O MILAGRE no PENSAMENTO CIENTÍFICO E EVOLUCIONISTA

(THE MIRACLE IN SCIENTIFIC AND EVOLUTIONIST THOUGHT)

Josiney Alves de Souza
Doutor em Matemática pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Professor do Departamento de Matemática da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Contato: jasouza3@uem.br


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Resumo: A subestimação das leis da natureza tem levado teístas a defenderem concepções de milagre aparentemente contraditórias. Os milagres são tradicionalmente interpretados como eventos que suspendem as leis naturais, destoando do ponto de vista científico predominante, e oscilando nas cosmovisões leibniziana e newtoniana. Mas a teologia cristã moderna tem repensado seus conceitos em vista da afirmativa científica da inexorabilidade das leis físicas, químicas e biológicas. O presente artigo discute o conceito de milagre em vista do pensamento científico e evolucionista. Uma reflexão sobre intervenção divina é apresentada em harmonia com a confirmação bíblica da inviolabilidade das leis da natureza, possibilitando uma conciliação das acepções distintas de milagre. 

Palavras-chave: Milagre; leis da natureza; evolução.

Abstract: The underestimation of the laws of nature has led theist to defend distinct conceptions of miracle. Miracles are traditionally interpreted as events which suspend the laws of nature, contradicting the scientific point of view. However, the modern Christian theology has reconsidered its concepts in view of the scientific affirmation about the inexorability of the physical, chemical, and biological laws. The present article studies the concept of miracle by the scientific and evolutionist point of view. A conception of divine action is presented in accord with the biblical assertion about the natural law inviolability, providing the harmony between both usual theistical definitions of miracle.   

Keywords: Miracle; laws of nature; evolution. 

Introdução

Com a difusão do pensamento evolucionista, conceitos fundamentais da teologia têm sido revistos à luz da evolução, em decorrência da mudança na imagem de Deus e do ser humano. Nessa linha de pensamento, a liberdade da ação de Deus no mundo também tem sido repensada, propondo-se interpretações aprimoradas das concepções de intervenção divina e de milagre. 

A reflexão sobre a ação de Deus no mundo ganhou intensidade com a evolução científica a partir do século XVI. Dois dos principais protagonistas desse discurso foram Isaac Newton (1642-1727) e Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716). Ambos concordavam que o universo é um projeto de Deus e que tudo o que existe depende das leis estabelecidas na criação. Mas o detalhe que difere suas cosmovisões está inserido exatamente no cerne da discussão sobre a intervenção divina. Segundo o pensamento leibniziano, Deus projetou o universo de forma que esse evoluísse por conta própria, sem a Sua influência ou intervenção contínua, mas respeitando as leis estabelecidas por Ele. Essa concepção deísta é aceita por grande parte dos cientistas que preferem a separação entre ciência e fé. Para Newton, no entanto, Deus estabeleceu as leis da natureza ao criar o universo e atua continuamente sobre ele, preservando as leis e sustentando a vida. Essa concepção newtoniana se baseava na necessidade de uma intervenção divina permanente para preservar o movimento dos planetas (ALLÈGRE, 2000, p. 49). Além disso, se a ação de Deus se restringisse somente à manutenção das regularidades naturais, as orações não teriam funcionalidade, o que contradiria a verdade bíblica tão venerada por Newton. Portanto, na cosmovisão newtoniana, a evolução do cosmos também está sujeita à liberdade de Deus em intervir nos eventos intramundanos, proporcionando o espaço de manifestação de milagres.

O cerne da discussão envolve a relação entre o conceito de milagre e as leis naturais. Muitos cristãos acreditam veemente que os milagres se originam da suspensão de qualquer lei física, química, biológica, etc., o que evidentemente conflita com a posição categórica da ciência com respeito às regularidades da natureza. Todavia, paradoxalmente, estudos provenientes da investigação científica chamam a atenção para a possibilidade das leis naturais sucumbirem nas “fronteiras” do universo. Com efeito, o conceito de singularidade cosmológica foi introduzido pelos astrofísicos para representar um fenômeno sobre o qual não há conhecimento científico para descrevê-lo. O ponto inicial no Big Bang e o suposto ponto final no Big Crunch são exemplos de singularidade cosmológica. Essa afirmativa foi deduzida matematicamente pelo físico Stephen Hawking, quem também mostrou que as singularidades são transcendentes ao espaço-tempo. “No tempo real, o Universo tem um começo e um fim nas singularidades que constituem uma fronteira para o tempo-espaço e ali as leis da ciência sucumbem” (NATURE, 1989, p. 139). Os físicos acreditam que deve existir alguma forma de singularidade nos centros de buracos-negros distribuídos no universo. Nessa conjuntura, poder-se-ia supor que milagres são provocados a partir da suspensão de leis naturais nas fronteiras do espaço-tempo. No entanto, embora seja uma proposta interessante, o argumento não ratificaria a ideia original de violação ou anulação das leis da natureza, uma vez que as singularidades são transcendentes ao tempo e ao espaço.  

