O DIÁLOGO INTER-CONFESSIONAL ÀS VÉSPERAS DA V CONFERÊNCIA



RESUMO

Muitas expectativas povoam nosso coração de discípulos e missionários, às vésperas da Conferência de Aparecida. Uma delas diz respeito ao diálogo inter-confessional nas suas duas vertentes: ecumênica (com as Confissões cristãs) e inter-religiosa (com as demais religiões). Alguns, convictos do valor desta importante diretriz do Concílio Vaticano II, indagam se o diálogo estará devidamente presente nos debates da V Conferência.

Palavras-Chave: Conferência Aparecida, diálogo, respeito

 

ABSTRACT

Many expectations are in our heart of missionary and disciples on the eve of Aparecida Conference. One of them deals with an inter-religious dialogue in its double way: ecumenical (with Christian religions) and inter-religious (with the other religions). Some, convicted about the value of this important guide from second Vatican Council, ask themselves if dialogue will take place in the fifth Aparecida Conference debates.

Key words: Aparecida Conference, Dialogue, Respect


Muitas expectativas povoam nosso coração de discípulos e missionários, às vésperas da Conferência de Aparecida. Uma delas diz respeito ao diálogo inter-confessional nas suas duas vertentes: ecumênica (com as Confissões cristãs) e inter-religiosa (com as demais religiões). Alguns, convictos do valor desta importante diretriz do Concílio Vaticano II, indagam se o diálogo estará devidamente presente nos debates da V Conferência. Outros, chocados com o proselitismo e o relativismo religioso, consideram o diálogo como problemático ou não-prioritário. Diante disso, a Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-Religioso da CNBB quer aproximar-se fraternalmente de quantos se preocupam com a questão, tecendo as considerações que seguem.

1. A IGREJA "SACRAMENTO DA UNIDADE"

Antes de tudo, lembramos que os diálogos ecumênico e inter-religioso não são invenção recente, mas derivam da própria catolicidade da Igreja, constituída por Cristo como "sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano" (Lumen gentium 1; Unitatis redintegratio 4). Considerando, pois, que a Trindade opera no mundo o seu desígnio salvífico, a Igreja discerne os sinais dos tempos e apresenta-se aos povos como mensageira do "diálogo de salvação" que o Pai, por Cristo, no Espírito Santo, oferece ao mundo (Diálogo e anúncio 38). Hoje, diante do proselitismo, relativismo e exacerbado subjetivismo religioso, a Igreja volta-se ao Evangelho para aprender, com seu Senhor, o serviço da unidade e comunhão verdadeiras.

2. O DIÁLOGO ECUMÊNICO

O ecumenismo não se justifica por uma exigência sociológica ou apenas apologética, mas evangélica, trinitária e batismal: ele expressa a "comunhão real, embora imperfeita" que já existe entre "os que foram regenerados pelo batismo" (Ut unum sint 96, Unitatis redintegratio 21). O magistério insiste no caráter trinitário e batismal do empenho ecumênico, donde o diálogo emerge como atitude espiritual e prática, num caminho de conversão e reconciliação. Só assim chegará "o dia em que poderemos celebrar, juntamente com todos os que crêem em Cristo, a divina Eucaristia" (Sacramentum caritatis 56).


Graça e resultados alcançados

Há mais de quarenta anos, o Vaticano II reconheceu no movimento pela unidade dos cristãos a ação do Espírito Santo (cf. Unitatis redintegratio 1). Foi o florescer da primavera ecumênica! Desde então, colhemos muitos frutos: semana de oração pela unidade; comissões bilaterais; comunidades ecumênicas de vida; conselhos de igrejas; aprofundamento da pneumatologia, eclesiologia, teologia sacramental, missiologia e hermenêutica bíblica; declarações conjuntas sobre cristologia, doutrina da justificação, mariologia e temas morais; jornadas de oração e estudo; projetos ecumênicos de justiça, paz e ecologia; Campanhas ecumênicas da Fraternidade; consolidação da espiritualidade da comunhão, e outros (cf. Ut unum sint, parte II). Neste sentido, evocamos os gestos de João Paulo II no período em que celebrou o Grande Jubileu: Jornada pela Paz (Assis), Memória ecumênica dos mártires (Coliseu), Abertura da Porta Santa e Liturgia da Palavra com representantes ortodoxos, anglicanos, reformados e evangélicos de 22 confissões cristãs (basílica de S. Paulo fora-dos-muros).

