PAULO E A ÉTICA DA LIBERDADE

Prof. Dr. Pe. Luiz Augusto de Mattos

 

RESUMO

Frente uma situação sócio-cultural, eclesial e societária onde vive-se a falta de liberdade criativa e de uma ação ousada, alternativa e esperançosa, Paulo parece apontar caminho, à luz do Evangelho da liberdade, para uma experiência nova e prometedora. O que importa é assumir com responsabilidade a Vida e superar toda "escravidão", vale dizer, o que vale é viver em liberdade na experiência do amor diante do império da impotência e da morte. A experiência da fé tem que levar ao agir ético que revele uma vida livre e construtora de uma nova realidade de vida, relacionamento e compromisso no atual contexto.

Palavras-chave: liberdade, libertação, fé, amor, ética, vida nova.

 

ABSTRACT

In a social-cultural, ecclesial and social situation in which creative freedon and a daring and hopefull attitude lack, Paul apparentely shows the path, in light of Gospel of Freedom, to a new and promissing experience. What really matters is take life responsability to overcome slavery, that is, what really matters is live freely the experience of love in the face of human impotence and death. The experience of faith should lead one to act ethically revealing the possibility of creating a new reality of free life, relashioship, and commitment in the current context.

Key words: freedom, liberation. Faith, love, ethics, New life.

Um grande e importante desafio para a reflexão teológica é conseguir chegar a uma compreensão mais autêntica possível de quem foi Paulo no e para o início do cristianismo – sobretudo na sua perspectiva teológica, na sua estratégia missionária, na sua postura de homem livre frente ao instituído, no seu crer utópico e no pensamento alternativo para o agir humano. Por isso, tudo se torna ainda mais interessante quando se tem como proposta encontrar nos escritos paulinos critérios ético-teológicos para um repensar da teologia moral ou para um reorientar do comportamento humano e da comunidade eclesial em vista de uma ação mais humana, alternativa e libertadora, sobretudo frente a um contexto fundamentalista, conservador e acomodado ao statusquo. Nesse sentido, a presente reflexão vasculhará o cerne da teologia paulina no intuito de trazer luz e novidade para o agir.

Em algumas interpretações dos escritos paulinos ou em algumas passagens citadas como de Paulo, pode-se encontrar uma visão que parece distante daquela presente nas cartas aos Gálatas e aos Romanos.[1] Autores estudiosos dos escritos paulinos chegam a falar de "obliterações pseudopaulinas, pós-paulinas e antipaulinas". [2] Torna-se um imperativo procurar chegar ao Paulo que não é rigorista, fundamentalista, contraditório, intolerante, por exemplo, com as mulheres e os escravos, mas que apresenta uma proposta nova e radical para a experiência existencial dos seres humanos: "já não és escravo, mas filho" (Gl 4,7), e tens um sonho de mundo novo (Rm 8,18-28). A liberdade, que relativiza as normas e exige que a pessoa humana assuma com responsabilidade a vida, dá uma perspectiva nova e ousada de como viver uma verdadeira não escravidão (= libertação). Escravidão construída pela dependência do poder do rei ou do império, do poder das leis, do templo, dos escribas, dos sacerdotes, situação que nega o transformar todos em "armas de justiça a serviço de Deus" (Rm 6,13). Enfim, Paulo como sujeito com "consciência coletiva" sonha com uma comunidade e um mundo sem diferenças discriminadoras (Gl 3,38) e sem maldade (Gl 1,4) – é importante "sublinhar que sua visão do mundo, fruto do seu ambiente opressivo e nada fácil para os pobres... se caracteriza por uma utopia: Paulo anseia por uma sociedade de iguais, onde reine a solidariedade. Se teve problemas com a sua sociedade, foi exatamente porque o seu evangelho exigia um modo de vida que não estava de acordo com o padrão de vida da sociedade greco-romana, em que a igualdade era quase inconcebível." [3] Quero acreditar, e por isso mostrar, que Paulo não está em contradição com sua "proposta teológica sobre a justiça de Deus e a justificação pela fé", justificação como libertação da Lei que discrimina e exclui. [4]



A LIBERTAÇÃO DA MORAL NA EXPERIÊNCIA DO AMOR

A luta mais importante de Paulo pode-se dizer que foi contra a "Lei" que encarnava a visão judia da moral. [5] O apóstolo percebe que o seu povo não vivia na liberdade e toda a submissão proclamada à lei de Deus não o tornava liberto; vale dizer, a lei não superava a escravidão, mas tornava o povo escravo. Não existe nenhum preceito obrigatório. O risco é cair na inautenticidade, pelo fato de que uma vida a partir da legislação pode levar à "uniformidade da ação".

Nessa ótica Paulo vai usar o termo "lei" em cima de duas conotações que ele designa de "revelatória" e "legalista", e ao mesmo tempo procurava compreender como a comunidade vivia em referência a essas duas atitudes. [6] A respeito dessas atitudes pode-se dizer: uma "é o reconhecimento da lei como a revelação da vontade e intenção de Deus; e a outra é a tentativa de usar da lei para estabelecer a própria justiça. O cristão, argumenta, deve-se submeter às exigências da lei enquanto revelação da vontade de Deus, rejeitando ao mesmo tempo toda tentação de colocá-la a serviço de sua própria ambição egoísta. Essa distinção é sem sentido em termos práticos. Quando visualizados como excertos da divina vontade, as diretivas morais só se podem entender como obrigatórias absolutamente, o que torna inevitável uma atitude legalística. Não há escolha alguma senão submeter-se, e a atenção inteira do crente focalizará na satisfação de obrigações específicas. É precisamente quando a lei é entendida como revelatória que temos a situação que Paulo condena tão radicalmente em Rm 2,17-20... "[7]. O que se espera é que a autenticidade da vida brote por um agir desde as exigências específicas da vontade de Deus (Cl 1,9; 4, 12), o que é possível numa vida transformada (Rm 12,2). Enfim, os escritos paulinos jamais falam de obediência a um preceito ou lei – a obediência é sinônimo de fé (Rm 6,16; 10, 17; 16, 26), a saber, testemunho de uma vida que Cristo demonstrou (Rm 5,19).

Há que compreender que as normas cúlticas ou rituais não preocupavam Paulo, desde que não fossem vistas como obrigações para se conseguir a salvação, ou seja, o ruim é atribuir às leis e normas um caráter meritório, salvífico ou de obrigatoriedade em nome da salvação, da liberdade. A preocupação não devia ser com o preceito de se comer ou não determinada alimentação, mas sim de ser fraterno e solidário com o outro.[8] A recusa da aquiescência míope a uma diretiva autoritária sempre se apresentou como um princípio do qual não abriu mão. "Dada a posição central que Cristo tem na teologia de Paulo, pode-se admitir que se alguma diretiva portasse autoridade obrigatória, seria uma ordem do Senhor. Isso ilumina a importância da forma em que Paulo reagiu às duas ordens do Senhor que cita. A primeira diz respeito à atitude dos pregadores. 'O Senhor ordenou que os que proclamam o evangelho ganhem a vida pelo evangelho' (1Cor 9,14). Em outros termos, os ministros do evangelho deviam dedicar sua atenção toda à sua tarefa e não deviam desperdiçar tempo ganhando a vida; Paulo recusou-se a reconhecer essa ordem como 'obrigação' e a reclassificou como um 'direito' (1Cor 9,12.18), do qual se gloriou de não usar (1Cor 9,15). (...) A segunda diretiva referia-se ao divórcio. Este era proibido em forma de preceito negativo que não permitia nenhuma exceção (1Cor 7,10-11), mas Paulo, visualizando um caso que justificava fazer exceção, permitiu o divórcio (1Cor 7,15)." [9] Nesses casos o apóstolo se confronta com os preceitos do Senhor, nem por isso os tratou como tendo força vinculante, mas os analisou à luz do discernimento crítico.

As diretivas de Paulo são essencialmente educativas. Querem orientar os que mudaram de uma experiência egocêntrica de existência no mundo a uma experiência de ser "em Cristo". Sendo que as diretivas não podiam ser tomadas muito a sério pelo fato de poderem se transformar em preceitos vinculantes, o que levaria à inautenticidade. Daí insistir na carta aos Gálatas em uma vida na liberdade, porque de outra forma os seus trabalhos em favor deles serão em vão (Gl 4,11).

A teologia paulina quer mostrar também a conexão entre lei e morte. A "lei não salva do pecado, mas ao contrário a lei dá vida ao pecado: 'a força do pecado é a lei' (1 Cor 15,56). `A lei devemos essa fecundidade de morte que se ativa em nosso corpo (cf. Rm 7,5). '... da lei só nos vem o conhecimento do pecado'(Rm 3,20). A lei dá o conhecimento do pecado, mas não nos salva do pecado, pois 'a lei traz consigo a ira' (4,15). Com a lei, o pecado se multiplica (cf. Rm 5,20). Há uma conexão essencial entre lei-pecado-carne-morte. A lei dá força ao pecado, o pecado dá vida à carne, a qual é tendência do homem para a morte. Temos aqui uma ética da morte, radicalmente antagônica à vida segundo o Espírito." [10]

Ocorre também uma compreensão errada quando se diz que Paulo discorda de qualquer preceito moral. Não se quer excluir do povo de Deus todos os preceitos, todas as normas jurídicas, todas as leis. Paulo justifica a presença de normas, quando, por exemplo, diz: "Nós, que somos mais fortes, devemos suportar as fraquezas dos fracos e não buscar a nossa própria satisfação. Cada um de nós procure agradar ao próximo, em favor do bem para a construção" (Rm 15,1-2). Os fracos precisam de normas, estruturas e leis, como os judeus-cristãos que não conseguem emancipar-se das tradições relativas às carnes vendidas pelos pagãos. Por isso se afirma: "... se por causa do que comes, o teu irmão se entristece, já não procedes conforme o amor" (Rm 14,15); "Visemos, pois, àquilo que promove a paz e a edificação mútua. Não destruas por amor a uma comida a obra de Deus. Todas as coisas são puras; mas é coisa má para aquele que, ao comer, causa escândalo pelo que come" (Rm 14,19-20). E mais. O que se quer é modificar a perspectiva de quaisquer sistemas de normas – as normas devem proceder da vontade de ser caridoso. Não se pode confundir o conteúdo das ações morais com o caráter de imposição moral. Há atitudes e práticas de acordo ou não com o ser livre (cf., por exemplo, 1Cor 6).

