Maria, mãe de deus e modelo da igreja: um pensamento conciliar sob a orientação de Paulo VI

Mary, mother of god and model of the church: a conciliar thought under the guidance of Paul VI

Jose Nobre
Doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ). Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: nobre.jose@gmail.com

Bruno Rodrigues Toledo
Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: brunortoledo@hotmail.com


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Resumo: Refletir ou pesquisar sobre a figura de Maria Santíssima, como Mãe de Deus e modelo da Igreja, parece ser uma redundância e ou que podemos correr o risco de “chover no molhado” diante de tudo que já foi dito sobre este tema. Contudo, podemos ver que não há limites quando se está diante de um manancial de graças divina como é a vida de Maria. Do ponto de vista formal indagamos: o que ainda mais será possível refletir sobre Maria, Mãe de Deus e da Igreja hoje? Se trata de uma pesquisa bibliográfica, cujos resultados esperados, circunscrevem ao entendimento e à fé de que quanto mais nos dedicarmos aos estudos sobre a figura de Maria, Mãe de Deus e da Igreja, mais nos nutrimos de sua graça e mais a própria Igreja se fortalece.

Palavras-Chave: Maria; Mãe de Deus. Igreja; Concílio Vaticano II. Paulo VI

Abstract: Reflecting or researching the figure of Mary Most Holy, as Mother of God and model of the Church, seems to be a redundancy and or that we could run the risk of “rain in the wet” in the face of everything that has already been said on this topic. However, we can see that there are no limits when we are faced with a source of divine graces such as the life of Mary. From a formal point of view, we ask: what else will it be possible to reflect on Mary, Mother of God and of the Church today? It is a bibliographic research, whose expected results are limited to the understanding and faith that the more we dedicate ourselves to studies on the figure of Mary, Mother of God and of the Church, the more we nourish ourselves with her grace and the more the Church itself becomes strengthens.

Keywords: Mary; Mother of God. Church; Second Vatican Council. Paul VI

Introdução

Através do prefácio da missa votiva de Nossa Senhora, Maria, Modelo e Mãe da Igreja, notamos um rico teor teológico-espiritual, como podemos ver:

Acolhendo a vossa Palavra no coração sem mancha, mereceu concebê-lo no seio virginal e, ao dar à luz o Fundador, acalentou a Igreja que nascia. Recebendo aos pés da cruz o testamento da caridade divina, assumiu todos os seres humanos como filhos e filhas, renascidos para a vida eterna, pela morte de Cristo. Ao esperar com os Apóstolos o Espírito Santo, unindo suas súplicas às preces dos discípulos, tornou-se modelo da Igreja orante. Arrebatada à glória dos céus, acompanha até hoje com amor de mãe a Igreja que caminha na terra, guiando-lhe os passos para a pátria, até que venha o dia glorioso do Senhor (MR, 2011, p. 953).

 Nele, consta uma profundidade e uma riqueza na reflexão eclesiológica do Concílio Ecumênico Vaticano II. Isso é perceptível ao incluir a nova eucologia mariana sob a orientação do pontificado de São Paulo VI.

Entre introdução e considerações finais, o presente texto ficou assim subdividido: (i) A importância de Maria como modelo da Igreja: uma breve abordagem; (ii) Magistério mariano de Paulo VI e sua contribuição ao Vaticano II. Diante desta pequena introdução, vejamos o texto.

A importância de Maria como modelo da Igreja: uma breve abordagem 

Como sabemos, o Concílio Vaticano II é marcado por uma eclesialidade de comunhão, colocada como utopia em vista de uma meta universal. Ele reinterpreta a visão de comunhão uniformizada e obediente por uma “comunhão como participação comum de todo o povo de Deus, que tem como cabeça Jesus Cristo, como comunicador, o Espírito Santo, como meta, o Reino de Deus” (LG, 9). O diálogo, caráter decisivo de seu desenvolvimento ecumênico, é tido por caminho e exercício da comunhão dos fiéis com Jesus por meio da força unificadora do Espírito (PASSOS, 2014, p. 215). A novidade do Concílio traz consigo um novo tempo para a história da salvação. Tempo de comunhão, de diálogo e de uma renovada vivência da fé, a exemplo de Maria como exímio modelo de Igreja. Após passar pelos desafios de uma era de fechamentos e autodefesa, inicia-se, assim, uma nova Era na história da Igreja. Nessa nova era Maria é apresentada como modelo dos crentes e da Igreja. Nesse sentido, podemos notar que a prefiguração escatológica do Reino dos Céus já começa a se desenvolver como horizonte de vivência cristã mais próxima do ideal desejado e anunciado pelo Seu Filho Dileto e ao mesmo tempo Seu e Nosso Senhor.