Dificuldades

Se o ecumenismo tem sofrido recuos, não parece que seja por falta de fundamento bíblico-teológico, mas por fatores que interferem negativamente no caminho da reconciliação. Entre estes, verificamos o surgimento de movimentos religiosos de estilo esotérico-gnóstico; a proliferação de "igrejas livres" (free churches) desvinculadas da herança da Reforma; a postura mercadológica de várias denominações; o subjetivismo religioso; a promiscuidade ética dos que fazem da fé um pretexto para acumularem tesouros na terra, antes que no céu.

Isto tem acelerado mudanças que – aliadas a fatores de ordem econômica, psicológica e cultural – resultam na mobilidade religiosa. Em 1991, no Brasil, os católicos somavam 83,8% da população; em 2001, somavam 73,8 % (queda de 10 pontos). Das pessoas inquiridas, 20% mudam de opção religiosa. A maioria migra para denominações pentecostais e neo-pentecostais. A perda de fiéis atinge também as Igrejas protestantes históricas. Outras ressentem o trânsito de fiéis que circulam entre as denominações, sem pertença estável. Tal situação nos leva a: 1) investigar o cenário religioso onde atuamos; 2) avaliar seriamente nossa presença e ação; 3) oferecer respostas pastorais adequadas.

No campo ecumênico, necessitamos qualificar mais agentes de diálogo. Às vezes esquecemos que o zelo pela unidade dos cristãos é um dos frutos da comunhão eucarística e oramos pouco nesta intenção. Outros desconhecem as declarações ecumênicas que a própria Igreja Católica assinou: como avançar na via da unidade quando se ignora o trajeto percorrido? Afinal, os diálogos bilaterais têm dado bons frutos. É também oportuno estudar o Diretório ecumênico e suas conseqüências para a catequese, a liturgia, a formação presbiteral e a pastoral (cf. A dimensão ecumênica na formação dos que trabalham no ministério pastoral 3-5).


Prosseguir na via da unidade

Apesar dessas dificuldades, reconhecemos e encorajamos os irmãos do clero, laicato e vida consagrada que participam de organismos ecumênicos e realizam ações conjuntas no campo social, teológico, editorial, universitário, ecológico e pastoral. Com efeito, o contato ecumênico favorece a estima recíproca, convoca à escuta comum da Palavra de Deus e chama à conversão os que se declaram discípulos e missionários de Jesus Cristo. Esperamos que a promoção da unidade cristã assumida pelas Conferências Episcopais se consolide e frutifique, sob a luz do Espírito Santo.


Diálogo católico-pentecostal

Boa notícia tem sido o Diálogo Católico-Pentecostal, já na quinta fase de sua agenda internacional, desde 1972. Dele participam representantes pentecostais norte-americanos das Assembléias de Deus, Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular, Igrejas "Bíblia aberta", Igreja do Deus da Profecia e peritos convidados. Temas tratados: 1. Conversão, iniciação cristã, carismas e efusão do Espírito Santo; 2. Experiência de fé, dom de línguas e a figura de Maria; 3. Formação cristã e discipulado; 4. A comunhão cristã (koinonia); 5. Evangelização, proselitismo e testemunho comum. Na esteira desse diálogo, o Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, em colaboração com CELAM e CNBB, promoveu o Simpósio latino-americano sobre Pentecostalismo em São Paulo, Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2005.

Vale observar que onde o diálogo se estabelece, diminui o proselitismo, cresce o respeito e abrem-se possibilidades de testemunho comum. Um passo nesta direção é o encontro com interlocutores pentecostais responsáveis e fraternos, que partilham conosco a estima, a oração e o estudo. No Brasil, alguns líderes pentecostais mostram tal disposição. Embora sejam poucos, nós os valorizamos e sabemos que esse contato é um sinal dos tempos em meio a tantas divisões.


João Paulo II e Bento XVI

Em generosa resposta à oração do Senhor "para que todos sejam um" (Jo 17,21), os Papas nos animam a avançar pacientemente no caminho da unidade. João Paulo II exorta: "O ecumenismo não é um apêndice à atividade tradicional da Igreja. Ao contrário, pertence organicamente à sua vida e ação, devendo, por conseguinte, permeá-la no seu todo (...). No corajoso caminho para a unidade, a lucidez e a prudência da fé impõem-nos evitar o falso irenismo e a negligência pelas normas da Igreja. Contudo, a mesma lucidez e prudência recomendam-nos fugir do desleixo no empenho pela unidade e, mais ainda, da oposição preconcebida ou do derrotismo que tende a ver tudo pelo aspecto negativo" (Ut unum sint 20 e 79). Bento XVI abre seu pontificado, dizendo: "Com plena consciência, no início de seu ministério na Igreja de Roma – na qual Pedro verteu o próprio sangue – seu atual sucessor assume o compromisso primordial de trabalhar sem poupar energias na reconstituição da plena e visível unidade de todos os seguidores de Cristo. Este é seu desejo e seu urgente dever. Ele está consciente de que, para isto, não bastam manifestações de bons sentimentos. São necessários gestos concretos que entrem nos corações e despertem as consciências, enternecendo cada um àquela conversão interior, que é o pressuposto de qualquer avanço no caminho ecumênico" (Primeira mensagem pontifícia: 20-4-2005).  

