A IGREJA LATINO-AMERICANA DEPOIS DE APARECIDA

Prof. Dr. Côn. Antonio Manzatto

 

RESUMO

O texto procura refletir, de maneira prospectiva, sobre a contribuição que a Conferência de Aparecida poderá dar à igreja universal, e em especial para o continente latino-americano. Diagnostica linhas de continuidade com a prática atual da igreja e enumera esperanças das comunidades eclesiais com relação à V Conferência.

Palavras-chave: Conferência de Aparecida, Igreja, Comunidades Eclesiais.

 

ABSTRACT

The text searches to reflect in prospective way about the contribution that Aparecida Conference will bring about to the universal church, special to Latin American continent. It diagnostic continuity lines with actual church practices and great hope from ecclesial communities in relation to the fifth Aparecida Conference.

Key words: Aparecida Conference, Church, Ecclesial Communities


A V CONFERÊNCIA

A igreja latino-americana entra na reta final da preparação da V Conferência do Celam, a realizar-se em maio em Aparecida. Todas as atenções para lá se voltam uma vez que se trata de acontecimento extremamente importante na vida não só da igreja da América Latina e do Caribe, mas de todo o mundo como o demonstra a presença do papa Bento XVI na abertura dos trabalhos da Conferência. Os delegados das conferências episcopais à Assembléia, a organização do Celam, os teólogos e assessores ultimam os preparativos para a realização de tão importante evento.

O Documento de Participação quis envolver toda a igreja do continente na preparação da Conferência de Aparecida. As comunidades, grupos, organismos e movimentos discutiram o tema proposto e encaminharam sua reflexão às Conferências Episcopais. Sínteses foram propostas, divulgadas e encaminhadas ao Celam. Críticas e sugestões apareceram e, de maneira geral, os organismos eclesiais foram todos envolvidos na reflexão sobre a situação e o agir da igreja na América Latina e Caribe.

Uma vez realizada a Conferência e divulgada sua reflexão, como será a vida da igreja latino-americana? Que influência Aparecida terá na estruturação da ação eclesial no continente? Quais novidades aparecerão, quais caminhos serão reafirmados? Não se trata de realizar um jogo de previsão ou adivinhação, mas sim de, prospectivamente, refletir sobre a importância e o lugar que a Conferência de Aparecida ocupará na vida eclesial do continente latino-americano e suas principais contribuições para a igreja universal.


CONTINUIDADE

Até certo ponto, é ingenuidade pensar que a Conferência de Aparecida vai provocar uma revolução na maneira de viver e agir da igreja latino-americana. Costuma-se pensar, num evidente curto-circuito histórico, que a Conferência de Medellín provocou uma revolução na igreja do continente, ou que o Concílio Vaticano II realizou uma reviravolta na vida da igreja. Não que isso seja de todo falso, mas não se pode esquecer que esses eventos estavam situados em determinado contexto histórico e, por isso, foram frutos de uma maneira de se viver a igreja naqueles contextos.

O Vaticano II é fruto de todo um movimento eclesial que o antecede, de toda uma teologia que existe antes dele, de toda uma vivência de igreja que já acontecia no mundo. O Concílio oficializa a via de renovação que já existia dentro da igreja e, nesse sentido, é um marco importante. Mas o é como oficialização, não tanto como sua gênese, embora assim o representemos.

A Conferência de Medellín, diz-se normalmente, é a "mãe da Teologia da Libertação", o momento inicial do envolvimento social mais marcante da igreja latino-americana. No entanto, também ela é fruto de seu momento histórico e reflete uma teologia e uma prática que já existiam na igreja latino-americana. Há uma preocupação com a libertação na Conferência de Medellín porque, antes dela, existia uma igreja que se preocupava com uma prática libertadora.

Os grandes momentos da história da igreja, como da história de toda a humanidade, não vêm de uma "geração espontânea" e não acontecem apenas repentinamente, mas são frutos de um processo histórico mais ou menos lento, mais ou menos longo. Assim é o processo da vida humana, e a igreja também é humana; seus eventos e acontecimentos são, pois, a serem situados no seu contexto.

