DO FRACASSO MORAL AO RETORNO DA ÉTICA

Prof. Dr. Frei Nilo Agostini, ofm

 

RESUMO

A modernidade e a pós-modernidade estão atravessando um processo corrosivo da moral, numa relativização de valores em várias esferas. No desejo emancipatório, o indivíduo acaba desconfiado e descrente frente aos projetos históricos, cético frente aos padrões éticos e valores morais. Deseja viver intensamente, embalado pelo prazer. Cai, sem perceber, num individualismo narcisista. No entanto, este individualismo reinante já dá mostras de graus de responsabilidade, aberto às regras morais, à eqüidade, aberto ao futuro, como que numa reabilitação da inteligência sob forma de ética. Verificamos um retorno à ética.

Palavras-chave: moral, ética, modernidade, pós-modernidade

 

ABSTRACT

Modernity and Post modernity are facing the moral corrosive process, in a value relativization under many circuntances. In an emancipatory desire, people become suspicious and unbelievers in relation to the historical projects, skeptical to the ethical standards and to the moral values. Willing to live intensively, motivated by pleasure. Falling without noticing, in a narcissist individualism. However, this predominant individualism already shows the responsibility levels, open to moral rules, to equity, open to the future, as an intelligence rehabilitation under an ethical way. We verifiy the ethics return.

Key words: moral, ethics, modernity, post modernity


Introdução

A emergência da modernidade, por um lado, e a atual entrada em cena da pós-modernidade, por outro, nos colocam diante de um fenômeno humano e societário baseado num subjetivismo individualista crescente. Centrados no indivíduo, segundo a modernidade, e embalados pelo subjetivismo narcisista, na versão pós-moderna, vemos crescer a relativização em termos de valores, enfim da própria moral. Isto salta aos nossos olhos, em sua forma doentia, quando se trata de sermos solidários e honestos, de conviver na comunidade (e/ou família) e ser-lhe fiel, de construir a sociedade e ser transparentes e éticos na condução da "coisa"(res) pública e de viver a fé buscando lastreá-la no direito e na justiça.
O fracasso moral estaria claramente delineado. Ele far-se-ia presente na dificuldade de assumir engajamentos por toda a vida, de preocupar-se com os outros, de interessar-se com a construção da sociedade, de ser honestos também nas pequenas coisas do dia-a-dia, bem como na ânsia de viver o prazer a qualquer custo, na busca de levar vantagem em tudo, entre outros. Na verdade, estes elementos estão sendo perpassados por diversos patamares de relativização, fenômeno de uma cultura e de um comportamento que atravessa o humano e se alastra na sociedade de nossos dias. No entanto, este mesmo processo traz no seu bojo o retorno da ética, com a busca de referenciais, o cultivo de valores, numa reabilitação da "inteligência ética", numa nova disposição social de valores, numa reapropriação do religioso/transcendente, deixando a ética mobilizar de novo o ser humano. Vejamos como se desenha este quadro.

1. O sentir moderno e sua crise

Há quem fale do fracasso da moral na modernidade[1] . Não é nova a idéia de que a moral é suspeita no mundo moderno. Este necessita, é claro, fundar a existência humana na moral; porém, ao mesmo tempo, tende a destruir os fundamentos que a tomam a sério, tornando-a impossível. E quando cria seus próprios princípios e valores, eis que ela mesma não lhe dá muito crédito. Isto cria uma atmosfera na qual a moral exerce pouca influência naqueles a quem ela se dirige. Embalada ela também pela razão moderna, a moral transforma-se em mais um conhecimento e, no máximo, vem assumida de forma destilada como parte de uma opinião muito subjetiva.

A partir do século XVIII, com a emergência da sociedade comercial, o mercado foi tomando conta da vida e lastreando as relações na sociedade. No século XIX, o capital tornou-se o pivô, fundado na acumulação desenfreada do capital. No século XX, a racionalização consolidou-se como eixo do edifício moderno, cujos fundamentos já vinham sendo lançados bem antes. Foram-se criando modos de vida com suas referências morais próprias, sem, no entanto, formar uma base comum de referenciais para todos. Fundada na racionalidade humana e na ação autônoma do indivíduo, a modernidade buscou a emancipação de toda heteronomia pré-moderna; isto transformou a moral como mero adendo, sem muita importância. Bernard Mandeville, no século XVIII, já havia descrito a moral como um sistema de ilusões. Nietzsche não teve dúvidas em falar do fracasso da moral, sendo o niilismo o destino da modernidade.

