A fala do pastor ungido: Malafaia e o discurso bolsonarista

The speech of the anointed pastor: Malafaia and the Bolsonarist discourse

Alessandro de Melloo Gomes
Mestrando em Análise do Discurso pela FUV, Especialista em Gestão em Assessoria de Comunicação pela FAESA e Bacharel em Comunicação Social pela FAESA. Professor dos cursos de Publicidade e Propaganda, Administração e Pedagogia (ambos da Faculdade Novo Milênio). Contato: alessandro.comus@gmail.com

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Resumo: Este artigo tem como objetivo estudar as estratégias persuasivas adotadas no discurso religioso do líder da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Pastor Silas Malafaia, que foi proferido em um culto que contou com a presença do então presidente da República e também candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, além de outras autoridades políticas. A escolha desse tema se deu devido a relevância do assunto para a sociedade, já que o líder religioso em questão era declaradamente apoiador do candidato Bolsonaro e fazia campanhas para ele dentro e fora da igreja. Supõe-se que o apoio de uma reconhecida liderança evangélica nacional, como é o caso de Malafaia, pode interferir na escolha dos fiéis. Para tanto, serão abordados fatos que ocorreram no contexto do discurso em sua forma e conteúdo.

Palavras-chave: Discurso Religioso; Análise do Discurso; Persuasão; Ciências da Religião

Abstract: This article aims to study the persuasive strategies adopted in the religious speech of the leader of the Assembly of God Church Vitória em Cristo, Pastor Silas Malafaia, which was delivered in a service attended by the then President of the Republic and also a candidate for re-election, Jair Bolsonaro, in addition to other political authorities. The choice of this topic was due to the relevance of the subject to society, as the religious leader in question was a declared supporter of candidate Bolsonaro and campaigned for him inside and outside the church. It is assumed that the support of a recognized national evangelical leadership, as is the case of Malafaia, can interfere in the choice of the faithful. To this end, facts that occurred in the context of the speech in its form and content will be addressed.

Keywords: Religious Discourse; Speech analysis; Persuasion; Religious Sciences

Introdução

A Análise do Discurso tem contribuído muito para pesquisadores penetrarem no mundo do discurso religioso e esclarecer pontos importantes para o entendimento do conteúdo simbólico e persuasivo dele.

Por isso, neste artigo vamos discorrer sobre algumas estratégias discursivas usadas para persuadir o receptor e colocá-lo como participe de uma determinada ideologia de maneira passiva.

Este estudo tem como base a análise de trechos de um discurso do Pastor Silas Malafaia, que supostamente tinha a intenção de fazer campanha para o candidato Jair Bolsonaro. Ao final do artigo esperamos que seja possível enxergar se a fala dele é legitimada e como ocorre a tentativa de angariar votos para Bolsonaro por meio do discurso religioso.

O mote principal do artigo está no uso do discurso religioso de Malafaia como produto intelectual para persuadir o interlocutor, fato que ocorre dentro de um quadro temporal vivo e de fortes transformações sociais advindas de um período de muitas notícias falsas, de ódio, de busca pelo poder e de incertezas. 

Analisando por esta linha vamos perceber que o fiel é tradado como um simples consumidor do produto/discurso. Ele recebe o pacote de informações pronto e não lhe é permitido contestar, pois aquilo que o líder diz é verdadeiro e autorizado por Deus.

Discurso e ideologia

O discurso faz parte do cotidiano das sociedades e está presente de várias maneiras na vida das pessoas, afinal é por meio dele que circulam os saberes e a cultura. Ao contrário do que se pode pensar, ele não é composto apenas por palavras, mas por tudo aquilo que forma uma mensagem, sejam instrumentos verbais ou não verbais.

O discurso pode ser comparado a um caminho, pois é por meio dele que a mensagem é levada a alguém que a decodificará. É o discurso que consolida a significação daquilo que por vezes pode parecer um mero simbolismo, porém o lugar do “trabalho simbólico do discurso está na sua base da produção da existência humana.” (ORLANDI, 1999, p. 15).