No horizonte da V Conferência

A complexa realidade latino-americana impõe uma agenda ampla aos debates da V Conferência. A questão ecumênica não será a única preocupação, mas estará presente. Sabemos que algumas contribuições para a próxima Conferência Geral estimulam a abertura e o diálogo entre os discípulos de Cristo, que se prolonga na relação com os irmãos de outras Igrejas e Comunidades cristãs. Além disso, os pronunciamentos anteriores continuam válidos, como as sugestões da Conferência de Sto. Domingo: consolidar a colaboração ecumênica; aprofundar o diálogo de convergência a partir do Credo apostólico; intensificar o diálogo teológico; avivar a oração comum; promover a formação ecumênica dos seminaristas e agentes de pastoral; estimular o estudo bíblico com colaboradores de outras Confissões cristãs; efetuar ações conjuntas no campo social; valorizar a Seção de Ecumenismo do CELAM (Santo Domingo 135; tb. Medellín II, 26; VIII, 11; Puebla 1096 e 1107).

 

3. DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

Nos inícios da Igreja, Pedro reconheceu "que também sobre os gentios se derramara o dom do Espírito Santo" (At 10,45). E Paulo anunciou a reconciliação que Cristo realizara, reunindo os povos no único Povo de Deus (cf. Ef 2,14-18). Os Pais da Igreja, por sua vez, viam na Filosofia grega uma função salvífica análoga à Torá judaica, de modo que as religiões foram apreciadas como preparação e pedagogia à Boa Nova de Cristo (Ad gentes 3). De fato, "há um só plano de salvação para a humanidade inteira" (Diálogo e anúncio 19).


As religiões no plano da salvação

O Vaticano II voltou-se às Escrituras, releu a soteriologia patrística e assumiu uma postura trinitária, cristocêntrica e inclusiva: em Cristo são congregados todos os remidos, cristãos e não-cristãos (cf. Gaudium et spes 22, também Diálogo e anúncio 28-29, Dominus Iesus 14). O vínculo dos salvos no único Senhor se dá pela ação do Espírito Santo: ele age nas culturas e nos corações, espalha as sementes do Verbo e leva a bom termo a obra redentora de Cristo (cf. Gaudium et spes 22, Ad gentes 4). "Todos os homens e mulheres que são salvos participam, embora de modo diferente, do mesmo mistério da salvação em Jesus Cristo" pela "ação universal do Espírito Santo" que "pode atingi-los, associando-os mesmo sem o saberem, ao mistério pascal de Cristo" (Diálogo e anúncio 29 e 68).

Pela ação do Espírito de Cristo, embora nem tudo seja santo no patrimônio das religiões, encontram-se nelas "lampejos da Verdade que ilumina a todos os homens" (Nostra aetate 2). Ainda que as religiões não gozem de autonomia salvífica, elas desempenham um papel providencial na economia da graça, enquanto abrem a pessoa à transcendência, colaboram na busca da verdade, apelam à reta intenção, cultivam as virtudes, testemunham o destino eterno do ser humano e favorecem o conhecimento de Deus (cf. Ad gentes 11, Diálogo e anúncio 17, Dominus Iesus 21). Pelo sopro do Espírito Santo e outros meios de Deus conhecidos, a graça de Cristo pode alcançar todos os que ele remiu, além da comunidade eclesial (cf. Diálogo e anúncio 29). Explicitar e promover esta salvação já operante no mundo é uma das tarefas da Igreja em respeito às palavras do Senhor: "Sereis minhas testemunhas até os confins da terra" (At 1,8).


Diálogo inter-religioso e evangelização

O diálogo inter-religioso se fundamenta justamente na missão que Cristo nos confiou, solicitando a sábia articulação entre o anúncio e o diálogo como elementos constitutivos da evangelização (cf. Diálogo e anúncio 77). Com tal atitude, a Igreja se insere no movimento salvífico que a Trindade opera no mundo, refletindo a luz de Cristo "que ilumina todo homem" (Jo 1,9).