Assim será também com a Conferência de Aparecida. Não haverá grandes revoluções que ali terão origem, mas ela retratará o momento histórico da igreja latino-americana, oficializando uma teologia, uma preocupação, uma prática e, dessa maneira, influindo no que será o futuro histórico da igreja do continente. Aparecida vai reafirmar, como o fizeram as Conferências precedentes, a tradição eclesial dentro de determinado caminho que já é trilhado na igreja, sob a hegemonia das tendências que já são as mais influentes na vida eclesial.

Assim sendo, as características de religiosidade da pós-modernidade [1] estarão presentes nos documentos e declarações da Conferência de Aparecida, como já estavam no Documento de Participação e em diversas sínteses enviadas à Conferência. Uma certa preocupação com o intimismo, com a felicidade (ou bem-estar) pessoal, com uma espiritualidade que privilegia a relação individual com Deus vão, fatalmente, aparecer na Conferência.

Grande preocupação será também, sem dúvida, a diminuição da prática religiosa dos católicos do continente, com o avanço do secularismo e mesmo de religiões pentecostais e outras. O continente dito católico já não é tão católico como antes, e isso preocupa, evidentemente, os pastores da igreja. É nessa ótica que deve ser percebida a preocupação missionária presente no tema a ser desenvolvido em Aparecida. As estatísticas não deixam de ser preocupantes, no sentido de que a igreja católica pode diminuir não apenas sua influência, mas mesmo sua presença na vida dos povos do continente. A situação conhecida na Europa, de diminuição da prática religiosa, também se verifica por aqui, e cada vez mais intensamente.

Também as questões relacionadas à ação eclesial em favor da vida ali aparecerão, até porque este é um dos temas da Conferência, e seu aparecimento se fará sob os enfoques do aborto, eutanásia, desenvolvimentos genéticos e avanços científicos, reafirmando o valor da vida humana que não é determinada a existir apenas neste mundo, mas em sua relação com Deus. A importância da Doutrina Social da Igreja será salientada e, nos aspectos mais doutrinais, será lembrada a necessidade de se permanecer dentro da íntegra doutrina católica. Esses devem ser os enfoques predominantes nas conclusões de Aparecida.

Espera-se, também, que apareçam, ainda que marginalmente, as grandes características da igreja latino-americana. Aparecida vai falar das Cebs, sim, mas não com o mesmo entusiasmo que Medellín e Puebla. A preocupação com a pobreza do continente vai aparecer, mas não com o mesmo impacto que as conferências anteriores. A teologia que sairá de Aparecida não será a retomada da teologia da libertação típica dos anos 70 ou 80, mas a confirmação dos caminhos trilhados pela teologia nos últimos anos.

Claro que a eclesiologia de Aparecida vai afirmar a realidade de comunhão da igreja, mas insistirá menos na comunhão entre as igrejas e mais na necessária união com o centro. A colegialidade será reafirmada, sobretudo a colegialidade episcopal, fundamento da Conferência, mas se lembrará sempre que essa colegialidade deve ser vivida "sub Petro". Os movimentos de espiritualidade terão sua importância reafirmada como caminho de vivência eclesial, e a atividade política será afirmada como própria da vida dos leigos. Tudo isso já tem sido dito e tem acontecido na vida da igreja nos últimos anos, e por isso será surpresa se estes temas não aparecerem ou se os enfoques forem diferentes.


NOVIDADE

Não é impossível, no entanto, que Aparecida traga novidades ao pensamento teológico ou à prática eclesial. Afinal, o Espírito sopra onde quer e seus caminhos são insondáveis! Mesmo sem ser surpresa, a Conferência pode trazer uma novidade no que e refere ao tipo de reflexão sobre a missão, tema que aparece com destaque pela primeira vez nas conferências do Celam. Se em outros momentos ele apareceu, foi secundariamente; agora, porém, ele é tema de fundo, recebendo inclusive grande ênfase e com grandes possibilidades de se tornar o tema principal da Conferência de Aparecida.