A Virgem Maria, a Mãe de Deus, no Concílio Vaticano II é legitimada através da constituição dogmática sobre a Igreja - Lumen Gentium. Influenciada, assim, pela Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja, ela é assim apresentada:

A Virgem Maria, que na anunciação do anjo recebeu o Verbo de Deus no seu coração e no seu corpo, e deu a vida ao mundo, é reconhecida e honrada como verdadeira Mãe de Deus e do Redentor. Remida de modo mais sublime em atenção aos méritos de seu Filho, e unida a ele por vínculo estreito e indissolúvel, foi enriquecida como sublime prerrogativa e dignidade de ser 10 de Deus Filho e, portanto, filha predileta do Pai e sacrário do Espírito Santo; com este dom de graça sem igual, ultrapassa de longe todas as outras criaturas celestes e terrestres. Ao mesmo tempo encontra-se unida na estirpe de Adão com todos os homens que devem ser salvos; mais ainda, é ‘verdadeiramente mãe dos membros de Cristo [...] porque com o seu amor colaborou para que na Igreja nascessem os fiéis, que são os membros daquela cabeça’. Por esta razão é também saudada como membro supereminente e absolutamente singular da Igreja, e também como seu protótipo e modelo acabado, na fé e na caridade; e a Igreja Católica, guiada pelo Espírito Santo, honra-a como mãe amantíssima, dedicando-lhe afeto de piedade filial (LG, 53). 

A grande carga teológica e espiritual que está evidenciada neste fragmento, evidencia o manancial que Maria, Mãe da Igreja dispensa para o bem dos seus filhos no caminho da salvação. A intenção do Concílio é esclarecer cuidadosamente a função da Santíssima Virgem Maria no mistério do Verbo encarnado e do seu corpo místico, que é a Igreja. Neste texto, o nosso objetivo, não pretende propor uma doutrina completa (tratado) sobre Maria e muito menos barrar as novas investigações dos teólogos a respeito da Virgem, pois os mesmos, como expressou o Papa Paulo VI, mantêm-se no seu direito de opinar livremente acerca daquela que na Igreja ocupa o lugar mais alto depois de Cristo e o maior perto de nós (LG, 54). Sendo assim, necessariamente, queremos fazer coro a tantos outros escritos marianos a fim de olharmos com ternura como que um tributo à Mãe do Salvador e à nossa mãe, pois quanto mais a ela nos dirigirmos e sobre ela refletirmos, compreendemos que tanto mais chances teremos de descobrir e ou evidenciar a sua bondade maternal para a vida da Igreja ficar cada vez mais enriquecida.

Entendemos que foi nesse mesmo sentido que, segundo Pedro Iwashita, “o Concílio Vaticano II possibilitou uma retomada da mariologia à luz da revelação bíblica, do mistério pascal e também com base na patrística e na teologia contemporânea” (IWASHITA, 2014, p.555), a fim de que a vida rica de graças da Mãe de Deus e modelo de Igreja, seja sempre refletida. O Concílio Ecumênico Vaticano II, mesmo sem ter produzido um livro único para falar sobre a Santíssima Virgem, trouxe ao mundo uma ampla e vasta compreensão acerca da Mãe do Salvador, legitimando o culto a Maria (IWASCHITA, 1991, p. 165). Ele aplica toda a proposta mariológica, partindo do conceito eclesiológico, dentro de apenas um capítulo específico em sua constituição dogmática sobre a Igreja: Lumem Gentium (Luz das nações); e, é isto que o faz diferente e esclarecedor, mesmo entre tantos muitos sofrimentos e lacerações (CANTALAMESSA, 2016, p. 38).

O Concílio Vaticano II, celebrado pela igreja católica com a presença de quase todos os seus pastores e com a participação de representantes das várias igrejas separadas, pode ser considerado o concílio ecumênico que definiu o documento doutrinal mais significativo e orgânico sobre a bem-aventurada virgem Maria: o capítulo VIII da constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen gentium (MEO, 1995, p. 296).