No presente manuscrito, apresentamos uma reflexão sobre esse impasse envolvendo os conceitos de intervenção divina e milagre. Para isso, contextualizamos o problema discutindo as usuais noções de milagre em vista do pensamento científico e evolucionista. Recorrendo aos textos sagrados, evidenciamos a infalibilidade das leis naturais reais e mostramos sua relação harmoniosa com a ação divina sobre propósitos específicos e em resposta às orações.

1. Os significados de milagre

Segundo o Dicionário Luft da Língua Portuguesa, o conceito de milagre é empregado em dois sentidos básicos: (1) evento operado por uma força sobrenatural que suspende as leis naturais; (2) fato raro, que causa admiração; maravilha; assombro; prodígio. 

A definição de milagre como violação das leis físicas é usualmente atribuída aos deístas ingleses do século XVIII, que introduziram o conceito com o objetivo de negar a Ressurreição e a Encarnação. Essa estratégia deísta foi expandida por meio da filosofia humeana fundada pelo filósofo escocês David Hume (1711-1776). O outro sentido de milagre é de origem bíblica, que originalmente também traz a ideia de sinal ou advertência. A palavra grega thaumasionmiraculum em latim – significa “aquilo que evoca maravilhamento ou espanto”. Outra palavra grega semeion designa um sinal distintivo ou marca da autoridade divina. A palavra hebraica para milagre é oth, que significa um sinal indicativo de advertência.

Com base nos textos sagrados e em testemunhos, cristãos em geral creem em milagre como a manifestação divina direta que tem a finalidade principal do nome de Deus ser glorificado. Os textos bíblicos também revelam que em certas ocasiões o milagre – indicado como um sinal – tem a função de legitimar um profeta ou enviado de Deus. Todos esses aspectos de milagre foram bem evidentes no ministério terreno de Jesus Cristo. Conforme descrevera o reverendo Donald Stamps (1938-1991), os propósitos dos milagres no Reino de Deus são pelo menos quatro: (1) dar testemunho de Jesus Cristo, autenticando a veracidade da sua mensagem e comprovando sua identidade como o Messias; (2) expressar o amor compassivo de Cristo; (3) evidenciar a era da salvação e a vinda do Reino de Deus; (4) confirmar a pregação do evangelho (Bíblia de Estudo Pentecostal, 1995, p. 1582). Este último item diz respeito aos milagres que acompanharão os cristãos em suas pregações do evangelho do Reino,[1] os quais podem ser ainda maiores do que os milagres realizados por Jesus (Jo 14,12; Mc 16,15-20). No entanto, apesar de existirem propósitos divinos para os milagres, a Bíblia alerta sobre os magos, feiticeiros, falsos mestres e falsos profetas, os quais também podem ser veículos para a operação de sinais e prodígios, porém sobre a ação de demônios e com a intenção principal de enganar os expectadores, inclusive cristãos e judeus (Ex 7,11-12; Mt 24,23-24; 2 Ts 2,7-10; Ap 16,13-14; 19,20). 

Os cristãos também creem que milagres são eventos presentes em todos os tempos, podendo acontecer a qualquer momento, e há quem acredita que Deus opera milagres diariamente, embora não percebamos. A Bíblia afirma que os milagres irão acompanhar os cristãos durante todo o período da igreja na terra (Mt 10,7-8; Mc 3,14-15; Lc 9,2). Entretanto, para alguns protestantes reformados, não é necessária a crença em nenhum outro milagre que não sejam os narrados nas Sagradas Escrituras, segundo o princípio do Sola Scriptura

Com o desenvolvimento da ciência moderna, o conceito cristão ortodoxo de milagre passou por adaptações. Observador do pensamento científico, Tomás de Aquino chamou de milagres aquelas coisas feitas por Deus fora da ordem de causas conhecidas por nós” (Suma Teológica, I, q. 107, art 7). Ajustes subsequentes culminaram na definição católica padrão, devida ao papa Bento XIV (1675-1758), em que milagre designa um evento de significado religioso cuja produção excede apenas o poder da natureza visível e corporal. Essa acepção cristã preserva o caráter bíblico de milagre, mas não remete uma suspensão ou violação das leis naturais. Além disso, são desconsiderados os eventos extraordinários que não representam legitimamente a bondade ou o alerta de Deus para o ser humano. 

