MARIA NAS CONFERÊNCIAS EPISCOPAIS LATINO-AMERICANAS
Prof. Dr. Mons. Tarcísio Justino Loro
RESUMO Este artigo busca compreender a figura da Mãe de Jesus na América Latina, como Mãe da Igreja e dos cristãos, modelo de discípula e de uma evangelização libertadora. Toma como ponto de referência para suas reflexões as Conferências Episcopais Latino-Americanas do Rio de Janeiro, Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. |
ABSTRACT This article aims an undertanding on the figure of Jesus' Mother in Latin America as Mother of the Church and of the christians, model of disciple and of a liberating evangelization. It uses the Perican Bishops' Councils (CELAMs) of Rio de Janeiro, Medellín, Puebla, Santo Domingo and Aparecida as points of reference. |
INTRODUÇÃO
A realização em São Paulo, na cidade de Aparecida, da V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, vem trazer um novo alento à Igreja no Brasil e no Continente, renovar em cada cristão católico de nossas comunidades o desejo de cumprir com fidelidade os compromissos batismais, fonte de profunda alegria e de grande responsabilidade pelo avanço do Reino de Deus.
Ao ritmo das mudanças culturais, religiosas, éticas e sociais que há décadas perpassa o Continente Latino-Americano, como parte das transformações que ocorrem num compasso desafiador em todo o Planeta, a Igreja se vê mergulhada numa sucessão de acontecimentos que exigem respostas evangélicas, criadoras da paz e promotoras da vida, acima de quaisquer outros bens.
Vivemos um período em que as convicções vacilam perante tantos leques de novos paradigmas culturais, que entram em nossas casas pelos meios de comunicação social. Como nunca, somos alvo de novidades, manipulações e tratamentos "culturais de choque". O impactante é a regra. A escalada diária de algo mais, como o desnudamento do corpo, pela Internet, televisão e cinema, e as técnicas e formas renovadas de crimes, coloca homens e mulheres de todo o mundo numa expectativa de algo misterioso e inconsciente.
O que vai acontecer amanhã? Diante do turbilhão das novidades no campo da ciência, da técnica, do pensamento, a Igreja contempla o mundo pela ótica da fé, da esperança e da caridade. Na unidade dessas três virtudes teologais, sustentada pelos ensinamentos de Cristo e da Igreja, os cristãos se capacitam para contemplar o presente e o futuro, denunciar os caminhos de morte e anunciar, com veemência, por palavras, gestos, atitudes e ações, a vida que brota do Evangelho.
A V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, como as anteriores, é um tempo de profunda graça, um novo Pentecostes. Pela ação do Espírito Santo, mais uma vez, os cristãos deste Continente, que nasceu sob a sombra da cruz, orientados por seus pastores, têm a feliz oportunidade de repensar sua ação evangelizadora, sua vocação de ser "sal da terra e luz do mundo", neste Continente.
A forma que encontramos para pensar o presente e o futuro de nosso Continente é recordar nossa identidade de batizados, "discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida". Desejamos recuperar alguns elementos teológico-pastorais de grande importância para nossa ação eclesial. Recordar nossas tarefas batismais mais simples, como uma criança que, aos pés da mãe, repete a tabuada ou as regras elementares da gramática, tantas vezes esquecidas, o que dificulta a realização de pequenos ou grandes projetos.
As Conferências Episcopais Latino-Americanas, profundamente mergulhadas na doutrina, na espiritualidade e na vida pastoral da Igreja, buscam na Mãe de Jesus e da Igreja apoio, força, inspiração e luzes para a caminhada. Como modelo de Igreja e discípula de Cristo, com toda certeza, ela nos ajudará a refazer nosso caminho pastoral, refletir sobre nossa identidade e lançar luzes de vida evangélica a nossos povos. Aos pés de Maria, desejamos retomar aspectos fundamentais da identidade cristã.
Para cumprir nossos objetivos, desejamos, neste artigo, repensar alguns aspectos da figura de Maria nas Conferências Episcopais. Entre esses, tomamos como primeiro foco de reflexões a maternidade da Mãe de Jesus, princípio que qualifica sua identidade e sua missão. Nessa linha de pensamento, Maria, a seguidora fiel, brilha como um verdadeiro ícone do discipulado e como modelo de uma ação evangelizadora de libertação e serviço, Mãe dos pobres, pequenos e oprimidos.