Um olhar acurado nas entranhas da modernidade coloca em evidência que houve e há, na verdade, um fracasso moral da modernidade e não um fracasso da moral na modernidade. Esta descambou no utilitarismo, abriu o caminho ao consumismo, cultivou nacionalismos diversos, idolatrou o poder, resvalou num racionalismo fragmentado, cultivou um individualismo crescente, transmutou a liberdade em poder possuir desmedidamente, transformou a razão em instrumentalização técnico-científica, elegeu o mercado como detentor do poder máximo.

"A vida social moderna traz consigo suas próprias contradições: produz conjuntos de desejos incompatíveis e desejos que não poderão ser satisfeitos. De maneira mais fundamental, ela cria um conceito de identidade individual, porém não proporciona os recursos necessários para sustentar essa identidade. O mundo moderno gira em torno da idéia da soberania do indivíduo, porém destruiu igualmente as condições desta soberania"[2] .

Frustração, fraqueza e desintegração são algumas das conseqüências ou o preço que pagamos pelo cultivo do individualismo, pela obsessão do poder e pela autonomia centrados no indivíduo, bem como pela proliferação dos desejos. O mercado acabou isolando os indivíduos e, num reflexo e reprodução do mesmo, este mercado os induz a relações igualmente instrumentais com os demais indivíduos. Os outros acabam sendo um meio para conseguir os fins individuais. O que importa são seus próprios interesses, sua satisfação imediata, numa motivação extremamente egocêntrica. Pensa que assim conquistará poder e poderá saciar-se indefinidamente através do consumo. O reverso desta moeda não é a satisfação, senão a frustração, numa repetição da busca sem fim de satisfações ocasionais, fragmentadas e coisificadoras. Não há criatividade, senão atitudes miméticas. Não há real autonomia, senão fugaz vulnerabilidade.

A modernidade, enquanto movimento histórico-cultural, caracteriza-se por quatro revoluções, nem sempre simultâneas em seu surgimento e evolução, a saber: a revolução científica, política, cultural e técnica. Alguns traços lhes são comuns, tais como: a centralidade da razão crítica e secular, a auto-referência (da própria razão e da liberdade humana) e o formalismo (matematização, dialetização, funcionalização, estruturalismo, informatização). "A modernidade assim entendida está em crise"[3], sobretudo em sua manifestação a partir da segunda metade do século XX, quando a racionalidade chegou aos seus limites e quando fracassaram os sistemas filosóficos totalizantes.

2. A proposta pós-moderna

A linha que distingue a pós-modernidade da modernidade pode ser tênue, até inexistente, ou ser portadora de traços marcadamente diversos. Trata-se de um debate ainda aberto em nossos dias, no qual encontramos três posições distintas: a neo-conservadora, a pós-moderna e a da teoria crítica e racionalidade comunicativa.

Segundo a posição neo-conservadora, não há outro momento histórico; trata-se de uma crise causada pela modernidade cultural, pelo seu espírito hipercrítico e libertário como por um acento no estético-expressivo. "Isto se manifesta no experimentalismo individualista, na busca da fruição imediata e na tentativa de conseguir auto-realização e autenticidade sem normatividade"[4]. Falta a essa posição a percepção dos vínculos estruturais entre as manifestações que ela critica e a lógica capitalista de mercado que ela aceita sem um distanciamento crítico necessário. A ideologia neoliberal traz conseqüências óbvias, tais como uma sociedade individualista, hedonista e consumista até deslizar no niilismo prático. Certas posições conservadoras entre os cristãos favorecem este jogo ao aceitar ingenuamente a sociedade capitalista tardia, ao mesmo tempo em que se opõe ao iluminismo.

As leituras na linha da pós-modernidade captam, por sua vez, o fracasso dos sistemas unitários e totalizantes dos grandes relatos ideológicos e passam a valorizar a diferença, o pluralismo, a relativização, a desconstrução, o dissenso e o diferendo. Colocam em cena e dão cidadania aos muitos estilos díspares, ao próprio de cada linguagem e formas de vida, à fruição instantânea. É como "dançar nos abismos" (Nietzsche), ou seja, dançar diante da libertação ética e estética de novas possibilidades. Mesmo com elementos de razão crítica, trata-se de um "pensamento frágil" (G. Vattimo), de uma racionalidade plural, heterogênea, ambígua, sem nexos convergentes (a não ser transversais).

