10 anos do pontificado do Papa Francisco e a igreja dos pobres

10 years of the pontificate of Francis and the church of the poor

Nelson Maria Brechó Silva
Doutor em Filosofia e Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor do Departamento de Teologia (Faculdade João Paulo II - Marília / SP). Contato: nelsonbrecho@yahoo.com.br

Reginaldo Marcolino
Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor e coordenador do Curso Presencial de Teologia na Faculdade João Paulo II- Marília/SP (FAJOPA). Contato: reginaldomarcolino@gmail.com

Fábio Pereira
Graduado na Modalidade Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Contato: irfabiopereira@gmail.com


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Resumo: Ao verificarmos o pontificado de Francisco, é possível perceber diversos fatores que evidenciam o seu comprometimento com as diretrizes conciliares, entre os quais podemos destacar: O seu empenho com os mais pobres, com o processo de sinodalidade e com a reforma da Cúria Romana. Embora vários sejam os elementos advindos do Vaticano II recuperados pelo pontificado de Francisco, aqui iremos abordar apenas um, a sua preocupação e seu engajamento com o projeto de uma Igreja Pobre e para os Pobres.

Palavra-chave: Concílio Ecumênico Vaticano II; Igreja dos Pobres; Papa Francisco

Abstract: When we look at Francisco's pontificate, it is possible to perceive several factors that demonstrate his commitment to the conciliar guidelines, among which we can highlight: His commitment to the poorest, to the process of synodality and to the reform of the Roman Curia. Although there are several elements arising from Vatican II recovered by Francis' pontificate, here we will only address one, his concern and engagement with the project of a Poor Church and for the Poor.

Keywords: Second Vatican Ecumenical Council; Church of the Poor; Pope Francis

Introdução

Em virtude da comemoração dos 10 anos do pontificado de Francisco, este artigo analisa a Igreja dos Pobres presente na sua concepção teológica em diálogo com os desafios da experiência pós pandemia. Ele desenvolve o processo de sinodalidade para que cada cristão possa caminhar junto na vivência da solidariedade e de uma sociedade comprometida com a inclusão das pessoas invisíveis na sociedade de consumo.

A invisibilidade das pessoas gera a apatia e a formação de uma Igreja reduzida à manutenção daquelas que perderam o espírito crítico. No entanto, abordam-se três aspectos da visão do Papa Francisco, a saber: “uma primavera inesperada na vida da Igreja”. Em seguida, “Francisco, reconstrói a minha Igreja”. Por fim, “Francisco e a Igreja dos Pobres”. Tal desenvolvimento de cada passo metodológico será possível notar a sintonia do Papa com a continuidade em torno da reflexão dos pobres proposta pelo Concílio Vaticano II. Essa proeza permite alargar os horizontes em torna da ação pastoral da Igreja no mundo hodierno.

Uma primavera inesperada na vida da Igreja

O pontificado do Papa Francisco, que no dia 13 de março completou uma década, foi e continua sendo para a vida da Igreja um verdadeiro Pentecostes, sendo o mesmo marcado por ares de renovação em diferentes áreas desta instituição. A chegada de Francisco à Cátedra de São Pedro, também representou um reavivamento da esperança evangélica tão arrefecida, sobretudo em virtude da chamada Globalização da Indiferença que nos faz mergulhar no individualismo, fenômeno visto por como o grande risco do mundo atual.

Ao nos aproximarmos da história recente da Igreja, iremos notar que um evento específico merece destaque, considerando o seu papel fundamental no processo de legitimação e incorporação de diferentes tendências teológicas e pastorais que culminaram em uma série de avanços e mudanças nas estruturas da Igreja. Estamos nos referindo ao Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), evento convocado por João XXIII (1958-1963), mas continuado por Paulo VI (1963-1978).

Em virtude de sua proeminência, o Vaticano II é considerado como o mais importante evento do catolicismo desde o Concílio de Trento, como salientou Rivas Gutierrez (1995, p. 53-54): “O concílio Vaticano II foi, sem dúvida, o acontecimento mais marcante na vida da Igreja desde o Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563. Este Concílio constituiu o maior legado de João XXIII e de seu sucessor Paulo VI”.

Além de renovar as estruturas da Igreja, este Concílio foi responsável por derrubar de forma oficial uma série de mecanismos de “defesa”, que a distanciavam e a “protegiam” do mundo e de seus “perigos”, enclausurando-a em si mesma. Brighenti (2016, p. 17) nos faz perceber tal postura:

Por falta de um discernimento mais analítico e sereno, consequência da postura de teólogos que se resignavam a repetir um magistério refugiado numa subcultura eclesiástica, a Igreja resolutamente se colocou à margem da emergência no novo projeto civilizacional em curso, imune à interpelação de “novos sinais dos tempos”, suscitados pelo Espírito. Sem entender bem o que estava se passando e com medo dos novos desafios, a Igreja refugiou-se em seu castelo, suspendeu as pontes levadiças e excomungou, em bloco, o mundo moderno. Da mesma forma como a Igreja havia excomungado a Reforma Protestante, também excomungou em bloco a Modernidade.

O Vaticano II sem sombras de dúvidas pode e deve ser visto como um ponto de ruptura com o posicionamento visto acima. Trigo (2019, p.11), ao ponderar sobre a proposta mais estrutural deste Concílio, ajuda-nos a perceber a mudança de postura da Igreja em relação ao mundo: “Consideramos que a proposta mais estrutural e de maior profundidade do Concílio é a de contribuir para a salvação do mundo a partir da encarnação nele”. Nesta mesma direção Passos (2018, p. 46) indica:

O Vaticano II aconteceu para fazer um grande aggiornamento dos modos de pensar e de viver a fé na Igreja Católica dentro do mundo moderno. (...) Isso significava repensar a Igreja como um todo para apresentá-la “sem rugas e sem manchas” ao mundo moderno, marcado por tantas dores e por tantas coisas positivas. A Igreja não poderia fechar-se para o mundo de então, como se fosse cheio de coisas negativas e de perigos contra a fé, mas, ao contrário, deveria esforçar-se por distinguir no mundo “sinais dos tempos”, ou seja, aquilo que Deus quer falar para as pessoas de fé nas coisas presentes.