Outras abordagens importantes se voltam para a devoção popular, o carinho com que nossos povos cultuam a Mãe de Jesus e buscam nele ternura e apoio maternal. E o que dizer da Mãe do Senhor como garantia da presença do feminino da caminhada do povo de Deus?
Entre os inúmeros aspectos de Maria que as Conferências colocam aos nossos olhos, situaremos alguns aspectos, o possível dentro do espaço restrito de nosso tempo, do tempo do leitor e deste material. Restrito, porém rico e estimulador, rico, porque voltar o olhar para a Mãe é ter certeza do Amor de Deus em nossa Igreja.
1. MARIA É UMA PRESENÇA MATERNA NA FAMÍLIA DOS CRISTÃOS
Maria é a Mãe de Jesus, desde o Fiat da Encarnação, pela ação do Espírito Santo, que a revestiu da sua graça. Uma relação visceral se estabelece entre Maria e Jesus de Nazaré. Sem a maternidade da Virgem, o rosto do Filho de Deus não se teria revelado. O corpo do Senhor é a carne de Maria.
Essa relação entranhada é o ponto de partida para refletirmos sobre o papel de Maria como mãe, na missão do Redentor. Pelo processo evangelizador, a Igreja gera sempre novos cristãos. Processo que consiste em "transformar a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade" (Evangelii Nuntiandi 18), do acolhimento da Palavra. Maria escutou, refletiu e acolheu a mensagem do anjo, como pressupostos ao nascimento de Jesus.
"Deus se fez carne por meio de Maria, começou a fazer parte de um povo, constituiu o centro da história. Ela é o ponto de união entre o céu e a terra. Sem Maria desencarna-se o Evangelho, desfigura-se e transforma-se em ideologia, em racionalismo espiritualista." (Puebla, 301.)
Maria é verdadeiramente Mãe da Igreja, assim proclamada pelo Papa Paulo VI, diz a Conferência de Puebla (291). Ela é verdadeiramente Mãe da Igreja, porque é Mãe do Cristo, cabeça do corpo místico. E por isso é muito amada e venerada filialmente por todo o povo cristão, com afeto de piedade filial. "Foi nessa fé que o Papa Paulo VI quis proclamar Maria Mãe da Igreja" (cf. AAS, 1964, p.1007) (Puebla 286).
O cristão é gerado a partir do paradigma mariano, como se para cada cristão se repetisse a permanente anunciação à Maria. O nascimento de um novo cristão não pode prescindir do parto da Palavra. A fecundidade maravilhosa de Maria aparece de forma nítida na sua atitude diante da Palavra de Deus. Na imitação do seu paradigma, novos filhos são gerados pela graça concedida pelo Espírito Santo de responder com sabedoria aos apelos do Senhor. "Além disso, é nossa Mãe "por ter cooperado com seu amor" (LG 53), no momento em que do coração transpassado de Cristo nascia a família dos redimidos; "por isso é nossa Mãe na ordem da graça" (LG 61). (Puebla 287).
Existe uma preocupação permanente, na história da Igreja, de olhar para Maria como a Mãe que gerou não apenas uma criança, o Salvador, mas que participou de maneira efetiva e eficaz da concretização do projeto de salvação de seu filho. Neste sentido, vamos encontrar nas orações da Igreja a presença da Mãe de Jesus como aquela que, além de acompanhar o processo evangelizador, intercede permanentemente por seus filhos.
"A Igreja, pela evangelização, gera novos filhos hoje. Esse processo que consiste em 'transformar a partir de dentro' (Evangelii Nuntiandi,18), é um verdadeiro renascimento. Neste parto, sempre renovado, Maria é nossa Mãe. Ela, gloriosa no céu, atua na terra. Participando do domínio do Cristo ressuscitado, 'cuida com amor materno dos irmãos' de seu filho, que ainda peregrinam' (Lumen Gentium, 62); seu grande cuidado é este: que os cristãos 'tenham vida abundante e cheguem à maturidade da plenitude de Cristo' (cf. Jo 10,10; Ef. 4,130)." (Puebla 288.)
Por sua presença maternal, Maria acompanha a Igreja como educadora da fé, pedagoga da América Latina. Seus cuidados vão em direção de ajudar os cristãos a se deixarem guiar pelo Evangelho, a plasmar suas vidas pela palavra de seu Filho, de modo a produzirem frutos de santidade (cf. Puebla 290).