A libertação do moralismo, ou de uma sujeição escravizadora à norma ou lei (=legalismo), dá-se pela experiência da bondade, ou seja, da "lei espiritual" (= lei cristã do amor). [11] Em outras palavras: "O princípio é o seguinte: 'Tudo é permitido; mas nem tudo é proveitoso. Tudo é permitido, mas nem tudo constrói. Ninguém busque o seu próprio interesse, mas o de outrem' (1Cor 10,23-24). O princípio é: no problema das carnes como no resto, não se trata de vincular a liberdade estabelecendo leis ou obrigações. Não se trata de restabelecer a lei depois de suprimi-la. Mas o amor exige que a pessoa não busque o seu próprio interesse, mas leve em conta o interesse de outros. Trata-se, não de ceder a uma lei, mas de ceder a outra pessoa por amor à pessoa, não por amor a uma lei. Pois antes de mais nada é preciso buscar o entendimento com o outro, não afastá-lo da comunidade. Antes de mais nada é preciso construir. A construção da comunidade exige que a pessoa faça abandono da sua inspiração, da sua preferência. Não para ceder a uma lei superior ao homem, mas unicamente para ceder ao próximo no sentido de formar com ele a comunidade, de evitar a ruptura da comunidade... Desse modo, a unidade da comunidade não resulta da submissão de todos a regras consideradas como sendo superiores à comunidade, mas do amor ao próximo que busca o acordo. O valor da norma de conduta adotada não provém do pretendido valor duma regra em si, mas unicamente da vontade de sacrificar o interesse próprio por amor ao próximo e a vontade de manter a comunidade com ele."[12]

O fundamental é construir uma vida alicerçada no amor, e não num sistema (de preceitos, leis, normas, estruturas, costumes). [13] Paulo exorta à busca do fundamental para que as relações pessoais e comunitárias possam gerar a vida: o amor (Rm 13,8ª). Toda lei fica aquém da experiência do amor. Nessa ótica "dizia S. Irineu: A lei não é necessária para nós como pedagogo; eis que conversamos com o Pai e diante dele estamos frente a frente, crianças quanto à malícia e adultos quanto à justiça e modéstia' (cf. 1Cor 14,20). A Lei, com efeito, já não tem mais que dizer 'Não serás adúltero', a quem jamais teve desejo algum da mulher de outrem; nem 'Não matarás', a quem eliminou em si próprio toda ira e inimizade; nem 'Não desejarás o campo do teu próximo ou o seu boi ou seu asno', a quem está totalmente despreocupado das coisas desta terra e amontoa frutos para o céu; nem 'Olho por olho e dente por dente', a quem não considera a ninguém como inimigo seu, e, por essa razão, nem pode levantar a mão para vingar-se; os dízimos, a Lei não os exigirá de quem dedicou a Deus todos os seus bens, abandonou pai e mãe e família e seguiu o Verbo de Deus; nem haverá ordem de ficar sem fazer nada durante o dia de repouso para quem observa o sábado todos os dias, isto é, dá a Deus um culto no templo de Deus que é o corpo do homem e pratica a justiça em todos os tempos' (Irénée de Lyon, Démonstration de la prédication apostolique, Paris 1959, n. 96)" [14]

Para o apóstolo o que vale é a vivência do amor, ou seja, a capacidade de as pessoas se acolherem mutuamente, saberem se unir no importante e se respeitarem na diversidade. O amor não pratica o mal contra o próximo (Rm 14,10ª), por isso a necessidade de superar o conflito entre, por exemplo, fortes e fracos nas comunidades (cf. Rm 14, 15-23). [15]

A moral não faz nascer o ser humano bom, ético. A bondade, sim! Bondade (= caridade) que surge não da obrigação, senão de uma experiência amorosa na qual cremos, e da qual brota o melhor de cada um. Também é preciso entender, isso numa concepção paulina, que a libertação da moral (= moralismo) não significa que a pessoa humana seja já um ser moralmente bom e que não necessita ser julgado em nenhum juízo ético. [16] Pelo contrário, para Paulo o ser humano está num dinamismo (ou estado) de morte – "Todos pecaram e estão privados da glória de Deus" (Rm 3,23). Por isso, para a teologia paulina essa passagem leva às seguintes fases: [17]

O primeiro estado (Império da morte) quer revelar que mesmo quando não havia lei, o ser humano já pecava. O pecado reina independente da ação moral; o segundo estado (Império da impotência) indica que a moral é espiritual em seu conteúdo (Gl 3,19), mas "carnal" em seu modo de impor-se ao ser humano. Assim, a moral pode mudar o comportamento, mas não o coração – só serve para mostrar ao ser humano sua impotência: "... eu não teria conhecido o pecado se não existisse a Lei, nem teria conhecido a cobiça se a Lei não tivesse dito: 'Não cobice'. Mas o pecado aproveitou a ocasião desse mandamento e despertou em mim todo tipo de cobiça, porque, sem a Lei, o pecado está morto" (Rm 7, 7-8). O império da graça (Rm 8,1ss) quer falar da revelação do amor de Deus em Jesus Cristo que muda o coração, vale dizer, a única fonte de bondade é o amor gratuito de Deus.

Falar de um libertar-se da moral em Paulo implica compreender que isso só será possível na experiência do amor. O que importa não é viver a lei, as estruturas ou as normas, mais sim testemunhar ações que nascem de um coração amoroso, coerente e justo. Em outras palavras: a diferença do "homem novo" está na fonte do conhecimento moral que é o amor. Só o amor pode dissipar tudo que ameaça à unidade posta pela liberdade. Uma decisão moral inspirada e construída pelo amor que autodoa afirma e confirma a experiência comunitária – "Portai os fardos uns dos outros, e assim cumpri a lei de Cristo" (Gl 6,2), cujo único preceito é o amor.

Enfim, a libertação do moralismo ou do farisaísmo passa por gestos concretos de amor. Nesse sentido o apóstolo aponta os seguintes gestos: o "primeiro deles é o serviço: 'Coloquem-se a serviço uns dos outros no amor' (Gl 5,13b). A vida inteira de Jesus foi um serviço à vida: 'Ele entregou-se pelos nossos pecados para nos arrancar deste mundo mau' (Gl 1,4ª); 'ele me amou e se entregou por mim' (Gl 2,20b). Amar, portanto, é pôr-se a serviço da liberdade trazida por Cristo, a fim de que todos tenham vida. Amar é entregar-se. Quem não se entrega não ama.

"O segundo gesto concreto é a solidariedade que provoca a partilha de tudo, inclusive do poder: 'Carreguem os fardos uns dos outros, e assim vocês estarão cumprindo a lei de Cristo. Se alguém pensa que é importante e não o é, está enganando a si mesmo. Cada um examine a sua conduta, e então achará motivo de satisfação em sua própria pessoa, e não por comparação com os outros' (Gl 6,2-4). A partir dessas recomendações podemos desconfiar que nas comunidades gálatas havia disputa pelo poder e busca de status social. Em outra passagem da carta, Paulo afirma que isso é coisa de quem quer aparecer (cf. Gl 6,12). A busca de poder e de status é um jugo que escraviza as comunidades.

"O terceiro gesto concreto é a partilha do saber e do poder ao mesmo tempo: 'Aquele que recebe o ensinamento da palavra deve repartir todos os bens com o catequista' (Gl 6,6). Já naquela época, a catequese ( = o ensinamento da palavra) era uma tarefa em que empenhava boa parte do tempo e da vida do catequista. Este partilhava seu saber e sua fé com os catequizandos. Em sinal de solidariedade, os catequizandos partilhavam o que possuíam com os que lhes transmitiam os elementos básicos da fé." [18]

Nessa experiência do amor a partir do serviço e da solidariedade através da partilha do poder, do ter e saber, as comunidades gálatas podiam testemunhar uma experiência alternativa naquela sociedade.



A EXPERIÊNCIA DA FÉ NO AGIR ÉTICO  

Desde o elemento da fé, experienciada no compromisso amoroso, o qual acolhe incondicionalmente, e que deseja a mudança para o bem da própria pessoa/comunidade/povo, e não para satisfazer estruturas, autoridades, pode-se ir encontrando força para vivenciar a bondade. A fé é a escolha de um modo de ser que é essencialmente comunitário, social, ou seja, uma nova maneira de ser com outros. "O valor humano... não reside, portanto, na moral, senão nessa fé que brota do amor e opera pelo amor" (G. Faus).

A fé, como Paulo a concebe em Romanos (cap. 1-2), "aponta para a atitude positiva e madura, que assume os (supostos) riscos da liberdade vencendo o temor. Mas, já em Gálatas, Paulo clama por ela, para que o homem se decida a colocar o 'pedagogo' em seu próprio lugar: 'Antes que chegasse a fé, nós éramos guardados sob a tutela da Lei... Assim, a Lei se tornou nosso pedagogo até Cristo... Chegada, porém, a fé, não estamos mais sob o pedagogo...' (Gl 3,23-25)" [19].

Com a "chegada da fé" (Gl 3,23) acontece a libertação da sujeição à Lei; passa-se da condição do ser escravo ou ser criança (Gl 4,1) para a condição de filhos, livres e sem discriminação, marginalização ou exploração de qualquer tipo (cf. Gl 3,28). Quando a Lei, ou as leis, ocupam lugar privilegiado na vida humana ou nas comunidades, abre-se o caminho para a escravidão e a injustiça. Nessa perspectiva não existem os privilegiados da Lei e os subordinados por estarem fora dela. "Já que é pela fé e não pela Lei que nos tornamos justos, a salvação foi estendida a outros povos; a promessa de que na pessoa da Abraão serão abençoadas todas as nações (Gl 3,8) cumpre-se com a chegada de Cristo. (...) Ser justificado pela fé e não pela Lei judaica faz com que todos os que crêem se tornem participantes do povo de Deus. Este direito concedido a todos pela graça abre um espaço para novas manifestações de raça, de classe e de sexo. A circuncisão e a incircuncisão são atitudes secundárias, porque a partir de Cristo já não há qualquer outro mérito que tenha valor para a justificação, pois o que é importante e decisivo dentro desta nova criação é aquela caridade que brota da fé ou, o que vem a dar no mesmo, aquela fé que atua pela caridade (Gl 5,6; cf. Gl 6,15)." [20] Mais vale o "incircunciso" que vive a justiça e será juiz do falso judeu, pois o verdadeiro judeu é aquele que é por dentro e traz a circuncisão no coração "segundo o espírito e não segundo a Lei". Circuncisão e Lei recebem valor se sinalizarem alguma coisa que está dentro do coração, na linha da liberdade e da vida. [21]

Tudo indica que a finalidade da justificação é transformar a pessoa humana para uma experiência da prática da bondade e da justiça, e uma atitude de compromisso em resgatar a verdade aprisionada na injustiça ou nos instintos egoístas (cf. Rm 8,4). Obedecendo à fé e não à Lei é possível testemunhar uma nova vida, e os que optam por essa vida oferecem os "membros como instrumentos da justiça para Deus" (Rm 6,13).

