pode brotar novamente o fascismo (BUCK-MORSS, 2012, pp. 211-212).
Enfim, Susan Buck-Morss finaliza sua conclusão demonstrando que a máquina fascista possui essa especificidade de captar e se conectar com as emoções mais profundas das pessoas, ressignificando, através dessas técnicas de espelhamento emocional, sua experiência da realidade e forjando nelas uma pós-imagem espontânea. “O fascismo é essa pós-imagem. Em seu espelho refletor nós nos reconhecemos” (BUCK-MORSS, 2012, p. 212).
Parte-se, no início deste segundo tópico, como referencial paradigmático, das proposições de Kátia Mendonça, no âmbito de seu livro intitulado A salvação pelo espetáculo: mito do herói e política no Brasil (MENDONÇA, 2002), segundo as quais, desde Dom Pedro I é perceptível, no horizonte político brasileiro, uma pré-disposição ao acolhimento da figura do líder salvador da pátria. De acordo com ela, ao longo do século XX, percebe-se na história política do Brasil, um padrão que se repete na ascensão de cada líder populista. As características distintivas desses homens tem sido o seu surgimento espetacular como os únicos heróis capazes de salvar o país de algum tipo de perigo fabricado para amedrontar a sociedade de sua época.
Em perspectiva, entretanto, do recorte, aqui proposto, acerca do evangelicalismo e a política brasileira em referência à teoria da estetização da política de Susan Buck-Morss, acolhe-se as asserções do parágrafo anterior já em direção a análise das relações entre o segmento evangélico e o poder político. Tal entrepresa, por conseguinte, requer que se faça uma abordagem prévia acerca de certas características evangélicas, imprescindíveis para a viabilidade da proposta comparativa, aqui, intencionada. Destarte, como referencial teórico para essa parte do presente texto, buscar-se-á um diálogo com a obra intitulada Protestantismo e repressão, de Rubem Alves (1979).
Em vista da tarefa de se discorrer sobre como o evangelicalismo – bolsonarismo possui aderência com a teoria da estetização da política de Susan Buck-Morss, há de se estabelecer um entendimento acerca de como o bolsonarismo ressignificou certas perplexidades evangélicas, a ponto de torná-las um reflexo daquilo que ele mesmo se propôs a ser. Essa não é uma tarefa simples, pois demanda a circunscrição a respeito do que viria a ser o evangelicalismo. Razão pela qual, optou-se, daqui em diante, seguir a perspectiva metodológica de Rubem Alves, de se estabelecer um tipo ideal de evangelicalismo, para que se possa trabalhar, embora se reconheça a possibilidade de variáveis.
É interessante notar que na época em que Rubem Alves (1933–2014) publicou Protestantismo e repressão (1979), muitas de suas ideias estavam, ainda, por se demonstrar válidas, por confirmação da realidade, somente décadas mais tarde. O êxito da leitura prognóstica dele, entretanto, deve-se à perspicácia de sua leitura acerca de seu próprio contexto histórico. Rubem Alves entendeu o que era o evangelicalismo de seu tempo, por isso soube dizer, com bastante precisão, para onde ele estava caminhando.
Tratava-se de um segmento religioso, apesar de extensamente espalhado pelo território nacional, sem inserção nos meandros do poder político e da grande mídia brasileira. Em decorrência da baixa escolaridade da maioria dos membros, bem como de seu baixo poder financeiro, os evangélicos eram considerados como uma fatia ignorante da população, sendo motivo de representações pejorativas por parte de outros segmentos mais elitizados da sociedade. Tal panorama estava por intensificar um ressentimento que, dentro de algum tempo, viria a se transformar em luta por espaço público e reconhecimento de capital político.
Somente na década seguinte à publicação de Protestantismo e repressão, começou-se a perceber uma articulação maior de uma bancada evangélica nas casas legislativas nacionais. Com expoentes da pregação protestante se inserindo na mídia, o evangelicalismo brasileiro, na virada dos anos 2.000, tentava alinhar a sua bancada a um segmento político mais progressista, sendo, inclusive, em vários cenários, parceiros da primeira vitória de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente da República. No entanto, tal alinhamento político nunca rendeu os frutos desejados pelo segmento evangélico.