E é exatamente por ser uma atividade humana que o discurso sofre influência direta da ideologia de quem o cria, de quem o emite e de quem o recebe, ou seja, ele carrega o ethos daquele que fala, por isso é possível afirmar que não existe um discurso virgem, que seja livre dos valores do emissor. É importante salientar que do outro lado o receptor também é detentor de conhecimentos, então o discurso será interpretado também de acordo com o que pensa e acredita aquele que recebe a mensagem. Resumindo, o discurso sempre carregará em si um pouco da pessoa que fala e também assimilará os pensamentos de quem o recebe.

Seguindo na mesma direção de conceituação, bem como considerando a afirmativa contida no parágrafo anterior, pode-se alegar que o discurso é fruto da interdiscursividade e da intertextualidade, neste sentido observa-se que a carga ideológica que está operando fortemente nele é, também, fruto de outros discursos que estão para além do pensamento do emissor e do receptor, pois estes já estão previamente contaminados por outros conhecimentos adquiridos de livros, conversas, debates, discursos televisados e radiofonizados, etc.

Nesta linha de raciocínio, torna-se perceptível que ao formar uma frase, ou construir uma fala, as palavras já não encontram mais sentido somente em si mesmas, pois, uma vez postas dentro do discurso, elas estarão carregadas de ideologia[1] e compromissadas com o todo da enunciação, além de que estará sujeita a compreensões diversas. “O fato mesmo da interpretação, ou melhor, o fato de que não há sentido sem interpretação, atesta a presença da ideologia.” (ORLANDI, 1999, p. 45).

A ideologia não é algo que se aprende, pois não é o saber que moldará o inconsciente de alguém, ela está muito mais na zona da interpretação feita pelo receptor e na herança deixada pela língua. É nesse campo que tanto os sentidos como os sujeitos começam a ser constituídos. A ideologia produz “evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência.” (ORLANDI, 1999, p. 46). Ao ser provocada pela ideologia a pessoa é motivada a existir. É também por isso que

A ideologia, por sus vez, neste modo de a conceber, não é vista como um conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação de realidade. Não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto prática significante, a ideologia aparece como efeito de relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido. E como não há uma relação termo-a-termo entre linguagem/mundo/pensamento essa relação torna-se possível porque a ideologia intervém com seu modo de funcionamento imaginário. São assim as imagens que permitem que as palavras ‘colem’ com as coisas. Por outro lado, como dissemos, é também a ideologia que faz com que haja sujeitos. O efeito ideológico elementar é a constituição do sujeito. (ORLANDI, 1999, p. 48).

É bom que se diga que o discurso não é algo acabado, pois ele depende da interpretação do interlocutor, mas isso não impede que ele seja ideológico, muito pelo contrário. É exatamente por ser passível de responsividade que ele é aberto, possível de ser praticado e composto de historicidade, fatos que contribuem para ele ser um instrumento carregado de ideologia, independente de qual seja ela.

Discurso e emoção

Como pudemos perceber até aqui, o discurso é compromissado tanto com a ideologia do falante como com a do ouvinte, além disso ele está diretamente ligado à construção do sujeito. Se é assim, podemos afirmar que ele é portador de informações que são capazes de forjar comportamentos, ações e sentimentos.

As emoções despertadas no sujeito são provas de como o discurso pode agir nos mais profundos sentimentos dos humanos, sendo capaz de incidir sobre àquilo que jamais teria sido despertado se não fosse por meio dele. Ele tem um caráter mobilizador que convence pelo fascínio.