Absolutamente, o Vaticano II reconfigurou as estruturas da Igreja e a fez ver e discernir os sinais dos tempos no mundo moderno e a partir disso atuar nele. Esta não foi a única característica que fez este Concílio se diferenciar de seus antecessores.

Embora diferentes Papas tenham manifestado o desejo e, até mesmo, trabalhado para a realização de um novo concílio, essa tarefa foi realizada por João XXIII, o outrora Cardeal Ângelo Giuseppe Roncalli, que foi eleito Bispo de Roma após a morte de Pio XII em 1958, cujo pontificado esteve inserido em uma conturbada conjuntura, na qual o mundo assistiu e sofreu com os horrores advindos da ascensão dos regimes totalitários na Europa (Fascismo e Nazismo), e da II Guerra Mundial (1939-1942) que dizimou milhares de vidas.

Ao ser eleito Papa, o então Patriarca de Veneza tinha 77 anos, idade vista por muitos como avançada para assumir tal cargo, o que lhe rendeu o apelido de “O Papa de transição”. Porém, como observou Küng (2002, p. 224), João XXIII “tornou-se o papa de uma transição revolucionária que libertou a Igreja Católica de sua rigidez interna”. Ao analisar a eleição de João XXIII, Alberigo (2006, p.18), assinala:

No dia 28 de outubro de 1958, o conclave havia eleito papa o cardeal Ângelo Roncalli, bispo de Veneza, na perspectiva de um pontificado de transição, ou seja, curto e destinado a superar na tranquilidade os traumas do longo e dramático reinado de Pio XII. Seguramente ninguém esperava de um papa uma surpresa clamorosa, muito menos de um papa quase octogenário uma surpresa daquele alcance.

Neste mesmo itinerário, Souza e Sbardelotti (2018, p.30) elucidam:

Em outubro de 1958 faleceu Pio XII, depois de uma longa enfermidade. O conclave, que se reuniu no mesmo mês, elegeu o patriarca de Veneza, Cardeal Angelo Roncalli com o nome de João XXIII (1958-1963). Sua eleição foi recebida com grande surpresa. Era, para o grande público, um desconhecido. Sua eleição parecer ser mais uma daquelas de simples transição, o cardeal era idoso, 77 anos. (...) Alguns afirmavam que o conclave o havia escolhido, pois não havia entrado em acordo sobre o candidato mais qualificado. Teria sido uma aliança entre os cardeais conservadores e progressistas. Tendo em conta sua idade avançada, seu anonimato, tudo levava a pensar que essa era uma ideia aceitável.

Visto como uma figura transitória, cujo pontificado seria breve, ele surpreendeu o mundo e a Igreja quando, no dia 25 de janeiro de 1959 anunciou o seu desejo de convocar um Concílio Ecumênico. A convocação desse importante evento para a história da Igreja pode ser vista como um dos sinais da abertura de João XXIII à ação do Espírito Santo, que lhe ajudou a ouvir e a interpretar os sinais dos tempos e os clamores do povo e a perceber a necessidade de renovação da Igreja.

O pontificado de João XXIII, assim como o Vaticano II foi marcado pelo diálogo e pelo estabelecimento de pontes, onde outrora havia muros que distanciavam a Igreja do mundo e das outras religiões, desta maneira, assim este Concílio foi de extrema importância para a incorporação e a legitimação do diálogo inter-religioso e ecumênico.

Um concílio é um evento que exige uma minuciosa preparação. Dessa forma, a realização do Vaticano II foi precedida por uma intensa jornada preparatória. Ao refletir sobre este momento que antecedeu este importante acontecimento, Alberigo (2006, p. 44) assegura que:

A preparação para o Vaticano II foi exuberante. Não só perdurou muito além da celebração do concílio como tal, mas teve características institucionais muito relevantes. O papa foi moderador supremo, a cúria romana, a protagonista; o episcopado e os teólogos, sobretudo os europeus, foram sendo consideravelmente envolvidos de maneira progressiva. João XXIII, desejoso de abrir caminho para a celebração mesma do concílio num clima de plena liberdade, afirmara repetidamente que a preparação constituía um momento especial na vida da Igreja católica, bem distinto do governo ordinário de cada dia. Aí estava um convite à cúria, muito velado, para que evitasse interferências.

Após uma ampla preparação, em 11 de outubro de 1962, o mundo assistiu e testemunhou a abertura do Vaticano II, este que foi o mais ecumênico de todos os concílios, no qual estavam presentes bispos de todas as nacionalidades, tal como demonstrou o Cardeal Renard (1968, p. 7-8):

No Vaticano II, todos os continentes estavam representados [...]. O Concílio era realmente a Igreja Católica, isto é, universal. Os bispos das antigas tradições cristãs, orientais e mediterrâneas, trabalhavam com os bispos de todas as jovens cristandades da Ásia e da África, dos quais alguns tinham sido mesmo convertidos do paganismo. 

Valentini (2011, p. 21) nos ajuda a reconstituir a abertura deste importante evento:

As cerimônias de abertura do dia 11 de outubro foram marcadas pela grandiosidade. Os 2.500 bispos, acompanhados pelos superiores maiores de algumas ordens religiosas e pelos observadores de outras igrejas cristãs entraram em procissão na Basílica São Pedro. A expectativa do acontecimento tinha igualmente trazido para Roma muita gente e muitos jornalistas. Das 8 da manhã, as cerimônias se prolongaram até 1 hora da tarde. Afinal, era preciso começar de modo solene um acontecimento tão raro.

O Vaticano II pode ser equiparado a uma primavera inesperada na vida da Igreja, considerando que este fenômeno climático está associado diretamente à renovação, ao reflorescimento da vida após um longo e muitas vezes duro inverno. Entre os principais frutos advindos da primavera conciliar, temos a renovação litúrgica, a legitimação do diálogo ecumênico e inter-religioso e o comprometimento maior por parte da Igreja com os pobres e com as questões sociais.