"Maria, mãe, desperta o coração do filho adormecido em cada homem. Assim, nos leva a desenvolver a vida do batismo pela qual nos tornamos filhos. Ao mesmo tempo esse carisma materno faz crescer em nós a fraternidade e, assim, Maria faz com que a Igreja se sinta uma família" (Puebla 295).
Puebla enfatiza essa presença marcante de Maria na tradição do povo de Deus, acentuada por Paulo VI: "Não se pode falar de Igreja sem que esteja presente Maria". Maria é "a presença sacramental dos traços maternais de Deus". Presença feminina, que cria o ambiente de família, de acolhimento, de amor e respeito à vida. "É uma realidade tão profundamente humana e santa que desperta nos crentes as preces da ternura, da dor e da esperança." (Puebla 291.)
A simbiose que se estabelece entre Maria, Mãe de Jesus e da Igreja, e seus seguidores revela-se não somente na Conferência de Puebla, mas percorre toda a vida da Igreja e, como seria inevitável, todas as Conferências Episcopais.
A Conferência do Rio de Janeiro, por exemplo, realizada em 1955, ao reunir-se para responder a vários desafios à evangelização, suscitados pelas mudanças profundas que se operavam por todo o continente, sentia-se responsável pela salvaguarda da fé católica na América Latina e pela vocação apostólica do continente. Nesse momento, depositou sua confiança na "Imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus, Rainha da América" (Preâmbulo) e expressou seu "vivíssimo anelo de que os párocos [...] procurem santificar e promover o desenvolvimento espiritual dos fiéis [...] pelo reflorescimento da devoção à Maria Santíssima, Mãe e Rainha do Continente Latino-Americano [...]" (56b).
A Conferência de Medellín (1968), voltada à aplicação do Vaticano II na realidade em transformação da América Latina, foi caracterizada pela dimensão profética, pelo compromisso com os pobres e com a libertação cristã. Por tudo isso, reuniu-se "em torno de Maria, como Mãe da Igreja, que, com seu patrocínio assistiu a este continente desde sua primeira evangelização" (Introdução, 8).
A Conferência Santo Domingo (1992), voltada para a nova evangelização, a promoção humana e a cultura cristã, acolheu "com alegria e gratidão, o dom imenso de sua maternidade, ternura e proteção e, aspiramos a amá-la do mesmo modo como Jesus a amou" (15). No discurso inaugural, João Paulo II invocou Maria, a Estrela da Evangelização:
"A Ela, que sempre esperou, confiamos nossa esperança. Em suas mãos, colocamos nossos cuidados pastorais e todos os trabalhos desta Conferência, encomendando a seu coração de Mãe o êxito e a projeção da mesma sobre o futuro do continente. Que ela nos ajude a anunciar seu Filho: Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre! Amém" (30).
A Conferência de Aparecida (2007), sobre o discipulado e a missionaridade dos cristãos, recupera a caminhada das Conferências anteriores e aponta para a necessidade de fortalecer a ação missionária da Igreja na América na América Latina.
Destaca que a "mãe do Salvador foi mestra de Jesus em sua infância (cf. Lc 2,51). Mas foi, antes de tudo, a primeira e mais perfeita discípula que, desde a Encarnação, gravou em seu coração o Evangelho (cf. Lc 2,19). Como nossa mãe ela nos ensina a encontrar Jesus Cristo e a ele nos convertermos, e a sermos discípulos de tal modo assimilados a Jesus Cristo, que também nos cheguemos a ser nele evangelho vivo do Pai" (64).
Acolher Maria como Mãe é desejo de seu Filho, Jesus (cf. Jo 19,26-17). "A partir disso, ela é ícone de uma igreja que é Mãe e Família dos discípulos de seu Filho. Ela é também imagem da ternura da Igreja que acolhe os discípulos de Jesus, e ora como eles e por eles, para não decaiam em sua fé e em sua esperança (cf. At 1,14)" (68).
2. MARIA, ÍCONE DO DISCIPULADO
Tomamos como ponto de partida que o discípulo nasce do encontro e da contemplação da face do Cristo vivo. Como nos recordou João Paulo II, na Exortação Apostólica Ecclesia in America, "o encontro com Jesus Cristo vivo é o ponto de partida de toda ação pastoral. O encontro vital com o Senhor nos introduz nas dimensões mais profundas da vida".