O homem é um ser complexo, contraditório, em que emoções e raciocínios podem confluir harmoniosamente, mas seguido se encontram em aberta contradição, em luta, em conflito. Complexidade por contradição, mas também por inconsciência, fundamentalmente quando são as emoções que controlam as decisões. Sem ter consciência do peso das emoções e de seus mecanismos de incidência é impossível compreender o comportamento humano. (FERRÉS, 1998, p. 38)

Entretanto, é importante registrar que o mesmo Ferrés reconhece que além dos fatores emotivos existem também os racionais. É possível afirmar que ambos são preponderantes nas tomadas de decisões, porém um é capaz de anular o outro devido a forte interação entre os dois. O fato é que trabalhando sobre estes fatores é possível diminuir a capacidade crítica do interlocutor e interferir nas escolhas dos humanos, uma vez que lhe sejam oferecidas “informações que incidam sobre a racionalidade, informações que incidam sobre a emotividade ou informações que incidam sobre ambas”.  (FERRÉS, 1998, p. 37).

Considerando o entrosamento entre os fatores, pode-se afirmar que os dois, em algum momento, podem se cruzar, instante em que um será mais intenso e poderá se sobrepor ao outro. Nesse caso, se os fatores emocionais forem mais fortes eles ocuparão o espaço.

Porém, ocorre que o emocional pode estar ligado diretamente ao pensamento primário, puramente associativo e não lógico, local onde as decisões são mais simples, ou seja, estão mais ligadas a aquilo que o falante ou o ouvinte pensam. 

As emoções contidas num discurso podem provocar aceitação de determinados temas e/ou mensagens que são estimuladas por elas e baseadas em pensamentos primários e por isso podem ser mais fortes do que a razão. Para Ferrés

O pensamento associativo é, pois, altamente contaminante, pode ser perigoso, porquanto costuma ficar fora do controle da consciência. Basta que, deliberada ou casualmente, tenha se produzido uma associação positiva ou negativa para que se ocorra o risco de que esta associação fique fixada na mente do receptor. (FERRÉS, 1998, p. 49).

Ao persuadir o emissor, estará o pensamento primário se sobrepondo a lógicas e razões, exemplo disso é que 

Na história da humanidade, a adesão a crenças, desejos, temores, princípios e valores com frequência se produziu mais por motivações emotivas do que racionais. E isso tanto no âmbito pessoal como no social, inclusive em culturas aparentemente regidas pela razão. Na história do ocidente, por exemplo, pessoas aparentemente decentes e morais cometeram todo tipo de crueldades em nome da ordem social, de princípios religiosos, de causas juntas ou ideologias honestas. Basta pensar na quantidade de sangue derramado por ideais de caráter religioso ou patriótico. (FERRÉS, 1998, p. 52).

O discurso que apela para a emoção em detrimento da razão, intencionalmente ou não, está sujeito a causar consequências danosas para quem é persuadido. Condutas e experiências já internalizadas pelo ouvinte podem servir como um imã que agarra imediatamente aquilo que é magneticamente aceito por ele, no nosso caso, o discurso que se assemelha àquilo que o outro quer. Cria-se a expectativa de algum benefício.

 A emoção hipertrofiada não deixa o ouvinte enxergar e muito menos avaliar criticamente o que lhe é oferecido pelo interlocutor. “O fascínio dificulta ou inclusive impede a ativação de mecanismos reflexivos”. (FERRÉS, 1998, p. 66).

Discurso e subjetividades

Como já pudemos perceber nos textos anteriores, a comunicação está ancorada numa certa confiança que o emissor e o receptor têm um no outro. Esta confiabilidade é o que faz com que os dois estejam dentro da mesma história e responsivos ao que é dito por ambos, a isto Bakhtin denomina de “diálogo real” (BAKHTIN, 1997, p. 295), neste caso ele está chamando a atenção para o confronto de ideias, o que poderá resultar num entendimento comum ou numa decisão sobre o que é debatido.

Diante disso vale destacar que não existe apenas um emissor e um receptor, mas dois de cada. Pode até parecer estranho, mas esta afirmativa encontra amparo na responsividade, pois se ela existe o receptor também emitirá opinião, sendo naquele momento um emissor, bem como o receptor receberá a contrainformação. O diálogo pressupõe uma mão de ida e volta.

