RESENHA
RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Fé, Verdade, Tolerância – O cristianismo e as grandes religiões do mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio", 2007, 246 p., ISBN 85-89294-11-0.
Introdução
O livro "FÉ, VERDADE, TOLERÂNCIA – O Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo" foi escrito em 2004, poucos meses antes do cardeal Joseph Ratzinger, autor da obra, tornar-se o Papa Bento XVI, quando era o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Já no prefácio, o papa constata a importância do estudo deste tema – o encontro entre as religiões e as culturas – numa realidade que mostra um mundo cada vez menor. E o interesse do tema não é apenas da teologia. Antes, porém, da questão da compatibilidade das culturas e da liberdade das religiões, a principal questão é a das próprias religiões, ou seja, do modo como umas se situam em relação às outras e podem contribuir para a educação da humanidade na paz. Diante dessa problemática, o cristianismo, sem dúvida, vê-se num desafio particular, considerando que, de acordo com a sua origem e essência, "manifestou a pretensão de conhecer e anunciar o Deus verdadeiro, o único salvador de todos os homens: 'Não há salvação em nenhuma outro Nome, porque aos homens não nos foi dado sob o céu nenhum outro nome pelo qual devêssemos ser salvos', disse Pedro aos chefes e anciãos do povo de Israel (At 4,12)" [p. 13].
Podemos, porém, afirmar que essa exigência de uma pretensão absoluta é hoje defensável? Como essa exigência pode ser compreendida, diante da busca da liberdade das religiões e culturas? Quando foi publicada a declaração Dominus Iesus "Sobre a Singularidade e Universalidade Salvífica de Jesus Cristo e da Igreja", em 2000, pela Congregação para a Doutrina da Fé, afirma o papa, "houve uma gritaria de indignação da sociedade moderna ocidental e também das grandes culturas não cristãs. Tratar-se-ia de um documento da intolerância e de uma arrogância religiosa que não mais deveria ter lugar no mundo moderno. O cristão católico poderia, apenas, com toda humildade, fazer a pergunta que Martin Buber certa vez formulara a um ateu: Mas e se isso for verdade? Assim, a verdadeira problemática por trás de todas as questões individuais está na questão da verdade. Pode a verdade ser conhecida? Ou a questão da verdade, no que se refere à religião e à fé, é simplesmente improcedente? Mas, então, o que significa a fé e o que significa positivamente a religião, se não devem relacionar com a verdade?" [p. 13-14].
1. O lugar da fé cristã na história das religiões
Quando o papa posiciona o problema, ele afirma que a posição que o cristianismo ocupava, na história das religiões, é a posição que ele mesmo se deu e que foi formulada basicamente há muito tempo: a fé cristã vê em Jesus Cristo a única – e, portanto, definitiva – salvação da pessoa humana.
Atualmente, predomina uma opinião, cada vez mais forte, de que todas as religiões são e dizem a mesma coisa. No intuito de fazer frente à pretensão de verdade de uma determinada religião, o homem contemporâneo afirma: "há muitas religiões!", querendo, com isso, dizer que elas são em princípio iguais, cada uma com a sua forma.
Da impressão de uma completa pluralidade – representando um primeiro estágio da consideração –, vai surgindo, em um segundo estágio, a impressão de uma identidade suprema. A moderna filosofia da religião afirma que pode até fornecer o fundamento dessa identidade oculta. Nesta sua concepção, toda religião existente, se é "verdadeira", parte de uma forma de experiência interior do divino, em uma íntima união com o que sempre experimentam os místicos de todos os tempos. Considerando dessa forma, toda religião teria como base a experiência dos místicos, alcançada em contato direto com o divino e daí em parte comunicada aos muitos que não são capazes dessas experiências. Portanto, somente duas formas de religião seriam possíveis na humanidade: a forma direta da mística, como religião "de primeira mão", e, depois, a forma indireta de conhecimento apenas "emprestado" pelo místico, ou seja, a forma da fé, que seria uma religião de "segunda mão". Isto quer dizer que a religião formulada e articulada de muitos seria, então, religião de segunda mão, como simples participação numa experiência mística em si informe, traduzida em múltiplas formas verbais permutáveis. Ora, no cristianismo, somente Deus é de "primeira mão" e todos os homens, sem exceção, são ouvintes de "segunda mão" do chamado divino.
2. É possível a verdade do Cristianismo?