Neste ínterim, portanto, por volta da segunda metade dos anos 2.000, é que surge um alinhamento que mudou os rumos do evangelicalismo brasileiro. Trata-se do entroncamento com o surgimento e rápida ascensão de outro fenômeno, que só ganhou força através da afluência do segmento evangélico: o bolsonarismo. E este é, justamente, o ponto de convergência que se pretende dar destaque, aqui, como possibilidade de aderência à teoria da estetização da política de Susan Buck-Morss, isto é, a equação evangelicalismo – bolsonarismo decorre de um processo de estetização, sem o qual, tal relação não teria tido êxito.
A análise do tipo ideal de protestantismo, estabelecido por Rubem Alves, portanto, torna-se indispensável, agora, para que se consiga perceber com clareza tal proposição. De acordo com esse modelo analítico, pode-se observar certas feições evangélicas dos anos 80, que ganharão contornos mais nítidos por volta dos anos 2010. Trata-se da percepção e exploração, por parte do bolsonarismo, acerca de certos medos, decorrentes de um longo histórico de perplexidade e luta por reconhecimento.
O estudo de Rubem Alves é extenso, entretanto, reservar-se-á, aqui, à abordagem de alguns aspectos que podem exemplificar e/ou justificar a premissa deste breve texto. Refere-se, portanto, à relação do evangelicalismo com a Bíblia, com os pecados morais e a guerra espiritual. Todos esses elementos foram capturados e ressignificados no âmbito da configuração da nova realidade do evangelicalismo – bolsonarismo.
No que se refere ao modo como o protestantismo constrói e conhece a realidade, a Bíblia possui um papel fundamental. Rubem Alves argumenta que, em virtude da crença de que a Bíblia é a palavra de Deus ao nível das palavras, “as Escrituras são o ‘a priori’ de todo o conhecimento” (ALVES, 1979, p. 99). A partir dessa concepção, o protestante se vê na qualidade de apologeta da verdade, ao ter que defender os ensinamentos bíblicos frente aos ataques críticos do secularismo, que muitas vezes trata o defensor da Bíblia como obtuso.
O versículo bíblico, que se tornou um bordão de campanha política à presidência da República tanto de 2018 quanto de 2022, “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32), repetido à exaustão, materializa a precisão cirúrgica com que o bolsonarismo entrou no coração do evangelicalismo. O candidato bolsonarista demonstra, em seus discursos, sentir o desprezo sentido pelos defensores da verdade bíblica acerca da realidade, e assume para si o papel de apologeta da verdade. Esse posicionamento estético o coloca na condição de líder espiritual da massa evangélica, conferindo-lhe autoridade para falar em nome de Deus (BREY, 2023, pp. 1-10).
Ao discorrer a respeito do “mundo que os protestantes habitam” (ALVES, 1979, pp. 128-167), Rubem Alves assevera que existe uma ideia dicotômica muito forte que divide o mundo entre luz e trevas. Nesse ínterim, há uma constante guerra espiritual, entre Deus e Satanás pela alma de cada pessoa, segundo a qual todos os eventos da realidade devem ser significados. O protestante é um soldado – agente de Deus – nesse mundo, cuja missão é representar a vontade do Senhor em relação a todas as esferas da vida – chamar o pecado pelo nome.
Disto decorre outro aspecto analisado por Rubem Alves – os pecados morais –, ao discorrer acerca da “ética protestante” (ALVES, 1979, pp. 168-215). Segundo ele, no âmbito do rigoroso sistema de disciplina protestante – que aplica sanções sócio eclesiásticas aos membros apanhados em algum tipo de transgressão –, os pecados morais, sobretudo os relativos à sexualidade, possuem maior rigor punitivo, visto que são relacionados a comportamentos externos, muito mais fáceis de serem tipificados e julgados do que pecados de natureza ética, como desonestidade, inveja, rancor, etc., razão pela qual, o monitoramento da sexualidade das pessoas é motivo de grande preocupação, especialmente em tempos de maior liberação sexual da sociedade.