Se os participantes do diálogo são sujeitos que escutam e que também formulam conceitos e os põe na conversa, neste caso a fala estará sendo constantemente reelaborada para que um possa dar a conhecer aquilo que deseja que o outro entenda e aceite como verdadeiro. Tal ação só é possível porque os discursantes tem conhecimento prévio daquilo que se quer comunicar.

Mas como isso acontece? Como os conceitos são formados? A resposta não é complicada, primeiramente porque ao longo da vida vamos aprendendo coisas que nos dão conhecimentos básicos sobre vários assuntos. O segundo fator que contribui muito para a construção do discurso é a “posição socioideológica de quem fala” (BRANDÃO, 2008, p. 31), pois ela também afeta a fala, é o lugar do discurso. Até aqui tem-se um jogo estratégico para o diálogo, afinal ele estará baseado em conceitos que podem ser chamados de básicos, sem fundamentos teóricos, mas isso não quer dizer que não haja conhecimento e preparação. 

O terceiro ponto que destacamos é o conhecimento adquirido por meio de outros estudos, tais como experimentos, debates mais profundos, literaturas científicas e vários outros meios. Entretanto, não se pode dizer que quem tem tais conhecimentos é superior ao seu interlocutor quando estiver debatendo. Conhecimento e argumentação se completam o tempo todo, mas também podem expressar pensamentos diferentes. 

 A verdade é que o conhecimento acumulado, de todas as formas, é o que dá força ao enunciado e facilita o debate. É no ato da conversação que serão elaboradas as respostas que estão guardadas no banco de dados chamado de memória. Somente com argumentações bem fundamentadas e com conhecimento do público que se quer atingir é que será possível tentar convencer alguém. Bakhtin deixa muito clara esta tese ao dizer que

Enquanto elaboro meu enunciado, tendo a determinar essa resposta de modo ativo; por outro lado, tendo a presumi-la, e essa resposta presumida, por sua vez, influi no meu enunciado (precavenho-me das objeções que estou prevendo, assinalo restrições, etc.). Enquanto falo, sempre levo em conta o fundo aperceptivo sobre o qual minha fala será recebida pelo destinatário: o grau de informação que ele tem da situação, seus conhecimentos especializados na área de determinada comunicação cultural, suas opiniões e suas convicções, seus preconceitos (de meu ponto de vista), suas simpatias   antipatias, etc.; pois é isso que condicionará sua compreensão responsiva de meu enunciado. (BAKHTIN, 1997, p. 321).

Nessa perspectiva podemos perceber que o discurso está diretamente ligado às relações de poder, pois ele atua sob aquilo que o outro é e no que ele crê. É bom que se diga que esta ação não é simplesmente subjetiva, em que pese a subjetividade estar presente durante todo o discurso, ela é prática também, e porque não dizer que às vezes é pragmática, afinal incidir sobre o que o interlocutor pensa é entrar na certeza dele.

Por falar em subjetividade e poder, é interessante lembrar que em algum momento elas se encontrarão dentro do enunciado, pois ele não está imune a nenhum dos dois, muito pelo contrário, ele é composto por ambos.

Discurso e liderança 

Assim como o discurso tem que se adaptar constantemente às novidades para acompanhar a evolução da sociedade, a religião também segue na mesma direção e acompanha o desenvolvimento da humanidade. Diante disso, temos que ambos são importantes para compreender o corpo social. Numa simples observação histórica, mesmo que seja sem profundidade teórica, é possível perceber que muitos significados, ritos, questões éticas e morais, inclusive muitas interpretações jurídicas que mais tarde se tornaram leis, foram e continuam sendo perpetuadas e pautadas ao longo do tempo por meio do discurso religioso.

O discurso, que é formado por ferramentas comunicacionais variadas, contribui fortemente para a legitimação das informações e ajuda a dar credibilidade às mensagens religiosas. Assim como em outros temas, a reflexão crítica sobre a religião está autorizada a partir da decodificação do que é dado pelo emissor, porém o discurso religioso tende a ser mais autoritário do que outras formas discursivas, uma vez que muitos conceitos e preconceitos já estão institucionalizados, por isso existe um empecilho a mais a ser considerado na hora da interpretação e, em especial, na resposta, pois existe a explícita tentativa de dominação sobre o receptor.