A América Latina continua sendo encarada, em diversos aspectos, como "terra de missão", no antigo sentido do uso do termo. Entendendo-se a missão como a "expansão da cristandade ou da igreja", a América Latina, em sua pobreza, continuaria dependendo das "velhas igrejas" européias, tanto no sentido de pessoal (missionários) quanto no sentido de recursos (econômicos) e de pensamento (teologia). Sem capacidade ou meios próprios para conduzir a evangelização de seus habitantes, a igreja latino-americana dependeria, em praticamente todos os sentidos, das igrejas centrais.

No entanto a situação atual não é bem essa. Em primeiro lugar porque a missão não é simplesmente vista como "expansão da cristandade"; e, mais ainda, porque a igreja latino-americana, como de resto também as outras "novas igrejas", dá testemunho de vitalidade encarando "com ardor" a atividade da missão "ad gentes". Por outro lado, a Europa dá sinais de certo "cansaço religioso": lá, os recursos, inclusive de pessoal, já não são tão grandes. Diminui a prática religiosa, diminuem as vocações locais e missionárias, escasseiam os recursos econômicos. Atualmente, a Europa pleiteia uma "nova evangelização", como dizia João Paulo II, e torna-se também "terra de missão". Não são poucos, com efeito, os missionários que atuam na Europa vindos das "novas igrejas" africana, asiática e latino-americana.

Embora a América Latina permaneça como "terra de missão" no sentido de possuir grandes necessidades de pessoal e de recursos, ela sabe "dar de sua pobreza", responsabilizando-se pela ação missionária em outros cantos da Terra, além da missão em seu próprio interior. Por isso tem sido trabalhada, já há algum tempo, a reflexão missionária em terras latino-americanas, e pode-se esperar que a temática seja abordada em Aparecida com criatividade.

Claro está que a primeira preocupação será a da missão junto aos católicos afastados da prática eclesial, não raramente chamados de "batizados mas não evangelizados". A primeira preocupação é a da diminuição da prática religiosa católica no continente e o avanço do secularismo e de outras religiões. Sobretudo nas grandes cidades, percebe-se um aumento da indiferença religiosa ou, ao menos, da diminuição da prática religiosa tradicional. Isso traz, como conseqüência, a redução dos recursos, econômicos e de pessoal, para a realização dos trabalhos eclesiais e, acima de tudo, diminui a influência dos princípios religiosos na organização da sociedade. Exatamente a partir deste ponto pode se situar a contribuição que se espera que virá da Conferência de Aparecida.

O novo enfoque terá de ultrapassar a compreensão da missão como simples expansão da igreja. Se isso teve sentido em tempos de cristandade, quando a expansão da igreja significava também a expansão do império, não o tem mais nos dias atuais. A igreja não se anuncia a si mesma, nem tem um fim em si mesma. A finalidade da missão não é "encher as igrejas" ou anunciar a palavra da igreja. A igreja existe como sacramento do Reino de Deus no mundo, e a missão que ela realiza tem a ver com o anúncio da Palavra de Deus, a boa notícia da vontade salvífica de Deus em benefício de toda a humanidade.

O referencial último da igreja é, evidentemente, o Deus anunciado por Jesus Cristo em quem ela deposita sua fé. A igreja é Povo de Deus em sua relação com Jesus Cristo, constituindo-se como comunidade que o professa como salvador da humanidade. A missão da igreja se realiza exatamente no anúncio dessa salvação em Jesus. A alegria que o reconhecimento da fé lhe traz a impulsiona a este anúncio. Neste sentido, a missão faz parte da natureza mesmo da igreja e não é, de maneira nenhuma, um acessório: não existe igreja que não seja missionária, que não professe, anuncie e testemunhe sua fé em Jesus salvador. Estamos longe aqui de compreender a missão como doutrinação. Ela é, sim, evangelização no sentido de anúncio do evangelho, da boa-nova de Jesus Cristo.