Puebla (292) nos recorda que toda a existência de Maria se realiza na plenitude da comunhão com Jesus. Em consonância com o plano divino, nela todas as coisas se voltam para Cristo, em íntima dependência.
"Ela deu seu sim a esse desígnio de amor. Aceitou-o livremente na anunciação e foi fiel à palavra dada até o martírio do Gólgota. Foi a fiel companheira do Senhor em todos os caminhos. A maternidade divina levou-a a uma entrega total. Foi uma doação generosa, cheia de lucidez e permanente, unida a uma história de amor a Cristo íntima e santa, uma história única que culmina na glória".
Maria foi aquela que, em primeiro lugar, teve a graça de contemplar o rosto do Cristo. Nessa contemplação, ela encontrou a razão mais profunda de sua fé. Contemplar o rosto de Cristo é um caminho para a descoberta do seu mistério, ponto constante de referência para a ação do discípulo. É, antes de mais nada, uma ação da graça, como recorda a Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (20). Maria abriu caminho para a visibilidade do rosto de Deus. Por meio dela, Deus adquiriu um rosto, a ponto de Jesus assim proclamar: "Quem me vê, vê o Pai." (Jo 14,9.)
Diante do mistério que se lhe revelava, Maria meditava a Palavra e os acontecimentos e guardava todas essas coisas em seu coração. "É a discípula perfeita que se abre à Palavra e se deixa penetrar por seu dinamismo", afirma o Documento de Puebla 296. Entre outras razões, é esse um forte apelo para compreendermos porque Maria "é reconhecida como modelo extraordinário da Igreja na ordem da fé" (Puebla 296).
"Quando não a compreende e fica surpresa, não a repele, ou põe de lado; medita-a e conserva-a (cf. Lc 2,51). E quando a Palavra lhe soa dura aos ouvidos, persiste confiadamente no diálogo de fé com Deus que lhe fala; assim na cena do encontro com Jesus no Templo, assim em Caná, quando seu filho a princípio rejeita sua súplica (cf. Jo 2,4).
Em Maria, a fé se expressa e resplandece "como dom, abertura, resposta e fidelidade". Fé a ponto de ter a coragem de "subir ao calvário e associar-se à cruz, como a única arvore da vida. Pela sua fé é a Virgem fiel em quem se cumpre a bem-aventurança maior: "feliz aquela que acreditou" (cf. Lc 1,45) (Puebla 296).
Sem dúvida, a Mãe de Jesus entregou-se totalmente à missão do próprio Filho. Por isso, podemos dizer que Maria traduz na sua vida os sinais que identificam a verdadeira discípula. Maria foi discípula de seu Filho. Suas atitudes e seu comportamento sempre remetem ao Mestre. Ela é sinal do Mestre. Ela ecoa o Mestre. É a memória viva do Senhor, por sua palavra: "Fazei tudo aquilo que ele vos disser."
Maria conduz a própria vida pela novidade do Evangelho. Em sua boca, se reproduz todo o projeto de seu Filho. O Magnificat é o grande sinal do projeto de vida de Jesus. Maria é verdadeira discípula, porque entende que o projeto de Jesus é levado à frente pela Igreja, em comunidade. Junto com os Apóstolos, ela assume a responsabilidade de agir como Igreja que nasce para continuar a missão de seu Filho. Em espírito de comunhão e participação, Maria levou ao máximo sua intimidade com o Cristo e sua cooperação na obra da salvação, de forma criativa e ativa, sem alienações e passividades.
"Ela, associada a Cristo, desenvolve todas as suas capacidades e responsabilidades humanas, até chegar a ser a nova Eva juntamente como o novo Adão. Maria, por sua livre cooperação na nova aliança de Cristo, é junto a ele protagonista da história. Por esta comunhão e participação, a Virgem Imaculada vive agora imersa no mistério da Trindade, louvando a glória de Deus e intercedendo pelos homens" (Puebla 293).
Maria entende sua maternidade não apenas pelo aspecto carnal, mas como discípula que acolhe a missão da Igreja enquanto um chamado pessoal a serviço do Reino. Maria viveu seu discipulado, sem se limitar à pessoa de seu Filho, mas acolhia os discípulos em comunhão fraterna. Podemos dizer que ela entendeu profundamente que sua missão, como discípula, a conduzia a uma comunidade que recebeu a tarefa de refazer constantemente a escuta da Palavra e a partilha do pão: "Os olhos dos discípulos se abriram no partir o pão..., na mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém" (Lc 24, 31).