A teoria crítica e da racionalidade comunicativa (J. Habermas, K.-O. Apel) afirma que o projeto moderno não foi concluído e, além disso, contém uma utopia a se realizar. Ele contém uma reserva utópica à medida que se dá uma virada lingüística e uma superação da filosofia do ego para buscar a "unidade na ação e na razão comunicativa (Habermas) e na comunidade (ideal e real) de comunicação (Apel)"[5] . Trata-se de alcançar, por meio da linguagem, uma unidade, mesmo que frágil e transitória[6] ; isto permite superar a colonização do mundo da vida quer vinda do econômico (mercado) quer vinda do político-administrativo (burocracia). Pensa-se, então, a modernidade em termos de comunidade de comunicação e em termos de linguagem e de ação significativa, no seu sentido social e público.

As posições acima, na leitura das mudanças em curso, antes de receber as sistematizações que vimos, foram vividas, passaram pela experiência e apontaram para um estado de ânimo ainda hoje presente. Portanto, existem hoje experiências constitutivas deste tempo que se batizou de "pós-modernidade". Entre a modernidade e a pós-modernidade, verifica-se o momento do "desencanto". Já não se acredita mais na possibilidade de transformar o mundo na proposta do iluminismo ocidental, em cuja linguagem ou cânones se inspirou inclusive o próprio marxismo. Chega-se ao final do século XX e vai-se em direção ao século XXI com ar de cansados, numa cultura do vazio. Os analistas deste momento usam até palavras de grande porte, "divinas" segundo alguns, mas a realidade é mesmo sórdida, atravessada por "uma avareza secreta, uma inveja corrosiva e um afã de poder destruidor"[7] . As palavras altissonantes não conseguem esconder uma realidade de fato deprimida. O invólucro verbalmente tranqüilizador deixa entrever uma vida dura e insuportável. O arranjo racionalmente convincente deixa escapar que o alardeado progresso é apenas mais um mito, que o sexo e a diversão arrastam o céu ao chão qual "suco de neon" contra a depressão.

"Enquanto tem gasolina no motor, pise no acelerador" (Joaquín Sabina). Quer-se, na verdade, viver num descompromisso o mais absoluto; porém, sem orientação ética, sem solidariedade; antes, com uma gana de aproveitador incansável. Chega-se a um "egoísmo iluminado", assim descrito: "A vida é tão dura e tão insuportável que vale mais morrer vivendo 'bem' do que preservar a vida privando-se do viver bem"[8]. A realidade aponta de fato para a solidão. A pós-modernidade não é feliz. Traz no seu bojo melancolia e saudades. Sente que o "céu está cada vez mais longe e mais alto" e a terra, mesmo com grandes shoppings e supermercados repletos, não consegue garantir mais ou vender nem um pouco de autenticidade. Vive-se fortes doses de ambigüidade, de perplexidade e de paradoxo.

3. Viver intensamente e levar vantagem...

Quer-se, hoje, viver o momento presente, numa ânsia e até avidez, embalados pelo "prazer". Importa "pisar no acelerador", degustar da vida e, sempre que possível, levar vantagem em tudo. Importa alimentar o desejo, sem freios, num individualismo radical. Cultivam-se o emocionalismo, o sincretismo, o prazer[9].

"Há uma cultura hedonista e psicologista que incita à satisfação imediata das necessidades, estimulando o atendimento urgente dos prazeres; o paraíso, o bem-estar e o conforto são colocados em pedestal. Consumir solitariamente, esbanjar, viajar, divertir-se, relaxar, nada a renunciar, centrar-se ingenuamente num egoísmo feroz, tudo desculpabilizar. Uma fronteira parece levantar-se entre o anestesiamento da consciência e a indiferença em relação a tudo o que está fora do homem"[10].

No desejo emancipatório, o indivíduo acaba no isolamento; eis que está solitário. Aparenta autonomia, mas é reticente e desconfiado. Descrente frente aos projetos históricos, cético frente aos padrões éticos e valores morais. Na verdade, ele cede facilmente aos encantos ou à pressão desse contexto cultural, deslizando facilmente numa mentalidade utilitarista e consumista.

"Esta mentalidade utilitarista atingirá também sua vida afetiva, regendo-se acima de tudo pelo próprio bem-estar pessoal. Deste modo, sua vida girará em torno de si mesmo, sob o domínio do imperativo individualista. Não aderindo a uma fonte global de sentido, apresenta-se ele como alguém sem convicções, frágil, instável"[11]

Os marcos referenciais liquefazem-se, minando sentidos e valores. Vive-se sem balizas disciplinares e institucionais. O indivíduo acaba mergulhado de vez em sua própria subjetividade, na esfera privada, num verdadeiro culto ao individualismo de cunho narcisista. Aliam-se, então, o individualismo, o consumismo e o narcisismo, formando uma teia que prende o humano e que está revelando a sua força desumanizadora .[12].