Para não cometer desvios em nome da fé, como tem acontecido na história, é importante entender qual o lugar da fé na experiência cristã. A fé é um aspecto dum sistema de vida e do mundo que se opõem à lei: uma maneira de se viver que não favorece uma submissão a um sistema de opressão ou de morte. Ou seja: "a fé da qual fala Paulo é a fé na força de Jesus que supera toda lei, cria no homem uma liberdade nova pela qual o homem se torna capaz de agir por amor. A fé é aquela que atua pela caridade a partir não já da lei ou da obediência à lei, mas da espontaneidade e da liberdade do amor. A fé é o caminho que desemboca na liberdade" [22], ou, o caminho da libertação é a fé.[23] Viver a fé é lançar-se à experiência do novo, do risco e da incerteza; vale dizer, para Paulo, "a fé é uma experiência de vida. É entrar na jogada de Deus. Não se reduz a acreditar em verdades (dogmas) mas é acreditar em Deus e colocar nas mãos dele a própria vida. É romper a barreira do possível pelo que aparentemente é impossível"[24].

A fé é um lançar-se para frente, é conquistar a estrada da liberdade diante das injustiças. A fé é um risco e uma aposta, não se sabe o que vem depois e acredita-se no caminho da vida. A partir da fé tudo recebe nova iluminação, profundidade, valor e sentido. É um ato ligado ao agir, nele o ser humano é provocado a descobrir a presença do outro, e ter compaixão do que sofre, a viver a tensão dialética entre o pessoal e o social. A fé é um impulso libertador e autolibertador.

Um agir moral que humaniza e liberta tem que nascer de uma experiência de fé que abre os olhos, dá sensibilidade e comunhão com cada realidade, e faz acreditar que é possível mudar tudo aquilo que discrimina e escraviza a vida. A fé que liberta é mais ortopráxis! [25] Para Paulo deve-se viver o tempo da liberdade e da maioridade (Gl 3,25-27.29; 4,1-3), superando a escravidão e menoridade que ocorre com a Lei.[26]



PAULO E O CRITÉRIO DA LIBERDADE

No pensamento de Paulo a liberdade ocupa um lugar central. O apóstolo anuncia a liberdade como uma novidade da parte de Deus. Novidade formidável que atravessa a epístola aos Gálatas – "Irmãos, vocês foram chamados para serem livres" (Gl 5,13); "Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres. Portanto, fiquem firmes e não se submetam de novo ao jugo da escravidão." (Gl 5,1). [27] A liberdade na concepção de Paulo tem que atingir um nível mais radical e mais significativo para a existência humana, por ser uma capacidade de edificar a vida baseada no amor e não num sistema (costumes, normas, leis, estruturas, preceitos). E ainda: a liberdade não é realidade em um indivíduo em virtude da sua nascença, ou em razão de pertença a uma nação ou civilização. Ela é anunciada pelo evangelho.[28]

A liberdade pode ser compreendida em que modelo de experiência existencial? Se nenhuma instituição e nenhum contexto societário podem funcionar independentes de ordem e organização, regras e estruturas, o que significa ser livre ou viver em liberdade? Antes de tudo é preciso explicitar o que se entende por liberdade. Numa perspectiva paulina pode-se dizer que a "liberdade consiste em permanecer aberto e disponível para escolher o que há de melhor, de mais conveniente em cada circunstância. O Espírito torna a pessoa apta para uma verdadeira opção e suprime a necessidade de buscar sempre a própria vantagem ou a própria segurança"[29]. O Espírito age no ser humano provocando um discernimento, o que indica que a liberdade não se dá numa condição normal e tranqüila. Viver em estado de liberdade não se dá por inclinação natural ou espontânea, pelo contrário, a liberdade é uma vocação construída desde uma opção nem sempre fácil, tolerada e compreensível pela sociedade estabelecida. E viver a opção pela liberdade é um desinstalar-se, um enfrentar muitos obstáculos e perseguições, uma experiência de mudança progressiva e sempre ameaçada.

Se a sociedade é dinamizada e concebida a partir do que Paulo chama: "a lei", isso aponta para o fato de que a liberdade incomoda, perturba. Desde o discernimento, no bojo dessa tensão, a pessoa humana torna-se preparada e apta para escolher de acordo com o bem de todos. Numa concepção paulina nenhuma estrutura vigente pode ser idolatrada ou absolutizada, por estar sempre subordinada à conveniência do presente. Em 1Cor 10,23 diz-se: "Tudo é permitido. Mas nem tudo convém. Tudo é permitido. Mas nem tudo edifica." – passagem que recorda a relatividade de uma norma, de um sistema que não edifica, porque uma norma, por exemplo, não tem valor em si mesma.

A liberdade não pode fechar-se à interpelação do Espírito em cada realidade concreta. Interpelação que se dá pela obrigação do permanente discernimento, porque o Espírito está no discernimento e faz o discernimento, em vista de que os filhos de Deus possam escolher o que verdadeiramente edifica. Em outras palavras: a lei do Espírito substitui a lei e constitui um novo princípio de ação e um novo fundamento para os seres humanos e para a sociedade – "A lei do Espírito, que vivifica em Cristo Jesus, me livrou da lei" (Rm 8,2). "O Espírito substitui todos os sistemas com a submissão que eles trazem consigo e também a segurança, por uma obrigação de discernimento. Em lugar de receberem um sistema pré-fabricado de normas, preceitos, gestos obrigatórios, os cristãos se acham diante da necessidade e do desafio de discernir em todos os momentos da história pessoal e social quais são, entre todas as possibilidades, as melhores, as mais convenientes, as que estão mais de acordo com o novo povo de Deus. O preço da liberdade é a obrigação de escolher e, portanto, de assumir responsabilidades. O homem comum foge das responsabilidades e por isso procura o refúgio e a cobertura de normas pré-fabricadas e determinadas por uma autoridade, de tal modo que os fracassos possam ser atribuídos a essa autoridade. O discernimento, porém, não está entregue às puras luzes humanas: o Espírito é quem abre os olhos para discernir. Em lugar de impor normas, o Espírito ilumina as mentes de tal modo que elas possam ver a realidade das situações e perceber o apelo de Cristo numa situação determinada. Desse modo o Espírito constitui as pessoas em estado de responsabilidade." [30]

Pensando aprofundar a experiência da liberdade que viveu Paulo, em quatro setores da sua vida: viu-se livre da lei dos judeus, da ordem romana, de estruturas eclesiais e, finalmente, de si próprio, a reflexão que segue tratará de cada um desses setores. O que ajudará a entender por que o apóstolo se preocupa tanto com a liberdade. [31]

  1. Liberdade diante do sistema judaico: o sistema que exaltava o ser humano, e prometia vida, justiça e salvação para quem não se desviasse do caminho da lei. Sonhava com a perfeição aquele que vivia uma submissão a um conjunto de prescrições, o que levava a uma verdadeira alienação. Além da submissão o ser humano era enganado pelo fato de a promessa de perfeição não se cumprir, por isso cada indivíduo era levado a mentir para si e para os outros em vista de manter a "ficção de uma pseudoperfeição" – cf. Rm 2,1-3,20. Esse sistema "não era apenas uma lei interior, uma lei moral inscrita no coração. Era um sistema social e cultural completo, incluindo a submissão a classes sociais privilegiadas, os sacerdotes e os doutores, um conjunto de prestações religiosas, morais, sociais que incluíam contribuições econômicas importantes. Uma grande parte do produto da nação estava reservada ao sistema da lei. Os homens piedosos obrigavam-se a manter as mordomias, o prestígio, a vaidade e a superioridade social dos que os oprimiam e exploravam. A religião exigia que bajulassem o sistema que os oprimia." [32] Diante desse sistema Paulo viveu a experiência da libertação, o que o levou a descobrir que não precisava dos elementos que pareciam dar segurança, como: ritos, circuncisão, objetos sagrados, sinagoga, tempos sagrados, sentença dos doutores, lei, obras... Sem dúvida, para um indivíduo ser expulso da sinagoga, deixar de lado as prescrições, etc. podia levar a uma insegurança. Só na liberdade é possível viver a nova experiência. Importante compreender que o apóstolo está mostrando que na relação Deus e a criatura já não se obedece ao esquema da lei. "Ao sistema lei-obras-temor-carne-escravidão-morte sucedeu o sistema instituído por Cristo. Doravante nasce o sistema Evangelho-fé-confiança-Espírito-liberdade-vida. Cristo assume a nossa existência pelo e no seu Espírito Santo. Em Cristo, pelo Espírito, somos livres. Pois a autoridade de Deus já não procede da parte de fora, mas, no Espírito, ela se situa no mais íntimo da personalidade. O Espírito não se sobrepõe à liberdade, mas desperta-a e alimenta-a." [33];
  2. Liberdade face ao sistema romano: apesar de Paulo usar os recursos e brechas do sistema não se submeteu nem dependeu dele (cf. Fl 1,12-25; 2,9-16). Vivenciou muito conflito com o sistema romano, por isso as prisões, os processos, as condenações e comparecimentos diante dos tribunais. Como não tinha medo de morrer e nem de perder privilégios, porque não tinha, não viveu à maneira dos judeus piedosos que acabaram aceitando o sistema. O apóstolo não foi seduzido pelas cidades gregas, mais ao mesmo tempo testemunhou os chefes bajulando as massas, as religiões abusando da credulidade do povo, a primazia da riqueza e do poder e a corrupção dos magistrados. Tentou ver tudo desde o lugar dos pobres e dos vitimados, dos povos submissos e dos imigrantes orientais. Em Rm 1,18-32 Paulo desabafa a partir do que encontrou nas cidades em nível de homicídio, injustiça, perversidade, fraudes, etc. Apesar de o apóstolo ter o título de cidadão romano, sua família deveria ser importante em Tarso, não viveu como as elites judaicas que cediam aos prestígios do Império. Ele foi livre diante das estruturas do poder imperial. As comunidades formavam um povo que não dependia das estruturas do Império. Sabe usá-las quando precisa, mas não se subordina. [34]
  3. Liberdade diante da comunidade cristã: o apóstolo na experiência de Igreja vive também a liberdade. Sempre refere seu compromisso missionário a Cristo e a uma vocação pessoal (Gl 1,11-23). Paulo foi alguém que testemunhou o "paradigma dos leigos" – foi leigo "típico e completo". Assume o compromisso de missionário como leigo exigindo a autonomia não na ordem temporal e sim na ordem da missão. Quanto às normas e regras que a Igreja cultivava, "Paulo sabia muito bem que a Igreja precisava observar certas regras para manter a ordem. Sabia que a Igreja estava ligada pelas tradições que eram a herança de Jesus. Mas cria que todos esses elementos estruturais recebiam vida do Espírito que os aplicava às situações concretas e os reavivava incessantemente de acordo com as diversas necessidades. Uma coisa é aceitar as regras de disciplina interna, outra coisa é seguir a inspiração que procede do próprio Cristo mediante o Espírito Santo." [35]
  4. Outra experiência de liberdade vivida por Paulo ocorre em relação a si próprio. Realidade descrita em Rm7. Apesar de experimentar como escravidão a sua dependência do pecado, pela graça de Cristo, pela força do Espírito, procura ultrapassar a contradição e inventar a atitude, um modo de viver que não é pecado e sim prática contra o pecado. O apóstolo sabe que não é possível viver nesse mundo sem comunicação com o pecado, mas que pode viver de acordo com uma "experiência de crucifixão na confiança, na ressurreição e na vivência das primícias do Espírito".

