APARECIDA,
E A ADVERTÊNCIA À IGREJA DE ÉFESO

Prof. Dr. Renold Blank

Quando em 1968, a Conferência Episcopal Latinoamericana de Medellin proclamou as suas conclusões, no centro delas se encontrava a tomada de consciência do clamor de inúmeros milhões de irmãos e irmãs oprimidos, marginalizados e excluidos, mas também a progressiva conscientização que esta situação, de jeito nenhum, poderia corresponder à vontade de Deus. Impressionado por este fato, o Papa Paulo VI. declarou no seu discurso de abertura da conferência, que com ela estava "inaugurado um novo período de vida da Igreja".

Era de fato assim que a Igreja Latinoamericana, através dos seus Pastores, iniciou uma virada que pode ser chamada de "copernicaniana". Sinal da vitalidade e do dinamismo de uma comunidade de fé que está sendo guiada e impulsionada pelo Espírito Santo.

A Igreja Latinoamericana começou a se sentir desafiada de maneira totalmente nova diante de uma situação, na qual reconheceu claramente contradições gritantes com a vontade de Deus. Como é que ela poderia anunciar a vida plena de um Deus que se manifesta em Jesus Cristo, quando em vez de encontrar uma sociedade justa, solidária e fraterna, encontrou pelo contrário um mundo que privou milhões de seres humanos dos meios necessários para a vida ?

Em vez de continuar ficando calado, os bispos da Igreja Latinoamericana levantaram a voz, e tal voz, durante séculos não se tinha mais ouvido por parte da Igreja do nosso continente.

Diante dessa voz, as Igrejas do mundo inteiro começaram a escutar; - e o mundo extra-eclesial ficava por parte perplexo, por parte entusiasmado e por parte chocado. A Igreja falava com nova voz, e esta voz foi ouvida. As alianças de silêncio e de colaboração, estabelecidas desde séculos, quebraram. Uma nova luz começou a brilhar em cima da montanha. A Igreja de novo se tinha tornada profeta e sua voz profetica, a maneira dos profetas de todos os tempos, entusiasmava uns e escandalizava outros.

Mas, enquanto que os poderosos de todos os níveis ainda discutiram de que maneira que poderiam neutralizar tal incómoda atitude, os pobres dos paises sofridos da America Latina começaram a levantar a cabeça. E incentivados pela mesma voz da Igreja, também os oprimidos dos outros continentes começaram a ver a sua situação a partir de outros angulos. A sua fé no Deus da vida, de repente, se revelou como algo ligado de maneira direta à questão se esse Deus quisesse a sua miséria; e a Igreja, que durante séculos só tinha aparecida como guardiã de uma ordem estabelecida, essa Igreja, de repente se revelou como sendo a grande aliada daqueles que nunca tinham tido aliados. Por causa dessa nova aliança, começaram a redescobrir um Deus que desde o início de sua história com os humanos, zelava pelo bem estar dos seus integrantes mais fracos, pela ampliação de seus espaços de vida e o crescimento da sua liberdade.

A "opção preferencial pelos pobres", formulada pela Igreja Latinoamericana, fez redescobrir a estes pobres a sua própria dignidade e a base dessa dignidade, que encontraram no próprio Deus e na sua opção escandalosa pelos excluidos, vivida e realizada por ele durante toda a história, mas esquecida por uma concepção milenar que enfatizava valores bem diferentes.

Incentivado por essa nova tomada de consciência, os marginalizados de todas as raças e de todos os estratos sociais começaram a perguntar, se a sua situação realmente corresponde à vontade de um Deus, que em Jesus Cristo se tinha revelado como o defensor de todos aqueles que os sistemas políticos, sociais e religiosos já tinham excluidos, abandonados e condenados. Com isso se realizou aquilo que o nosso grande bispo, Dom Luciano Mendes de Almeida descreveu assim: " A força espiritual do Concílio, de fato, penetrou na America Latina e vem dando frutos de rejuvenescimento da fé, ardor missionário e promoção da justiça e da paz." [1]

O que com Medellin começou, continuou em PUEBLA (1979). O mundo tomou conhecimento daquilo que a Igreja dizia e conforme a sua posição, o aplaudia ou o combatia. Mas, ninguém podia ficar neutro e desinteressado.
Diante da voz profética, todos estão sendo desafiados.

O grande impulso de Medellin e Puebla penetrou na America Latina e se espalhou para além do continente. Ele incomodava o mundo e incomodava a própria Igreja, porque questionou à maneira de todos os profetas não só as estruturas socias e políticas. Seguindo os impulsos do Concílio, quis mudar também muitos elementos dentro da própria instituição. A nova maneira de ser Igreja, incomodava muitos, porque esta não mais se compreendeu em primeiro lugar como mestra e dominadora, mas muito mais como serva ao exemplo de seu fundador.