O evangelho de Mateus (Mt 28,19-20) apresenta o "mandamento missionário" com o objetivo de fazer, de todos os povos, "discípulos de Cristo". Eis aqui o outro tema da Conferência de Aparecida muito caro ao pensamento teológico latino-americano: o seguimento de Jesus. O discípulo é aquele que segue o mestre e com ele aprende como viver, ou seja, o que realmente tem valor na vida. Assim, a missão da igreja liga-se à atividade do próprio Jesus.

Lucas apresenta uma compreensão da ação de Jesus narrando uma sua visita à sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-19). Em apelo ao texto de Isaías, a missão de Jesus, o ungido do Espírito, é apresentada como evangelização dos pobres; em bom português, isso significa "anúncio de boa notícia aos pobres". Ora, sabemos, até por experiência, o que significa uma boa notícia para os pobres, ainda mais que Jesus, segundo Lucas, a situa dentro da proposta do ano do Jubileu, o "ano da graça do Senhor" [2] .

Marcos resumirá a missão de Jesus no anúncio do Reino de Deus (Mc 1,15). A expressão "Reino de Deus" não tem outro significado senão o de "governo de Deus"; o anúncio de Jesus, então, é o da chegada do Reino, ou seja, da chegada de "Deus que vem para governar" [3]. O governo de Deus será em benefício dos pobres, e por isso essa é para eles uma boa notícia: os pobres são os preferidos do Reino cuja justiça precisa ser buscada em primeiro lugar (Mt 6,33).

Um governo baseado na justiça e que toma a sério a defesa dos pobres é a ação de Deus. Isso Jesus compreende como sendo salvação endereçada a toda a humanidade, pois significa o fim da exclusão e da dominação, e por isso já não se chama ninguém de servo, mas amigo (Jo 15,15), pois não há no mundo "nem judeu, nem grego" (Gl 3,28), mas uma única comunidade de irmãos, onde não existem necessitados pois todos têm tudo em comum (At 4,32). A idéia de Reino de Deus conduz à compreensão de uma maneira de se organizar a sociedade desde já, mesmo porque o Reino já está aqui no mundo (Lc 11,20) e, ainda que não se esgote nesse significado, deve incluí-lo.

Compreendendo-se a missão de Jesus em benefício dos pobres, como o testemunham também suas curas e milagres, compreende-se também, por conseqüência, a missão dos seus discípulos, que vai no mesmo sentido. A missão da igreja, comunidade dos discípulos de Jesus, não poderá ser diferente da de seu mestre. Aqui temos a afirmação de um aspecto bastante importante, que é o de unir a preocupação missionária da igreja com a defesa e promoção da vida dos pobres. Aliás, Paulo VI já deixava isso bem claro na Evangelii Nuntiandi, quando afirmava a promoção humana como integrante da ação evangelizadora da igreja; João Paulo II e Bento XVI, seus sucessores, afirmaram o mesmo [4].

Ora, se a missão da igreja é andar nos passos de Jesus, seu objetivo não é anunciar ou expandir-se a si mesma, mas sim o Reino de Deus. E o Reino tem características essenciais de predileção pelos pobres. Por isso a igreja pode compreender a missão como uma via de mão dupla, solidarizando-se com todos os povos, encarnando-se em todas as culturas, em claro compromisso em defesa da vida. Nos últimos tempos, aliás, a soteriologia tem feito um grande avanço entendendo a salvação não apenas como sendo a da alma depois da morte, mas afetando todas as dimensões da existência humana, já que a vontade de Deus é a de salvação do ser humano todo e de todos os seres humanos.

Com isso o que se busca missionariamente é o crescimento do Reino de Deus, pois, se ele é dom de Deus, exige também a aceitação dos seres humanos. A "sociedade justa e fraterna" será sinal deste Reino, e por isso se afirma o compromisso dos cristãos de promover a justiça, de defender a vida, num claro destaque para as situações de sofrimento e pobreza como as do continente latino-americano. As vítimas das injustiças e os empobrecidos constituem o lugar a partir do qual a missão da igreja deve mostrar sua relevância e seu caráter evangélico.