Diante do critério da liberdade e do ser livre, pode-se perguntar: liberdade para quê? Importante compreender que a liberdade está em função do agir. Um agir que quer ser ação nova. O ser humano liberta-se criando liberdade dentro de suas circunstâncias e possibilidades, e ajudando a constituir e criar liberdade para o outro. E ainda: para o apóstolo a justiça não está nas coisas, mas sim na liberdade; a perfeição não está em determinada atitude de acordo com o prescrito, e sim na liberdade. Paulo é tão livre que tem a coragem de afirmar que as disposições de Moisés são obsoletas; tem coragem de percorrer o Império sabendo que, ao desvincular-se do judaísmo, vive uma religião "ilícita" e na ilegalidade – mesmo vivendo muito tempo em prisões do Império, enfrentando tribunais, magistrados romanos está sempre disposto a recomeçar na liberdade suas atividades. Diante dos desvios nas comunidades Paulo não mede esforços para denunciar: os pecados públicos, os abusos na celebração da ceia, os apóstolos rivais que se alegram com suas prisões (Fl 1,17), os falsos apóstolos que desvirtuam o Evangelho.

Para entender com profundidade o critério da liberdade em Paulo, é necessário ter claro o princípio hermenêutico fundamental de que nunca se deve tratar da liberdade na ótica das pessoas individuais isoladas. Por isso, o "seu pensamento, a sua mensagem, a sua vida dirigem-se a Israel, ao povo de Deus. O objeto da sua preocupação é o povo de Deus. Portanto a vocação à liberdade dirige-se ao povo de Deus: é uma mensagem de liberdade para o povo. Evidentemente, a liberdade do povo é também pessoal. O povo de Deus é justamente um povo constituído da liberdade dos seus membros. Mas essa liberdade consiste num modo de relacionamento entre todos os membros. A liberdade das pessoas num povo livre é justamente o que as reúne. A liberdade é o modo de relação mútua duma sociedade livre. Uma pessoa só é livre dentro dum povo livre." [36] Enfim, falar da liberdade em Paulo corresponde à idéia de que ser livre é participar da vida e da destinalidade do povo de Israel, porque o povo de Israel tem seu fundamento na solidariedade de seus membros, e jamais numa lei ou dominação.

A teologia paulina convoca o povo de Deus a um processo histórico novo, sempre alicerçado na base da libertação inaugurada no Novo Testamento. Já não cabe mais a construção de um povo a partir de fronteiras étnicas, culturais, geográficas e familiares – Ef 2,14-16. Há que buscar um novo Êxodo que conquiste pela liberdade o ser humano novo e a nova nação.[37] O fim da liberdade é social: o ser humano conquista o ser livre dentro dum povo livre; vale dizer, a liberdade é experiência de inserção livre no povo de Deus.

A verdadeira liberdade ética é fruto de uma experiência comunitária e de uma responsabilidade social. A comunidade era o "verdadeiro sujeito moral". [38] Viver a partir de uma atitude individualista e irresponsável diante do outro é morrer para uma experiência de autenticidade. Em Paulo cabe a seguinte formulação: Amo, logo existo! (cf. 1Cor 13,2).



PAULO: MODELO DE VIDA PARA HOJE 

A partir do que se refletiu até aqui, surgem questões como: o que Paulo ilumina para o agir, hoje, na atual Igreja e sociedade? Que modelo de comportamento deve testemunhar o ser humano, numa perspectiva paulina, frente ao fundamentalismo e neo-conservadorismo atuais? O que significaria ser livre na atual conjuntura mundial?

Acredito que é possível encontrar muitas luzes nos escritos paulinos para responder questões como essas. Vejamos.

Se partirmos da necessidade de termos cristãos realmente transformados e libertos para atuarem como fermento de uma civilização nova, livre e justa, constata-se que muito falta por fazer. Estacionar na escravidão da norma e da lei não é somente um problema para os Gálatas. Continua sendo um problema sério até hoje, por exemplo, na Igreja. Há que praticar o evangelho da liberdade! É sabido que, se "a Igreja ceder à tentação da vontade de segurança e voltar ao sistema de defesa que é a lei – defesa contra o seu próprio medo e sua própria insegurança – ela abandona de fato o evangelho. Ela poderá falar coisas muito bonitas sobre Deus, Jesus, a Igreja, os sacramentos e a fé: mas o Deus de que ela fala não é o verdadeiro Deus, mas o fantasma da sua insegurança; o Jesus de quem fala não é o verdadeiro Jesus, mas um fetiche que lhe dá tranqüilidade e estabilidade; os sacramentos não são verdadeiros sacramentos, mas drogas que ajudam a dormir, e a Igreja é o refúgio de todos os que têm medo da vida. O evangelho é a proclamação da liberdade e o apelo à liberdade: apelo ao homem para assumir os desafios de sua existência perigosa no meio dum mundo perigoso." [39]

Uma tarefa grande e séria que temos no seio das instituições e da sociedade é remover as estruturas de dominação e discriminação, e procurar substituí-las por experiências e espaços de liberdade, o que é uma tarefa inadiável. O que importa é ser unido no essencial e tolerante no acidental (Rm 14,5-9). Daí a convicção de que em estruturas arcaicas e autoritárias não se pode gerar pessoas adultas e livres, sociedades humanizadoras e inclusivas. O que adianta uma Instituição apresentar uma doutrina oficial, por exemplo, no campo da sexualidade, da reprodução humana ou da família, onde a liberdade ocupa um lugar ridículo? Não adianta insistir em um discurso jurídico, casuístico e legalista, porque o povo não acata ou nem sequer toma conhecimento. Por isso a situação de anomia, frustração e descrença diante de muitos pronunciamentos e discursos eclesiásticos. Tudo contribui para uma verdadeira negação da liberdade. Não adianta querer segurar o mundo moderno e pós-moderno através de uma organização rígida, centralizadora e dominada por verdades ou normas perenes, absolutas e universais. [40]

A experiência de apegar-se à lei é um dos problemas não só dos gálatas, mas também da Igreja atual. Hoje ainda se vive o equivalente da Lei. [41] Isso tem gerado na vida da Igreja muita injustiça, falta de criatividade, silêncio obsequioso, dominação cruel, frieza diante de algumas experiências humanas, inércia de estruturas, falta de caridade, etc. Onde fica a prática da liberdade como vivência de um permanecer aberto e disponível para escolher o que existe de mais importante e conveniente em cada realidade? Onde fica, antes da lei/norma, a caridade diante de situações reais do povo quando se nega o diálogo, a sensibilidade, o perdão e a acolhida?

A experiência da Lei ocorre também no seio da sociedade latino-americana. As nações, os partidos políticos, as instituições, os grupos sociais apegam-se a sistemas, estruturas com medo de perderem a identificação ou a luta pela sobrevivência num mundo onde reina o sistema econômico ditatorial centrado nos países do Primeiro Mundo. Ou seja: todas as entidades da sociedade defendem os seus sistemas de todas as maneiras, consequentemente aceitam fraudes, injustiças, mentiras, homicídios, exclusões. Realidade vivenciada não só por conservadores, os próprios movimentos de libertação são suscetíveis de serem sistemas de dominação. Todos buscam a subordinação ao sistema por considerá-lo capaz de protegê-los, não percebendo que o mesmo é uma nova forma de escravidão. Não há dúvida de que não existe sociedade sem regra, ordem, moral, organização ou estrutura, mas o problema é não vivenciar o Espírito que torna todos livres diante de todas as estruturas existentes. O Espírito capacita a todos para uma verdadeira opção e suprime a necessidade de buscar a segurança e o privilégio através da lei – 1Cor 10,23-24.

Dentro do contexto o Espírito leva a pessoa humana a um discernimento, tornando-a apta para optar de acordo com o bem de toda a humanidade. Não há sistema ou estrutura que sejam portadores do Espírito por si próprios, por isso o Espírito capacita, à luz do discernimento, para escolher o que edifica. Enfim, não cabe a ninguém o receber um sistema pré-fabricado de preceitos, normas. A exigência é discernir em todos os momentos da história pessoal, familiar, eclesial e societária, quais são as possibilidades mais convenientes, as que estão de acordo com o novo povo de Deus. [42]

Analisando a condição da história humana e social no presente constata-se que a libertação está caminhando, mas longe de ser o esperado. Paulo diz que já não há mais dominação entre gregos e judeus, sábios e ignorantes, homem e mulher, senhores e escravos (1Cor 12,13; Gl 3,28; Cl 3,11) – mas sabemos que essa proclamação não é realidade entre nós. Todos os dias os meios de comunicação (jornais, rádio, TV, Internet) noticiam sobre guerras, violências, mortes, discriminações... que revelam a face da crueldade imperante no mundo. Há que dizer que o que Paulo anuncia é o início de um processo de superação. Ele não era vidente e nem tinha recebido o Espírito para conhecer o futuro, era filho do seu tempo e pode ser que pensasse que tudo seria muito rápido, vale dizer, achasse que o advento do reino de Jesus seria iminente. A história sempre revela nossos erros, ilusões e absurdos. [43]

A história permanece numa luta acirrada entre o sonho da liberdade e a situação de escravidão, entre o processo de libertação e a realidade de dominação e exclusão. Nessa direção pode-se: "não pensemos que as aspirações para a liberdade sejam muito fortes: humanamente elas são tão fracas e tão isoladas que não têm possibilidade nenhuma de êxito: elas têm as promessas do Espírito sem as quais seria melhor desistir logo. Pois a tendência espontânea das pessoas não é para a liberdade e sim para a segurança e a tranqüilidade. Para conseguir tais bens os homens fazem os maiores sacrifícios e sacrificam todas as liberdades. A vontade de sobreviver é tão forte que o homem se adapta a qualquer forma de dominação para poder viver, e, num nível um pouco superior, para ter algumas garantias de tranqüilidade. Há uma aliança tácita entre as estruturas estabelecidas de uma sociedade e o apego de cada membro a si mesmo, às vantagens, por modestas que sejam, que conseguiu acumular. A partir do momento em que uma pessoa tem alguma coisa, começa a tendência para conservar o que tem, pagando o preço que for preciso"[44].