Outra imagem que pode ser utilizada para demonstrar o que representou o Vaticano II para a Igreja, é pensá-lo como um novo Pentecostes que a encheu de coragem e dinamicidade para anunciar sem medo a Boa Nova do Reino de Deus em meio à um mundo marcado pela pluralidade religiosa e de pensamento, Trigo (2019, p. 7) ao reforçar esta alegoria acerca do Vaticano II, afirma:

(...) o Concílio Vaticano II foi um verdadeiro Pentecostes, no sentido mais forte da palavra, uma efusão do Espírito de Jesus sobre a Igreja, não somente sobre a hierarquia que o realizou, mas sobre todo o povo de Deus e, em certa medida, sobre o mundo. Esse acontecimento conciliar não foi algo meramente conjuntural, mas tem uma envergadura histórica. É um acontecimento tão profundo, tão essencialmente evangélico, que expressa o desígnio de Deus para muitas gerações.

Passado mais de meio século da realização do Vaticano II, muitos ainda desconhecem completamente o que foi este magnifico evento e assim acabam não descobrindo a importância e a beleza das novidades trazidas por este Concílio, que muito tem a colaborar com a Igreja na atualidade. Nesta direção, Trigo (2019, p. 7) argumenta: “Hoje, a maioria dos cristãos as desconhece, seja diretamente, porque nunca leram seus documentos, seja indiretamente, porque nunca lhes foi apresentado nem seu conteúdo nem seu espírito como a boa-nova de Deus que estes representam para nosso mundo e nossa Igreja.”. Diante deste cenário de desconhecimento das diretrizes conciliares é preciso um esforço conjunto para apresentar e até mesmo reapresentar este Concílio para as novas gerações e para aquelas que o conheceram e puderam vivenciar as novidades conciliares, mas que por algum motivo deixaram de lado e até mesmo passaram a rejeitá-las.

A Igreja comprometida com as pessoas consideradas invisíveis consegue colocar em prática a vivência do Evangelho. Ela expressa a atitude de ir ao encontro de cada pessoa, a fim de resgatar a dignidade e a oportunidade de uma vida nova arraigada pela espiritualidade de comunhão. Com efeito, Sbardelotti e Manzato (2022, p. 79) postulam:

Vivemos um período sombrio na sociedade, onde a Igreja dos Pobres, a Igreja em saída tem sido mal interpretada, injustamente desqualificada. A Igreja, quando é perseguida, é mais profética, mais cheia de vida! Ao contrário, quando ela se acomoda, está inerte, não cria problema nenhum para quem oprime e extermina. Uma Igreja comprometida com os pobres, com as pessoas excluídas e descartadas está cumprindo à risca o Evangelho de Jesus de Nazaré!

As pessoas invisíveis se tornam visíveis pela denúncia por parte dos profetas das injustiças presentes dentro e fora da Igreja. Cada cristão, ao realizar o encontro pessoal com Jesus, é impelido a dirigir os seus olhos com ternura àquelas pessoas que estão numa situação de miséria, uma vez que perderam o sentido da vida em face do consumismo exacerbado. Libanio (2005, p. 2021-202) realça uma retomada a respeito dos pobres:

Há duas maneiras de retomar a questão dos pobres: resistir e avançar. Resistir ao desgaste que a opção pelos pobres tem sofrido no interior da Igreja e na sociedade [...] A segunda estratégia é avançar. A força dos pobres está na consciência e na união. Fora daí, eles são massa de manobra. Avançar significa conscientizar, unir organizadamente e pressionar para modificar a realidade interna na Igreja e na sociedade. Alguém pode dizer que já ouviu isso há muito tempo. Como aliás também já ouvimos faz dois mil anos o mandamento do amor. E ainda estas longe de vivê-lo e praticá-lo.

A sociedade de consumo reforça a centralidade em torno do comércio e do trabalho extenuante. Desse modo, propagam-se, cada vez mais, nas regiões centrais das comunidades a simples noção de venda e compra de mercadorias, de modo que as relações humanas de família se tornam escassas e, muitas vezes, transportadas às periferias das comunidades. Disso resulta a diminuição do tempo familiar e o aumento exorbitante do trabalho, tanto para ir e voltar do emprego presencial, quanto da duplicação de atividades no serviço não presenciais, no qual é possível trabalhar na própria casa ou apartamento. Segundo Brighenti (2021, p. 188), urge a necessidade de um novo modelo pastoral:

Na fidelidade às instituições fundamentais e aos eixos temáticos da renovação conciliar e da tradição libertadora é preciso gestar um novo modelo de pastoral, que acolha as novas realidades emergentes e abra novas perspectivas de presença e de atuação dos cristãos na Igreja e na sociedade. É o que Aparecida e o pontificado de Francisco estão propondo, através de um modelo de pastoral que se poderia denominar de “conversão missionária”, na medida em que rompe com a tentação de uma Igreja “autorreferencial”, a postura típica do período de cristandade, e situa a Igreja nas “periferias existenciais”.

Em contrapartida, o anúncio do Evangelho parte da humanização das atitudes cristãs, porque é fundamental o reconhecimento da precariedade humana e da responsabilidade que se abre no seguimento de Jesus. O cristão necessita ter a sensibilidade de se alegrar com a decisão do pobre em entrar na dinâmica da experiência fraternal em comunidade. Disso decorre que Barreiro (2006, p. 110) sublinha minuciosamente a percepção de Jesus em relação aos pobres:

A parábola do homem rico, que vivia vestido com roupas finas e fazendo banquetes, e de Lázaro, o pobre e doente que pedia esmola na frente da mansão do rico (Lc 16,19-31), comentada no ponto anterior, mostra que Jesus tinha conhecimento direto da existência de homens ricos e insensíveis ao sofrimento dos pobres. Esse conhecimento aparece com todo realismo na parábola do joio e do trigo (Mt 13,24-30), que descreve as brigas e vinganças entre fazendeiros e camponeses; aparece também na parábola que descreve o comportamento do dono da terra que mora longe e deixa que o caseiro ou meeiro cuide dela e de seus bens (Mt 21,33); nas parábolas que falam dos comportamentos dos administradores corruptos e expertos, prepotentes e cruéis, dos comportamentos dos empregados honestos; e ainda nas parábolas que falam do desespero que leva o pobre a explorar seu companheiro (Lc 16,1-7; Mt 18,27-30).