No entanto, responder não é fácil, pois a liderança religiosa geralmente fala com a autoridade de quem não comete erros, com a certeza plena de que o que está pregando é o certo e que deve ser seguido por quem lhe escuta, afinal ele joga com os sentimentos e com os desejos das pessoas, fato que o credencia ainda mais, afinal, tratando de questões aparentemente intimas do interlocutor, o líder religioso poderá trazer soluções simples para os problemas difíceis. Isso impede que o receptor processe os dados e imprima a sua percepção com criticidade. Afinal, quem ousaria contestar a voz do próprio deus? O líder está investido de poder divino e talvez o fiel ouvinte esteja envolvido por fortes emoções que lhe diminuirão a capacidade crítica. Nesse caso, uma dada realidade pode estar sendo invertida por causa da sedução. Para esse tipo de situação é possível afirmar que “seduzir é enganar. A sedução é como uma espécie de roubo” (FERRÉS, 1998, p. 66).

Pensando neste prisma, podemos suspeitar que o líder religioso está na condição de mito, nesse caso uma pessoa investida de poderes, mesmo que eles lhe sejam dados por alguém ou alguma coisa que está acima dele, o que importa para as pessoas que estão seguindo esse mito é que ele tem poder, ele é aquele que está autorizado a falar e proceder em nome de uma ou mais divindades, inclusive para atualizar coisas que não estão neste plano da vida. Os rituais conduzidos pelo líder/mito remontam os feitos de quem lhe deu o mandato para realizar as mesmas coisas que ele o faria. 

NUNES (1993) define os mitos como sendo aqueles que 

[...] revelam acontecimentos primordiais que conferem significado à vida das sociedades arcaicas. Estes acontecimentos, ações criadoras, realizados por Seres Sobrenaturais, no tempo original, explicam a condição do homem arcaico: mortal, sexuado e gregário. Narrar a história mítica da tribo rememora as origens. Sua percepção, vivida durante as práticas ritualísticas, reatualiza periodicamente os primeiros atos dos deuses. Pelo viés narrativo, o homem torna-se contemporâneo ao momento da criação, é projetado no tempo mítico, in illo tempore – e transforma o seu tempo em Não Tempo: princípio absoluto. O exercício mítico-ritual, que relembra gestos cosmogônicos, garante ao homem das sociedades arcaicas a perenidade. Subverte a condição profana: a vida, em fratura, refaz-se em novos começos. (NUNES, 1993, p. 38).

O líder religioso que chega à esta condição tem os valores validados pela comunidade, pois ele é reconhecidamente o representante dos atos de quem o autorizou a falar em seu nome. Por mais que seja ele um humano, os discursos proferidos por ele o levam para além dessa condição. No quadro abaixo tentamos sintetizar um pouco do que foi falado até aqui.

Líder Religioso

Fiel

Mito e imortal

Humano e mortal

Fala em nome de uma divindade

Escuta e atende a divindade 

Detentor de uma verdade

Obedece às regras

Resolve os problemas facilmente

Apela por soluções rápidas

*Quadro criado pelo autor 

Tudo isso conduz para um único caminho, a persuasão eficaz que transporta o fiel para o centro do discurso onde está o objeto que o mito precisa tornar credível, assim como ele também o é. É por meio do discurso religioso que o fiel consumirá um determinado bem simbólico que satisfará as necessidades dele mesmo. Essa persuasão se dará, em especial, pelo fato de que o fiel estará diante do representante da divindade, ou seja, sem ele não é possível obter as possíveis graças advindas daquele que é representado. 

É importante ressaltar que nada disso terá valor se o líder religioso não preparar o seu discurso para o público certo. Ele deve observar o perfil da audiência que se pretende atingir, caso contrário poderá não conseguir o resultado final que, nesse caso, é a persuasão do fiel. 