Dessa forma, a definição cristã de milagre é acuradíssima e a princípio não conflita com o pensamento científico. No entanto, o ceticismo ainda questiona um problema lógico sobre essa definição. Embora haja o reconhecimento sincero de que a ciência atual explica somente uma parte ínfima da existência, os cientistas em geral creem que tudo o que está oculto será um dia descoberto mediante a evolução científica. Nesses termos, mesmo o aprimorado conceito cristão de milagre não fica bem determinado, devido à instabilidade do sentido provocada pela relatividade com o tempo. Na lógica científica comum, um evento extraordinário pode ser descrito como milagre em um instante, devido à ausência de uma explicação natural, mas um evento equivalente poderá perder a característica de milagre em outro momento, quando porventura uma elucidação natural for produzida. Assim, com base na crença de que a ciência com o tempo explicará tudo, um milagre não é um milagre na expansão temporal, contradição lógica que aparentemente descaracteriza a formalidade do conceito. 

Em vista dos eventos cientificamente inexplicáveis, como o surgimento da vida, os cientistas demonstram uma fé surpreendente na ciência. Porém, uma suposição não tem poder de julgamento. Além disso, um milagre tem seu valor e efeito exatamente no tempo em que ocorre, conforme os desígnios divinos para o contexto da ocorrência. Logo, mesmo que um milagre ocorrido seja posteriormente excluído da classe conceitual de milagre, este já cumpriu seu papel e seus efeitos não serão rescindidos. Portanto, definitivamente não há conflitos nem distorções envolvendo o conceito cristão de milagre.

2. O pensamento evolucionista

Nesta seção esboçamos uma reflexão sobre a ação divina em vista do pensamento evolucionista presente na teologia moderna. Apresentamos pontos de vista teológicos e científicos acerca das leis naturais e a intervenção divina, compactuando com a ideia de uma criação permanente e dinamizada pelos processos evolutivos.

Os grandes mistérios da ciência levaram cientistas a reconhecerem a necessidade metafísica das conexões do conhecimento e de um conjunto desconhecido de leis reais que regem o universo. Ganhador do prêmio Nobel de Física, Charles Townes uma vez fizera a seguinte declaração sobre a origem do cosmo:

Ao meu ver, a questão da origem parece ficar sem resposta se a explorarmos de um ponto de vista científico. Assim, eu acredito que uma explicação religiosa ou metafísica se faz necessário. Acredito no conceito de Deus e na existência dele (TOWNES, 1995).[2]

Sobre os estudos com as singularidades, Stephen Hawking uma vez se posicionara da seguinte maneira:

É difícil discutir o início do Universo sem mencionar o conceito de Deus. Minha obra sobre a origem do Universo situa-se na fronteira entre a ciência e a religião, mas eu tento ficar do lado científico da fronteira. É bem possível que Deus atue de maneiras que não podem ser descritas por leis científicas (ABC Television, 20/20, 1989).[3]

Baseado na obra de Segundo (1995), o professor de teologia Marco Bonelli defende que a ação divina não restringe a liberdade da natureza e do ser humano, mas interage com a criação em um processo evolutivo orientado para a plena realização do homem em comunhão com Deus. Bonelli sustenta que os dinamismos evolutivos podem estar associados ao amor de Deus em Suas ações criadora e salvadora, mas para que isso seja possível, deve-se refutar a ideia da intervenção divina direta que, segundo o teólogo, não é compatível com o conhecimento científico (BONELLI, 2012, p. 164). Por outro lado, também não é aceitável afirmar que a ação divina no mundo se reduz ao funcionamento das leis naturais. Para Bonelli, a criação não está concluída, o que significa que Deus continua a criar no ato de Sua própria liberdade, preservando os dinamismos evolutivos do cosmo e respeitando a liberdade das criaturas. Nesse processo, Deus se faz presente no íntimo mais profundo das coisas, como fonte dinamizadora da evolução, compactuando com a revelação bíblica e com o conhecimento científico, uma vez que representa o estímulo fundamental dos dinamismos evolutivos não captados pelas ciências. Uma ação divina externa, pelo contrário, frustraria os dinamismos naturais e poderia exercer domínio completo sobre tudo o que acontece no universo, anulando a liberdade da natureza.