Argumentamos assim, que a doutrina tradicional católica sobre a Mãe de Deus recebe com o Concílio Vaticano II, uma reformulação em sua constituição, onde a mesma é apresentada explicitamente, pela primeira vez na história, sob o título “Mãe da Igreja”. Preocupa-se em apresentá-la no exato sentido de sua maternidade, não a deixando sobressair em meio aos atributos dados tão somente a Cristo. Mulher colocada em favor dos homens, a fim de estabelecer um exemplo de pertença a Cristo, em arquétipo de uma vida humana capaz de Deus em virtude de Sua Graça, se torna assim um perfeito modelo de todo o povo cristão. Ela aparece incluída na história da salvação e no mistério de Cristo. Assim afirma documento conciliar sobre a figura de Maria:

A Santíssima Virgem, predestinada – desde toda a eternidade, no desígnio da encarnação do Verbo divino – para Mãe de Deus, foi na terra, por disposição da divina Providência, a Mãe do Redentor divino, mais que ninguém sua companheira generosa e humilde escrava do Senhor. Concebendo a Cristo, gerando-o, alimentando-o, apresentando-o no templo ao Pai, sofrendo com seu Filho que morria na cruz, ela cooperou de modo absolutamente singular – pela obediência, pela fé, pela esperança e a caridade ardente – na obra do Salvador para restaurar a vida sobrenatural das almas; por tudo isto, ela é nossa mãe na ordem da graça (LG, 61).

O mesmo concílio se preocupa ardentemente em salvaguardar e explorar esse sentido sublime da função materna de Maria. Em vários momentos, se nota a grande afeição dada à presença maternal de Maria no Concílio Vaticano II sem, em nenhum momento, deixar de exaltar o Verbo Divino, Jesus Cristo, que por ela se encarnou, pois para fazer jus ao próprio exemplo de Nossa Senhora, como ela mesma assim agiu, uma vez que, como mulher e mãe fiel, nos fez ver, na prática que uma mãe jamais deixa de exaltar o seu filho.

A função maternal de Maria para com os homens, de nenhum modo obscurece ou diminui esta mediação única de Cristo, antes mostra qual é a eficácia. Na verdade, todo o influxo salutar da Santíssima Virgem em favor dos homens não é imposto por nenhuma necessidade intrínseca, mas sim por livre escolha de Deus, e dimana da superabundância dos méritos de Cristo, funda-se sua mediação, dela depende absolutamente e dela tira toda a sua eficácia; e, longe de impedir, fomenta ainda mais o contato imediato dos fiéis com Cristo (LG, 60).

Além do novo título aplicado a Maria, Mãe de Deus e dos crentes, a tradição da Igreja continuará por afirmá-la, através do Concílio, como aquela que é modelo, ou o tipo dos cristãos, já refletida por Santo Ambrósio, nos primeiros séculos, permanece sendo amada, venerada e protetora dos cristãos de todos os tempos e lugares. E, por isso, assevera o documento Lumen Gentium:

A Santíssima Virgem encontra-se também intimamente unida à Igreja, pelo dom e cargo da maternidade divina, que une com seu Filho redentor, e ainda pelas suas graças e prerrogativas singulares: a Mãe de Deus é a figura da Igreja, como já afirmava santo Ambrósio, quer dizer, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo (LG, 63).

A esse respeito argumenta que o Sagrado Concílio faz o resgate de ricos conteúdos mariológicos refletidos à luz da Sagrada Escritura e da Tradição.  Por isso, ele traz presente e atualiza-os para alimentar a fé e, consequentemente, a vida da Igreja, de modo que, as virtudes de Maria não ficassem esquecidas no pensamento cristão:

Pela sua fé e obediência, - Maria - gerou na terra o próprio Filho de Deus-Pai: sem conhecer varão, mas pelo poder do Espírito Santo, acreditando sem hesitar, qual nova Eva, não na antiga serpente, mas no mensageiro divino. Deus à luz o Filho, a quem Deus constituiu primogênito entre muitos irmãos (cf. Rm 8,29), isto é, entre os fiéis em cuja geração e formação ela coopera com amor de mãe (LG, 63).

À luz destes textos conciliares percebemos o duplo relacionamento existente de Maria com Jesus e com a Igreja. Ao mesmo tempo em que ela se apresenta como Mãe de Jesus, também se é apresentada como discípula. Ambas as funções estão estreitamente ligadas ao falar da Virgem de Nazaré. Nesse sentido é possível entendermos que, “com respeito a Jesus, Maria é mãe e discípula; com respeito à Igreja, ela é mãe e mestra, isto é, modelo, tipo exemplar (CANTALAMESSA, 2016, p.112)”. 