A missão de apresentar e reapresentar o Vaticano II se faz necessário e mais do que isso, se faz urgente, considerando a atual conjuntura na qual estamos inseridos, sendo está marcada pela proliferação da chamada “Globalização da Indiferença”, geradora de frutos de sofrimentos e de morte, sobretudo, para os mais pobres e vulneráveis da sociedade. Esta dupla tarefa também se faz necessária em virtude do aumento de grupos que negam e difamam este importante Concílio, bem como todo o seu esforço que introduziu a Igreja em uma nova etapa histórica e eclesiológica. (Coloquei novamente este parágrafo no lugar da citação).

Francisco, Reconstrói a minha Igreja

O ano de 2013 sem dúvidas entrou para a história da Igreja como um ano atípico, considerando os fatos que ocorreram nele, entre os quais podemos destacar a renúncia papal de Bento XVI, primeiro Papa a abdicar de seu cargo desde Gregório XII em 1415. Outro fato que marcou aquele ano foi a escolha do Cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio como sucessor de Pedro.

Ao indagarmos sobre contexto pós renúncia de Bento XVI iremos notar que ele foi marcado pela instauração de um clima de suspense, de incertezas e pela formulação das mais variadas hipóteses sobre os rumos da Igreja a partir daquele acontecimento, que pegou não apenas o mundo católico de surpresa.

Diante da inesperada renúncia do então Papa, tivemos a convocação dos cardeais, para assim dar início ao conclave, reunião responsável pela escolha do novo Pontífice. Como era de se esperar as atenções do mundo se voltaram para a Capela Cistina, na qual os cardeais eleitores estavam reunidos para eleger o novo sucessor de Pedro.

No dia 13 de março de 2013, a Praça de São Pedro estava completamente lotada, o que vinha acontecendo desde o início do conclave, afinal de contas, o mundo ansiava por conhecer o novo Papa. Após muita expectativa na noite daquele dia às 19h:00 do horário local, a multidão ouviu os sinos e viu a fumaça branca saindo pela chaminé, que juntos anunciavam que o novo Papa havia sido eleito. A Cátedra de Pedro já não estava mais vaga, um novo Bispo de Roma estava prestes assumi-la, mas, ninguém imaginava o que estava por vir, o novo Papa era o cardeal argentino Jorge Mário Bergoglio, agora chamado Francisco. O’Malley (2021, p. 67-68) constata o clima de surpresa e espanto com a renúncia de Bento XVI e a consequente eleição de Francisco:

Ninguém esperava que Bento XVI renunciasse. Ninguém esperava que Jorge Mario Bergoglio fosse eleito como seu sucessor. (Na especulação antecedente ao conclave praticamente ninguém mencionou o seu nome, apesar de ter recebido tantos votos no conclave anterior.) Ninguém esperava que o sucessor de Bento assumisse um perfil tão diferente do dele e o fizesse a partir do momento em que foi eleito. Ninguém esperava que o novo papa acendesse um entusiasmo quase maníaco e que o fizesse não apenas entre os católicos, mas também entre pessoas de outras tradições religiosas e, ainda mais surpreendente, em pessoas sem qualquer crença religiosa. De repente, uma longa era parecia ter acabado e uma nova parecia ter começado.

Por diferentes razões o sucessor de Bento XVI já assumiu o seu pontificado entrando para a história, considerando ser ele o primeiro Papa de Origem latino-americana, o primeiro Papa pertencente a Companhia de Jesus. Estas não foram as únicas inovações trazidas por ele, o seu nome também representou uma novidade, considerando ser ele o primeiro Papa a chamar-se Francisco. Mas o que a escolha deste nome representaria? Seria o indício de que a Igreja trilharia efetivamente os caminhos que a conduziria a ser uma Igreja Pobre e para os Pobres? Significaria uma Igreja mais engajada com as questões ambientais e sociais? Representaria um retorno ao aggiornarmento iniciado por João XXIII? Ou quem sabe ainda a escolha deste nome representaria um resumo de todas estas questões e tantas outras que poderiam ser resumidas em uma frase dita a um outro Francisco: “Francisco, reconstrói a minha Igreja!”.

O Papa Francisco foi o primeiro Papa formado no espírito do Concílio Vaticano II, como observou Passos (2018, p. 45): “Francisco é o primeiro papa filho da era conciliar. Os demais papas que vieram depois do grande sínodo, foram formados na fase anterior dento das referências do Vaticano I; viveram, portanto, de alguma forma e com alguma intensidade, as duas fases que compõem a Igreja desde aquele epicentro renovador”. Nesta mesma direção O’Malley (2021, p. 71) sugere:

O Papa Bergoglio, primeiro papa em 50 anos a não ter participado do concílio, é também o primeiro papa a ter crescido na Igreja pós-concílio e, assim, ter aceitado o concílio como um fato de vida. (...) Ele ainda era um estudante de teologia enquanto o concílio estava em sessão e foi educado em seus documentos como a substância de sua formação teológica.