Um detalhe fundamental nessa reflexão é a distinção das leis naturais formuladas pela ciência humana e das leis naturais reais estabelecidas por Deus na origem do universo. Essa distinção é ponderada na reflexão sobre a ação divina feita pelo físico William R. Stoeger, o qual assegura:

Deus é concebido agindo por meio de leis, mas aquelas por meio das quais Deus, essencialmente, age não são “nossas leis”, mas sim as relações e regularidades fundamentais na própria natureza, das quais “nossas leis” são apenas modelos imperfeitos e idealizados (STOEGER, 2002, p. 69).

As leis naturais concebidas e formuladas pelas ciências naturais são relativas a certo contexto teórico e possuem explanação imperfeita sobre a evolução do universo, de modo que nem sempre são obedecidas. No entanto, de acordo com Stoeger, essas leis são obedecidas com bastante frequência, de maneira que os casos que delas divergem não seguem nenhum padrão compreensível (STOEGER, 2002, p. 52). O físico explica que nossas leis são imperfeitas por não serem capaz de revelar e modelar as fontes de necessidade e ordem nem de impô-las. Segundo o biólogo Jack Cohen e o matemático Ian Stewart, o que existe de mais claro nas leis físicas é que a natureza é descrita por uma coleção de diferentes sistemas de regras com limitados, às vezes sobrepostos, domínios de validade (Cohen, 1994). Em outras palavras, todo sistema de leis possui uma jurisdição.

Por outro lado, as leis reais do universo são quase todas ocultas ao intelecto humano (STOEGER, 2002, p. 45). Stoeger também defende que a criação não está terminada, mas que se trata de um processo duradouro (STOEGER, 2002, p. 124). Tal concepção estende a causalidade divina primária tradicionalmente descrita pela teologia cristã, uma vez que a cadeia causal secundária exige uma causa primária continuamente operante, que preserva a existência e mantém a evolução das coisas, proporcionando-lhes realização. A ação divina concebida dessa maneira explicaria toda a ordem do universo, o que inclui a sustentação das leis naturais e, portanto, de toda forma de conhecimento. 

No cenário de causalidade primária continuamente operante, Stoeger reavalia a concepção da ação divina direta e defende que a ação de Deus no mundo, por intermédio das leis naturais, é indireta, até mesmo quando Deus responde às nossas necessidades e orações. 

Evidentemente não conseguimos determinar se uma consequência específica resultou da ação direta de Deus em vez da ação indireta de Deus por meio de um canal ou instrumento de que não estamos cônscios ou que não entendemos. Assim, a aparente intervenção divina a nosso favor – um milagre – em resposta a nossas orações, por exemplo a cura de uma doença de paralisia que a ciência médica contemporânea não explica por si só, não manifesta a ação direta de Deus, embora manifeste a ação pessoal amorosa e vivificante de Deus para conosco (STOEGER, 2002, p. 131).

No entanto, a ação direta de Deus é sempre necessária em algum nível para sustentar as leis naturais e manter a existência das coisas. Em síntese, toda ação tem sempre um componente direto e componentes indiretos, onde Deus age diretamente na causa primária.

Em alguma etapa – alguma etapa “inicial” – Deus age sem intermediário para iniciar a ação pretendida ou criar uma série de necessidades e possibilidades – por exemplo, ao criar diretamente leis da natureza fundamentais e as constantes fundamentais ou seus antecedentes primordiais (STOEGER, 2002, ).

Possivelmente, a ação divina direta jamais será compreendida e modelada pela ciência humana, pois não a experimentamos externamente. Como acredita Stoeger, a experiência externa com Deus é sempre indireta. O físico é categórico em afirmar que “embora o caráter extraordinário do incidente que está fora do que normalmente esperamos em situações semelhantes leve-nos a acreditar que Deus responde pessoalmente a nossas necessidades e orações, isso por si só não indica que a ação divina é direta” (STOEGER, 2002, p. 132). Entretanto, seja qual for o caso, “lidamos com a ação tencionada de Deus para com um indivíduo ou grupo especial, como resposta percebida à fidelidade, sinceridade, oração, súplica” (STOEGER, 2002, p. 139). 