Através deste ensinamento conciliar podemos trazer às claras o estreito relacionamento entre Maria e Jesus, apresentada desde a Tradição, passada pelas Escrituras e promulgada pela Igreja como mãe e discípula. Maria é tida, assim, por modelo e tipo exemplar dos cristãos, apresentando o seu real apreço e seguimento de seu Filho Jesus. Nos seus exemplos, nas suas palavras e obras, Maria pode fazer o mesmo ao compreender à missão de seu Filho, de modo que já dizia o Apóstolo: “Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1). E, de fato, podemos a ter como modelo e mestra, perfeita na imitação do discipulado de Cristo Jesus (CANTALAMESSA, 2016, p.112).

Segundo Raniero Cantalamessa, o discurso sobre Maria, após a reflexão conciliar, não é mais apresentado como algo isolado, de modo que a Mãe do Salvador ocupasse uma posição intermediária entre Cristo e a Igreja. É desse modo que ela é reconduzida ao âmbito da Igreja, e, desse modo, apresentada como Mãe e modelo de discípula. Nesse sentido, Maria sempre foi descrita como o membro mais excelente da Igreja, embora, como membro, não se sentia um elemento fora ou acima da Igreja, mas companheira nossa. 

Entendemos que era mais do que necessárias tais apresentações marianas, pois muitas formas de compreensões sobre a importância de Maria no processo de evangelização foram surgindo ao longo dos últimos anos, sobretudo na década de sessenta (60) após a proclamação do dogma da Assunção. O que faz o Concílio é juntar todas as questões e compreensões e apresenta Maria Santíssima, como uma resposta plausível da Igreja, de modo que não se difunda conceitos errôneos da sã doutrina Católica, mas a sua materna intercessão, faz a Igreja caminhar com mais fidelidade ao seu Filho Jesus. Contudo, como o novo sempre assusta, não faltaram pensamentos confusos e divididos entre os tratados. No entanto, apesar das contestações que naturalmente surgiria, com as reflexões e catequeses, o entendimento sobre a importância de se ter uma mãe e modelo no seguimento de Jesus sempre contribui para que os fiéis saíssem cada vez mais de um certo isolamento em que viviam. Iwashita afirma que havia “certo isolamento dentro do conjunto da dogmática, como se fosse uma ciência independente; sistematização rígida demais centrada na divisa: ‘Ad Jesum per Mariam’” (IWASCHITA, 2014, p. 555). E ainda reforça dizendo que “a contestação mais decisiva veio da área protestante, que viu na mariologia um desvio fatal do Evangelho original sob a pressão popular e, em consequência, de um sincretismo entre fé e a mitologia” (IWASCHITA, 2014, p. 555). Já João Batista Libânio diz que esta é mais do que um confronto estritamente teológico, mas uma “batalha simbólica” que estava esbarrando em uma barreira afetiva. Assim ele firma:

Depois da proclamação dos dogmas marianos nos séculos XIX e XX, a devoção popular mariana atingira níveis bem elevados. A tradição protestante é muito sóbria em relação à mariologia. Houve por parte das confissões evangélicas, teologicamente consistentes, uma reformulação positiva em relação ao culto de Maria, embora denominações pentecostais e neopentecostais mais recentemente reajam contra a devoção mariana de maneira apaixonada. E, às vezes, os dois lados em oposição se extremam em suas atitudes (LIBÂNIO, 2005, p. 142).

Tais contestações vigentes, tanto da parte católica quanto protestante, precisavam ser bem analisadas e explicadas segundo a Sagrada Escritura e Tradição. Sendo O Concílio Ecumênico Vaticano II, de modo compreendido enquanto povo universal cristão, ele se desenvolvia de forma a conciliar tais reflexões. Enquanto alguns resistiam fortemente às mudanças, outros clamavam pela necessidade da mesma. Conta João Batista Libânio que a comissão preparatória tinha elaborado um esquema próprio sobre a Virgem Maria, mas ao iniciar a sessão, o secretário geral informou que este seria tratado juntamente com o projeto sobre a Igreja, e que deveria estar contida num único capítulo. Muitas foram as pressões nos bastidores e grandes foram as discussões. No entanto, para uma maior coerência na construção eclesiológica, como tema central do concílio, decidiu-se que, mesmo ao ganhar por uma próxima quantia de votos, Maria deveria entrar no esquema sobre a Igreja, de modo que menos parecesse uma imposição dogmática, mas sim, uma reflexão pastoral e eclesiológica, tal como era o objetivo do Concílio (LIBÂNIO, 2005, p. 142). 