Vivemos atualmente uma tal crise moral da humanidade – constata o papa –, com formas novas e ameaçadoras que, diante de tal situação, torna-se difícil acreditar que seja possível uma harmoniosa convivência entre o crer e o saber. Pode-se dizer que convivemos com a realidade de uma situação de desmoronamento de antigas certezas religiosas que, há 70 anos, parecia ainda ser possível evitar. Diante dessa constatação, aumentou o temor de uma derrocada do ser humano. Desejando esforçar-se numa proposta de saída dessa esquizofrenia da modernidade, o papa começa apontando que o Iluminismo defendia o ideal de uma religião confinada nos limites da simples razão. Com o passar do tempo, porém, tal religião estritamente racional desmoronou-se rapidamente e perdeu o vigor de sustento da vida.
Ratzinger afirma que o maior motivo da crise atual é a falta de mediação entre o âmbito objetivo e o subjetivo, fazendo com que a razão e o sentimento vão se distanciando cada vez mais e, conseqüentemente, ocasionando perda para os dois. A religião não está acabada, porém o religioso facilmente se perde no particularismo, distanciando-se de seus grandes contextos espirituais.
A razão e a religião não podem dissolver-se uma na outra. É preciso que se aproximem novamente.
Na tentativa de descobrir a racionalidade interna do cristianismo, o papa afirma que a fé cristã não pode ser vista como um sistema, mas um caminho que somente experimentando-o é possível saber como caminhar nele. Este caminho tem o seu início em Abraão, com o qual Deus mostra que não é o Deus de uma determinada nação ou país, e sim, de uma pessoa. Quando acontece o exílio de Israel, ao invés de Deus mostrar-se decaído, por causa da perda da terra, do abandono do povo vencido, acontece justamente o contrário. O exílio pôs em realce a grandeza de Deus. Ele não está ligado a nenhuma terra, não depende do povo, mas não o abandona no momento da derrota. Com o surgimento da literatura sapiencial nos 500 anos que se passaram entre o exílio e a vida de Jesus, e a passagem do judaísmo ao mundo grego, acentuou-se cada vez mais o caráter universalista da religião de Israel. O movimento espiritual, dentro da caminhada de Israel, alcançou a sua meta: o encontro da razão e do mistério, dando a possibilidade de todas as pessoas tornarem-se irmãos e irmãs num único Deus e mostrando que o presente se orienta para o Ressuscitado, a um mundo onde Deus será tudo em todos.
Diante de toda esta caminhada, o papa constata que o ser humano precisa fortalecer a sua capacidade mística, sair de si mesmo, abrir-se mais interiormente, reconhecendo que há "uma hipertrofia do homem exterior e um grave enfraquecimento da sua força interior" [p. 147].
Como se chega à conclusão do Cristianismo como verdadeira religião?
Começamos o terceiro milênio assistindo uma profunda crise do cristianismo na Europa, em sua pretensão à verdade. Há um ceticismo geral em assuntos de religião, no que diz respeito à pretensão à verdade. No pensamento contemporâneo, o cristianismo não está melhor que as outras religiões. A ciência moderna questiona cada vez mais as origens do cristianismo e o conteúdo da sua doutrina.
Debruçando-se sobre a questão da verdade do cristianismo, o papa procura aclarar a questão de como, nos seus inícios, o próprio cristianismo considerava a sua pretensão no cosmos das religiões. Neste dedicado trabalho, o papa toma como referência Santo Agostinho para concluir que ele "identifica o monoteísmo bíblico com os conhecimentos filosóficos sobre a razão de ser do mundo, que se formaram, em variações diversificadas, na filosofia antiga" [p. 156]. Isso significa que não há separação entre pensamento e fé. Com Jesus, o monoteísmo judaico espalhou-se pelo mundo e a religio vera, a unidade do pensamento com a fé, tornou-se acessível a todos. "O conhecimento racional pode tornar-se religião, porque o próprio Deus do conhecimento entrou na religião" [p. 158].
Na verdade, a expressão vera religio mostra a síntese que permitiu ao cristianismo tornar-se uma religião mundial: razão, fé e vida. É preciso que a consciência moderna busque equilibrar as duas forças – filosofia e religião – para o modo mais adequado de religiosidade. A teoria da evolução, como teoria universal, pode estender-se à totalidade do real? É o racional que está no fundamento de todas as coisas ou o real surgiu do acaso, do irracional? A fé cristã sempre optou e vai optar pela prioridade da razão e do racional e, nesta opção, o cristianismo será sempre "iluminismo", de modo que, qualquer iluminismo que deseje sair dessa opção significará involução e não evolução do iluminismo.
Tanto na ortodoxia quanto na ortopráxis se encontra a base para fundamentar a idéia do cristianismo como religio vera e universal. No seu conteúdo, ele sempre deverá mostrar que "a verdadeira razão é o amor e o verdadeiro amor é a razão" [p. 167].
Luiz Gonzaga Fechio
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção
Mestrando em teologia prática – núcleo de moral
lgfpropedeutico@ig.com.br