"Este cenário tende a configurar as pessoas em todas as suas dimensões. Se, por um lado, se propaga a idéia de que o indivíduo é livre, autônomo, sujeito de si e da história, por outra lado, eis que ele se torna facilmente vulnerável, tendo dificuldade até de auto-identificar-se. Apresenta-se instável e incapaz de estabelecer relações duradouras e de assumir engajamento por um tempo mais longo. Entrega-se facilmente ao consumismo, buscando saciar-se para assim preencher os vazios de sua vida, não raro comprometedores; assume uma atitude mimética ante a publicidade; fica à mercê das 'ondas' do momento, sugeridas sobretudo pelos meios de comunicação social. Além de extremamente frágil, este indivíduo revela-se vulnerável"[13].

A economia de mercado, por sua vez, desmantelou o Estado providência, protetor dos cidadãos, porém não extirpou a corrupção, o desmando, os conchavos tecidos nos bastidores, num assalto à coisa(res) pública. É assim destruída a confiança dos cidadãos, sem aparecer uma alternativa ético-política ante o vazio da imoralidade que questiona poderes e instituições. A crise é, por excelência, ética. Ela tem contornos claros, atinge em profundidade o ser humano e alastra-se por toda a sociedade. Encontra conivência por todos os lados e setores.

Este quadro de crise ética invade áreas há pouco insuspeitas, como as das religiões ou diferentes igrejas. No tocante à honestidade, identificamos, não poucas vezes, falta de ética na forma como se manipula o dinheiro. Há situações de nítida falta de transparência. Outras situações constrangem pela busca de vantagens pessoais, desvios onerosos, rombos aviltantes, negócios mal contados e geridos, ante os quais geralmente se usa a política dos "panos quentes". Há, inclusive, situações comprometedoras de desvio de dinheiro público.

4. O retorno da ética!

Ante à situação presente, percebemos uma crise que lhe é inerente. Há, é claro, tentativas de redefinição deste quadro pós-moderno a partir de novos pólos norteadores. Há quem identifique um fenômeno de desmodernização[14]; outros captam a existência de uma "redefinição pós-moralista"[15]. Não falta quem constate um movimento de volta da ética[16], bem como o resgate da mística e da subjetividade[17]. Estaria em gestação, hoje, uma nova disposição social dos valores morais[18]. Se entrevemos um caos, ele seria, na verdade, apenas aparente, pois tratar-se-ia, antes, de uma "desordem organizadora" ou de um "caos organizador".

O individualismo reinante já dá mostras de graus de responsabilidade, aberto às regras morais, à eqüidade, aberto ao futuro, como que numa reabilitação da 'inteligência' sob forma de ética. Isto mostra, por um lado, que as sociedades não conseguem viver sem um regulador e, por outro lado, que os "breviários ideológicos deixaram de responder às urgências desse momento"[19]. Isto fez Gilles Lipovetsky afirmar: "O século XXI será ético ou não existirá"[20]. Ou, segundo Regis de Morais: "Repor a ética como referência à capacidade humana de ordenar as relações a favor de uma vida digna é desafio da atualidade"[21].

Quando se pensou que a tendência seria, inclusive, viver sem religião, eis o retorno ao religioso, numa reapropriação do universo religioso/transcedental, sob forma de uma bricolagem dos aportes rurais com os da cidade[22]. Já no final dos anos 60, o fenômeno aparece sob a forma de novos movimentos religiosos rurais, arregimentando citadinos que tinham voltado para o campo, seguidos depois de grande número de movimentos urbanos[23]. No entanto, o fenômeno dá-se tendo como componente uma subjetividade liberada, sem passar necessariamente pelo crivo das grandes instituições, deixando emergir a espiritualidade, numa busca de experiência de Deus, coligada a um senso ético da vida[24].

Este senso ético da vida não é estranho ao ser humano; a ética "não é um elemento marginal e extrinsecamente justaposto à pessoa humana. Constitui, antes, um elemento essencial e estrutural de seu mesmo ser, enquanto a pessoa se define como ser 'significativo' e 'responsável', ou seja, como ser que possui estampado indelevelmente dentro de si um 'significado' (logos, ordo) próprio (...) e que é chamado a realizá-lo pela e mediante a sua 'liberdade responsável'"[25].