A presença da Igreja entre as religiões não-cristãs é feita de empenho, discernimento e testemunho, apoiados na fé, esperança e caridade teologais. Na proposta católica, o diálogo inter-religioso não se intimida diante dos fundamentalismos, nem se perde nos relativismos que – além de obscurecer a verdade evangélica – desrespeitam a identidade específica das próprias religiões que dialogam (cf. Dominus Iesus 22).

Por isso mesmo, desde Paulo VI (Ecclesiam suam) até João Paulo II (Redemptoris missio) o diálogo inter-religioso acontece em níveis diferenciados (diálogo de valores éticos; diálogo doutrinal; diálogo dos bens espirituais) e no respeito às identidades (diálogo judaico-cristão; islâmico-cristão; budista-cristão, afro-cristão etc). Ainda que o subjetivismo e a identidade pouco definida de certas propostas dificultem os contatos, isso não nos permite abandonar o compromisso e a graça do diálogo (cf. Diálogo e anúncio 89). Em vez de desistir, há que se investir no conhecimento das religiões, no discernimento teológico-pastoral e na formação de agentes competentes de diálogo inter-religioso (cf. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil 2003-2006, 91).


Missão da Igreja na América Latina

Na América Latina e Caribe, reconhecemos que o Espírito Santo antecedeu nossos missionários ao lançar as sementes do Verbo que floresceram nos mais de 500 anos de evangelização. Sem negar nossos esforços, sabemos que é o Senhor quem faz crescer e frutificar a Palavra semeada (cf. 1Cor 3,6). Por isso, as Conferências Gerais de Medellín, Puebla e Santo Domingo lançaram um olhar pastoral sobre o pluralismo cultural e religioso, em atenção aos indígenas, afro-descendentes, mestiços, migrantes e jovens (cf. Santo Domingo 231-251). Uma nova evangelização só é possível se conjugar adequadamente a promoção humana e a cultura do diálogo, sempre a partir de Jesus Cristo (cf. idem, parte III).

O diálogo inter-religioso, além de seu cunho teológico, tem um especial significado na construção da nova humanidade: abre vias inéditas de testemunho cristão; promove a liberdade e dignidade dos povos; estimula a colaboração pelo bem comum; supera a violência religiosa; educa à paz e à convivência cidadã: é um terreno de bem-aventuranças, na esteira da Doutrina Social da Igreja.


CONCLUSÃO

As duas modalidades do diálogo (ecumênico e inter-religioso) não se justificam pela conveniência ou necessidade. Brotam, antes de tudo, da catolicidade da Igreja manifestada em Pentecostes (cf. At 2,1-11). Apesar das dificuldades do momento presente, esperamos não retroceder na via do diálogo, pois este expressa profundamente nossa existência batismal-missionária.

Além disso, os valores eclesiais da unidade na diversidade, da nova evangelização, da comunhão e da participação – tão presentes em nossas propostas – não se fecham sobre si mesmos, mas abrem toda a Igreja Católica à dinâmica missionária e ecumênica (cf. Ut unum sint 5). Portanto, seria lamentável que os discípulos e missionários de Jesus considerassem o diálogo ecumênico e inter-religioso como irrelevantes ou alheios às suas iniciativas pastorais.

Esperamos que a V Conferência nos anime na via da reconciliação dos cristãos e do respeito com os demais crentes – em sintonia com o magistério e na atenção aos sinais dos tempos – promovendo especialmente: 1) a recepção pastoral da encíclica Ut unum sint e do documento Diálogo e anúncio, 2) a formação de agentes qualificados de diálogo nas dioceses, institutos de vida consagrada e movimentos, 3) a organização de Comissões de Diálogo nas Igrejas locais; 4) a participação católica em organismos ecumênicos e contatos inter-religiosos; 5) a formação bíblica, missionária e catequética, consoante com a dimensão do diálogo; 6) o aprofundamento da eclesiologia de comunhão; 7) a aplicação prática do Diretório ecumênico da Santa Sé; 8) o ensino do Ecumenismo e da Teologia das Religiões nas faculdades teológicas; 9) o cultivo de uma espiritualidade da comunhão; 10) a aplicação do princípio conciliar da "hierarquia das verdades" nas tematizações doutrinais; 11) a divulgação dos resultados do diálogo ecumênico nas comunidades e na mídia católica; 12) a parceria inter-confessional em prol da justiça, paz e integridade da criação.

Dom Oneres Marchiori – presidente
Pe. Marcial Maçaneiro, scj – assessor