As forças do Espírito estão agindo! Contudo há que compreender que o povo de Deus não é composto por pessoas que constituem uma totalidade política ou social ao lado das outras. Tampouco o povo de Deus é dono da história. Na história deparamos com mecanismos culturais, políticos e econômicos independentes das decisões cristãs. O poder de influir nos modelos históricos é limitado. Esses modelos são definidos e construídos por forças históricas, fatores geográficos ou geopolíticos, pelas ligações com impérios que não é possível uma comunidade cristã controlar. Importante é ser povo-fermento que sonha e luta pela liberdade, o que implica também trabalhar pelo surgimento de novas estruturas sociais e outro modelo de sociedade. O Espírito está sempre presente às forças materiais do movimento histórico: a sua palavra e a sua força estão presentes como fermento que age e mobiliza os seres humanos para o agir transformador. Imbuído desse Espírito o povo de Deus é a reunião de pessoas humanas cheias de boa vontade que procuram acreditar e construir estruturas de liberdade na realidade societal (1Cor 9,19-23;10,33). Não procurando a vantagem pessoal, mas a libertação em vista de um povo livre, soberano e justo. Apesar de que, quando Paulo em Rm e Gl fala de libertação não quer se referir a uma parte da humanidade oprimida por outra, mas da humanidade prisioneira de si mesma ou atada por si mesma, não é menos verdade que o tema da libertação se refere ao povo de Deus, portanto de uma história concreta.

Contra uma interpretação de Paulo que apresenta a salvação em termos estáticos e individualistas, é importante resgatar o aspecto do evangelho paulino que anuncia a ação do Espírito num processo histórico.

Também os escritos paulinos apontam para uma moralidade que apresenta características interessantes para o agir na atualidade. Entre essas características pode-se destacar: [45] a) uma ética polifônica: ela está "aberta às vozes das consciências de muitos: da tradição, da Escritura, do fraco, do forte, do costume temporal honrado, do evangelho radicalmente novo"; b) importante uma "confiança moral, não certezamoral": as pessoas e as comunidades correm um risco sério ao quererem certezas, absolutos e universais em questões morais. Importante que cada atitude, compromisso e projeto passe por um discernimento à luz das necessidades de cada situação concreta, para isso exige-se comunidades misericordiosas, cuidadosas e responsáveis pela vida humana. Também muitas vezes uma confiança moral nasce em algo que está extra nos [46]; c) Deus tende a surpreender: uma interpretação da ação de Deus na história, desde a perspectiva paulina, revelará que Deus sempre tem uma maneira própria e surpreendente de se manifestar. Ele não segue nos códigos pré-fixados, o que nos ensina que moral nunca poderá ser fixada de uma vez por todas, ela é um processo permanente de construção [47]

Terminando, diante de um mundo tão complexo e difícil [48] a teologia de Paulo nos ensina que a mensagem de Jesus será conhecida por pessoas de liberdade libertada pela força de Deus; força de Deus que se manifesta no fato de que os seres humanos são desprovidos de todas as formas de poder (1Cor 2,5).[49] Ademais, há que viver a partir da sabedoria, a qual será habitualmente uma forma de coexistência entre a Boa-nova e as situações históricas. A sabedoria é realista! A ética há de ser um clamor de liberdade diante de toda tentativa em absolutizar o que de per si é relativo, não perene e universal.



BIBLIOGRAFIA

BORTOLINI, José. Como ler a carta aos gálatas. Evangelho é liberdade. Paulus, 1991
BORTOLINI, José. Como ler a carta aos romanos. O evangelho é a força de Deus que salva. Paulus, 1997
COMBLIN, José. A força da palavra. "No princípio havia a palavra". Editora Vozes, 1986
COMBLIN, José. A liberdade cristã. Editora Vozes, 1977
COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI. Nova caminhada de libertação. Editora Paulus, 1996
COMBLIN, José. O espírito no mundo. Editora Vozes, 1978
COMBLIN, José. O tempo da ação. Ensaio sobre o Espírito e a história. Editora Vozes, 1982
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. Editora Paulus, 1998
CROSSAN, J. Dominic et REED, Jonathan L. Em busca de Paulo. Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. Editora Paulinas, 2007
GONZÁLEZ FAUS, José Ignácio. El rostro humano de Dios. De la revolución de Jesús a la divindad de Jesús. Editorial Sal Terrae, 2007
GONZÁLEZ-RUIZ, José Maria. O evangelho de Paulo. Edições Paulinas
HORSLEY, Richard A. Paulo e o império. Religião e poder na sociedade imperial romana. Editora Paulus, 2004
MEEKS, Wayne A. As origens da moralidade cristã. Os dois primeiros séculos. São Paulo: Paulus, 1997
MESTERS, Carlos. Carta aos romanos. Editora Paulinas, 1983
MESTERS, Carlos. Paulo apóstolo. Um trabalhador que anuncia o Evangelho. Editora Paulus, s/d
O'CONNOR, J. Murphy. A antropologia pastoral de Paulo. Tornar-se humanos juntos. Editora Paulus, 1994
O'CONNOR, J. Murphy. São Paulo e a moral dos nossos tempos. Edições Paulinas, 1973
POTTERIE, Ignace de la et LYONNET, S. La vida según el espíritu. Ediciones Sígueme, 1967
RICHARD, Pablo, O fundamento material da espiritualidade (Rm 8,1-17 e 1Cor 15,35-58), in Estudos bíblicos – 7 (1987): 73-85
SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e teologia. Editora Paulinas, 1995
TAMEZ, Elza. Contra toda condenação. A justificação pela fé, partindo dos excluídos. Editora Paulus, 1995
La religión de los primeros cristianos. Ediciones Sígueme, 2002

 

Prof. Dr. Frei Luiz Augusto de Mattos
Doutor em Teologia pela Pontificia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção



........................................................................................................................
Notas

[1] O artigo estará baseado em Gálatas e Romanos, pelo fato de essas cartas mostrarem a atitude de Paulo diante de questões complicadas no âmbito da moral, da norma, etc. Na trilha do exegeta pode-se afirmar: "Paulo teve que cavar fundo na sua experiência de Cristo para saber como reagir e o que dizer para orientar o povo das comunidades. Pois não havia nada escrito sobre o como resolver tais problemas. Ele só dispunha das Escrituras do Antigo Testamento, da fé da comunidade, dos amigos, e da sua própria experiência. Aos 28 anos de idade, ele mesmo já tinha experimentado que a observância da Lei não tinha poder algum sobre Deus. Se Deus chegou perto de nós em Jesus, não foi por causa dos nossos méritos, mas porque ele mesmo assim o quis por amor. Essa experiência pessoal o ajudou no discernimento dos problemas. A solução não veio através de uma decisão autoritária, nem através de um estudo teórico dos doutores, mas através da crise dolorosa, enfrentada e vivida na prática do dia-a-dia, tanto pessoal como comunitária. O resultado de tudo isso está nas cartas aos Gálatas e Romanos. A carta aos Gálatas foi escrita no quente da luta, em cima dos fatos. Um grupo de falsos irmãos entrou nas comunidades da Galácia e procurava destruir o trabalho que Paulo tinha realizado por lá na segunda e terceira viagens missionárias (At 16,6; l8,23; Gl 4,13-15). Diziam que, para poder ser salvo, eram necessárias a circuncisão e a observância da Lei. Uma parte da comunidade já tinha aderido a esse novo apelo e tinha feito a circuncisão. Outra parte continuava fiel ao que Paulo tinha ensinado. Paulo estava em Éfeso ou Corinto, quase no fim da terceira viagem, quando soube do ocorrido. Ficou furioso. Na mesma hora, escreveu a carta que é um grito de protesto. Nela, Paulo luta com os fatos, com as pessoas, com as idéias, consigo mesmo e com Deus, e tenta expor a síntese que ele mesmo havia conquistado ao longo dos anos. Síntese quente, bem suada e vivida. A carta aos Romanos já é uma síntese mais refletida.É onde, depois de ganha a batalha, Paulo tenta organizar e sistematizar melhor o mesmo pensamento já exposto na carta aos Gálatas. É quase uma tese, um livro, onde ele desenvolve, ordenadamente, um pensamento, ajudando o leitor a chegar a uma visão mais completa e mais clara do problema. Depois de elaborada a tese, mandou-a em forma de carta para a comunidade de Roma. Paulo nunca tinha estado naquela comunidade. Mandou a carta para preparar sua visita e para iniciar, desde já, um diálogo com os irmãos e irmãs de lá (Rm 1,11-15; 15,22-24).", Carlos MESTERS, Paulo apóstolo – um trabalhador que anuncia o evangelho, p. 70-71

[2]
Entre os comentários que falam dessas obliterações, cito esse: "O Paulo autêntico e histórico, autor de sete cartas do Novo Testamento (Romano, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon), afirmava que nas comunidades cristãs não se fazia diferença entre judeu-cristãos e pagão-cristãos, entre homens e mulheres cristãs, e entre cristãos livres e escravos. Todos eram considerados absolutamente iguais. Mas na Primeira Carta a Timóteo, atribuída mais tarde a Paulo, embora sem ter sido escrita por ele, ordena-se que as mulheres fiquem em silêncio na igreja e preservem a função de mãe (2,8-15). Algum seguidor posterior de Paulo inseriu na Primeira Carta aos Coríntios a idéia de que é vergonhoso para as mulheres falarem na igreja, sugerindo que devam pedir em casa aos maridos as explicações de que precisam (14,33-36).", John Dominic CROSSAN et Jonathan L REED, Em busca de Paulo. Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino ao Império Romano, p. 10

Outro comentário a respeito da mulher desde a perspectiva paulina que trabalha a libertação do cativeiro do pecado, da lei e da morte, das condições de um tempo de iniqüidade (Gl 1,4), partindo da liberdade como preocupação primeira é o de E. S. Fiorenza. Ela apresenta a seguinte reflexão: A luta de "Paulo pela igualdade entre cristãos judeus e cristãos gentios teve importantes ramificações para as mulheres cristãs, judias e gentias. Se já não era circuncisão, mas o batismo o rito de iniciação primordial, as mulheres se tornavam membros plenos do povo de Deus com os mesmos direitos e deveres. Isso produziu uma mudança fundamental não somente em sua posição diante de Deus, mas também no tocante a seu status e função eclesiais-sociais, porque, no judaísmo, as diferenças religiosas segundo a lei também se exprimiam no comportamento e na prática social de comunidade. Enquanto se nascia no judaísmo – mesmo o prosélito pleno não podia alcançar o status do homem israelita -, o movimento cristão não se baseava na herança racial e nacional, nem em linhagens de parentesco, mas num novo parentesco em Jesus Cristo. No batismo, os cristãos entravam numa relação de parentesco com pessoas de origens raciais, culturais e nacionais deveras diferentes. Essas diferenças não deveriam determinar as estruturas sociais da comunidade, aplicando-se o mesmo às de família e de clã. Logo, o status e o papel das mulheres, tanto judias como gentias, alteraram-se, dado que a família e o parentesco não determinavam as estruturas sociais do movimento cristão.", Elisabeth S. FIORENZA, A práxis do discipulado co-igual, in Richard A. HORSLEY, Paulo e o império. Religião e poder na sociedade imperial romana, p. 223


[3]
Elsa TAMEZ, Contra toda condenação. A justificação pela fé, partindo dos excluídos, p.69-70