Embora o Vaticano II tenha sido um evento global, foi sobretudo na América Latina que as suas diretrizes encontraram solos férteis e desta maneira suscitaram o surgimento de novas formas de eclesialidade. Domezi (2014, p. 62) nos ajuda a recompor este cenário marcado pela aplicação concreta das diretrizes conciliares em solo latino-americano e caribenho:

(...) na América Latina o Concílio saiu das preposições e fez-se carne em realidades específicas. No entanto, é importante reconhecer que foi o Concílio Vaticano II que abriu uma oportunidade sem precedentes para o novo protagonismo da Igreja católica na América Latina e no Caribe, especialmente com a nova autocompreensão eclesial, nova relação da Igreja com o mundo contemporâneo, respeito e diálogo com as diferentes culturas. Abriu oportunidade especialmente com a decidida opção pelo “homem”.

O Papa Francisco foi formado neste rico contexto histórico e eclesiológico no qual a Igreja se mantendo fiel as suas raízes evangélicas e impulsionada pelo Vaticano II buscava constantemente ouvir, interpretar e atender os clamores do povo, bem como estar junto dele, mesmo quando isso representava algum risco, considerando que muitos países latino-americanos estavam sobre a tutela de regimes autoritários que não viam com bons olhos o processo de renovação da Igreja e assim passaram a perseguir sistematicamente muitos membros do clero e leigos que legitimados pelas diretrizes conciliares estavam juntos dos mais pobres e sofredores.

Por ter tido a coragem profética de denunciar as mais diversas injustiças e sofrimentos infligidos ao povo, sobretudo, aos mais pobres, a Igreja foi vítima de perseguição e vexação, como vemos no Documento de Puebla (1979, n. 1138): “A denúncia profética da Igreja e seus compromissos concretos com o pobre causaram-lhe, em não poucos casos, perseguições e vexames de vários tipos: os próprios pobres têm sido as primeiras vítimas de tais vexames.”

O contexto no qual o Papa Francisco foi formado, também foi marcado pela recepção e pela busca da aplicação e vivência do Concílio, como fruto direto deste esforço a Igreja latino-americana e caribenha realizou as Conferências de seu episcopado em Medellín (1968) e em Puebla (1979). É impossível não perceber a forte influência destes eventos na maneira de Francisco pastorear o rebanho a ele confiado, assim, além de recuperar e reanimar o Espírito Conciliar, Francisco também universaliza as mensagens das Assembleias Gerais do Episcopado Latino-Americano e Caribenha, pós Vaticano II. A Recepção conciliar na América Latina associada a tradição inaciana e ao Método Ver, Julgar e Agir, fizeram parte de sua formação teológica e humana e hoje repercutem em seu pontificado.

Desde os primeiros momentos de seu pontificado, Francisco demonstrou ao mundo que o mesmo seria marcado pela simplicidade, pela sobriedade, pelo diálogo, pelo cuidado com os mais pobres e pela recuperação do espírito conciliar e das conferências gerais do episcopado latino-americano e do caribe, sobretudo, Medellín e Puebla e mais recentemente a de Aparecida. Em suma, Francisco com seus gestos demonstrou que sob o seu pontificado a Igreja entraria em uma nova fase de sua evangelização, cujo resultado principal seria o estabelecimento de uma Igreja em saída, como ficou claro na Exortação Apostólica Evangelii Guadium, primeiro documento de seu pontificado.

A chegada de Francisco à Cátedra de São Pedro representou um reavivamento do espírito conciliar, tão arrefecido ao longo dos anos. Por outro lado, também despertou a ira de setores tradicionalistas e sectários que atuam no interior da Igreja e se colocam contra a sua renovação e em decorrência deste processo promovido por ele, passaram a considerá-lo como uma ameaça que deve ser a todo custo combatida.

O pontificado de Francisco também é atacado constantemente por aqueles que se colocam contra a missão profética da Igreja que consiste em anunciar o Reino de Deus e a sua Boa Nova, mas também implica em denunciar aquilo que vai de encontro com o projeto de Salvação. Passos (2020, p. 157-158) nos faz perceber o pesado clima de oposição enfrentado por Francisco:

O pontificado de Francisco entra para a história como um projeto reformador e exercido em meio agressivas oposições advindas de setores conservadores da sociedade mundial. Para além das regularidades sociológicas do catolicismo, tem emergido uma nova frente de oposição ao Papa Francisco dentro e fora da Igreja, sem quaisquer escrúpulos eclesiais, políticos ou diplomáticos, sem territórios confessionais definidos e sem disfarces eclesiais que preservem a tradicional comunhão e fidelidade católicas. Pode-se verificar uma antipatia política mundializada em relação ao Pontífice latino-americano, bem como estratégias que o desqualificam perante a opinião pública, como politicamente ingênuo e irresponsável (por suas críticas ao capitalismo), como imoral (liberdade em relação aos casais de segunda união) e herético (por seus ensinamentos doutrinais). Francisco tem sido visto como ameaça a interesses de grupos econômicos que sempre mantiveram alguns tentáculos no pequeno estado de que é chefe, mas também por se posicionar contra os interesses do capital improdutivo (Dowbor, 2017) que domina o planeta e se afirma nesse momento de crise como único e imprescindível e com estratégias novas de defesa do bloco ocidental contra os demais inimigos.

Apesar deste cenário de oposição sistemática, Francisco continua a sua missão profética de anunciar o Reino de Deus e a denunciar as mais variadas injustiças presentes em nossa época, mantendo-se fiel à Palavra de Deus, ao Magistério e à Tradição da Igreja.

Francisco e a Igreja dos Pobres

É possível identificar no pontificado de Francisco diversos fatores que evidenciam o seu comprometimento com a aplicação e a efetivação das diretrizes conciliares, entre os quais podemos destacar: O seu empenho com os mais pobres, com o processo de sinodalidade e com a reforma da Cúria Romana. Embora vários sejam os elementos advindos do Vaticano II recuperados pelo pontificado de Francisco, aqui iremos abordar apenas um, a sua preocupação e seu engajamento com o projeto de uma Igreja Pobre e para os Pobres.