A Conferência de Aparecida pode trazer como novidade nas reflexões do episcopado latino-americano a união, através de uma atualizada compreensão da missionariedade da igreja, do discipulado de Jesus e da luta "para que os nossos povos tenham vida". Notável que no enunciado do tema da Conferência se faça a relação expressa com Jesus e seu evangelho, pois o que se diz é que "n'Ele nossos povos tenham vida", pois ele é "o caminho, a verdade e a vida". A expressão afirma que a vida dos povos latino-americanos se realiza em Jesus e no seu discipulado, que é engajamento pelo Reino de Deus. A missão da igreja é o compromisso com este Reino, e por isso o anuncia como privilégio dos pobres e convida todos os cristãos e "homens de boa vontade" a construírem uma sociedade de mais solidariedade.

Nesse caminho avançou a reflexão teológica sobre a missão m tempos recentes, permitindo a superação de uma visão eclesiocêntrica da missão em benefício de uma visão "missiocêntrica" da igreja. Essa novidade tem possibilidades de aparecer com destaque na Conferência de Aparecida que irá, justamente, incentivar a igreja latino-americana para assumir "com novo ardor" sua tarefa missionária. Ultrapassar o quadro de simples preocupação com a prática religiosa ou com a situação dos católicos dela afastados pode ser a grande contribuição da igreja latino-americana ao se falar de missão, fazendo com que apareça nesse quadro a afirmação do testemunho de solidariedade cristã devida aos empobrecidos. Afinal esta é a maior característica cristã, na profissão de fé em Deus que é amor.


ESPERANÇA

Não será pouco se a V Conferência do Celam afirmar essa nova perspectiva e ela já terá aí encontrado um grande campo para a dinamização da vida da igreja latino-americana, justificando plenamente sua realização. Mas há ainda outras esperanças no coração dos católicos do continente que se deseja sejam contemplados positivamente na Conferência de Aparecida, sobretudo na reafirmação dos caminhos trilhados pela igreja após as conferências de Medellín e Puebla.

Assim, entre outros elementos que poderiam ser enumerados, diga-se que será muito importante que a Conferência de Aparecida afirme com insistência a importância do seguimento de Jesus. Nos últimos anos, essa noção tornou-se chave na espiritualidade e na teologia latino-americanas [5]. Ela vai além da noção da "imitação de Cristo", pois ultrapassa a idéia de simples prática de virtudes para afirmar o compromisso dos cristãos com a proposta concreta de Jesus de Nazaré. Além de situar Jesus em seu contexto sócio-histórico para assim compreender suas palavras e sua ação, situa também a prática dos cristãos em seu próprio contexto para que se possa compreender de que maneira deve ser vivida sua prática de fé. Estamos aqui dentro da noção de ortopráxis que pretende retomar o compromisso de vivência da espiritualidade a partir da realidade da vida dos cristãos, uma espiritualidade verdadeiramente encarnada a exemplo da encarnação do Verbo de Deus. Busca-se viver no mesmo Espírito que animou a vida de Jesus, viver em sua mística.

Característica da vida da igreja latino-americana nas últimas décadas foi o investimento no trabalho das Cebs, as Comunidades Eclesiais de Base. Elas esperam da Conferência de Aparecida uma palavra de incentivo para continuarem como "novo jeito de ser igreja". Nelas se destacam a corresponsabilidade eclesial, a ministerialidade e o protagonismo dos leigos, como Santo Domingo o chamou. Seu compromisso eclesial e sua militância social foram elementos chaves no desenvolvimento da igreja e da sociedade civil dos países latino-americanos nos últimos tempos e constituíram a grande contribuição eclesiológica da América Latina.