Na Congregação Geral de 29 de outubro de 1963, foi submetida à votação do plenário a questão da inclusão ou não do Esquema sobre a virgem Maria no Esquema sobre a Igreja, depois que os padres conciliares tinham ouvido as duas posições expostas. A votação favoreceu a inserção. Eram necessários 1.097 votos e se obtiveram 1.114, embora o número contrário tenha sido também elevado: 1.074. Foram 17 votos a mais que os necessários (LIBÂNIO, 2005, p. 142). 

A Igreja, no entanto, em sua sabedoria vinda do Espírito Santo, retornando à suas fontes bíblicas e patrísticas, assim como numa tentativa de diálogo frente ao mundo moderno, tal como se apresentara na proposta do Concílio, decide por apresentar Maria dentro da economia da salvação, utilizando-se dos critérios bíblico, antropológico, ecumênico e pastoral (LG, 55-59). O primeiro e fundamental (critério bíblico) diz respeito à fidelidade às Sagradas Escrituras, assim como na Tradição apostólica e patrística. Já o segundo, o critério antropológico, enfatiza o valor da pessoa humana em sua totalidade em virtude da vontade divina e de sua história da salvação. Em Maria, essa questão deve ser explorada em conformidade com a sua vida histórica, vivida na obscuridade dos acontecimentos das dores, das suas virtudes através de sua forma livre de ser e de colaborar com o Reino. No critério ecumênico, deve se ter em mente a proposta de diálogo presente no Vaticano II, de modo que, em sua forma de expressão, não se torne um ponto de divisão, mas de unidade entre o povo cristão. E, por fim, no critério pastoral, que a devoção mariana seja cuidada e zelada para que caminhe em conformidade com a Sagrada Escritura e a doutrina apresentada por este Concílio, de modo que, a mãe de Deus e da Igreja possa ser cada vez mais compreendida, amada, venerada e imitada (IWASCHITA, 2014, p. 556). 

O teólogo Cantalamessa ao explorar os documentos do Concílio Vaticano II, no acontecimento dos exercícios espirituais da Casa Pontifícia em 2015-2016, na presença do Papa Francisco, reflete sobre o termo latino utilizado para tematizar tal constituição dogmática: Lumen Gentium cum sit Christus, ressaltando que, “sendo Cristo a luz das gentes”, Ele nos ilumina e reforçamos que Maria é a grande colaboradora nessa graça ao dar-Lhe à luz. Ele fala sobre a importância cristológica desse documento, na qual deve ser mais explorado. Mais do que se questionar sobre quem é a Igreja – em sua hierarquia ou Povo de Deus – o documento, segundo ele, se preocupa mais em apresentar o que ela é – o Corpo e Esposa de Cristo (CANTALAMESSA, 2016, p. 7). E aqui deixa a chave da interpretação eclesiológica do Concílio:

Naquela fase inicial está a chave para interpretar toda a eclesiologia do Vaticano II. Trata-se de uma eclesiologia cristológica e, por isso, espiritual e mística, antes de ser social e institucional. É necessário recolocar no primeiro plano esta dimensão cristológica da eclesiologia do Concílio, também porque se pretende uma evangelização mais eficaz. De fato, não se aceita Cristo por amor da Igreja, mas aceita-se a Igreja por amor de Cristo. Até mesmo uma Igreja desfigurada pelo pecado de muitos dos seus representantes N, 2016, p. 8).