O Papa Francisco, constantemente nos adverte sobre a necessidade de cuidar dos mais pobres e vulneráveis de nossa sociedade, tal preocupação, faz com que autores como Aquino Júnior (2018, p. 21) perceba que a centralidade dada por Francisco aos mais pobres em seu pontificado é a característica e o aspecto mais marcante do seu ministério pastoral:

A característica mais importante e mais determinante do ministério pastoral de Francisco como bispo de Roma é sua insistência teológico-pastoral na centralidade dos pobres e marginalizados de todas as pessoas que sofrem na vida e missão da Igreja. Eles estão no coração da Igreja e marcam radical e definitivamente sua identidade e sua missão no mundo. A tal ponto que ela se constitui como “Igreja pobre para os pobres” ou “Igreja em saída para as periferias.

Antes de abordarmos o tema conciliar Igreja dos Pobres, recuperado por Francisco, vamos refletir um pouco acerca da pobreza, para assim percebermos que esta preocupação do atual Papa, é na verdade uma inquietação da Igreja e faz parte de sua Tradição, mas que infelizmente muitas vezes foi sendo deixada de lado e até mesmo esquecida, mas não excluída por completo de sua vida.

O tema pobreza já foi largamente estudado e defendido por diferentes autores e santos ao longo da história. Ademais, a sua vivência foi e continua a ser almejada por diferentes religiões, assim como frisou Gauthier (1967, p. 14) ao refletir sobre este tema: “(...) foi amplamente estudado por religiosos, sacerdotes, bispos, leigos... Isto, aliás, não é exclusivo ao cristianismo: o budismo, o hinduísmo, o islamismo, o judaísmo têm sentido muito vivo da pobreza como virtude, ou melhor, como bem-aventurança”. Embora Gauthier (1967, p.13-14) perceba que a pobreza é vivenciada por diferentes segmentos religiosos, ele nota a existência de diferentes maneiras de vivê-la:

(...) a pobreza evangélica é bem distinta da budista. Ela não é nem moralista, nem antropocêntrica. É centrada em Jesus (...) Jesus quis ser pobre e pregou a pobreza não somente como uma libertação espiritual ou moral, mas como uma condição da Encarnação redentora, como a passagem necessária à Bem-aventurada Ressurreição, como a preparação de sua volta. Se a pobreza ocupa êste lugar no mistério de Cristo, é normal que ela tem lugar também no mistério de Igreja, seu corpo e sua esposa.

Vemos, assim, a importância que a pobreza ocupou na vida de Cristo e, por consequência, na vida da Igreja. Neste sentido, muitos foram os membros desta instituição que passaram a defender e viver a pobreza e, desta maneira, passaram a denunciar aqueles que de maneira sádica se aproveitavam dos mais pobres. Entre aqueles que levantaram sua voz em defesa dos mais pobres, podemos destacar São João Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla, tido como um dos pais do cristianismo primitivo.

São João Crisóstomo ficou bastante conhecido por sua coragem profética ao anunciar o Reino de Deus e ao denunciar as injustiças que iam de encontro a ele. Em sua missão profética, ele não poupava lideranças políticas, econômicas e até mesmo eclesiásticas e féis que acabaram se distanciando do propósito original do cristianismo. Suas homilias e sermões eram momentos nos quais ele proferia contundentes denúncias à realidade na qual ele e a Igreja de sua época estavam inseridos o que acabou sem dúvidas despertando a ira de muitos que o ouviam. Em umas de suas homilias ele denunciou a hipocrisia e indiferença daqueles que frequentavam a Igreja, mas fechavam os olhos para os sofrimentos dos pobres que como nos lembra o Evangelista Mateus é o próprio Cristo abandonado (cf. Mt 25, 31-46), assim São João Crisóstomo (in GONZÁLEZ FAUS, 1986, p. 25) afirma:

Saímos da igreja e contemplamos fileiras de pobres que formam como muralhas de um e de outro lado. E passamos ao largo, sem nos comover, como se víssemos colunas e não corpos humanos. Eu o repito: apertamos os passos como se víssemos estátuas sem alma em lugar de homens que respiram. “É que vamos com fome”, me respondeis. Pois precisamente a fome vos faria persuadir a vos deter, porque, como diz o refrão: barriga cheia desconhece o faminto; só quem passa precisão reconhece a necessidade alheia pela sua própria... Ides correndo para vossa mesa preparada e não aguentais alguns momentos de espera. E o pobre estará ali de pé, até que caia o dia, a ver se assim recolhe o sustento diário.

Em uma outra ocasião, São João Crisóstomo (in GONZÁLEZ FAUS, 1986, p. 32-33) continuou a tecer duras críticas, sobretudo, aos que se preocupam com os bens terrestres e esquecem do fundamental:

Não pensemos que basta para nossa salvação trazer à igreja um cálice de ouro e pedraria, depois de ter despojado viúvas e órfãos. Se queremos honrar o sacrifício da Cruz, apresenta tua alma pela qual ele foi oferecido. (...) A igreja não é museu de ouro e prata mas reunião de anjos. Na última ceia não era de prata a mesa, nem o cálice em que o Senhor deu aos discípulos seu próprio sangue. O sacramento não precisa de preciosas toalhas mas de almas pura. Ao invés, os pobres sim que requerem muito cuidado.

São Clemente de Alexandria, na sua obra O pedagogo (2014), situa a relação pedagógica de Jesus com os discípulos. Ele é um profundo pedagogo, porque instrui cada pessoa como uma criança não no sentido de torná-las mimadas e manipuladas por interesses particulares de competição ou de fechamento em pequenos grupos, pelo contrário, Jesus deseja que a pessoa ao se tornar cristã tenha sempre como modelo de comportamento a imagem da criança (cf. Mt 18,4). Assim, ser como uma criança significa não abandonar a curiosidade e a simplicidade. O Verbo se fez carne para ensinar a prática e a teoria da virtude. O cristão virtuoso é consciente de uma Igreja dos Pobres.

A pobreza é um tema atemporal, visto que não apenas os pais do cristianismo nascente se dedicaram a ela, muitos santos modernos e contemporâneos também fizeram de suas vidas um ato de entrega aos mais pobres, somos herdeiros desta tão bonita e necessária tradição.