Veremos a seguir um exemplo de discurso religioso carregado de emoção e com o intuito de persuadir o fiel.

Discurso religioso, ideológico, autoritário e persuasivo 

Num determinado vídeo gravado em um culto presidido pelo nacionalmente conhecido pastor Silas Malafaia, da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, um dos líderes religiosos declaradamente apoiadores do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, aparece fazendo muitos elogios ao então governante da nação. Ele o faz de maneira muito incisiva e usando palavras e variações vocais que mexem com o emocional das pessoas. A gravação foi obtida na plataforma do YouTube que em momento algum faz menção à data da realização do encontro nem ao local do evento, mas provavelmente aconteceu no ano de 2022 durante o período pré eleitoral ou já dentro da etapa de campanha eleitoral. Esta conclusão se dá pelo conteúdo do discurso.

Analisando o trecho da fala que está disponibilizada na internet, de imediato podemos perceber que ela é carregada de emoção, seja na sua forma como no seu conteúdo. Exemplo disso está logo no início do vídeo, quando o pastor busca a memória afetiva e cita o seu próprio pai, fato que também dá um toque de familiar à fala. Ele se apresenta como sendo uma pessoa bem informada graças ao seu pai, bem como cita Deus, Jesus e a igreja, três palavras que mexem diretamente com o simbolismo daquelas pessoas que estão no culto. Tal alusão serve para afirmar o compromisso de Bolsonaro com os cristãos. O discurso de Malafaia para o público presente naquela igreja é o seguinte: 

Nunca na história do Brasil tivemos um presidente que honrasse o povo cristão, a igreja de Jesus e Deus como Jair Messias Bolsonaro. (palmas dos fiéis) Nunca... (palmas dos fiéis) Pode falar o que quiser, pode num gostar, pode dizer... Eu não conheço na história. E meu pai me ensinou a ler jornal desde que eu tenho dez anos. Meu saudoso pai. Então eu acompanho notícia política há 54 anos lendo Jornal do Brasil. Então na história dessa nação nunca teve um presidente que honrasse, repito, o povo cristão, a igreja de Cristo e Deus como o presidente que está aqui. Isso tem um valor... 

Ele fala com a facilidade de quem conhece o público para o qual está se dirigindo, pois como já foi explicitado aqui neste ensaio é preciso conhecer o auditório e levar em conta todo “o fundo aperceptivo sobre o qual minha fala será recebida pelo destinatário”. (BAKHTIN, 1997, p. 321). Silas Malafaia é o maestro daquela apresentação e também o ungido, ou seja, a pessoa autorizada pelo Deus dele para falar em seu nome.

Em ato contínuo o pastor faz alusão a Bíblia. Ele o faz sem ter o livro em mãos e diz exatamente onde está a passagem aludida. Esta nova investida reafirma que ele é conhecedor daquilo que está pregando, fato que o deixa ainda mais credível, pois ele se expressa naturalmente, sem ser forçado, e também ratifica o seu o poder de pessoa outorgada pela divindade. 

E presidente, tem uma palavra na Bíblia incrível, Deus dizendo para um sacerdote, primeiro Samuel, capítulo dois, versículo trinta: Honrarei os que me honrarem, e eu vou desprezar os que me desprezarem. Quem honra a Deus, Deus honra. Pode anotar governantes, deputados, senadores, quem quer que seja... Quem honra a Deus, Deus honra. Pode levantar quem quiser levantar. Pode levantar, com Deus... Quem honra Deus é maioria sempre. Não importa quem tá do lado, quem apoia ou deixa de apoiar. Quem honra a Deus é maioria sempre.

Para NUNES (1993), esse tipo de discurso tende ao lúdico e leva a pessoa que está escutando à uma nutrição espiritual. Segundo a autora “a voz ungida do presbítero suporta, ainda palavras afetivas e insinuantes fisgadas de um discurso autoritário [...]”. (NUNES, 1993, p. 75). 