O pregador da Casa Pontifícia, ao avançar em sua reflexão, dirigindo-se até o capítulo VIII da Lumen Gentium, apresenta o pensamento mariológico a serviço do ministério de Cristo, assim como o da Igreja (LG, 53). Ele mostra mais claramente a retomada história, desde a Sagrada Escritura ao magistério da Igreja, passando pelos escritos dos Santos Padres, até os escritos do Vaticano II. A maior de todas as novidades desta Constituição, segundo ele, é o posicionamento e inserção do verdadeiro lugar em que Maria está inserida no magistério da Igreja: que ser Mãe da própria Igreja. Esta é a profunda renovação mariológica que traz o Vaticano II. A segunda novidade que ele aponta é a insistência sobre a fé de Maria. Se trata de uma fé que deverá ser cada vez mais explorada pela Igreja em sua grande significação, a fim de que sejamos cada vez mais parecidos com o seu exemplo de fé. “É um regresso à mariologia dos Padres da Igreja que apresentava a fé da Virgem e não tanto os seus privilégios como o seu contributo pessoal para a salvação” (CANTALAMESSA, 2016, p.39). Neste ponto, vale notar a grande influência de Agostinho ao declarar que: “a Virgem Maria, ao crer, deu à luz Aquele que, acreditando, concebera. Depois de o anjo ter falado, ela, cheia de fé (fide plena), concebendo Cristo antes no coração que no ventre, respondeu: ‘Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra’ (Lc 1,38)” (CANTALAMESSA, 2016, p. 39).

Nota-se, contudo, que para falar sobre Mariologia à luz das Sagradas Escrituras, é necessário olhar para a história e notar o que causou a simples figura dessa mulher, comprometida com o serviço de Cristo em favor da humanidade. Não se pode ser cristão sem deixar de observar o significado que Maria, ao ser tocada pela graça divina, traz como tal a significação das dores de sua alma (cf. Lc 2,35). Comprometer-se com Cristo, assim como a Virgem o fez totalmente, é um caminho exigente, porém valioso. É por isso que, em sua fé, ela se torna o grande exemplo da Igreja, no qual deve ser sempre regrado e avaliado, para que não se confunda, em sua devoção, aos termos de divindade, pelo qual devem ser utilizados somente a Deus. Assim como nos pede o Concílio:

Aos teólogos e pregadores da Palavra de Deus, exorta-os instantemente a evitarem com cuidado, tanto um falso exagero como uma demasiada estreiteza na consideração da dignidade singular da Mãe de Deus. Estudando, sob a orientação do magistério, a Sagrada Escritura, os Santos Padres e Doutores, e as liturgias das Igrejas, expliquem como convém as funções e os privilégios da Santíssima Virgem, os quais dizem todo respeito a Cristo, origem de toda a verdade, santidade e piedade. Evitem com cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou quaisquer outros. E os fiéis lembrem-se de que a verdadeira devoção não consiste numa emoção estéril e passageira, mas nasce da fé, que nos faz reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a nossa mãe e a imitar as suas virtudes (LG, 67).

Nesse zelo pastoral é que o magistério do Papa Paulo VI, após o término do Vaticano II, se preocupa em oferecer à Igreja um único documento condizente a isso, “a fim de promover a reta ordenação e desenvolvimento do culto à bem-aventurada virgem Maria”, à qual nos dedicaremos a refletir os desdobramentos deste pensamento a partir de então.

Magistério mariano de Paulo VI e sua contribuição ao Vaticano II

O Papa, Paulo VI traz à tona, em seu pontificado, a renovação do pensamento mariológico para a Igreja. Já em sua primeira mensagem para o mundo, se compromete com a continuação do trabalho iniciado por João XXIII em meio ao Concílio Vaticano II. O Papa João XXIII, O Papa do sorriso, já havia consagrado tal Concílio sob a intercessão de Maria e, em seu discurso de abertura associava modestamente à figura materna de Maria com a Igreja, aplicando-a entre as extremidades de seu documento eclesiástico. No início, Maria é a mãe que intercede pela Igreja, enquanto, no final, aparece como a Mulher que leva à compreensão do mistério da encarnação[1]

No magistério de João XXIII encontramos a sua grande encíclica, que concilia a Igreja com a figura materna: a Carta Encíclica Mater et Magistra (1961), sobre a recente evolução da questão social à luz da doutrina cristã. Neste documento, ele elenca a figura da Virgem Imaculada como aquela que, preservada do pecado da carne junto a Cristo Redentor; Maria se torna exemplo social para a comunidade cristã (MM, 34).

Imbuído por este espírito conciliar e influenciado por João XXIII, Paulo VI, ao assumir a presidência do Concílio, apresenta a Santíssima Virgem como protetora, testemunha das labutas e amabilíssima conselheira deste presente Concílio, onde não cessa em estabelecer a relação da mãe de Deus com a Igreja.