De maneira sensacionalista, o patrono do bolsonarismo, desde a virada dos anos 2.000 para os anos 2010, protagonizou na mídia brasileira uma verdadeira cruzada contra os perigos da sexualização precoce das crianças, que, segundo seu discurso estimulava o “homossexualismo”. Assim como Cristo, ele foi cuspido na cara, enquanto lutava contra o mal. Ele demonstrou medo do que a esquerda estava planejando fazer com as famílias brasileiras e chorou pelo futuro das crianças indefesas.
Com a estetização dessa guerra, ele deu ao evangelicalismo um inimigo – o comunismo – e uma missão, que consistia em perpetuá-lo no poder para garantir que a vontade de Deus se cumprisse no Brasil. O medo de uma “homossexualização” das gerações mais jovens desencadeou uma histeria ideológica de apoio incondicional ao então candidato. Esse medo, logo se converteu em combustível odioso para alavancar uma nova faceta do evangelicalismo brasileiro.
Com a vitória, em 2018, o bolsonarismo já tinha reconfigurado o evangelicalismo brasileiro de forma tal, que mesmo diante de atitudes absurdas do presidente da República, no âmbito da pandemia de COVID19, que evidenciavam uma política de morte, o segmento evangélico, de um modo geral, assistia com júbilo a sua própria desumanização. A amálgama evangelicalismo – bolsonarismo reconfigurou a percepção da realidade dos evangélicos. No âmbito da campanha política de 2022, notava-se, com grande facilidade, que o bolsonarismo representava os ideais desse evangelicalismo, que, agora, queria se consolidar no poder, para assim, ele mesmo fazer aquilo que antes tinha medo de que fizessem: a doutrinação da sociedade.
A compreensão de tal panorama se torna mais clara com a análise que André Anéas faz (2019, pp. 217-222) – decorrente, em grande parte, das proposições de Rubem Alves – acerca da racionalização da experiência de Deus no PRD, segundo a qual, no âmago do protestantismo já preexiste uma vocação para a ressignificação da experiência religiosa em vista da adequação a um sistema de pensamento estabelecido a priori. A índole ética desse sistema, conforme assevera Max Weber (2013, pp. 7-10), encontra-se historicamente orientado por propósitos político-econômicos, e, como ele mesmo observa (WEBER, 2020), a vocação política muitas vezes é vulnerável a propósitos de manipulação e dominação. Outrossim, em perspectiva das asserções de Vilém Flusser (2019, pp. 26-31), ao tratar da ideia de Design als Theologie (design como teologia), destaca-se a possibilidade de uma via de retroalimentação viciosa, que ambienta a estetização da própria teologia evangélica, como produto e, concomitantemente, como alicerce ideológico estetizante da política bolsonarista.
Essa breve reflexão tratou de propor uma aderência entre o evangelicalismo brasileiro e a política com a teoria da estetização da política de Susan Buck-Morss. Conquanto, reconhecendo que esta é uma tarefa complexa, que possui muitas variáveis, procurou-se, por meio da delimitação de certos aspectos, aqui, julgados como importantes, demonstrar algumas similaridades, no que se refere à estética, entre a análise que Buck-Morss fez do fascismo e o evangelicalismo – bolsonarismo. Embora, existam, ainda muitos elementos a serem avaliados em ambos os espectros, foi possível vislumbrar alguns pontos de aderência que sugerem haver razoabilidade no intento, aqui, empreendido.
Tanto em um quanto no outro contexto, pode-se perceber o desencadeamento de uma neurose marcial que impulsionou as massas para algum tipo de guerra. Tal resultado obteve êxito por meio de técnicas de estetização – talvez mais habilmente em um espectro do que no outro –, que conseguiram se conectar com os medos das massas, de forma a manipulá-las de acordo com propósitos particulares dos manipuladores. Percebeu-se que, no auge desses processos de manipulação, as massas tinham na imagem de seus líderes, a personificação de suas próprias feições e/ou carregavam em suas faces a imagem de seus líderes, que lhes foram implantadas por indução estética.
ALVES, Rubem A. Protestantismo e repressão. (ensaios – 55). São Paulo: Editora Ática, 1979.
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BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, Walter [et. al.]. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, pp. 173-222.
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[1] Fazendo referência a: MASER, 1976, p. 294.