Tratando-se da ação de Deus por meio de causas impessoais, nas quais os agentes ou instrumentos não estão livres para agir ou não agir, a questão da conexão entre o material e o imaterial permanece, pois do mesmo modo não compreendemos como Deus diretamente causa ou restringe a ação de seres impessoais ou inanimados. Em todo caso, sugere-se um pensamento promissor a respeito da conexão entre Deus e os instrumentos causais secundários:

[...] à medida que passamos a entender que o material e o imaterial não são essencialmente diferentes, mas estão intimamente unidos em todos os níveis, e como se opera essa similaridade na diferença, talvez cheguemos a uma melhor apreciação da interação direta de Deus com causas secundárias. Temos esperança que isso seja paralelo ao progresso no entendimento de como questões de mente e corpo são solucionadas (STOEGER, 2002, p. 141).

O professor de ciência e religião John Haught esboça um pensamento semelhante sobre a Providência e a Sabedoria de Deus diante da receita darwiniana da evolução universal:

Talvez, portanto, “contingente”, “acidental”, “acaso”, “dissipativo” e “ausência de propósito” sejam termos que nós mortais desconhecemos, ligados à evolução apenas em função de nossa abissal ignorância acerca da visão global que Deus tem do universo (HAUGHT, 2009, p. 131).

Haught apresenta uma saída para a fé cristã diante das suposições evolucionistas, mostrando que o crente pode confiar de maneira incondicional na existência de um significado oculto e inacessível na evolução. Por outro lado, rebaixa qualquer presunção naturalista em declarar que o universo é simplesmente uma cadeia de acidentes sem propósito, sendo isto, na verdade, uma declaração de ignorância.

A questão dos milagres se ajusta perfeitamente à perspectiva de Haught, uma vez que nos referimos a eventos cientificamente inexplicáveis, essencialmente por divergirem de nossas leis naturais, ou seja, confessamos nossa ausência de conhecimento para os casos.

Por tudo quanto sabemos, o que parece ser contingência absurda na evolução, a partir de uma perspectiva racionalista, talvez seja o reverso de uma tapeçaria que, do ponto de vista de Deus, por outro lado, constitui um padrão rigorosamente ordenado (HAUGHT, 2009, p. 131).

3. Milagres e evolução

O pensamento evolucionista acima exposto propõe a concepção de uma ação divina que sustenta as leis naturais e que é percebida pelo dinamismo evolutivo da criação, o que concede uma possível explicação da intervenção divina sobre propósitos específicos e em resposta às orações. Seguimos essa linha de pensamento para expor uma possibilidade de conciliação entre as concepções de milagre.

A definição cristã de milagre não assume explicitamente a preservação nem a suspenção das leis naturais, o que permite interpretações ambíguas entre os próprios cristãos. Fora do meio acadêmico normalmente predomina a visão de milagre como manifestação sobrenatural de Deus no sentido de intervenção direta no curso natural das coisas, anulando ou violando qualquer lei física, química, biológica, etc., segundo a vontade divina sobre uma causa específica e os propósitos mencionados acima. Por outro lado, empenhados no diálogo com a ciência, a maior parte dos teólogos entende que um milagre não suspende as leis naturais firmadas por Deus. Uma vez manifesto que duas verdades nunca podem contradizer-se, uma das posições está equivocada ou existe uma falha conceitual ocasionando o impasse. Este ponto queremos desenvolver a partir de agora.

Como é possível conceber a posição acadêmica sobre milagre? Primeiramente, é importante e necessário o convencimento de que Deus não revoga Suas leis e muito menos permite que outras entidades o façam. As bases para essa afirmativa devem estar acima de qualquer questão lógica e necessariamente subordinada as Sagradas Escrituras. Com efeito, sendo Deus perfeito e bom, tudo o que provém Dele deve ser perfeito e bom. Assim foi com a criação, conforme está escrito: “E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom” (Gn 1.31). Portanto, as leis firmadas por Deus no ato da criação são perfeitas e boas em todo o universo, ou seja, em todo o espaço-tempo. Isso significa que as leis divinas devem servir constantemente aos propósitos de Deus, não podendo haver instantes em que elas são inúteis e, portanto, revogáveis.[4] Também está escrito que “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa; porventura, diria ele e não o faria? Ou falaria e não o confirmaria?” (Nm 23.19)[5] e “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1.1-3). A Palavra de Deus é infalível e foi por meio dela que tudo se formou e todas as regras foram ditadas. Portanto, essas regras jamais serão vetadas porque Deus sempre as confirmará. Os projetos divinos são perfeitos e não necessitam de ajustes ou reformulações, pois Deus não é como o homem, que necessita criar emendas constitucionais e revogar leis que são imprestáveis. Com base nessa palavra revelada, entendemos que Deus não anula ou altera Suas leis.