Por causa dessa nova perspetiva, havia fortes reações adversas; mas, o fogo do Espírito, ao qual as duas Conferências Episcopais tinham respondidas, continuou agindo e o mundo fora da Igreja continou a ser desafiado e incomodado.

Quando, porém, em 1992, a quarta Conferência Episcopal em Santo Domingos terminou, havia algo que mudou. Os jornais informaram, e as pessoas tomaram nota, - mas logo, na rua, ninguém mais falava do evento. Outros temas foram discutidos e assuntos diferentes se mostraram mais interessantes. Dentro da própria Igreja, as conclusões da conferência continuaram a serem lembradas, é verdade, e muitos dos seus impulsos foram realizados. O "Protagonismo dos Leigos", enfatizado pelos Bispos, se revelou como sendo um grande incentivo para a dinamização do agir pastoral, e o programa de uma "Nova Evangelização" deu muitos frutos, demonstrando a vitalidade da Igreja e a sua capacidade de responder aos desafios dos novos tempos.

Mas, apesar de todos estes resultados positivos, faltava algo que tinha marcado as duas conferências anteriores; - faltava aquele fogo, aquele entusiasmo e também aquele questionamento profético que tinha feito das duas conferências anteriores os eventos extraordinários, grandiosos e renovadores. - E muitos dos que tinham vividos os resultados das Conferências anteriores, perguntaram perplexos, porque que se teria apagado o fogo do Espírito, e quem o teria apagado, e por que razão ?

Aquele fogo, que tinha marcado as Conferências de Medellin e de Puebla, e que à maneira do fogo de Pentecostes se tinha espalhado no mundo, incomodando os representantes da ordem antiga em todos os níveis; o mundo não o reconhecia mais e não mais o detectou. Por causa disso, logo, a história andou o seu curso normal. Logo se falava de outros assuntos e as profundas e ao mesmo tempo interessantes conclusões da conferência, fora da Igreja, foram esquecidas.

As conclusões de Santo Domingo não incomodavam esse mundo, e as suas ideias ficaram enclausturados por dentro do ambiente eclesial. Ideias boas, sem dúvida, e importantes, mas, o mundo não reconheceu nelas ideias dignas a serem combatidas nem discutidas. Elas, além disso, não respondiam a muitos dos grandes anseios da época. Como consequência, até um contingente cada vez maior dos pobres, dos quais em 1992 não tinha menos do que em 1968, preferiam buscar apoio em outro lugar. Os ricos e os poderosos, por sua vez, pensaram reconhecer sinais e vestígios daquela Igreja que tinham conhecido durante séculos, e que, em 1968, de maneira chocante tinha mudada. Com satisfação, constatavam que as discussões, de novo, começaram a girar como antigamente em torno de questões primordialmente intro-eclesiais. Tais discussões, fora da Igreja não incomodavam ninguém, e sendo assim, se podia sem maior preocupação voltar a prosseguir na construção de um mundo, marcado pela "maximização do lucro". A única força, capaz de formar um contrapeso contra toda essa ideologia, se perdeu em discussões internas, discussões, aliás, que fora da Igreja cada vez menos interessam. Com isso começou também em nossas cidades a emigração silenciosa da nova geração, e o mundo do mercado globalizado assumiu a liderança, substituindo as exigências por justiça, solidariedade e amor, pelas exigências de consumo e de competição. E dentro da própria Igreja, por causa das muitas discussões sobre novos diretórios e disciplina intereclesial, ninguém nem lembrava as graves advertências, formuladas pelo autor do Apocalipse e que não só se dirigiram ao endereço da Igreja de Éfeso, mas à Igreja de todas as épocas e de todos os lugares.:

conheço tuas obras, teus trabalhos, tua paciência. Não podes suportar os maus. Provaste os que se dizem apóstolos mas não são e os achaste mentirosos. [3] Tens perseverança, sofreste por meu nome sem desfaleceres. [4] Mas tenho contra ti que deixaste o teu primeiro amor. [5] Considera de onde caíste, arrepende-te e pratica as primeiras obras. (Ap 1, 2-5)



A advertência do autor bíblico é grave e merece ser considerada.

"Tenho contra ti que deixaste o teu primeiro amor"...!

- O primeiro amor da Igreja, sem dúvida, deve corresponder ao primeiro amor do próprio Deus.

- O primeiro amor de Deus, porém, são os pobres !

- O primeiro amor dele são os homens e mulheres sofridos, esquecidos e pisados por que tipo de sistema que seja.

- O primeiro amor de Deus são aqueles que precisam de misericôrdia, e dessa misericórdia, conforme as suas próprias palavras, esse Deus está muito mais interessado do que de qualquer sacrifício e de qualquer volta a regras e leis.

- O primeiro amor de Deus é para com os excluidos e rejeitados por todo e qualquer
sistema de poder, sejam estes sistemas políticos, económicos, sociais ou religiosos.

O primeiro amor de Deus e para com aqueles que a próprio religião, na época de Jesus, tinha declarado fora da sua graça, porque não podiam observar todas as leis.