Pelo caminho das Cebs, espera-se também que Aparecida reafirme a importância da comunhão eclesial em sua relação vertical com Deus e em sua relação horizontal, como o estabelecimento da comunhão entre as igrejas, e não apenas de cada uma delas com o centro romano. Por outro lado, a participação efetiva de todos os membros da igreja, cada um à sua maneira, é fator determinante para que se configure a comunhão eclesial, ultrapassando-se certo clericalismo e triunfalismo que sempre reaparecem como tentação para a igreja. A característica latino-americana reafirmada em Puebla é a de "comunhão e participação", donde deriva a esperança de que se reafirme a importância dos mecanismos de participação eclesial. Nesta mesma linha, espera-se a afirmação da colegialidade, inclusive a episcopal, como essencial para a vida da igreja que quer ser comunhão. Aliás, a noção de colegialidade episcopal, fortemente afirmada pelo Vaticano II, é a própria razão de ser da Conferência de Aparecida.

Também é característica da igreja da América Latina a afirmação contundente da "opção preferencial pelos pobres", como foi formulada em Puebla. Com o passar dos anos, reconheceu-se em consenso que ela é evangélica, própria do Deus testemunhado por Jesus. Sua retomada pela Conferência de Aparecida será desejável para que se revalorize uma eclesiologia aberta ao mundo, na linha da Gaudium et Spes, reafirmando-se o compromisso cristão de transformação da sociedade pela libertação dos pobres.

Espera-se também que a preocupação que a Conferência manifestará com a defesa e promoção da vida não se esgote na condenação do aborto e da eutanásia, mas contemple outros aspectos que atentam contra a vida de nossos povos, como a pobreza, as desigualdades sociais gritantes, a violência, a fome, o desemprego, o narcotráfico, etc. Esses problemas sociais são tão ou mais graves nos países latino-americanos que as questões de manipulação genética, e precisam da voz da igreja para que e denuncie esta situação de pecado. Afinal, os pecados sociais e estruturais também devem ser combatidos como os pecados individuais. Os perigos da globalização, do neoliberalismo e do secularismo que ameaçam a vida de nossos povos latino-americanos devem ser denunciados, colocados à luz, para que a sociedade possa combatê-los.

Espera-se que a Conferência enfrente com coragem os novos desafios que a atualidade apresenta para a missão da igreja. Sem descuidar do mundo da política e da economia, ela deve voltar seu olhar também para a questão dos meios de comunicação e da manipulação da informação. Esse constitui um não pequeno desafio para a sociedade em geral e para a igreja em particular, pois é importante que não se pense apenas nos meios de comunicação da igreja ou de seu direito de possuí-los, mas do papel sócio-cultural que eles desempenham no mundo atual.

A questão do ecumenismo e da pluralidade de religiões também deve ser enfrentada pela Conferência, não apenas porque ela falará de missões, mas pela importância que o assunto tem na atualidade. A reflexão, aliás, deverá ficar longe de qualquer possibilidade de se estabelecer um combate entre religiões, reconhecendo-se o direito à liberdade religiosa, mas também conclamando as outras crenças ao diálogo em vista do respeito mútuo para a construção da paz. Afinal, seguindo o ensinamento de Jesus, é preciso que toda a humanidade se comporte fraternalmente, e não que todos professem a mesma crença. Como se disse, o essencial é que a igreja anuncie não a si mesma, mas o evangelho de Jesus de Nazaré.


REALIZAÇÃO

No entanto, mesmo que a Conferência de Aparecida não corresponda a todas as expectativas e não realize a reflexão teológica exatamente como se espera, sua grande façanha já está feita, que foi todo o movimento de consulta e de preparação para sua realização.

Já lá se vão quinze anos da última conferência do Celam, a realizada em Santo Domingo, em 1992. Sua importância foi relativa, uma vez que, embora tenha afirmado aspectos importantes, sobretudo a respeito da inculturação e do protagonismo dos leigos, foi uma conferência pouco "latino-americana". As determinações da cúria romana prevaleceram, mas foi uma conferência que teve pouca repercussão na vida eclesial do continente. Algum tempo depois já nem havia memória da conferência, ao passo que Medellín e Puebla ainda hoje são lembrados.