A Bíblia reforça essa afirmativa quando descreve a mensagem divina dirigida a Jeremias sobre a restauração de Israel. Com efeito, Deus assegura a imutabilidade das leis naturais do mesmo modo que garante a aliança perpétua com Davi:

As­sim diz o Senhor: “Se vocês puderem romper a minha aliança com o dia e a minha aliança com a noite, de modo que nem o dia nem a noite aconteçam no tempo que está deter­minado para vocês, então poderá ser quebrada a minha aliança com o meu servo Davi, e neste caso ele não mais terá um descendente que reine no seu trono; e também será quebrada a minha aliança com os levitas que são sacerdotes e que me servem”. [...] Assim diz o Senhor: "Se a minha aliança com o dia e com a noite não mais vigorasse, se eu não tivesse estabelecido as leis fixas do céu e da terra, en­tão eu rejeitaria os descendentes de Jacó e do meu servo Davi e não escolheria um dos seus descendentes para que governasse os descen­dentes de Abraão, de Isaque e de Jacó. Mas eu restaurarei a sorte deles e lhes manifestarei a minha compaixão".[6] 

Na segurança da autoridade dos textos sagrados, os quais deixam o claro indicativo de que as leis naturais firmadas pelo Criador são irrevogáveis, evitamos qualquer contrassenso sacrílego e respeitamos a concepção acadêmica de que Deus não suspende Suas leis. 

Isso não significa que Deus não tem o poder de rescindir as leis naturais, pois Ele é soberano sobre a criação, sobre os céus Ele é Senhor absoluto. Mas, segundo Sua vontade, Ele exerce Sua soberania mantendo as leis irrevogáveis, concedendo certa liberdade para a natureza, o que se entende por meio da interpretação bíblica do despojamento ou kénosis de Deus[7]

Dessa forma, não havendo possibilidade de confusão nas obras divinas, o universo não fora criado irregularmente, com regras instáveis e falíveis. Muito pelo contrário, Deus instituiu leis universais que até certo ponto são compreensíveis pela mente humana, deixando a compreensão a cargo da investigação científica. De fato, a ciência é completamente dependente das regularidades observáveis e de sua estabilidade. Se não houvesse leis fixas, não haveria ciência e consequentemente não haveria tecnologia, medicina, procedimentos, construções, educação, etc. Portanto, toda a existência necessita das leis invariáveis e ao homem é dada a potencialidade de descrevê-las. Todavia, considerando os propósitos dos milagres e suas ocorrências previstas para todos os tempos, é possível que Deus retenha o conhecimento pleno das leis naturais.

Tudo que fazemos e as decisões que tomamos têm influência direta das leis naturais que conhecemos. Então, sobre uma causa que aparenta necessitar de algo sobrenatural – além do que entendemos por natural – buscamos a Deus, pois cremos que para Ele nada é impossível.[8] Em outras palavras, buscamos um milagre divino. Diante do exposto, como podemos assimilar o conceito de milagre e a afirmativa bíblica de que para Deus nada é impossível visto que Ele não revoga Suas leis? A resposta parte exatamente do conceito que nós temos sobre o sobrenatural e aquilo que é designado impossível. Com efeito, assim como os cientistas, todos devem aceitar que nós seres humanos temos um conhecimento ínfimo da realidade, basicamente o necessário para cuidarmos da integridade física, tomarmos as decisões do dia a dia e planejarmos o futuro. Compreendemos pouco sobre o conjunto das leis reais estabelecidas por Deus, pois o conhecimento de todas as coisas é poder exclusivo do Criador de todas as coisas. Assim, toda causa que foge ao nosso conhecimento natural é rotulada como impossível. A Bíblia revela fenômenos que transcendem ao intelecto humano, aos quais cremos somente pela faculdade da fé. Para nós são fenômenos sobrenaturais, mas na verdade possuem sustentação nas leis naturais que não conhecemos. Essas leis desconhecidas pela ciência provavelmente são regras de compreensão inacessível ao intelecto humano, o que estimula o homem a exercitar sua fé no Criador. Enfim, as causas impossíveis para nós seres humanos são expressões de nosso conhecimento limitado, enquanto que as mesmas causas são possíveis para Deus, pois Ele é detentor de todo o conhecimento. 