Assim, podemos afirmar com segurança que a ética é uma instância que mobiliza o humano; cultiva a liberdade e funda-se na responsabilidade. Gera compromisso e honestidade. Ela é uma capacidade humana que precisa ser sempre mais desenvolvida, para que possa ser acionada em todos os âmbitos de nossa vida e de nossas organizações. É como um dom a ser desdobrado sempre.

Os diferentes graus do instituído ou codificado necessitam estar respaldados na ética para que possam responder com adequação à função que lhes é própria. Afirmamos, por isso, a necessidade de uma "construção" ética do instituído[26]. Toda vez que nos organizamos em associações, cooperativas, movimentos, sindicatos, partidos ou governo e até em religião e/ou buscamos estabelecer metas, causas, valores, ideais, faz-se necessário acionar a capacidade ética do ser humano. Instituir, organizar ou codificar algo sem ética é como pretender navegar com uma canoa furada e/ou sem rumo, ou seja, não demora a afundar ou não chega a lugar algum.

Em nossos dias, é urgente redescobrir a ética e prestar muita atenção aos caminhos que ela nos aponta. A ética mobiliza o ser humano naquilo que lhe é vital, nas várias dimensões, e engloba a natureza toda. Ela se distingue como capacidade crítica, reflexiva e de discernimento do ser humano. Ela é indispensável no processo de "produção" ou sistematização dos valores, dos ideais, das normas, nos níveis quer implícitos[27] quer explícitos[28]. Tem, inclusive, a função de investigá-los na sua fundamentação, eficacidade e pertinência e depurá-los sempre que não estejam exercendo a função que lhes é própria. "O homem, quando ético, é o melhor dos animais: mas separado da lei e da justiça é o pior de todos"[29].

Conclusão

A consciência das problemáticas de nossos dias nos faz muitas vezes acusar a modernidade e a pós-modernidade de todos os males. Esta postura pode revelar-se extremada, já que as responsabilidades são, na verdade, sempre partilhadas. É sempre melhor, antes de condenar, buscar compreender. Isto supõe, é claro, um conhecimento das realidades no seu concreto e na sua complexidade e diversidade. Em vez de ficar repassando as responsabilidades aos outros, talvez convenha assumi-las. "Passou o tempo da diabolização – do individualismo, da moral dos tempos hedonistas, da empresa, da mídia; é tempo da responsabilização individual e coletiva, o que implica insisto, abertura de espírito, pois como agir bem julgando mal?"[30]

A ética está retornando. Ela está nas primeiras páginas quando a questão é a luta contra a corrupção, nas comissões de bioética, na gerência dos negócios em empresas, na presença da mídia, na gestão da filantropia etc. Verificamos uma real reivindicação social de mais ética, de parâmetros morais, de balizas norteadoras fruto de um consenso comum em termos de valores. Ou seja, é notória a revitalização da ética. Porém, esta revitalização ocorre sob uma nova disposição social, numa nova regulamentação social da ética.

Existe, sim, um novo sopro ético, uma busca de criar um "mínimo de consenso fundamental no que tange a valores, normas e posturas"[31]. "O agir ético deve constituir o quadro óbvio do comportamento humano e social"[32]. E diante da quebra das bolsas do mundo inteiro, soa forte a necessidade da valorização da ética neste mundo dos mercados e negócios, como já era assinalada há tempo. Para Gilles Lipovetsky, "a valorização da ética dos negócios pode ser compreendida como uma reação à degringolada das práticas desonestas do business e ao individualismo desenfreado, mais preocupado com a rentabilidade imediata que com investimentos a longo termo, mais voltado para a especulação vertiginosa que para a conquista de mercados"[33]. "Não haverá ordem mundial sem uma ética mundial"[34].

O significado social deste novo sopro ético será objeto de um outro estudo. A revitalização da exigência ética merece ser devidamente analisada e perspicazmente identificada enquanto reivindicação moral das sociedades contemporâneas e enquanto representa uma "tarefa interna"[35] , no contexto de uma "intimidade moral"[36] que cada um traz em si mesmo.

Bibliografia

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Frei Nilo Agostini, ofm
Doutor em Teologia pela Universidade de Ciências Humanas de Strasbourg, França, Professor de Teologia Moral na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (São Paulo) e na Faculdade de Teologia da Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo).