[4]
Paulo antes de abrir os olhos "acreditava, como os fariseus e as autoridades de Israel daquele tempo, que Israel se salvaria e se tornaria livre pela obediência à lei, a lei que se encontra nos cinco primeiros livros da Bíblia, a 'Tora'. Os judeus veneravam a lei. Ela era toda a sua esperança. Davam à lei todos os atributos que mais tarde os cristãos deram a Cristo. A lei era a superioridade e o orgulho de Israel, o que fazia dele o povo eleito, a razão de poder tratar com desprezo os pagãos pecadores ainda que tivessem todo o poder político, econômico e cultural. Os judeus eram o povo santo por causa da sua lei.", J. COMBLIN, Vocação para a liberdade, p. 43-44

O estudioso do cristianismo Wayne A. Meeks chega afirmar a respeito de Paulo: "Paulo violou radicalmente os padrões do judaísmo, permitindo que os não-judeus se reúnam na comunidade sem ser circuncidados e sem exigir deles que guardem o Shabat e dias festivos. Paulo escreve para defender inovações, e ele o faz através das estratégias de idéias apocalípticas. (...) Na carta aos Gálatas Paulo insiste que, com a vinda do Messias, teve início novo tempo em que as antigas promessas são cumpridas de novas maneiras. Ele se empenha na interpretação imaginativa e radical da Escritura e da tradição para explicar e justificar as inovações.", W. A. MEEKS, As origens da moralidade cristã. Os dois primeiros séculos, p. 178

[5]
Cf. José I. GONZÁLEZ FAUS, El rostro humano de Dios. De la revolución de Jesús a la divinidad de Jesús, p. 121-163

[6]
Cf. J. MURPHY-O'CONNOR, A antropologia pastoral de Paulo, 205-208

[7]
Ibid., p. 206-207

[8]
Para entender como se deu o processo de nascimento do cristianismo, para entender as complicações que Paulo teve que enfrentar, há que compreender o processo evolutivo. Veja a citação de um autor que tem estudado a religião cristã primitiva. " La fe en el Dios uno y único fue sin embargo, provisionalmente, cosa de un solo y singular pueblo, aunque abrigara la esperanza de que todas las naciones pudieran llegar un día al conocimiento del Dios verdadero. Esa fe abandonó en el cristianismo primitivo la vinculación a este único pueblo. El cristianismo formó un 'pueblo nuevo', la Iglesia, compuesto de judíos y paganos. Nació así la nueva comunión basada en unas convicciones religiosas. Si la religión habia llegado a ser ya en el judaísmo un poder autónomo que tendía a conformar toda la vida de un pueblo, también ahora llega a ser un poder autónomo que funda un 'pueblo' nuevo, forjado de todos los pueblos y culturas, y se emancipa de su religión madre.

"Esto no se produce de una vez. Lo que más tarde de independizó como cristianismo primitivo,fue en el origen un intento de apertura del judaísmo a todos los no judíos. Un primer paso consistó en renunciar a los signos rituales que eran considerados como rasgos de identidad del judaísmo. Esto provocó en muchos judíos una lógica resistencia: el nuevo grupo de los 'cristianos' no podía ser aceptado por la mayoría como una variante legítima del judaísmo. La renuncia a la circuncisión y a los preceptos sobre manjares condujo al inicio de un cisma en la primera generación posterior a Jesús: la ruptura de la comunión, pero siempre dentro de la conciencia de una unidad fundamental.

"Un segundo paso se dio en la segunda generación: hasta el año 70 d.C., y a pesar de todas las diferencias rituales con el templo, quedaba un vínculo cultual común, aunque una parte de los cristianos, los procedentes del paganismo, estaban excluidos de él. Con la destrucción del templo se perdió el lugar de culto común. El judaísmo se organizó de nuevo y resolvió acentuar, en compensación, los rasgos tradicionales de la religión judía: la obediencia a la torá con todas las exigencias rituales, éticas y religiosas inherentes a ella que se pudieran practicar sin el templo. Al mismo tiempo, los cristianos se procuraron una narración fundamental propia, los evangelios, y abandonaron la comunión narrativa con el judaísmo.

"El tercer paso se dio cuando el cristianismo primitivo, además de independizarse realmente del judaísmo, tomó conciencia de su autonomía interna. Dado que la nueva religión lo refería todo al único Revelador, el cristianismo primitivo fue organizando todos sus elementos a partir de él y le otorgó un status absoluto, como ocurrre en el evangelio de Juan. Sólo entonces (en el evangelio de Juan) se estableció un antagonismo total entre cristianos y judíos: los cristianos atentaban contra el estricto monoteísmo. Un cisma que hubiera podido ser pasajero, ser convirtió en una nueva religión.

"Cabe afirmar, por tanto, que la génesis del cristianismo primitivo es la historia de un intento frustrado de universalización del judaísmo. La fuerza creadora del cristianismo primitivo se manifestó en su capacidad para transformar ese fracaso en motor para fundar un nueva religión.", Gerd THEISSEN, La religión de los primeros cristianos, p. 198-199

[9]
J. MURPHY-O'CONNOR, op. cit., p. 207-208

[10]
Pablo RICHARD, O fundamento material da espiritualidade (Rm 8,1-17 e 1Cor 15,35-58), in Estudos Bíblicos – 7 (1987), p. 75 – o autor ainda afirma que em Paulo o "pecado é a força da carne, isto é, a força que orienta o homem para a morte. Pecado-carne-morte são termos que designam um só processo. "O pecado reina pela morte" (Rm 5,21). (...) "O agrilhão da morte é o pecado" (1Cor 15,56). Trata-se aqui da morte total, do homem corpo-alma. O pecado se define por essa morte. Tudo aquilo que mata é pecado, e só é pecado aquilo que mata, tanto o corpo como a alma.", p. 75 Também deve-se saber que em Paulo não se pode identificar carne com corpo e espírito com alma. O antagonismo carne-espírito atravessa tanto a alma como o corpo do ser humano, e carne-espirito são duas tendências ou aspirações do ser humano total.

[11]
Como lembra o teólogo: "Paulo nunca chama de 'espiritual', isto é, divina (= tendência produzida por Deus), a Lei de Moisés. Trata-se aqui, pois, da lei cristã do amor. Deus, que nos faz criadores à sua imagem e semelhança, coloca o amor, como força motivadora de nossas ações, no mais íntimo de nós mesmos.", Juan Luis SEGUNDO, Que mundo? Que Homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e teologia, p. 352-353

[12]
José COMBLIN, A liberdade cristã, p. 45-46 – grifo meu

[13]
Inclusive chega-se a perguntar se Paulo acreditava numa convivência societária sem leis, somente dinamizada no amor - "... a doutrina paulina leva a uma transformação radical de todas as estruturas e, sobretudo, a uma incerteza total quanto a essas estruturas. A pergunta que surge inevitavelmente é a seguinte: como imaginar uma sociedade qualquer, ou simplesmente um grupo qualquer que seja capaz de subsistir sem leis, sem regras, sem normas, puramente baseado na espontaneidade do amor? S. Paulo teria imaginado o povo cristão como uma sociedade simplesmente construída com base no puro amor, sem nenhuma forma de estruturas ou com estruturas igualmente livres e portanto sempre sujeitas à revisão de acordo com a espontaneidade do amor?", José COMBLIN, A liberdade..., p. 43. A teóloga E. Tamez diz: "O que Paulo quis que os judeus compreendessem é que sua prerrogativa de povo privilegiado precisa ser demonstrada através de atitudes íntegras e coerentes com a justiça; é para isto que esse povo fora escolhido, tendo sido confiados a ele os oráculos de Deus (cf. Rm 3,2). Entretanto, a Lei é incapaz de fazer com que ele cumpra o que lhe foi confiado. Por isso – afirma Paulo - , o verdadeiro judeu o é no seu interior e não apenas por fora e a circuncisão verdadeira é a do coração, gravada nele pelo Espírito e não pela letra morta da Lei (cf. Rm 2,29)." E. TAMEZ, op. cit., p. 168

[14]
Ibid., p. 37-38

[15]
"Esse longo trecho que encerra o conflito entre fortes e fracos salienta várias coisas. Em primeiro lugar, o amor deve ser a base de toda relação. Em segundo lugar, às vezes corre-se o perigo de perder de vista o objetivo maior (o Reino de Deus) ao divagar em discussões sem fim sobre coisas secundárias. Em terceiro lugar, numa comunidade não é possível pensar somente em si mesmo; pelo contrário, deve-se pensar o bem comum. Em quarto lugar, Paulo proclama um novo código de pureza: todas as coisas são puras. Essa convicção ele a adquiriu após duros anos de confronto entre o próprio passado de fariseu e o contato com o mundo não judaico. Em quinto lugar, o escândalo provoca danos irreparáveis numa comunidade. Em sexto lugar, a consciência de cada pessoa é um espaço sagrado que o próprio Deus respeita. Contudo, numa comunidade não é preciso alardear sempre as próprias convicções. Às vezes é prudente guardá-las. Finalmente, o pecado é tudo o que não convém de uma convicção.", José BORTOLINI, Como ler a carta aos romonos. O evangelho é a força de Deus que salva, p. 105

[16]
"... la paulina 'liberación de la Ley' não significa que no existan el bien y el mal. Significa que existen, y que la moral no sirve más que para ponerlo de relieve. Pues la moral no es el camino para superar la maldad del hombre; pretender volverlo bueno a base de moral sería como establecer um contrato con un ladrón: la consecuencia más probable sería la estafa... Precisamente por eso, en un texto no fácil de entender, Pablo señala el carácter 'contractual' de la moral como causa de su fracaso para el hombre: 'fue promulgada por ángeles, si (y por eso sus contenidos son buenos), pero a través de un mediador'. Y 'mediador' alude a dos (Dios y el hombre), entre los cuales se establece un cierto contrato. En cambio, la promesa es obra exclusiva de Dios (Gl 3,20)", José I. GONZÁLEZ FAUS, op. cit., p. 124-125

[17]
Ibid., p. 135-136

[18]
José BORTOLINI, Como ler a carta aos gálatas. Evangellho da liberdade, p. 40-41

[19]
Juan Luis SEGUNDO, op. cit., p. 347

[20]
Elsa TAMEZ, op. cit., p. 126-127 – a autora ainda lembra: "... o tema da justificação pela fé e não pelas obras da Lei aparece mais explicitamente... na polêmica com os judeus-cristãos ou judaizantes, que estabeleciam a circuncisão e algumas observâncias da Lei como condição para pertencer ao povo de Deus. Paulo se opõe a esse posicionamento. Não obstante, o que interessa a Paulo não é, pura e simplesmente, convencê-los de que é Cristo que justifica e não a Lei. O que, entre outras coisas, o preocupava era: a) o fato de que ele incluía como povo de Deus aquele grande setor da humanidade que não possuía os privilégios da Lei judaica. Com a fé em Jesus Cristo, Paulo põe em pé de igualdade judeus e não-judeus. A fé cristã acolhia a todos, sem exceção; b) mostrar que os horizontes da fé proporcionam vida humana mais justa, livre e madura. E, neste sentido, a Lei era limitada. Paulo se refere explicitamente à Lei mosaica; não obstante, ao equipará-la com o evangelho da fé, sua visão da lei se amplia. Agora, já é limitadora não apenas a Lei judaica, mas qualquer tipo de lei, de lógica, de sistema ou de mecanismo que tenda a reduzir os seres humanos à escravidão. É por esse motivo que sua teologia da justificação pela fé o levou a se pronunciar mais além das fronteiras religiosas, abrangendo outros níveis da história das relações humanas (veja Gl 3,28).", p. 145-146

