A IGREJA EM SEU MISTÉRIO

Prof. Ms. Pe. Donizete José Xavier


RESUMO

O texto procura refletir a partir dos desafios da sociedade atual o papel da Igreja. Sua atuação necessita ser pautada no seguimento de Jesus.

Palavras-chave: eclesiologia, trindade, mistério

 

ABSTRACT

The text aims to reflect on the role of the church starting from the challenges of today's society. Her role has to be in line with the work of Jesus.

Key words: Ecclesiology, Trinity, Mystery


INTRODUÇÃO

O mundo tem enfrentado desde os anos 80 o que se chama fundamentalismo do mercado, ou seja, o mercado é tudo, e dentro desta lógica a solução dos problemas sociais torna-se meramente ideologia. A lógica do mercado está constituída de uma dinâmica interna que se apresenta como fonte sedutora e atrativa capaz de gerar indivíduos humanamente frágeis. A economia de mercado se reveste de fantasias e encantos, assim como que num picadeiro de representações arranca aplausos de um público que se vê envolvido em seu enredo. O individualismo impiedoso e competitivo acena para a voracidade do poder. O cogito ergo sum que propunha uma supremacia da razão agora é substituído pelo Conquisto ergo sum, fazendo crescer assustadoramente a exclusão e a multidão de vitimas condenadas a indiferença.

Cresce em nossa sociedade o interesse pelo fenômeno religioso e espiritual. Contempla-se uma busca pelas religiões orientais, pelo esoterismo e misticismo em geral. Nas Igrejas cristãs o avanço e crescimento de movimento neo-pentecostais e outros vão tornando-se evidentes. Há efetivamente uma busca de espiritualidade, mas como falta defini-la, corre-se o risco de fugir a luta e desassociar fé e vida. As mudanças no cenário social e religioso exigem novas posturas e respostas eclesiais. A Igreja precisa reencontrar o caminho da sua vocação e da sua auto-consciência. Ela deve procurar efetivamente responder as questões que se lhe apresentam. As indagações que surgem deste contexto onde o lucro e a posse determinam o ser. A Igreja não pode omitir sua dimensão profética, deve com toda veemência à luz da revelação anunciar uma boa nova em tempo de desesperança. Há de ter-se a consciência que a Igreja não tem o papel de ler o futuro, sua mensagem não é futurista, é, e isto a faz querigmática, anunciadora de uma esperança sempre nova que Deus desperta em seu povo.

A Igreja deve conscientizar-se daquilo que ela é, do seu caráter fecundante, promotor da vida e edificador do amor, por isso o que caracteriza a consciência contemporânea da Igreja é o seu caráter de diakonia. Diante do mistério universal da redenção universal de Cristo, a Igreja tem consciência de ser servidora, de todos os humanos salvos por Cristo, ou seja, a Igreja cumpre sua missão, colocando-se a serviço do ser humano. A missão da Igreja está em continuidade ao amor de Jesus, levar os homens a se darem uns aos outros. Neste sentido é necessário desdobrar a pertinência de uma eclesiologia latino-americana totalmente crítica a si mesma a aos condicionamentos econômicos e sócio-culturais como práxis do amor. Esta eclesiologia busca uma nova imagem da Igreja a partir de baixo, dos pobres estigmatizados; ela quer ser um sinal visível da construção do Reino de Deus, contemplando-o pelo comportamento de Jesus histórico como boa nova aos pobres. Esta eclesiologia concebe a Igreja como Corpo histórico de Cristo, pois ela "pode ser considerada como sujeito histórico, já que o mistério da Igreja constitui o sujeito histórico e o sujeito histórico desvela o mistério [1]".

Quando nos perguntamos o que deve ser a Igreja neste contexto de mudança epocal, é evidente que a resposta não poderia ser outra, senão, que a Igreja deve ser ela mesma em sua essência mais intima. Deve responder a sua vocação primeira, a de ser mistério porque é ecclesia de Trinitate presente na ecclesia ex hominibus.

Mas qual o percurso para se falar deste mistério? O Concílio Vaticano II adotou um caminho: o ponto de partida para a compreensão da Igreja é o Pai o Filho e o Espírito Santo. A eclesiologia do Vaticano II é uma eclesiologia trinitária. A Igreja brota do amor incriado de Deus. Como designo nascido do coração do Pai é uma realidade criada e fruto da graça. A Igreja é do Pai, pois em seu desígnio de amor a quis como sinal e instrumento da unidade dos homens entre si e com ele; é a Igreja do Filho, que com a encarnação e a páscoa coloco-a na história como o seu corpo; é Igreja do Espírito, comunicada sempre novamente, suscitada e vivificada pelo dom daquele que torna presente o Ressuscitado no tempo dos homens e, enriquecendo o povo de Deus com carismas e ministérios, a conduz rumo à meta prometida. A realidade do mistério da Igreja se explica pela Trindade econômica, pois o mistério da Igreja é, a comunhão com Deus na sua articulação na realidade histórica com a comunidade cristã.