Não pode, veneráveis irmãos, o nosso pensamento deixar de elevar-se, com sentimentos de sincera e filial gratidão, também à Virgem Santa, Aquela que nos apraz considerar como protetora do presente Concílio, como testemunha das nossas labutas, como nossa amabilíssima conselheira, porque Ela, como uma celeste Padroeira, juntamente a S. José, pelo Papa João XXIII desde o início foram confiados os trabalhos das nossas assembleias ecumênicas (PAULO VI, 21/11/1964).

E, ainda, ele roga pela assistência da Santíssima Virgem sobre o evento conciliar e sobre a proteção da Igreja, rezando nestes seguintes termos:

Ó Virgem Maria Mãe da Igreja, a Ti recomendamos a Igreja toda, o nosso Concílio Ecumênico. Tu “auxilium Episcoporum”, protege e assiste os Bispos na sua missão apostólica e todos quantos, sacerdotes, religiosos, leigos, os coadjuvam na sua árdua tarefa. [...] Ao teu Coração Imaculado, ó Maria, recomendamos finalmente o gênero humano; leva-o ao conhecimento do único e verdadeiro Salvador, Jesus Cristo; afasta dele os flagelos provocados pelo pecado, dá ao mundo inteiro a paz na verdade, na justiça, na liberdade e no amor. E faze que a Igreja toda, celebrando esta grande assembleia ecumênica, possa elevar majestoso ao Deus das misericórdias o hino do louvor e do agradecimento, o hino da alegria e da exultação, porque grandes coisas operou o Senhor por meio de Ti, ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria (PAULO VI, 21/11/1964).

Paulo VI apresenta, desde o início de seu pontificado, um grandioso apreço à Santa Mãe de Deus, pelo qual perdurou todos os seus anos em que governou a Igreja. Todavia, devemos nos questionar sobre desde quando Paulo VI utilizava este título para identificar a Mãe de Deus, sustentado com tanta perseverança. A ideia da “Mater Ecclesiae”, porém, não partia exatamente do evento conciliar, mas já se fazia presente desde antes de seu pontificado. Influenciado por seu antecessor, Montini utiliza esse título a partir de 8 de setembro de 1959, por ocasião da festa da Natividade de Maria. Ali, segundo Laurentin, é a primeira vez que aparece esse título em seus discursos. E, no entanto, Paulo VI retomará esse seu discurso ao término do Concílio, ao final de sua homilia (MONTINI, 1968, p. 9). Sobre estas palavras expressa ao tratar explicitamente do título “Mãe da Igreja”, ao mencionar, ainda, a proposta de um novo Concílio já anunciado por João XXIII:

E ainda amanhecem no horizonte outros acontecimentos que nos são ainda mais marcantes e queridos, foi anunciado um Concílio Ecumênico: isso quer dizer que a Igreja se reúne, a Igreja quer tomar consciência de sua catolicidade e de sua unidade, a Igreja quer confirmar as suas leis e seus propósitos, a Igreja que quer rezar unida, a Igreja que mais uma vez quer se fazer vista no meio do mundo, a Igreja que quer ser ouvida na alma do mundo. O Concílio se projeta com esses grandes presságios. Assim busquemos e rezemos para estarmos próximos à Mãe da Igreja que é Maria Santíssima, para que estes acontecimentos não sejam apenas grandes, e serão, não somente significativos, que outros semelhantes não são, mas sejam salutares para os povos, para as nações, para o mundo, para as cidades e para cada uma de nossas almas, irmãos caríssimos (MONTINI, 1968, p. 134).

Diante do encerramento do Concílio, o Sumo Pontífice, em nome e autoridade dos apóstolos, ao desenvolver a ideia da maternidade de Maria Santíssima, atribui a ela, decisivamente, o título de “Mãe da Igreja”. E assim declara: 

Para a glória, pois, da Virgem e para a nossa consolação, nós proclamamos Maria Santíssima “Mãe da Igreja”, isto é, de todo o povo de Deus, seja dos fiéis como dos Pastores, que a invocam como Mãe amorosíssima; e queremos que com este suavíssimo título de agora em diante a Virgem seja ainda mais honrada e invocada por todo o povo cristão (PAULO VI, 21/11/1964).