[21]
Cf. Carlos MESTERS, Carta aos romanos, p. 22-23

[22]
José COMBLIN, A liberdade cristã, p. 23

[23]
Cf. I. de la Potterie, La unción del cristiano por la fé, in I. de la POTTERIE e S..LYONNET, La vida según el espíritu,, Sígueme, 1967, pp. 111-173

[24]
Carlos MESTERS, Op. cit., p. 29

[25]
Cf. José M. GONZÁLEZ-RUIZ, O evangelho de Paulo, p. 131-133

[26]
Cf. José BORTOLINI, op. cit., p. 33-36

[27]
A teóloga E. S. Fiorenza, comentando a passagem 1Cor 7,21.23, diz: "...o conselho aos escravos não pode significar que estes devam permanecer no estado em que se encontravam quando foram chamados. É difícil entender o conselho de 7,21, dado que não fica claro se eles devem usar a liberdade ou a escravidão em seu próprio favor se tiverem a possibilidade de conseguir a liberdade. Embora a maioria dos exegetas e tradutores suponha que os escravos permaneciam nessa condição quando se tornavam cristãos, na minha opinião o contexto trabalha contra essa interpretação. A injunção do versículo 23 – 'Alguém pagou alto preço pelo resgate de vocês. Portanto, não se tornem escravos humanos' – proíbe tal interpretação. O conselho que Paulo dá aos cristãos escravos parece então entendido melhor como: 'Se tiverem de viver sob o jugo da escravidão, sem poder alcançar a liberdade, ainda que tenham sido chamados à liberdade, não se preocupem. Mas, se tiverem a oportunidade da alforria, de modo algum deixem de aproveitá-la e vivam de acordo com seu chamado à liberdade, não se preocupem. Aqueles entre vocês que eram escravos quando chamados a se tornar cristãos são agora mulheres livres e homens livres do Senhor, assim como os que eram livres têm agora um senhor em Jesus Cristo' Paulo alega aqui, portanto, que tanto escravos como livres são iguais na comunidade cristã, porque têm um só Senhor.", E. S. FIORENZA, op. cit., p. 227-228

[28]
O que entender com a visão de que a liberdade é anunciada por um evangelho? "Duas coisas: em primeiro lugar que a liberdade é um dom de Deus. Um evangelho anuncia e proclama uma ação de Deus. Aqui a ação consiste em suscitar a liberdade no homem. Não podemos entender essa ação como gesto material. A liberdade não é nenhum objeto que se possa receber duma vez. Ela é um lento e progressivo processo. Deus está realizando esse processo pelo qual a liberdade emerge na criatura humana. Desse modo está restaurando a sua criação: Deus tinha feito o homem livre e agora está reconstruindo essa liberdade perdida. Esse é o evangelho.
"Mas aqui intervém o segundo aspecto do evangelho. A ação de Deus não há de entender-se ao lado ou fora da ação humana. Deus age no homem a partir do núcleo do seu ser. A ação de Deus é também ação do homem. Por isso o anúncio é, ao mesmo tempo, apelo. O evangelho é apelo ao homem para que se torne livre. Pois um único processo é a ação de Deus dando a liberdade e a ação do homem conquistando essa liberdade. Por isso deve-se dizer ao mesmo tempo que a liberdade vem da parte de Deus, que Deus está tornando o homem livre, e que o homem é chamado a assumir a sua liberdade.", José COMBLIN, A liberdade..., op. cit., p. 25-26


[29]
José COMBLIN, O espírito no mundo, p. 65

[30]
Ibid., p. 65-66

[31]
Cf. José COMBLIN, Paulo e a mensagem de liberdade, in: Estudos Bíblicos 14 (1987): 64-67

[32]
Ibid., p. 65

[33]
Ibid., p. 65-66

[34]
Para entender melhor a atitude de Paulo frente ao Império Romano, porque existem comentários que o acusavam de se subordinar em algum assunto específico, por exemplo, a respeito dos escravos – apesar de já termos comentado a respeito disso mostrando uma outra visão -, vejamos alguns pontos que ajudam a clarear as atitudes de Paulo:

"1. A consciência histórica. A situação dos cristãos no Império Romano era diferente da situação dos cristãos hoje na América Latina. Na América Latina, nós cristãos temos quase quinhentos anos de idade, somos mais ou menos noventa por cento da população do Continente e temos uma tremenda responsabilidade histórica na origem da estrutura antievangélica que existe por aqui. Nos tempos de Paulo, porém, os cristãos não tinham nem trinta anos de vida, não chegavam a meio por cento da população do Império e, como cristãos, não tinham estado presentes quando foi criado o sistema explorador do Império. Por isso, a consciência a respeito da problemática social não era e nem podia ser a mesma que a nossa.

"2. Análise crítica da sociedade. O tipo de análise que hoje fazemos da sociedade não existia naquele tempo. Havia consciência do problema social, mas este não era percebido tão agudamente como hoje. As perguntas que fazemos a Paulo são legítimas, mas são perguntas que partem das nossas preocupações, do nosso nível de consciência e da nossa análise do problema.

"3. A concepção de poder. Desde a destruição de Jerusalém em 587 antes de Cristo, os judeus viviam sob governos estrangeiros. Chegaram a ver nisso uma expressão da vontade de Deus para eles (cf. Jr 27,4-11). Esdras chegou a identificar "a Lei de Deus como a lei do Rei" (Esd 7,26). Aprenderam a conviver. Uma atitude assim é uma limitação. Ela impede a pessoa de ver as falhas que há no sistema do poder.

Além disso, convém lembrar a diferença que havia, exatamente neste ponto, entre os judeus da Palestina e os da diáspora, de que falamos anteriormente.

"4. A força subversiva do Evangelho. Não se deve imaginar Paulo como um ignorante e um ingênuo frente ao sistema econômico, político e social do seu tempo. Resumindo... a sua opção em favor da classe trabalhadora e escrava; a sua nova proposta, contrária à ideologia dominante; a sua visão crítica da situação social e moral, expressa na carta aos Romanos; a sua percepção de que o abafamento da verdade pela injustiça produz os males sociais e morais; a utopia que o animava de uma comunidade sem nenhum tipo de dominação: tudo isso revela alguém que, no tempo dele, talvez fosse mais crítico e mais realista do que nós hoje.

"5. A experiência de Deus. Paulo teve uma experiência profunda de Deus. Para ele, a ressurreição de Jesus era a prova de que o futuro já tinha chegado. A vinda definitiva do reino era apenas uma questão de tempo. Uma experiência assim relativiza todo o resto, tanto a riqueza como a pobreza, tanto o possuir como o não-possuir. Eis alguns textos: 'Vivemos como indigente e, não obstante, enriquecemos a muitos; como nada tendo, embora tudo possuamos' (2Cor 6,10). 'Aprendi a adaptar-me às necessidades; sei viver modestamente, e sei também como haver-se na abundância; estou acostumado com toda e qualquer situação; viver saciado e passar fome; ter abundância e sofrer necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece' (Fl 4,11-13). 'Se temos comida e roupa, contentemo-nos com isso' (1Tm 6,8). 'O tempo se fez curto. Aqueles que compram, sejam como se não comprassem; os que usam deste mundo, como se não usassem plenamente. Pois passa a figura deste mundo' (1Cor 7, 29.30-31).

"...É possível que Paulo, como judeu da diáspora, tenha tido uma certa simpatia para com a eficiência da organização do Império Romano. Mas não adaptou o Evangelho as suas simpatias. Não convém esquecer que morreu condenado pelo Império por causa do amor que tinha ao Evangelho e ao povo.", Carlos MESTERS, op. cit., p. 80-82

[35]
Ibid., p. 67

[36]
José COMBLIN, A liberdade cristã, p. 27-28

[37]
"do evangelho da liberdade podemos tirar uma primeira conclusão: a liberdade é o termo final do processo de libertação iniciado na história de Israel e narrado no Antigo Testamento. Mas esse termo final constitui uma nova etapa radicalmente diferente. Para o Israel antigo, a libertação incluía sempre a exaltação de uma nação, de uma entidade cultural e politicamente oposta a outras entidades. Paulo dirige um apelo que muda essa condição. A mensagem de Paulo é um apelo ao mesmo tempo para os judeus e para os não-judeus; para os judeus para que destruam todas as barreiras e fronteiras, tudo o que faz deles um povo particular e, além disso, que renunciem à idéia de que a salvação se faz a partir dum sistema (cultural, social, moral, político etc. ), enfim, duma 'lei'; para os não-judeus, para que entrem no processo de libertação iniciado no Antigo Testamento sem necessidade alguma de adotar as particularidades tradicionais do Israel antigo mas aceitando a vocação de Deus para a liberdade a partir do Espírito em Jesus Cristo. Assim, o chamado gera um povo novo feito da reconciliação dos dois anteriores, um povo que inicia um processo de liberdade, que aprende a liberdade e não a espera somente. Trata-se realmente de um novo Êxodo que parte não do Egito mas do cativeiro de Israel na sua lei e do cativeiro das nações sem lei. Um Êxodo cujo termo final não é formação de uma nova nação que baseia sua liberdade na luta, na dominação e nas armas, mas na paz e na reconciliação. (...) A liberdade é a marca do homem novo criado em Cristo pelo Espírito, a marca própria da assembléia de Deus, do povo de Deus novo e definitivo.", Ibid., p. 32-33

[38]
Importante compreender que "ainda que Paulo recuse a validade de toda lei vinculante para a comunidade cristã, o seu ensinamento moral não é mera ética de situação. (...) Na medida em que via a exigência de Deus manifestada pelas necessidades dos outros em situação concreta, Paulo era situacionista, mas ele recusava admitir que o indivíduo poderia ser adequado sujeito moral. A lógica de sua compreensão da natureza da comunidade cristã não podia lhe permitir fazer diversamente. O próprio ser dos crentes era o de partes dentro de um todo. Como membros do Corpo, eles só participavam da vida de uma unidade orgânica. Não podiam, portanto, ser totalmente independentes em seus juízos morais. Se a unidade da comunidade devia ser fato e não sonho, o julgamento moral do cristão podia ser apenas participação em e reflexão sobre o julgamento moral da comunidade. Para Paulo, portanto, a comunidade era o verdadeiro sujeito moral.", J. MURPHY-O'CONNOR, A antropologia pastoral de Paulo, p. 218

[39]
Ibid., p. 50

[40]
As autoridades eclesiásticas na história da Igreja têm falhado na experiência da liberdade. "O desejo de segurança levou-os a sacrificar a liberdade das comunidades para buscar refúgio na uniformidade e na organização. Em lugar dum povo de Deus feito de inúmeras comunidades livres e ligadas somente pela caridade, creram que a fidelidade devia ser assegurada pelo controle, pela homogeneidade, pela subordinação a estruturas rígidas. A concepção do povo de Deus como comunidade de comunidades desapareceu ou ficou muito vaga. Prevaleceu a idéia de uma Igreja centralizada, organizada e dominada por normas fixas, numerosas, que lhes deixam pouca possibilidade de vida espontânea. Com essas condições, os dons espirituais sofreram muitos danos. A ordem prevaleceu e o Espírito teve menos liberdade para se exprimir através das comunidades cristãs.", J. Comblin, A liberdade..., p. 78

[41]
"...onde está o equivalente da Lei hoje em dia? Onde haveria uma Lei imposta a povos pagãos, povos novos, como condição indispensável para entrar na Igreja? Esta Lei existe: o direito canônico da Igreja latina imposto a povos que nada têm de latino, nem na sua história, nem na sua cultura. Impondo esta Lei como condição indispensável e único meio de adesão à Igreja, os cristãos estreitam as portas e tornam o acesso ao Evangelho muito difícil.