........................................................................................................................
Notas

[1] Cf. POOLE, Ross, Moralidad y Modernidad: El porvenir de la ética, Barcelona, Editorial Herder, 1993.

[2]
Ibidem, p. 211

[3]
SCANNONE, Juan Carlos, O debate sobre a modernidade no mundo do Atlântico Norte e no Terceiro Mundo, Concilium 244 (1992/6), p. 97.

[4]
Ibidem, p. 96-97.

[5]
Ibidem, p. 98.

[6]
Cf. HABERMAS, Jürgen, Nachmetaphysiches Denken, Frankfurt, Suhrkamp, 1988, p. 155.

[7]
Cf. GONZÁLES FAUS, José Ignacio, Desafio da pós-modernidade, São Paulo, Paulinas, 1996, p. 14.

[8]
Ibidem, p. 16.

[9]
Cf. ORTIZ, Renato, Mundialização e cultura, São Paulo, Editora Brasiliense, 2003, p. 15.

[10]
TAVARES, C. Q., Entre certezas e desafios: Ética sexual católica e concepção de sexualidade humana hoje, Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro, PUC, 2006, p. 32.

[11]
FRANÇA MIRANDA, Mario, A salvação cristã na modernidade, Perspectiva Teológica, fascículo 59, janeiro de 1991, p. 21.

[12]
Cf. VALADIER, Paul, Moral em desordem: Um discurso em defesa do ser humano, São Paulo, Loyola, 2005, p. 19.

[13]
AGOSTINI, Nilo, Pós-modernidade e ser humano, Revista de Cultura Teológica, fascículo 63, 2008, p. 121.

[14]
Cf. TOURRAINE, Alain, Pourrons-nous vivre ensemble? Égaux et différents, Paris, Fayard, 1997, p. 34s.

[15]
Cf. LIPOVETSKY, Gille, O crepúsculo do dever. A ética indolor dos novos tempos democráticos, Lisboa, Dom Quixote, 1994, p. 56.

[16]
Cf. ibidem, p. 23.

[17]
Cf. HERVIEU-LÉGER, D.; CHAMPION, F., Vers un nouveau christinisme, Paris, Cerf, 1986, p. 137s.; BOFF, Leonardo, A voz do arco-íris, Brasília, Letraviva, 2000.

[18]
Cf. VALADIER, Paul, L'anarchie des valeurs. Le relativisme est-il fatal? Paris, Albin Michel, 1997.

[19]
Cf. A. TOURAINE, op. cit., p. 23.

[20]
LIPOVETSKY, Gille, op. cit., p. 235.

[21]
MORAIS, Regis de, "Ética e vida social contemporânea", Tempo e Presença, n° 263, maio/junho de 1992, p. 5.

[22]
Cf. POITEVIN, G.; RAIKAR, H., Femmes coolis en Inde, Paris, Syros, 1994; C. PÉTONNET (dir.), Ferveurs contemporaines, Paris, Harmattan, 1993.

[23]
Cf. D. HERVIEU-LÉGER, D.; F. CHAMPION, F., op. cit., p. 137ss.

[24]
Cf. BOFF, L., op. cit., passim.

[25]
TETTAMANZI, Dionigi, Bioetica. Nuove frontiere per l'uomo, IIª edizione riveduta e ampliata, Casale Monferrato, PIEMME, 1990, p. 6.

[26]
Cf. AGOSTINI, Nilo, O resgate do vital humano na "produção" ética e inculturada do instituído, in Ética cristã e desafios atuais, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, p. 15 et seq.

[27]
Até do próprio ethos, raiz mais profunda ou 'matriz' do humano, porque pode conter valores e contra-valores.

[28]
Em todas as graduações do instituído.

[29]
ARISTÓTELES, citado por PEGORARO, Olinto A., Ética é justiça, 2ª edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1997, p. 9.

[30]
CHARLES, Sébastien, Prefácio, em LIPOVETSKY, Gilles, Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia, empresa, Porto Alegre, Editora Sulina, 2003, p. 17.

[31]
KÜNG, Hans, Projeto de ética mundial: Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana, São Paulo, Paulinas, 1992, p. 49

[32]
Ibidem, p. 56.

[33]
LIPOVETSKY, Gilles, op. cit., p. 44.

[34]
KÜNG, Hans, op. cit., p. 57.

[35]
Cf. PRITCHARD, Michael S., On becoming responsible, University Press of Kansas, 1991, p. 10.

[36]
Cf. STRAWSON, P. F., Freedom and resentment and other essays, London, Methuen, 1974, p. 35.