É importante também notar que outras entidades também podem produzir sinais e prodígios inexplicáveis. Diante desse alerta bíblico, a suposição de que sinais e prodígios representam a violação das leis naturais resultaria no contrassenso de entidades inferiores terem o poder de suspender as leis divinas. Além disso, as Sagradas Escrituras asseveram sobre os intentos de Satanás e seus demônios movidos pela odiosidade por Deus e pelos homens. Assim, o que seria da humanidade se entidades demoníacas tivessem a liberdade de suspender as leis naturais, além da capacidade que têm de influenciar os comportamentos humanos!

Podemos então concluir que a controvérsia entre as concepções de milagre é ocasionada pela subestimação das leis naturais criadas por Deus. De certa forma, nenhuma das interpretações está equivocada, pois podemos dizer com segurança que um milagre é um acontecimento que não respeita as leis naturais observáveis pela ciência humana, mas é considerado um evento natural na completude das leis reais fixadas e somente conhecidas pelo Criador.

Conclusão

A subestimação das leis da natureza tem levado os teístas a defenderem concepções aparentemente contrárias sobre milagre. Entretanto, explanamos que o conceito cristão de milagre é único e bem definido e que, portanto, não há controvérsia. A forma de conceber o conceito depende de quais leis naturais são consideradas. Milagres são eventos inexplicáveis por meio de leis naturais idealizadas pela ciência humana. No entanto, considerando o conjunto completo de leis estabelecidas por Deus na criação – desconhecido pela ciência humana – os milagres não violam as leis da natureza.  

É evidente que a ciência deve muito aos mistérios, pois esses motivaram as buscas por respostas que induziram as descobertas que compõem todo o conhecimento humano. Assim os milagres têm contribuição particular para o pensamento científico. As modernas concepções de teologia e física combinam para um diálogo promissor com a ciência, uma vez que propõem o vislumbre de uma ação divina sustentadora das leis naturais e percebida no dinamismo evolutivo da criação.

Referências

ALLÈGRE, Claude. Deus e a ciência. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2000.

BONELLI, Marco Antônio Gusmão. Pessoa humana: liberdade em processo de evolução dinamizado pela graça. In: RUBIO, A. G. e AMADO, J. P., Fé cristã e pensamento evolucionista: aproximações teológico-pastorais a um tema desafiador. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 

COHEM, Jack e STEWART, Ian. The Collapse of Chaos. New York: Viking Press, 1994.

DOSE, Klaus. The Origin of Life: More Questions Than Answers. Interdisciplinary Science Reviews, v. 13, n. 4, p. 348-356, 1988.

HAWKING, Stephen e MLODINOW, Leonard. O Grande Projeto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

LENNOX, John C. Por Que a Ciência Não Consegue Enterrar Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 2011.

NATURE, no 340, 1989.

SEGUNDO, J. L. Que Mundo? Que Homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e teologia. São Paulo: Paulinas, 1995.

STOEGER, Willian R. As Leis da Natureza: Conhecimento Humano e Ação Divina. São Paulo: Paulinas, 2002.

TOWNES, Charles. Making Waves. Maryland: American Physical Society, 1995.

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Notas

[1] At 3.1-10; 4.8-22,29-33; 5.12-16; 6.7,8; 15.12; Rm 15.18,19; 1 Co 2.4,5; 2 Co 12.12; Hb 2.3,4

[2] Citado em LENNOX, J. Por Que a Ciência Não Consegue Enterrar Deus, p. 97.

[3] Apesar de que a concepção atual de Hawking é contraditória (HAWKING, 2010).

[4] Leis divinas aqui podem se referir tanto às leis naturais quanto às leis morais.

[5] Ver também Ml 3.6; Tg 1.17; Hb 6.18.

[6] Jr 33.20,21,25,26.

[7] Fp 2.5-11.

[8] Mc 10.27; Lc 1.27; 18.27.