Esta eclesiologia trinitária querendo explicitar o mistério da Igreja, permite a essa mesma Igreja transforma-se em fermento na história, para que possa levedar todas as experiências verdadeiramente humanas que buscam comunhão e solidariedade. Uma eclesiologia trinitária, deve resgatar a relação fundamental entre a cristologia e a pneumatologia. Pois na Igreja e através dela Jesus prolonga sua ação redentora e prepara a sua parusia. O destino histórico da Igreja, o Verbo encarnado entrega ao Espírito Santo, confiando-lhe o destino evolutivo da Igreja enquanto desígnio e vontade do Pai. O Espírito Santo derramado no dia de Pentecostes, santifica perenemente a Igreja aproximando os homens do Pai, por Cristo no mesmo Espírito. ( Ef 2,18) ( LG 4). A ação do Espírito Santo é fonte fecunda suscitadora de comunhão na realidade histórica. neste sentido é mister compreender que tal ação não acontece invisivelmente, fora ou contra a lógica da encarnação. Não se separa Cristo e o Espírito isso seria cristomonismo, nem se separa o Espírito de Cristo, tendência muito forte em movimentos congregacionistas e pentecostais, que muitas vezes fogem à luta e legitimam no Espírito certos desvios e desequilíbrios teológicos. Nestes movimentos há uma certa lacuna entre a cristologia e a pneumatologia, consequentemente deficiência na prática pastoral. O acontecimento do Espírito não prescinde jamais ao acontecimento Cristo. A Igreja, guiada pelo Espírito Santo tem a missão de levar os homens a conhecer e experimentar o mistério da salvação.

Uma eclesiologia com dimensões pneumáticas, tem por missão ajudar aos crentes a compreenderem as missões do Filho e do Espírito Santos. Estas missões são indissolúveis, contudo distintas, primeiramente em seu aspecto ontológico. Enquanto o Filho pela encarnação assume uma natureza humana na unidade da pessoa, o Espírito Santo habita de maneira diferente ocultando-se na comunidade dos humanos. O Espírito não se encarna, age na fragilidade da carne humana, formando assim a Igreja. A segunda distinção se dá na linha do agir e da significação salvadora. Enquanto o Filho salva estabelecendo definitivamente a salvação, o Espírito Santo santifica, consuma a salvação, dá vida, ilumina e irradia sobre a Igreja o poder da Ressurreição de Cristo, transformando-a na Igreja do Amor.


"O Espírito Santo se comunica às pessoas marcando cada membro da Igreja com o selo de uma relação pessoal e única com a Trindade, tornando-se presente em cada pessoa. Como? Aqui persiste um mistério, o do despojamento, da kénosis do Espírito quando vem ao mundo. Se na kénosis do Filho a pessoa nos apareceu enquanto a divindade ficava oculta sob a semelhança do servo, o Espírito Santo, na sua vinda, manifesta a natureza comum da Trindade, mas deixa que a sua pessoa seja dissimulada sob a divindade. Permanece não revelado, escondido por assim dizer pelo dom, para que o dom que Ele comunica seja plenamente nosso, apropriado por nossas pessoas". [2]


A Igreja da Trindade é, portanto a Igreja do Espírito que gera comunhão entre aqueles que crêem. Graças ao Espírito, a experiência do Ressuscitado, feito na origem por aqueles que conviveram com ele, poderá ser vivida sempre de novo, de modo particular no culto e na comunhão do povo de Deus que por índole é sempre peregrino na história até que se cumpram todas as promessas escatológicas de Deus. "Deus será tudo em todos" ( 1 Cor 15,28). Assim a predicação do Deus Trino ilumina a reflexão atual da eclesiologia e abre fronteiras para uma reflexão de importância pastoral extrema. Brota uma eclesiogênesis de ordem pneumática ressaltando a irrupção do Espírito num contexto que se deixa fecundar por ele.

Na América Latina, continente sofrido e explorado o Espírito tem suscitado na Igreja novos carismas laicais que se põem à serviço dos irmãos tanto em tarefas eclesiais, como nas tarefas sócias, em vista da construção do Reino e de uma sociedade mais justa. O teólogo José Comblin relatando experiências nas comunidades eclesiais de base, resgata a experiência do Espírito da seguinte forma:


"As pessoas sente-se como invadidas por forças novas que lhe fazem produzir o que nunca tinham pensado em fazer. Pessoas e comunidades apagadas, sem dinamismo, resignadas a uma luta sem horizonte para a sobrevivência, descobrem-se como autores de uma história que as ultrapassa" [3]

Há de fato um processo de conversão, onde as pessoas passam de um estado de passividade a uma realidade de ação, tal como acontecera com os discípulos medrosos e fugitivos da sexta-feira da paixão. Estes homens na experiência do Espírito foram transformados tornando-se verdadeiras testemunhas da ressurreição. Esta ação inesperada naqueles fugitivos da hora da cruz é de fato um agir dissimulado do Espírito Santo em suas vidas. Esta ação do Espírito tal como se deu na vida dos discípulos que conviveram com Jesus de Nazaré é prolongada na história, justamente porque o Espírito Santo descendo sobre os homens abre espaço nestes mesmos homens para ali fazer morada. É nesta experiência do Espírito que a comunidade vê "irromper o tempo final e se sabe legitimada para considerar-se como ecclesia, como assembléia santa do povo a quem se fez as promessas do Reino de Deus [4]".  