Com certeza, tinha consciência de não ser apenas escolhida para ser a Mãe do Senhor, mas de ser também enviada como missionária. Partiu para as montanhas, para visitar sua prima Isabel. O mandamento do Senhor – "Como o Pai me enviou, eu também vos envio" (Jo 20,21-22) – ecoou profundamente em seu coração.
Maria não agia em seu nome, mas em nome da própria Igreja, da Igreja nascente. Sentia-se parte dos enviados – "Eu sou a videira, vós sois os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muitos frutos" (Jo 15,5). Como discípula, Maria também não teve medo diante das dificuldades da missão. Teve coragem de enfrentar junto com Jesus o caminho da cruz. Sua presença viva no meio da comunidade foi sinal permanente de seu compromisso de vida com a comunidade.
Assim, o povo latino-americano contempla Maria como "serva do Senhor" e modelo de serviço eclesial. "Em Caná, está atenta às necessidades da festa e sua intercessão provoca a fé dos discípulos que 'acreditam nele' (Jo 2,11). Todo serviço que Maria presta aos homens consiste em abri-los ao evangelho e convidá-los a obedecer-lhe: 'Fazei o que vos disser' (Jo 2,5)." (Puebla, 300.) Esta consciência está presente na vida de nossos povos.
A partir da idéia de Paulo VI, de que o mais importante é "evangelizar não de maneira decorativa como se se tratasse de um verniz superficial' (Evangelii Nuntiandi, 20), mas "no fundo, na raiz, na cultura do povo", a Igreja encontra em Maria "a estrela de evangelização sempre renovada". A Igreja, afirma Puebla (303), "volta-se para Maria para que o Evangelho se torne mais carne, mais coração na América Latina".
Além de Puebla, a Conferência de Santo Domingo, logo no início do Documento (1), agradece a Deus pelo "dom inestimável da fé e pelos incontáveis dons de sua misericórdia", e isso o faz reunida "como num novo cenáculo, em torno de Maria a Mãe de Jesus" (Santo domingo, 1). Mais à frente (31), reflete que esteve "como Maria, à escuta da Palavra, para comunicá-la aos povos latino-americanos". Ela é a realização da santidade da Igreja (32), pois a "Igreja alcança na Santíssima Virgem a perfeição em virtude da qual não tem mancha nem ruga". E a santidade "é a chave do ardor renovado da nova evangelização" (32), de acordo com João Paulo, na Homilia de Salto, 4, feita no Uruguai, em 09 de maio de 1988.
Santo Domingo proclama que a Virgem Maria,
"Mãe de Cristo e da Igreja, é a primeira redimida e a primeira crente. Maria, mulher de fé, foi plenamente evangelizada, é a mais perfeita discípula e evangelizador (cf. Jo 2,1-12). É o modelo de todos os discípulos e evangelizadores por seu testemunho de oração, de escuta da Palavra de Deus e de pronta e fiel disponibilidade ao serviço do Reino até a cruz. ... Em Santa Maria de Guadalupe, através do Beato Juan Diego, é oferecido 'um grande exemplo de evangelização perfeitamente inculturada" (João Paulo II, Discurso inaugural, 24). Ela nos precedeu na peregrinação da fé e no caminho da glória, e acompanha os nossos povos que a invocam com amor até que nos encontremos definitivamente com seu Filho. ... Por isso, a invocamos como estrela da primeira e da nova evangelização" (Santo Domingo, 15.)
De acordo com os documentos preparatórios à V Conferência, Maria reúne todas "as características do discipulado segundo o coração de Deus". A Conferência relaciona "a escuta amorosa e atenta (cf. Lc 12,26-38; 8,19-21; 11,27-28), a obediência sem limites à vontade do Pai (cf. Lc 1,38) e a fidelidade até o ponto de acompanhar o Filho ao pé da cruz" (cf. Jo 19,25-27).
Maria proclamou, "na experiência da ressurreição de seu Filho, a bem-aventurança culminante dos cristãos que se converterem depois de Pentecostes: 'Felizes os que creram sem ter visto' (Jo 20,29)". Permaneceu fiel "junto da comunidade apostólica, animando sua oração e sua unidade e implorando com ela a vinda do Espírito Santo" (cf. At 1,14).