Volte, diz o autor do Apocalipse, e pratique as primeiras obras !

Aquelas obras que sacudiam a terra e questionavam todos os sistemas de poder, porque eram inspiradas pelo espírito profético de um Deus que já na sua época, tinha sacudiado todos os sistemas estabelecidos. Aqueles sistemas que se tinham esquecidos dos prediletos dele, dos humildes, dos desamparados, daqueles que não eram do lado do poder, daqueles de baixo, - em uma palavra, dos marginalizades, excluidos e injustiçados. De um Deus afinal que se tinha revelado como go´el, defensor de todos aqueles que não têm mais defensor, e que de modo incondicional cuida da pessoa que presica de seu amor, da sua proteçâo e de seu apoio.

Na America Latina, desde a Conferência de Santo Domingos, se passaram 15 anos, e de repente, agora, estamos outra vez diante de uma nova Conferência Episcopal de toda a America Latina; esta vez no centro da piedade de nosso povo, no lugar maravilhoso da presênça especial de Nossa Senhora, em APARECIDA.

Uma nova oferta da graça de Deus está sendo formulada; Uma nova oportunidade se abre.

Ela se abre numa constelação, na qual a situação social dos pobres piorou de maneira alarmante.

Ela se abre numa situação, na qual os integrantes das Igrejas do velho mundo buscam desesperadamente caminhos, para sair do imobilismo, sem ter a coragem de realmente o quebrar. E no seu imobilismo, estão olhando cheio de expectativas para a America Latina, na esperança de que da Igreja deste continente possa surgir uma nova inspiração e um novo caminho. Dessa maneira, a nova oferta da graça de Deus se torna oportunidade não só diante do grito dos pobres a America Latina. Ela inclui além disso milhões e milhões de cristãos de boa vontade, que na sua vida quotidiana percebem de maneira cada vez mais clara, como os antigos caminhos de uma Igreja sacramentalizada, não respondem mais aos desafios de hoje.

Estamos de fato diante de uma oportunidade única, na qual, de maneira abraámica e corajosa, se podem abrir novos caminhos rumo a novos horizontes.

Mas, ao mesmo tempo também é possível fazer o contrário e reafirmar mais ainda as fortes tendêncaias dentro da Igreja atual; as tendências de voltar aos caminhos antigos; de manter os odres velhos e de no máximo permitir que esses odres sejam pintados numa nova cor.

Tal atitude, porém, não resolve os problemas e não responde às questões existenciais da maioria da população. Com o resultado que essa população em escala cada vez maior irá embora na busca de outros caminhos, fora da Igreja.

A maioria deles não agem assim porque desprezam a Igreja. Pelo contrário, eles ainda a amam; eles gostariam tanto ouvir dela uma mensagem igual daquela que se ouviu na época do grande Papa João XXIII. Na hora, voltariam e se engajariam numa nova e renovada maneira de ser Igreja. Mas, o seu problema é que pedem respostas para os problemas do futuro, e o que recebem em muitos casos são leis e proibições. Isso, porém, não aceitam mais, e por causa disso, vão embora, silenciosos e decepcionados.

É dentro dessa constelação que se realiza a próxima Reunião dos nossos irmãos Bispos de todo o Continente. Eles têm a oportunidade de reascender o fogo. Eles têm a capacidade de responder às esperanças e aos anseios de milhões e milhões de pessoas de boa vontade. Eles têm a inspiração e a força de abrir novos caminhos; de incentivar a busca de novos horizontes; de renovar a nossa Igreja de maneira profética; de recuperar a dinámica e a esperança do Povo de Deus, colocando-se ao serviço deste povo e de maneiro específico e explícito ao serviço daqueles que os sistemas de poder esmagaram, excluiram e desprezam.

Eles, afinal, têm a autoridade de conscientizar que a tarefa dos seguidores de Jesus não consiste na imitação de estruturas históricas de poder, e menos ainda no afastamento deste mundo, mas muito mais na realização da grande proposta alternativa de Jesus Cristo. Isso, porém, significa um engajamento acentuado para a construção de um mundo, onde haverá estruturas de justiça em vez de injustiça; de amor em vez de egoismo; de fraternidade e não de competição; de verdade e não de mentiras; e de paz e não de guerra.

Em vez, porém, de incentivar assim a força transformadora do grande Projeto do Reino de Deus, também é possível voltar a uma atitude que não vai incomodar nem os grandes deste mundo nem os seus sistemas de influência e de poder.

À qual destas duas alternativas se aplicará a repreensão do autor do Apocalipse, só a história vai mostrar.

Nós, porém, que somos membros humildes e insignificantes da grande massa do povo de Deus, só podemos rezar que Nossa Senhora de Aparecida, Mãe dos pobres, excluidos, sofridos e injustiçados, sustente de tal maneira o Fogo do Espírito de Deus, que nada o possa apagar.

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Notas
[1] Em: Folha de São Paulo, 18 de julho de 1998