Na perspectiva do Reino pode-se dizer que este sempre tem como suporte um sujeito social determinado pelas mediações simbólico-reais, quer seja explicitas ou anônimas. "A vontade de justiça e a paz de Deus cria um espaço na história [5]." Quando a prática da justiça, da paz e do amor se concretizam na história impulsionadas pelo Espírito que congrega em comunidade se entende esta mesma prática por Igreja em seu sentido histórico fundamental ( LG48).

Outro fator fundante, é dizer que na eclesiologia trinitária está presente uma Igreja missionária anunciadora do Reino de Cristo ( LG 5). O Reino de Deus, na novidade iniciado por Jesus, é o Reino do Deus-Trindade. O Reino de Deus é sua ação salvífica na história do mundo das relações e da fraternidade. Neste sentido a Igreja é por índole anunciadora deste Reino, pois nela ele se faz presente de maneira patente e no seu interior é celebrado e professado na pessoa de Jesus. Na sua relação com o Reino a Igreja deve ser compreendida como missio. O que justifica esta compreensão de missão é justamente o fato de voltar à contemplação do mistério do Deus-Trindade em seu amor-comunhão.

Deus em seu mistério intimo é communio, e o seu ser se abre para fora enquanto o Pai envia o Filho e o Espírito Santo ao interior da criação para faze-la mais semelhante a communio divina e para acolhe-la para sempre em seu seio. "Quando o Espírito atua na história, o faz como Espírito que congrega na communio [6]".

Pela missão divina, Deus amplia a própria comunhão divina a totalidade da criação. O caráter da missão das Pessoas divinas não é algo acidental em Deus, isto seria imperfeição, é a mesma realidade livremente escolhida no seio da Trindade. Mas esse missio enquanto realidade do ser de Deus, não se desenvolve e se expande harmoniosamente em nossa história, senão, pela maneira agônica e kenótica que culmina na morte do Filho na cruz, onde se faz solidário a todos os homens. Uma Igreja missionária deve resgatar aquela eclesiologia profética e até mesmo martirial dos primeiros séculos. "Deve redescobrir seu caráter agônico, em estar disposta a enfrentar o peso do sistema e a sofrer por isso, mesmo que seja o martírio, sem, contudo se dobrar" [7].


CONCLUSÃO

Uma Igreja missionária deverá em seu profetismo assumir com coragem seu caráter kenótico. Deverá aprender que sua força é de caráter radicalmente evangélico e místico, e que não tem outra maneira de ser, senão, colocar-se inteiramente e totalmente como Deus e com ele para dentro da história, descendo kenoticamente ao interior deste mundo, chegando aos seus abismos mais profundos. Quando a Igreja tem a ousadia de percorrer este caminho se configura ao seu supremo Pastor e se descobre totalmente impulsionada por uma eclesiologia profética e kenótica regada interiormente pela teologia do amor que procura ser uma resposta ao ateísmo moderno, que põem em questionamento não só a questão de Deus, mas também a questão vital do homem.



Prof. Ms. Pe. Donizete José Xavier

Licenciado em Filosofia pela Faculdade Associada do Ipiranga e Mestre em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. Professor auxiliar de Teologia Sistemática na Faculdade Nossa Senhora da Assunção e na Escola de Teologia Dominicana. Tutor de Antropologia Teológica no Centro Universitário Claretiano. Professor de Teologia Dogmática no Centro de Espiritualidade Teresiano. Assessor de Teologia Dogmática na CRB de São Paulo e Núcleo de Barretos.


BIBLIOGRAFIA

BOFF, Clodovis. Uma Igreja para o Novo Milênio. São Paulo: Paulus, 2002.
COMPENDIO VATICANO II. Petrópolis: Vozes, 1970.
LIPOVETSY, Gilles. A Era do Vazio, ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2005.
PIÉ-NINOT, Salvador. Eclesiologia de la Comunidad Cristiana . Salamanca: Ediciones Sigueme. 2007.
KEHL, Merdad. A Igreja, uma eclesiologia católica. São Paulo: Loyola, 1997.
_____________Escatologia. Salamanca: Ediciones Sigueme, 2003.
LIBANIO, João Batista. Cenários de Igreja. São Paulo: Loyola, 1999.

 

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Notas


[1]
Comision teológica internacional, Temas selectos de eclesiologia ( 1985), em Documentos 1969-1996, 337-342.

[2]
LOSSKY, V. La teologia mística della chiesa d'Oriente. Bologna: Il Mulino, 1967, 160s.

[3]
COMBLIN, José. O Espírito e a Libertação, o Deus que liberta o seu povo. Petrópolis: Vozes, 1987.

[4]
MEDARD, Kehl. Escatologia. Salamanca, ediciones Sigueme, 2003, 223.

[5]
Ibidem, 225.

[6]
Ibidem, 224.

[7]
BOFF, Clodovis. Uma Igreja para o novo milênio. São Paulo: Paulus, 2002, 34.