O Papa Francisco, constantemente por meio de gestos simples e afetuosos humaniza homens e mulheres inviabilizados por um sistema gerador de fome e de morte. A preocupação de Francisco com os mais pobres está presente em seus pronunciamentos, discursos e escritos nos quais constantemente o vemos falar na chamada Igreja dos Pobres. Aquino Júnior (2018, p. 30) nos mostra a origem deste termo:

A expressão “Igreja dos pobres” remonta à mensagem do Papa João XXIII ao mundo no dia 11 de setembro de 1962 – um mês antes da abertura do Concílio Vaticano II. Falando de Cristo como luz do mundo e da missão da Igreja de irradiar essa luz em um mundo que “enfrenta graves problemas”, o papa diz que a Igreja tem se voltado para esses problemas e que o concílio “poderá chegar a propostas de solução [...] com base na dignidade do ser humano e com sua vocação cristã”. (....) E, de modo surpreendente e inesperado, apresenta o que qualifica como “outro pronto luminoso”: “Pensando nos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta e quer ser a Igreja de todos, em particular, a Igreja dos pobres.

Embora a fala de João XXIII acerca da Igreja dos Pobres tenha desempenhando um papel profético, este termo não apareceu nenhuma vez nos documentos conciliares. Contudo, no interior do Concilio, surgiu um grupo de padres conciliares que estavam atentos aos clamores do povo e começaram ainda na primeira sessão deste concílio a pensar e a se articularem para que a evangelização dos pobres e o apostolado juntos aos operários estivessem no centro das discussões conciliares. Nesta direção, Brighenti (2016, p. 86) afirma:

O apelo do papa encontrou eco em bom número de padres conciliares, entre eles o Cardeal Lercaro, de Bolonha. Já na Primeira Sessão constitui-se em torno dele um grande grupo de trabalho denominado “Igreja dos Pobres”. Incialmente, eram onze bispos predominantemente de língua francesa e nove bispos brasileiros, entre os quais Dom Helder Camara. Pouco depois, o grupo chegou a trinta seis, entre eles o Patriarca Maximos IV e dezesseis bispos brasileiros. Ao final do Concílio, o grupo tinha trinta e nove membros, dentre os quais vinte eram latino-americanos. Os trabalhos de secretaria estiveram a cargo de Paul Guarthier e Marie-Therèse Lescase.

O grupo da Igreja dos Pobres, inicialmente estava em torno de Paul Guarthier, que estava no concílio a convite do Mons. Hakin Bispo Melquita. Paul Guarthier, havia sido padre e professor do seminário de Dijon na França, todavia, deixou o ministério sacerdotal e tornou-se operário em Nazaré e lá em torno dele acabou sendo formada a Fraternidade dos Companheiros de Jesus Carpinteiro. Os integrantes deste grupo buscavam viver como Jesus e para tal residiam e trabalhavam na periferia de Nazaré. Além de Paul Guarthier, Mons. Hakim levou consigo a irmã Marie-Thérèse, que deixou o Carmelo e fundou o ramo feminino da Fraternidade fundada por Paul Guarthier.

Estes dois personagens tiveram um papel de extrema importância no processo que culminou com o Pacto das Catacumbas, tendo em vista que eles ao chegarem em Roma logo iniciaram uma série de diálogos com Bispos dispostos a abraçar o projeto de uma Igreja servidora e pobre. Tais contatos objetivavam trazer para o concílio um direcionamento voltado para os mais pobres e marginalizados da sociedade. Entre os primeiros adeptos deste projeto temos Dom Helder Pessoa Câmara, arcebispo de Olinda e Recife. Posteriormente outros bispos foram se aproximando deste grupo, inclusive “figuras de proa” como destacou Beozzo (2015, p. 11-12):

Havia entre eles algumas figuras de proa do Concílio, como o Cardeal Pierre-Marie Gerlier de Lyon e seu bispo auxiliar, Mons. Alfred Ancel, do Instituto do Prado e que fora padre operário, assim como o cardeal de Bolonha, Giacomo Lercaro. Este se fez representar no grupo por um padre de sua diocese, Giuseppe Dossetti. Passaram a encontrar-se no pequeno apartamento alugado por Paul Gauthier e depois no Colégio belga. Propunham-se a “alimentar uma sensibilidade entre os membros do Concílio aos problemas da pobreza da Igreja e ao anúncio evangélico aos pobres”.

O Grupo da Igreja dos Pobres impactou profundamente seus membros, cujos anseios iam ao encontro das reflexões e discussões travadas neste grupo composto por pessoas com histórias distintas e vindas das mais diferentes realidades, contudo, percebiam que a Igreja e o Vaticano II não deveriam fechar os olhos para os sofrimentos dos mais pobres e assim fazer da pobreza tema central deste importante evento que modificou a história do cristianismo. Embora o trabalho do grupo da Igreja dos Pobres tenha sido intenso e produzido diferentes frutos, sobretudo em seus membros, suas contribuições ficaram em grande medida às margens do Vaticano II, como observou Brighenti (2016, p. 87):

Por razões diversas, o ideal de João XXIII de uma “Igreja pobre e para os pobres” e as contribuições do trabalho do grupo “Igreja dos Pobres”, em grande medida, ficou à margem do Concílio. Esperava-se que entrasse, pelo menos, na Gaudium et Spes, mas na sua gestão foi difícil e de forma ainda prematura teve de ser promulgada no final da Quarta Sessão, sem que a questão dos pobres fosse estruturante do texto.

Mesmo diante deste quadro, o trabalho e esforços do Grupo da Igreja dos Pobres não desapareceu no com o encerramento do Concílio, considerando que ao final da 4ª Sessão, mais precisamente no dia 16 de novembro de 1965, cerca de 42 Bispos de diferentes localidades do mundo, celebraram a Eucaristia nas catacumbas de Santa Domitila e lá estes prelados assinaram um pacto que evidenciou o seu comprometimento efetivo com os mais pobres. Embora o grupo da Igreja dos Pobres não tenha conseguido colocar em prática o seu projeto, os seus integrantes foram profundamente tocados por este tema e ao voltarem para as suas dioceses de origem além de buscarem implementar as diretrizes conciliares, buscaram efetivar os 13 pontos do Pacto das Catacumbas.