O fato de retomar a realização de conferências do episcopado latino-americano já faz de Aparecida um evento de grande importância. Foram muitos anos sem que se falasse em América Latina, sem que a consciência de pertencer à igreja do continente aflorasse. Ficou-se apenas nas referências aos países, quando muito, ou às igrejas locais e sua ligação com o centro romano, e por isso o fato de retomar a consciência de pertença a uma comunhão maior já é, por si só, é extremamente importante.

Além disso, a preparação da V Conferência obrigou a uma retomada da memória histórica da igreja latino-americana. As conferências de Medellín, Puebla e mesmo Santo Domingo foram revisitadas; recuperou-se a memória de lutas, compromissos e engajamentos vividos pela igreja da América Latina e se reavaliou com interesse sua contribuição para a vida da igreja universal. Houve uma reapropriação da história da igreja do continente e as comunidades eclesiais voltaram a sentir-se participantes de uma comunhão continental.

Houve também, e talvez isso seja o mais importante, ampla vontade e possibilidade de participação na preparação da Conferência. Neste sentido, mais importante que o resultado final foi a movimentação que antecedeu a Conferência. As comunidades, organismos pastorais, dioceses e conferências, todos foram chamados a, de alguma forma, participar de sua preparação, e mesmo que o resultado final eventualmente não repercuta o que foi enviado como contribuição, o fato é que houve participação. E essa é uma característica da igreja latino-americana, a participação em todos os níveis.

A preparação da Conferência exigiu de cada comunidade uma reflexão sobre a realidade da igreja e a realidade do mundo. Um olhar em torno para se ver quais os principais problemas que atingem a totalidade do continente, ultrapassando a visão individualista do próprio grupo. Todos foram chamados a olhar mais à frente, a pensar a presença da igreja neste continente e a levantar hipóteses, sugestões, projetos em vista da evangelização da América Latina nos próximos anos. Neste sentido, a Conferência de Aparecida já cumpriu seu papel, incentivando e renovando a vida de nossas comunidades eclesiais.

A realização da Conferência propriamente dita será um momento de extrema importância. A presença do papa, dos membros da cúria romana e dos delegados dos diversos países da América Latina e do Caribe no Santuário Nacional de Aparecida, vai sensibilizar não só a mídia, mas, sobretudo as comunidades católicas. Será uma ocasião importante de reafirmar a pertença à tradição religiosa, de reconhecer a importância da vivência da fé e de reassumir o compromisso da prática de vida cristã. Será um momento abençoado, que queremos seja vivido na presença do Espírito de Deus, e por isso endereçamos a ele nossas orações pelo êxito da V Conferência do Celam.


Prof. Dr. Côn. Antonio Manzatto
Doutor em Teologia pela Universidade de Lovaina, Bélgica. Diretor e professor na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção


BIBLIOGRAFIA
Celam
, Rumo à V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe: Documento de Participação, São Paulo: Paulus, 2006.
Celam, Documentos das conferências gerais do episcopado latino-americano, São Paulo: Paulinas, 1990.
Celam , Documentos do Celam, São Paulo: Paulus, 2004.

 

........................................................................................................................
Notas

[1] Cf. TRASFERETTI, José & LOPES GONÇALVES, Paulo Sérgio (orgs.), Teologia na pós-modernidade, São Paulo: Paulinas, 2003.

[2] Cf. CROSSAN, John Dominic, O Jesus histórico, Rio de Janeiro: Imago, 1994.

[3] Cf. MEIER, John P., Um judeu marginal, Vol. II, livro II; Rio de Janeiro: Imago, 1997.

[4] O Sínodo de 71 sobre a justiça já trabalhava essa questão, que a exortação de Paulo VI confirma. As encíclicas sociais de João Paulo II vão na mesma linha, como também a Deus charitas est de Bento XVI.

[5] Cf., por exemplo, SOBRINO, Jon, A fé em Jesus Cristo, Petrópolis: Vozes, 2000; também BOMBONATTO, Vera Ivanise, Seguimento de Jesus, São Paulo: Paulinas: 2002.