A V Conferência entende que Virgem Maria, mais do que qualquer membro da Igreja, foi a "mulher eucarística" (cf. Ecclesia de Eucharistia, 53ss), "associada por Deus, por meio do oferecimento do seu sofrimento, ao sacrifício de seu Filho para a salvação do mundo, e vivendo como ninguém em íntima comunhão com ele; também no céu, como Mãe dos irmãos do primogênito, de seus discípulos e missionários".
3. MARIA, MODELO DE UMA EVANGELIZAÇÃO LIBERTADORA
Um dos aspectos mais importantes da mariologia latino-americana é apresentar Maria como modelo de mulher libertadora. O documento de Puebla usa a metáfora "espelho da alma", ao se referir à oração do Magnificat, para falar da Mãe de Deus como aquela que tem consciência da necessária comunhão com o projeto libertador de seu Filho.
O Magnificat reflete a alma de Maria (cf. Puebla, 297). Neste Canto, a Virgem se apresenta pela ótica do Servo de Javé. Como Mãe do Cristo libertador, ela se coloca a serviço dos pobres pelo anúncio de que Deus se volta para os excluídos. No Magnificat, ela assume a postura de profetiza da causa dos pobres. Fala da justiça divina e da misericórdia de Pai, disposto a matar a sede dos ávidos por justiça.
Maria, com sua Palavra, realiza o serviço de despertar os pobres para a esperança. Os que vivem oprimidos na América Latina, por situações desumanas, feridos pelo desemprego, pelos salários achatados, sem moradia e assistência médica, encontram em Maria uma aliada, a porta-voz da libertação. No seu Canto, ela define de maneira radical a opção de Deus pelos fracos e pela prática da justiça e da misericórdia. Ela soube prenunciar o Evangelho do sermão da montanha, onde Jesus recupera todo o projeto de Reino.
Maria, como profetiza dos pobres de Javé, se tornou o grande sinal do rosto materno e misericordioso do Pai. Ela nos convida a entrar em comunhão com Deus (cf. Puebla, 282). O Continente Latino Americano aprendeu a venerar Maria com a Mãe dos pobres e oprimidos. Sua espiritualidade de pobre de Javé e dos profetas, se manifesta no seu esvaziamento, na sua entrega total à obra do Senhor.
Ela não pensa em si mesma, confia em Deus, acredita e se compromete com a justiça e com os pobres e humildes (cf. Puebla,195). É importante recordar que seu esvaziamento não é teoria, mas sua própria vida, pois "conheceu a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio". Por isso, ela tem condições de ser a companheira de nossos povos sofridos, com tudo que isso implica "acompanhar, com espírito evangélico, as energias libertadoras do homem e da sociedade" (Puebla, 200).
Outro aspecto relevante na vida de Maria, como modelo de libertação, é sua postura de mulher corajosa e ativa, qualidades indispensáveis para quem luta por mudanças. Livremente ela se envolveu com a causa do Reino, colocando-se sempre disposta a acompanhar seu Filho em todas as suas incursões de pregador da mensagem que liberta.
Maria viveu momentos de rejeição, condenação, paixão e morte. Tudo por causa do Reino. No Magnificat, manifesta-se como modelo "para os que não aceitam passivamente as circunstâncias adversas da vida pessoal e social, nem são vítimas de alienação, como se diz hoje, mas que proclamam, com ela, que Deus 'exalta os humildes' e se for o caso 'derruba os poderosos de seus tronos' (João Paulo II, Homilia em Zapopán, 4, AAS LXXI). A coragem e a fé de Maria são para os pobres da América Latina, modelo de força e luta por dias melhores.
A Virgem de Nazaré motiva a Igreja da América Latina e do Caribe, a evangelizar não em conluio com os poderosos, mas a conhecer as causas de todas injustiças sofridas pelos nossos povos. Em Maria o Evangelho se tornou carne. Este é o novo paradigma de todo processo evangelizador. "Esta é a hora de Maria, isto é, o tempo do Novo Pentecostes a que ela preside com sua oração, quando sob o influxo do Espírito Santo, a Igreja inicia um novo caminho em sua peregrinar." (Puebla, 303).
CONCLUSÃO
Desafios nos interpelam a cada dia, desde que o terceiro milênio começou. As expectativas de uma nova era de paz e de realização humana parecem cada vez mais distantes. As questões éticas, sociais, econômicas, políticas, religiosas e culturais aguçam nossa criatividade e a missão eclesial de servir aos povos do sofrido Continente Latino-Americano.