Após o Vaticano II, a chamada Igreja dos Pobres foi ganhando forma, sobretudo a partir das Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979) e recentemente reanimada pela Conferência de Aparecida (2007). Estas conferências marcaram o processo de recepção e aplicação e reavivamento do Vaticano II na América Latina e marcaram profundamente Francisco, que foi formado e atuou neste ambiente no qual aprendeu a ser próximo dos que sofrem. Vemos assim, as origens do posicionamento profético de Francisco que o faz criticar e denunciar o atual sistema econômico, responsável por excluir aqueles que não podem arcar pelos benefícios da globalização e assim acabam entrando em uma nova categoria a dos sobrantes, categoria esta que tem aumentado consideravelmente nos últimos tempos. Diante deste cenário desolador o Papa Francisco constantemente nos convida a sermos uma Igreja em Saída e abraçarmos o projeto de uma Igreja pobre e para os pobres. Nesta direção Trigo (2019, p. 63-64) comenta:

(...) desde sua primeira alocução à imprensa, deixou claro seu desejo de que a Igreja fosse uma Igreja pobre para os pobres. Por essa razão, as celebrações mais solenes do ano litúrgico, celebrou-as com esses remanescentes, entre os quais sempre se incluíram pessoas de cultura não ocidental e de religião não cristã. E celebrou-as no lugar onde se encontravam: foi ao encontro delas em tais lugares. Por isso, em suas viagens apostólicas, jamais falta a visita aos presos, os quais, além do mais, são quase sempre pobres, aos enfermos, também quase sempre pobres, às vezes crianças, às vezes anciãos, a imigrantes e refugiados, como também a dois setores particularmente atingidos pelo sistema e decisivos para uma alternativa humanizadora: os jovens e as famílias, e também aos trabalhadores, aos movimentos populares e aos que se solidarizam com todos eles.

Aquino Júnior (2018, p. 21) corrobora com o posicionamento visto acima, ao afirmar:

A característica mais importante e mais determinante do ministério pastoral de Francisco como bispo de Roma é sua insistência teológico-pastoral na centralidade dos pobres e marginalizados de todas as pessoas que sofrem na vida e missão da Igreja. Eles estão no coração da Igreja e marcam radical e definitivamente sua identidade e sua missão no mundo. A tal ponto que ela se constitui como “Igreja pobre para os pobres” ou “Igreja em saída para as periferias.

O comprometimento de Francisco com os mais pobres pode ser visto de maneira clara, não apenas por seus discursos, mas também por meio de gestos concretos, por exemplo, a criação da lavanderia gratuita, a construção de um complexo composto por banheiros e duchas. Além destas iniciativas, Francisco uma vez por ano recebe e almoça com os mais pobres, dando assim o exemplo ao mundo de que é preciso se fazer presente na vida destes nossos irmãos.

O empenho de Francisco com os mais pobres também foi evidenciado quando no ano de 2017, ele criou o Dia Mundial dos Pobres, referindo-se a este dia tão profético para os tempos atuais, o Papa Francisco na Carta Apostólica Misericordia et misera (2016, n. 21), apontou:

Será a mais digna preparação para bem viver a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, que Se identificou com os mais pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia (cf. Mt 25, 31-46). Será um Dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa (cf. Lc 16, 19-21). Além disso este Dia constituirá uma forma genuína de nova evangelização (cf. Mt 11, 5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia.

A criação do Dia Mundial dos Pobres, mais do que evidenciar a preocupação evangélica do Papa Francisco com os mais vulneráveis de nossa sociedade, é também um profundo convite a assumirmos as mesmas posturas de Jesus diante dos sofredores. 

O Dia Mundial dos Pobres, também objetiva demonstrar ao mundo a importância que a pobreza ocupou no Evangelho e como tal deve também ocupar em nossas vidas. Este dia deve ser assumido por todos nós como parte integrante da nova evangelização, que busca renovar o rosto da Igreja, fazendo-a testemunha da misericórdia.

Considerações finais

O Papa Francisco desde que assumiu a Cátedra de São Pedro vêm surpreendendo o mundo por seu jeito simples e por seu comprometimento com os mais pobres. Ao buscarmos as origens deste comportamento iremos notar que ele foi o primeiro papa filho do Vaticano II desta maneira ele vivenciou todo o esforço da Igreja latino americana para aplicar as diretrizes conciliares e deste esforço tivemos a realização das conferências de Medellín e de Puebla, por meio das quais a Igreja neste continente inspirada pelo Espírito Santo e atenta aos sinais dos tempos, bem como influenciada pelo rogos vindo do Concílio por uma Igreja Pobre e para os pobres, assumiu de forma oficial a opção preferencial pelos mais pobres, mesmo sabendo que tal postura representaria uma série de perseguições aos seus membros. Assim, para bem compreendermos a atual postura de Francisco, que a muitos incomoda e desperta a ira é preciso compreendermos o contexto do qual ele é filho.

Francisco, por meio de gestos concretos nos convida a assumirmos a nossa missão de construtores e anunciadores do Reino e da Boa Nova, desta forma é preciso imitarmos o exemplo de Cristo, que por meio do Mistério da Encarnação se fez homem e habitou entre nós, vivendo em uma realidade concreta, com todos os seus desafios, dissabores e alegrias. Assim como Cristo, devemos nos comprometer com os mais frágeis de nossa sociedade, com homens e mulheres que não são notícias, que não são vistos e nem lembrados. Francisco nos ensina quase que diariamente que não podemos nos fechar em nossas zonas de conforto, é preciso sair e ir ao encontro daqueles que sofrem, daqueles que estão às margens da sociedade.

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