Em outro trecho do discurso, Silas Malafaia fala que a igreja é abençoada e pede que sejam impostas as mãos sobre as autoridades presentes ali naquele altar. Quando ele incentiva esse gesto está aludindo a várias passagens da Bíblia, bem como mantendo um dos estilos de abençoar que são adotados pelo cristianismo. Entre tantas passagens vamos citar duas para exemplificar o assunto.

"Quando chegou o dia de sábado, começou a ensinar na sinagoga. Muitos o ouviam e, tomados de admiração, diziam: “Donde lhe vem isso? Que sabedo­ria é essa que lhe foi dada, e como se operam por suas mãos tão grandes milagres? (Marcos 6, 2)"

"Então, jejuando e orando, impuseram-lhes as mãos e os despediram. (Atos dos Apóstolos 13, 3)"

 Mais duas coisas chamam atenção nesse pequeno trecho: uma é a de que a igreja ao elevar as mãos sobre os presentes mostra que também têm poder, porém ele continua sendo o líder, afinal é ele quem ordena o ato, ou seja, os fiéis só têm poder porque o pastor os autoriza. A outra observação é quanto a adjetivação da igreja ao chamá-la de abençoada. Ao qualificar o coletivo, até então apenas ouvintes, ele valoriza a participação da massa.

Na mesma sequência, ainda antes da oração, o pastor lembra de um versículo bíblico que o ajudará a reforçar aquilo que ele quer que seja creditado a Jair Bolsonaro. Ele diz:

E eu vou pedir para que essa Igreja abençoada e poderosa e muitos ministros do evangelho que estão aqui, vocês levantassem a mão sobre essas autoridades e eu queria ler um versículo interessante antes de orar. Me dá a minha Bíblia aqui. Só vou deixar esse versículo aqui, de sudação... Eu me lembro na Assembleia de Deus... O irmão deixava... Segura aqui (pede para o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, segurar o microfone enquanto ele abria a bíblia). Vou deixar um versículo de saudação. Eu vou deixar um versículo de saudação aqui que está em Juízes, capítulo dez, versículo treze. Eu tô lendo a bíblia, hem (fala com o volume da voz aumentado). ‘E depois dele se levantou Jair, geleadita, e julgou Israel vinte e dois anos’. Tô lendo a bíblia. Tá no livro minha gente (apontando para Bolsonaro ele dá ênfase à frase).

Essa parte do discurso também tem como fonte a Bíblia. Só que dessa vez Malafaia sobe o tom da voz a fim de tornar a sua fala mais forte e, portanto, ainda mais autorizada. “O emissor controla o fio discursivo, controla as informações”. (NUNES, 1993, p. 77). No trecho abaixo, além de ele controlar o discurso e, possivelmente o pensamento de grande parte do público presente ao culto, também exporá o ouvinte como submisso, pois ele fala e o fiel apenas repete.

Repita a minha oração: Senhor Jesus, nós somos a tua igreja, a tua palavra diz: o que a igreja liga na terra é ligado no céu. A tua palavra diz: se dois ou mais concordarem na terra será realizado por nosso pai que está nos céus. Em nome de Jesus, como igreja nós concordamos: corruptos, saqueadores da nação não retornarão ao poder (ele dá ênfase no trecho ao subir o tom e o volume da voz). Declaremos tempo de paz, prosperidade e bênção sobre a nação brasileira. Abeçoa, meus Deus, o presidente da república, os ministros de estado, governadores, prefeitos, membros do poder legislativo, judiciário e executivo. Como igreja nós abençoamos essa nação. Declaramos que ninguém vai fraudar a vontade soberana do povo através do voto. Declaramos que o Brasil, o Brasil, o Brasil é do senhor Jesus (aos gritos). Te damos graças por tudo o que tem acontecido. Te louvamos e pedimos a tua bênção sobre cada pessoa, sobre cada família no poderoso nome de Jesus, Amém! 