Entendemos que a melhor forma de servir é apresentar Jesus Cristo como aquele que tem a verdadeira Palavra transformadora e que caminha conosco na construção de um itinerário libertador. Mais do que ninguém, Maria foi quem apresentou ao mundo o Filho de Deus feito homem e identificou sua missão no mundo, no campo do Magnificat. Para Maria, o itinerário de Jesus Cristo é o modelo a ser seguido pelos povos, para sua própria ressurreição, entendida como o processo de crescer em vida plena.
Este artigo buscou compreender melhor o papel de Maria no itinerário dos povos da América Latina, à luz do caminho percorrido por Jesus Cristo. Mas é também importante recordar, nesse sentido, que o próprio caminho de Maria não foi apenas desenvolvido à sombra dos passos de Jesus. Por meio de sua vivência de fé, destemor e profecia, ela mesma elaborou uma identidade própria a caminho do Reino definitivo.
Maria tem, portanto, aspectos próprios de evangelizadora. Como Mãe e mulher, como educadora e presença na comunidade apostólica, discípula e ícone da Igreja. Ela tem sua feição peculiar, importantíssima para ser repensada e recuperada no inicio deste milênio. Temos certeza que esta será também das preocupações da V Conferência.
Sem a menor pretensão de concluir este assunto, é importante recordar que Maria não vela apenas pela Igreja, mas por todos os filhos de nosso Pai. Maria caminha com a Igreja e com a humanidade em suas aflições e alegrias. Intercede por todos os povos, diante do Senhor da história. Seu coração abraça o mundo.
Por isso, a religiosidade popular põe nas mãos de Maria, como Rainha e Mãe, o destino de nossas nações. A piedade mariana é, com freqüência, o único vínculo que mantém um grande número de pessoas ligado à Igreja. Neste sentido, é muito interessante recordar os santuários marianos, especialmente de América Latina, para onde se dirigem tantos milhares de pessoas, para agradecer as graças recebidas e também pedir novas graças. Dentre esses milhares de pessoas, muitas são aquela que centralizam sua piedade no culto manifestado em peregrinações.
Muitos, mesmo sem participar das comunidades, reconhecem Maria como intercessora, a Mãe capaz de escutar e proteger seus filhos. Como ícone da Igreja, que é mãe e família dos discípulos de seu Filho, Maria ora pelos discípulos e seguidores do Senhor, para que não perseverem em sua fé e esperança (cf. At 1,14), sem jamais desanimar. Em meio à comunidade cristã católica, os fiéis sabem que podem encontrar Maria, que é acolhida como Mãe, segundo o desejo de seu Filho Jesus (cf. Jo 19,26-17).
"Sabe o povo que encontra Maria na Igreja Católica. A piedade mariana é com freqüência o vinculo resistente que mantém fiéis à Igreja setores que carecem de atenção pastoral adequada." (Puebla, 284.)
Como "estrela da evangelização", Maria encarna o conteúdo da Boa Nova. É o modelo perfeito do cristão evangelizado e evangelizador; é Mãe dos homens e das comunidades geradas pela evangelização. Como ninguém, Maria teve a experiência da fé, respondeu à vocação do discípulo que crê, permanecendo fiel a Jesus, inserida na comunidade apostólica. Viveu a fidelidade de contemplação e a fidelidade de compromisso que a levaram a associar-se à missão de Jesus até o sacrifício da cruz.
Entre nossos povos da América Latina, o Evangelho tem sido proclamado, apresentando a Virgem Maria como sua expressão concreta. Na ação missionária, ela exerce uma função materna, pois ao participar da ação de Cristo ressuscitado, acompanha os homens que peregrinam na terra e deles cuida maternalmente. Assim, Maria comunica à Igreja e à espiritualidade o "carisma feminino", os traços maternais de Deus, o ambiente familiar, os valores intuitivos e do coração...
Finalmente, Maria é presença viva na religiosidade dos povos latino-americanos, que a veneram, aprenderam a respeitar e a amar como Mãe, modelo de seguidora de Jesus, de escuta, acolhimento e prática da Palavra.
Prof. Dr. Mons. Tarcísio Justino Loro
Doutor em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção e Doutor em Ciências: Geografia humana pela Universidade de São Paulo. Professor na Faculdade de Teologia.
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