"Na América Latina, temos dois casos: os índios e os negros. Até hoje os índios não podem entrar na Igreja com a sua cultura e a sua história. Foi-lhes imposto um cristianismo dos vencedores e dos dominadores. A aceitação do cristianismo pelos índios ainda não se fez com profundidade até hoje, porque não existe uma Igreja índia, a não ser em alguns fragmentos isolados e objeto de muita desconfiança.

"Da mesma maneira, não existe um cristianismo africanizado. Os escravos e os seus descendentes receberam um cristianismo ocidental, o dos senhores e exploradores. Acharam refúgio nos seus cultos africanos que tiveram que esconder sob disfarces cristãos. Até hoje os descendentes dos negros são, na sua imensa maioria, animistas de coração e cristãos por conveniência como modo de adaptação à cultura dos dominadores. Na Igreja latino-americana os negros não ocupam lugar nenhum. Todas as suas tentativas litúrgicas foram vetadas, e todo o animismo condenado em nome do dogma cristão.

"Ora, a exclusão dos índios e dos negros a nível de Igreja reforça ou até certo ponto gera a exclusão da sociedade global.", José Comblin, Teologia da reconciliação: ideologia ou reforço da libertação? , p. 82-83

[42]
"O preço da liberdade é a obrigação de escolher e, portanto, de assumir responsabilidades. O homem comum foge das responsabilidades e por isso procura o refúgio e a cobertura de normas pré-fabricadas e determinadas por uma autoridade, de tal modo que os fracassos possam ser atribuídos a essa autoridade. O discernimento, porém, não está entregue às puras luzes humanas: o Espírito é quem abre os olhos para discernir. Em lugar de impor normas, o Espírito ilumina as mentes de tal modo que elas possam ver a realidade das situações e perceber o apelo de Cristo numa situação determinada. Desse modo o Espírito constitui as pessoas em estado de responsabilidade. Depois de tornar os discípulos livres de si próprios, da sua própria segurança e das suas próprias vantagens e capazes de tomarem o partido da libertação dos outros, o mesmo Espírito Santo torna-os livres do mundo exterior, dos princípios, regras, normas que desde sempre envolvem a relação entre o homem e o mundo dentro de limites estreitos. O Espírito torna o homem livre de si mesmo e livre das realidades exteriores: ambas as liberdades resultam da liberdade fundamental frente à morte.". Id., O Espírito..., p. 66

[43]
Se partirmos do fato de que no tempo de Paulo era impossível um movimento ou um processo histórico capaz de ser uma base forte e concreta para a libertação dos escravos, porque isso supõe um novo modelo societário no nível sócio-econômico, tudo leva a crer que Paulo pensava que a conversão era suficiente. Aí está a confiança na liberdade e o apelo à liberdade! A história tem mostrado que o apelo à liberdade é não suficiente para superar as dominações e explorações presentes no processo histórico. A história tem sido um desmentido constante à liberdade. Por isso a humanidade apresenta novas estruturas sociais para "estabilizar um pouco a instabilidade da liberdade", mas aos poucos as novas estruturas são cooptadas a serviço da dominação se as pessoas humanas não são livres ou não se sentem em movimento de libertação. A história das sociedades é uma permanente interferência do apelo à liberdade e das tentativas de institucionalização de estruturas sociais, políticas e econômicas novas. Daí a história de reformas e contra-reformas, de nascimento e morte de impérios, de surgimento e desaparecimento de instituições.

[44]
José COMBLIN, O Espírito..., p. 67

[45]
Wayne A. MEEKS, op. cit., p. 207-214

[46]
"A confiança emerge somente em comunidades sadias, e a escassez geral de confiança moral atualmente (embora haja muitos profetas prontos para afirmar uma certeza sem garantia) é um sinal que nem tudo vai bem com nossas comunidades. Mas há algo de autofrustração a respeito de um projeto de formarmos nossas comunidades para formarmos nossa confiança moral: isto se expõe a produzir um turbilhão de auto-ansiedade – uma enfermidade à qual as Igrejas são muito suscetíveis. As comunidades cristãs são sadias não quando estão preocupadas com sua saúde, mas quando estão tentando fazer aquilo para o qual estão aqui. Algumas coisas centrais podem ser realizadas, indiretamente: 'Senhor', dizem as ovelhas, 'quando te vimos com fome e te demos de comer?' Expressando a questão teologicamente, a confiança moral que o cristão precisa está numa certeza que não é nossa própria, como os Reformadores disseram da salvação: ela está extra nos.", Wayne A. MEERS, op. cit., p. 213

[47]
"Uma das coisas mais notáveis sobre a narrativa bíblica é que Deus, que é representado como sendo fiel à sua aliança, é sempre surpreendente e com freqüência desalentado com o seu povo. Essa característica da narrativa foi admiravelmente conveniente para os primeiros cristãos os quais podiam, assim, afirmar que a crucifixão e ressurreição do Filho Deus, o Messias, podia ser a maior surpresa de todas, mas não sem personagem. Naturalmente os cristãos preferiam, então, supor que era a última surpresa; daí em diante Deus agiria exatamente conforme requer a compreensão cristã daquele evento revelador. Mas essa presunção, à luz do registro anterior de Deus, parece sem garantia.

"A reflexão de Paulo sobre a situação de Israel à luz desta última surpresa, na Carta aos Romanos, é paradigma salutar para maneira como os cristãos agora se habituariam a pensar na fidelidade de Deus. Paulo contou a narrativa (nos capítulos 9-11) do 'endurecimento parcial de Israel' na sua rejeição de Jesus como Messias e na substituição dos judeus 'contrária à natureza' pelos não judeus nas comunidades cristãs. Mas ele usa essa narrativa como uma admoestação para os cristãos não judeus. Estes últimos não devem imaginar que sua nova condição privilegiada entre o povo de Deus seja independente da 'raiz' em Israel, ou os deixe imunes do julgamento que caiu sobre os judeus descrentes, nem devem pensar (como Mateus, Barnabé e muitos pertencentes à subseqüente tradição insistiriam) que Deus rompera com os judeus e que sua aliança fora cancelada. Ao contrário, Paulo supõe um cumprimento final para 'todo Israel' que, embora violando as expectativas alimentadas em suas Escrituras e tradições, aprovará voltando a reunir os grandes temas daquelas Escrituras e tradições de maneiras imprevisíveis.

"De alguma maneira análoga, talvez os cristãos e judeus do século 21 aprenderão que nenhuma das diferentes narrativas que se sobrepõem em suas duas Bíblias – a narrativa com um fim em aberto e multicentralizada da Tanak judaica e a narrativa poderosamente centralizada e impelindo para adiante da Bíblia cristã – exclui a outra, ou seja, completa em si mesma. Mais que isso, talvez eles descubram que o florescimento que (para usar a linguagem teológica tradicional) Deus deseja para todas as criaturas da terra só é possível se cristãos e judeus puderem encontrar caminhos para afirmar as narrativas e ritmos de outros povos e tradições, novamente revendo e reinterpretando, mas não abandonando, suas próprias tradições. Uma hermenêutica fiel do tipo paulino requer confiança no Deus que, determinado a ter compaixão de todos e a trazer à existência as coisas que não existiam, deixará pasmos os que são leais à narrativa das ações passadas de Deus, mas não os abandonará. Desse modo, o processo de criar a moralidade cristã – e humana – continuará.", Wayne A. MEEKS, op. cit., p. 213-214

[48]
"O desafio dos cristãos no mundo é hoje muito mais difícil do que antes. Pois o sistema é muito forte, muito autoritário. Dentro das empresas a vigilância é total. Ninguém pode contestar, ninguém pode protestar, ninguém pode criticar. Quem não se submete como escravo fica suspeito e pode ser eliminado. Por isso, dar testemunho cristão supõe heroísmo. Ao mesmo tempo é preciso ser prudente como as serpentes. Não existe liberdade de expressão. Ao mesmo tempo há uma campanha de lavagem cerebral para manipular as mentes e conseguir que todos se convençam que é preciso obedecer, que não há alternativas e que são muito felizes por estar na empresa. Todas as ciências humanas concorrem para submeter as mentes. A mídia, as instituições, o ambiente global da sociedade: tudo serve para desencorajar qualquer tentativa de mudança. Por isso, somente personalidades fortes, com convicção muito forte, poderão dar testemunho. A maioria ficará calada. A economia neoliberal tem a mesma força dos imperadores romanos. A pressão psicológica é forte. Na prática e de fato, a maioria cede e perde sua própria convicção. Daí a necessidade de uma preparação e de um apoio muito forte. Sem formação muito profunda ninguém poderá abrir a boca na sociedade e todos repetirão as mentiras divulgadas pela mídia. [...] Se não se tem a coragem de formar leigos que vão ter que lutar contra uma estrutura mais dura do que o Império Romano, porque submete as mentes, não haverá presença da Igreja no mundo, apesar de todos os textos e de todos os discursos bonitos.", J. COMBLIN, As grandes incertezas na Igreja atual, in: REB, fasc. 265 (Jan/2007): 56

[49]
O poder de Deus se dá a partir das seguintes fraquezas: a) a fraqueza de seu Filho sobre a cruz (1Cor 1,17-25); b) a fraqueza de seu povo de Corinto (1Cor 1,26-31); c) a fraqueza de Paulo, seu apóstolo (1Cor 2,1-16). Com essas fraquezas se patenteia a sabedoria de Deus: "o que é fraqueza para o mundo, foi o que Deus escolheu para a confusão da força" (1Cor 1,27).