Vale recordar que o Papa Peregrino publicou em seu pontificado vinte e seis documentos a respeito da Santíssima Virgem Maria[2], deixando o rastro mariano pelo mundo, ficando atrás apenas de Leão XIII, que possui o maior número dos escritos marianos, somando quarenta e quatro em todos os anos de seu pontificado (Palialogo; Albertin 2017, p. 152). Entre os escritos marianos de Paulo VI destacam-se a Encíclica Mense Maio (1965), a Encíclica Christi Matri (1966), a Exortação Apostólica Signum Magnum (1969), bem como a Recurrens mensis october (1969), além da Exortação Marialis Cultus (1974), última e principal mensagem mariana de seu pontificado, que vale ainda a pena em ser observada e estudada para o desenvolvimento de uma reta ordenação e desenvolvimento do culto à bem-aventurada virgem Maria, cujo escopo deste trabalho não contempla.

Considerações finais

Ao refletirmos sobre a figura de Maria, Mãe de Deus e da Igreja, de imediato, a impressão que temos é que já se falou tudo sobre Maria. Contudo, ao nos colocar em reflexão, temos a certeza de que as riquezas das dimensões marianas são tantas que jamais serão esgotadas, mas compreendemos que tanto mais falarmos dela, tanto melhor, do seu mistério maternal seremos enriquecidos. E, quanto uma pessoa, como membro do corpo místico de Cristo se alimenta desse rico e santo manancial, é, consequentemente toda a Igreja que sai alimentada. É, pois a partir disso que, podemos considerar como resposta ao problema proposto: o que ainda mais será possível refletir sobre Maria, Mãe de Deus e da Igreja hoje? A resposta é que as reflexões surgem em fluxo contínuo, uma vez que, um manancial de graças como é a Maria Santíssima, Mãe de Deus e da Igreja nunca será minguado. Mas, na sua docilidade de Mãe, ela sempre será uma fortaleza para todos as pessoas de todos os tempos e lugares. 

Sendo assim, ao dedicarmos na escrita deste texto, pudemos trazer alguns elementos que ressaltam a confiança de todos aqueles seres humanos de fé dos tempos que nos antecederam e que serve de modelo para que continuemos a confiar à Mãe de Deus e da Igreja, a sua proteção para que os crentes possamos enfrentar os desafios tão grandes da evangelização na Igreja hoje. Não é atoa que os Santos Papas e os documentos das conferências episcopais sempre concluem seus trabalhos, escritos com uma confiante intercessão à Mãe de Deus e da Igreja. E, indubitavelmente, a missão da Igreja tem o seu curso singrando a história da salvação, exatamente porque se sabe protegida, iluminada, acompanhada e protegida por Maria Santíssima, Mãe de Deus e da Igreja. Por tudo isso, nos resta dizer: Maria Mãe de Deus e da Igreja, obrigado por tudo, e continua intercedendo a Deus por nós, pelos inúmeros trabalhos pastorais da Igreja do Teu Filho e Teu/Nosso Senhor.

Referências

BÍBLIA – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2010.

CANTALAMESA, Raniero. Maria um espelho para a Igreja. São Paulo: Editora Santuário, 1992.

CANTALAMESA, Raniero. Para que nada se perca. Trad. António Maia da Rocha. São Paulo: Paulus, 2016, p. 38.

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Notas

[1] “Ó Maria, auxílio dos cristãos, auxílio dos bispos, de cujo amor tivemos recentemente uma prova especial no vosso templo de Loreto, onde tivemos o prazer de venerar o mistério da Encarnação, disponde todas as coisas para um feliz resultado [...]” (Discurso de sua Santidade papa João XXIII na abertura solene do SS. Concílio, em 11 de outubro de 1962). 

[2]A saber: Sanctissimae Virginis (1963); Scandere Caelum (1963); Opifera Mater (1963); Pientissimae Matris (1963); Aeoes Marialis (1964); Marialis Nomine (1964); Regina Pacis (1965); Augusta Cunctoque (1965); Marabili Sanctae (1965); Christi Matri Rosarii (1966); Mense Maio (1965); Mysterium Fidei (1965); Signum Magnum (1967); Flores Edens (1966); Lauretanae Virgini (1967); Celsissima Virgo Maria (1967); Venerabilis Dei Famulae Maria ab Apostolis Beatorum Honores Decernuntur (1968); Maria Mater (1969); Rosarii Preces (1969); Beatissima Dei (1971); Cum Beatissima (1972); Regni Caelorum (1977); Marialis Cultus (1974).