A ênfase em determinados trechos e os gritos, além de reforçarem a autoridade do discursante, mostram que ele domina sozinho aquele auditório. As variações vocais têm sentido em cada uso. Para o bom orador elas não são apenas reflexo da emoção, mas ferramentas usadas para convencer, para reforçar o que se quer que o outro tome como verdade.

O grito inaugura nossa presença no mundo e também marca fissuras: separação dolorosa do corpo materno. Vacância ruidosa, em si mesma uma voz, ‘o grito é ao mesmo tempo a primeira realidade verbal e a primeira realidade cosmogônica’. 

Durante a oração em voz alta, a palavra, encantatória, repetida soa música. (NUNES, 1993, p. 74).

O bom uso das ferramentas vocais junto ao correto uso da emoção contida na fala tende a convencer o ouvinte. No que diz respeito ao aparelho fonador, ele dará vida às palavras, no caso em tela estava legitimando o Bolsonaro como melhor candidato a presidente da República. O Silas Malafaia tem a voz que liberta, pois é o representante de um Deus.

Considerações Finais

 O propósito desse artigo foi demonstrar como as ferramentas estratégicas do discurso podem contribuir para a sua boa qualidade, tanto em sua forma como no seu conteúdo. A ideia é de que além de desvelar o sentido do discurso fosse mostrada a subjetividade proveniente da boa elaboração da fala.

O estudo mostrou que no caso em tela o líder religioso tem poder simbólico e autoritário, situação que coloca o fiel na condição de simples ouvinte e lhe dá a condição apenas de aceitar o que lhe é oferecido. Isso ficou mais claro no momento em que Silas Malafaia faz a oração, carregada de conteúdo político eleitoral, e determina que os participantes do culto a repitam em voz alta.

Usando citações, alusões e estilos bíblicos que permeiam o discurso político eleitoral, o pastor confere credibilidade à sua fala. Ele usa da autoridade que lhe foi conferida por um ser superior para convencer o fiel ouvinte de que Bolsonaro é o melhor nome para ocupar a presidência da República, bem como faz ataques ao sistema eleitoral e, possivelmente, ao principal adversário do candidato à reeleição.

Com o claro discurso de quem está privilegiando e apoiando uma dada ideologia, Malafaia trabalhou para seduzir o público com um discurso fácil de entender e carregado de sentido simbólico, afinal ele apela para a emoção e para o desejo das pessoas que o assistem. Isso demonstra que ele conhece bem o público para o qual está falando.

A forma como o pastor Silas Malafaia profere o discurso é típica de quem tem o controle da situação. Não é possível afirmar que ele conseguiu a adesão do grupo todo ao seu candidato, mas é muito provável que muitos dos que estavam no culto tenham saído convencidos de que o candidato que reunia mais condições para governar a nação era o Jair Bolsonaro, uma vez que obedeciam às ordens do líder ao repetir a oração carregada de conteúdo político eleitoral e aplaudiam como se aprovassem o que era falado. Malafaia entregou um produto pronto e referendado por Deus que fala por meio da Bíblia e pela boca dele, fato que legitima o discurso.

Referências 

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BÍBLIA Católica on line. Disponível em https://www.bibliacatolica.com.br/

BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Discurso, Gênero e Cenografia Enunciativa. In: MICHELETTI, Guaraciba (org.). Enunciação e Gêneros Discursivos. São Paulo: Cortez, 2008.

FERRÉS, Joan. Televisão Subliminar: Socializando através de comunicações desapercebidas. Porto Alegre: Artmed, 1998. 

NUNES, Mônica Rebecca Ferrari. O mito no rádio: a voz e os signos de renovação Periódica. São Paulo: Annablume, 1993.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Ponte. Campinas, 1999.

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Notas 

[1] Neste caso não a palavra ideologia não está ligada diretamente a uma vertente do pensamento. Ela indica que todos tem uma maneira de pensar e de acreditar em diferentes situações, acontecimentos, assim como tem liberdade para transmiti-los ao receptor, seja de maneira voluntária ou involuntariamente. Não se quer com esta palavra buscar uma visão marxista do termo utilizado, nem outro modelo.